Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1406/08.2TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
GERENTE
GERENTE DE SOCIEDADE
GERENTES DE FACTO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RP202301181406/08.2TAVFR.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Ressalvados os casos em que da titularidade do cargo de mero administrador de direito resultam deveres de agir (dever de garante) e este não os cumpra voluntariamente, apenas a gerência de facto, real e efetiva, constitui requisito da responsabilidade dos gerentes, não bastando a mera titularidade do cargo (gerência nominal ou de direito).
II - Não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente nominal ou de direito o efetivo exercício da função.
III - Mas, tal não significa que da qualidade de gerente nominal ou de direito não se possa extrair a presunção judicial da gerência de facto, baseada em regras da vida, da experiência e da lógica, por ser natural que quem é nomeado, para um cargo, o exerça efetivamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1406/08.2TAVFR. P1


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 1406/08.2TAVFR, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira – J3, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferido acórdão que o condenou pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, da previsão dos artigos 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 2, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de três anos de prisão, suspensa na respetiva execução pelo período de cinco anos, sob a condição de proceder ao pagamento ao Estado da quantia devida de €212.601,78 (duzentos e doze mil, seiscentos e um euros e setenta e oito cêntimos) e acréscimos legais”; paralelamente, foi o arguido absolvido da imputação reportada ao n.º 3 do artigo 104.º do RGIT, assim como foi julgada improcedente a perda de vantagens, requerida pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal.
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Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes
“conclusões”, que se transcrevem:
1) Nesta data de Setembro de 2022, no caso sub judice, já ocorreu a prescrição do Procedimento Criminal.
2) Pelo que, deverá ser declarado extinto o presente procedimento criminal, por verificação da prescrição, pois desde a ocorrência dos factos tributários (ano de 2003) relativamente à Sociedade "M..., Lda." até à data de hoje ( ano 2022), já decorreram 19 anos.
3) Existindo nulidade do Acórdão do Tribunal a quo por falta de pronuncia, na medida em que o colectivo de juízes não se pronunciou sobre a invocada prescrição na Douta Decisão elaborada em 14 de Julho de 2022 (nulidade por falta de pronuncia), portanto, quando a prescrição já ocorreu.
4) Não sendo válido o argumento de que tal questão da prescrição já foi conhecida em momento anterior, designadamente, dois anos antes, uma vez que o que interessa saber é se à data de proferir o Acórdão (14-07-2022) o procedimento já estaria extinto por prescrição.
5) No caso dos autos, no âmbito do RGIT, o prazo de prescrição do crime é de dez anos.
6) Estabelece a lei que "(. . .) A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade, (. . .) ".
7) Pelo que, no caso sub judice, já se passaram 19 anos, e sendo a prescrição de 10 anos + 5 anos = 15 anos, ocorreu notoriamente a prescrição do procedimento criminal.
8) Por outro lado, da prova produzida em audiência, designadamente, dos depoimentos gravados das testemunhas ouvidas em Audiência de Julgamento, Inspetores Tributários BB, CC e DD, assim como as testemunhas EE (contabilista), FF, GG, HH e II, nunca os factos dados como provados na fundamentação da Douta Sentença, factos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada resultariam provados, pois não resultou provada a Gerência de Facto do arguido AA ao tempo a que se reportam os factos, ano de 2003.
9) Não poderia in casu o digno tribunal a quo ter proferido Sentença condenatória do arguido, com base na prova testemunhal produzida, antes se impondo outra solução: a absolvição integral do recorrente da acusação contra si formulada.
10) O recorrente impugna a Douta Sentença proferida sobre toda a matéria de facto, constantes dos Pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada, pois tais pontos dão como provada o exercício da gerência de facto de AA e tais factos não resultam provados do depoimento de nenhuma testemunha, pelo contrário, as testemunhas HH e II declararam nos seus depoimentos que a Sociedade M... era uma empresa familiar cujo dono era o pai KK e que no ano de 2003, por razões de saúde, AA e Rocha nem sequer trabalhou na Sociedade M....
11) Nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência apontou o arguido AA como gerente de facto da Sociedade M... no ano de 2003, a saber:
A testemunha EE, contabilista ao tempo da Sociedade M..., no dia 17 de Maio de 2022, às 1 O h e 26 minutos disse o seguinte:
"Eu nunca lá fui"
"A contabilidade era feita lá no meu escritório" "Lançava aquilo que eles nos levavam"
Ou seja, esta testemunha nem se deslocou às Instalações Fabris da Sociedade M... uma única vez, pelo que não sabe quem geria de facto a Sociedade M....
E questionado em audiência se sabia quem era o gerente da Sociedade M..., o mesmo respondeu: "Pela escritura eram dois gerentes, o Senhor AA e o Senhor KK"
12) Pelo que, ao contrário do que é dito no Douto Acórdão, página 19, a conclusão errada de que o arguido AA era o gerente de facto da Sociedade não "sai reforçada pelo depoimento da testemunha EE, que foi TOC da l..., Lda. e declarou que, pese embora nunca tenha ido às instalações da empresa [era uma empresa de cortiça], era o arguido quem lhe levava os documentos da sociedade M..., Lda., para que o depoente pusesse fazer a contabilidade da refenda sociedade, razão pela qual o conhecia. "
13) Ora, "levar documentos" ao Gabinete de contabilidade qualquer um o podia fazer. Entregar documentos qualquer "moço de recados" o faz, não é um acto de exercício de gerência.
14) E mais refere o Douto Acórdão, a páginas 19 e 20: "A dada altura, apareceu a fiscalização das finanças de Aveiro, viram toda a documentação, tiraram fotocópias dos documentos que entenderam [ que deixaram ficar, levando os originais}, fizeram apreensões, tendo sido o depoente, os dois fiscais e o arguido que assinaram o que foi necessário, facto corroborado pelo auto de apreensão de fls. 112 a 113 do Anexo II]. "
15) Ora, é verdade que AA era gerente de Direito da Sociedade M... no ano de 2003, todavia a gerência de facto não se pode presumir da gerência de Direito. Até porque, o Senhor KK também era ao tempo gerente de Direito da Sociedade M... no ano de 2003, e no entanto, não é arguido nestes autos.
16) É do conhecimento geral que quem assina a documentação, a dita "papelada" é sempre o gerente de Direito, nomeadamente, para Instituições Bancárias ou demais organismos públicos, incluindo as Finanças. Todavia, reitera-se, apesar de determinada pessoa ser gerente de Direito, não quer dizer que seja de facto, ou seja, quem efetivamente gere de facto a Sociedade, quem comanda toda a actividade da empresa, decidindo e praticando actos de gerência.
17) E mais refere o Douto Acórdão a páginas 20: "É certo que a este propósito as testemunhas HH e II irmãos do arguido, referiram que quem geria a empresa era o seu pai, entretanto falecido, sendo este quem mandava e decidia".
18) E, ao contrário do que é dito no Douto Acórdão a páginas 20 e 30, as testemunhas HH e II disseram que era o pai o dono e gerente de facto da Firma M..., Lda. de uma forma explicita e invocando mesmo o temperamento do pai, que era uma pessoa autoritária perante os 6 filhos, portanto, não corresponde à verdade que as Testemunhas HH e II tenham dito que era o pai KK o gerente "de forma genérica e vaga, não tendo concretizado qualquer ato que nos permitisse tirar tal conclusão. "
19) Aliás, a testemunha HH disse em audiência de julgamento no dia 31 de Maio de 2022, às 14 h e 10 m, o seguinte: "Nós fazíamos o que o nosso pai mandava"
Mais disse que : " o meu irmão estava doente e afastou-se ... " 20) Mais referiu a testemunha HH que o pai era o dono da empresa M... e até do próprio imóvel onde estava instalada a Sociedade M... e que o pai deu de hipoteca o imóvel ao Banco para conseguir um empréstimo para a empresa M... (ora temos aqui um acto explicito de gerência de facto), cujo Acórdão omite a sua importância, pois o comum dos cidadãos "não anda a dar a sua casa como garantia em hipoteca de um crédito concedido à Firma do vizinho." E em anexo à Contestação foi junta a Certidão Predial do prédio (Pavilhão Industrial) para confirmação desta factualidade.
21) Aliás, a testemunha HH no final do seu depoimento "desabafou" dizendo que a M... era uma empresa do pai e que todos os irmãos (6) trabalhavam lá, e que o documento constante nos autos em que o irmão assume toda a responsabilidade, mais não foi uma tentativa ( conseguida) para salvaguardar o pai e a família, pelo que não era justo o irmão AA assumir sozinho uma culpa que não tem!
22) Mais, não é verdade que a testemunha II tenha prestado um depoimento vago e contraditório, pois confirmou que era o pai o dono da empresa M... e até do próprio imóvel onde estava instalada a Sociedade M... e que o pai deu de hipoteca o imóvel ao Banco para conseguir um empréstimo para a empresa M..., confirmando o depoimento da testemunha anterior, sua irmã.
23) Em suma, não é verdade o referido na página 21 do Douto Acórdão de que "o depoimento comprometido e parcial das testemunhas HH e II, irmãos do arguido, não foi de modo a abalar a prova produzida de que quem exercia, de facto, as funções de gerência da sociedade M..., Lda. era o arguido quem, aliás, nos termos que também constam do respetivo relatório social sempre foi "o rosto da empresa da sua familia",
24 Pois, há cerca de 20 anos, "o rosto da empresa da sua família" de seis irmãos era o seu pai, KK.
25) E, ao contrário do que é dito no Douto Acórdão a páginas 21:" última palavra para referir, a este respeito, que o facto de o pai do arguido ter dado de hipoteca um prédio urbano da sua propriedade como garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade M..., Lda. [nos termos que constam do documento junto com a contestação a fls. 1217 verso e ss.], tal, como é obvio, não consubstancia ou comprova qualquer ato de gerência pelo mesmo." Ora, tal factualidade consubstancia notoriamente um acto de gerência, ou seja, pedir um crédito ao banco para a empresa M... e dar de garantia o prédio de que é proprietário.
26) Mais é referido no Douto Acórdão a páginas 21 o seguinte: "Acresce dizer que, como se refere no relatório de inspeção tributária de fls. 415 e ss., concretamente a fls. 422, foi sempre o arguido quem se apresentou perante a Inspeção Tributária como único responsável (gerente) pela M..., Lda., era sempre o arguido quem representava a M..., Lda. junto do gabinete de contabilidade U..., local onde exerce a atividade de Técnico Oficial de Constas da M..., Lda. à data dos factos, EE, bem como, todos os contactos estabelecidos com terceiros que se relacionaram com a M..., Lda. identificam esta sociedade como sendo a empresa do arguido, factos que foram corroborados, a titulo de exemplo, pelos documentos juntos aos autos a fls. 104 e a fls. 112 e ss., todos do Anexo II."
27) Ora, tal não corresponde à verdade, pois os Inspetores Tributários BB e CC nem falaram sobre essa factualidade, de quem era o gerente de facto da Firma M... e o Inspector DD até disse em Audiência que nem conhecia o arguido AA.
28) Mais, a testemunha EE ( contabilista), nunca foi às instalações fabris ver in loco quem era o gerente de facto da Firma M..., aliás limitou-se a dizer que o arguido AA entregava os "papeis" na contabilidade, mas nunca referiu que teve reuniões com o arguido para tratar dos assuntos da empresa.
29) A testemunha FF e GG, ambos disseram que não conheciam o Senhor AA. E questionado FF pelo ilustre Procurador: " o senhor teve negócios com o Senhor AA?" O mesmo respondeu que não. "E com a M...? ", o mesmo não respondeu .
30) E questionado pela Meritíssima Juíza: "O Senhor teve um AVC ?" O mesmo respondeu que sim.(Dia 17-05-2022, às 10 h e 50 minutos)
31) Nesta conformidade, nunca os factos dados como provados na fundamentação da Douta Sentença, factos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada resultariam provados, pois não resultou minimamente provada a Gerência de Facto do arguido AA ao tempo a que se reportam os factos, ano de 2003.
32) Assim sendo, por tudo quanto ficou exposto, o facto de o arguido ser gerente de direito, isso não quer dizer que seja gerente de facto da sociedade M..., Lda. , pelo que tal factualidade (Gerência de facto) não poderia ter sido dada como provada, da forma como o foi.
33) Aliás, a Douta Acusação contra o arguido, aqui recorrente, AA está notoriamente ferida de nulidade e consequentemente, o Douto Acórdão de que se recorre.
34) Efectivamente, existe nulidade da acusação, nos termos do artigo 283º, nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, nulidade esta que se argui e se invoca aqui para todos os efeitos legais.
35) Invoca aqui o arguido a nulidade da acusação, pois esta não indica quem recebeu cada uma das faturas aqui em causa??? Foi o LL??? Foi o Contabilista??? Foi o KK???
Não se sabe.
36) Parece, aliás, que a fiscalização e agora a acusação do Ministério Publico pretendeu apenas pôr em causa a credibilidade dos emitentes mas, como referia o Prof. Saldanha Sanches (in "A Quantificação da Obrigação Tributária", p. 361) a ausência de credibilidade subjectiva dos sujeitos não constitui fundamento da avaliação administrativa. Até, porque, se o perfil fiscal do sujeito passivo pudesse, em si mesmo, fundamentar as correções, isso implicaria que a presunção do artigo 75° da Lei Geral Tributária só valeria para os sujeitos passivos que nunca tivessem tido algum litígio com a administração tributária, o que não tem respaldo no texto da lei (Neste sentido, Acórdão do TCAN de 30/09/2014, Processo 313/06.8BEPNF).
37) "Na verdade, a circunstância de esta sociedade estar referenciada noutra ação de inspeção como emitente de faturas falsas não significa que as operações tituladas pelas faturas aqui em causa não correspondam a operações reais. E que um determinado sujeito passivo pode estar referenciado como emitente de faturas falsas e efectivamente emitir faturas que não têm subjacente qualquer operação económica e, simultaneamente, dedicar-se à actividade económica para que está colectado, prestando os correspondentes serviços ou fornecitnentos. O que está em causa não é saber se essa sociedade emitiu ou não faturas que não correspondem a operações reais, mas sim saber se as operações que constam das faturas aqui em causa, reportadas ao ano de 2003, correspondem ou não a operações reais" (in, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em Porto, 7 de Novembro de 2019, no Recurso interposto pela mandatária do aqui arguido, no Processo de Impugnação Nº 807/08.0BEVIS, página 19 do Acórdão).
38) Mais, a convicção do Tribunal a quo foi alcançada através da prova indireta ou indiciária, o que, em processo crime não deve ser prova válida para condenar seja quem for.
39) Mais, nunca se pode presumir uma gerência de facto de uma gerência de Direito e muito menos em processo criminal.
40) Nesta conformidade, existe clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois além de manifestamente errada, é claramente insuficiente para a fundamentação da condenação do recorrente, verificando-se o vício constante da al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP.
41) Errada interpretação da prova produzida e consequente erro de julgamento da matéria de facto, pois não pode julgar provado que o arguido AA é que era o gerente de facto da Sociedade M....
42) Mais, existe erro notório na apreciação da prova, pois a Juíza do Tribunal "a quo" dá como provado os factos constantes nos pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria dada como provada na Douta Sentença, quando não foi realizada a mínima prova que possibilitasse alicerçar uma condenação do arguido como gerente de facto.
43) Violação do princípio in dúbio pro reo. Efectivamente, existe no caso sub judice violação expressa do princípio in dúbio pro reo, não existe uma única prova concreta contra o arguido AA.
44) Dispõe o artigo 32°, n.02 da CRP que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
45) O princípio da presunção da inocência do arguido tem uma especial relevância em matéria probatória, decorrendo daquele importante princípio constitucional a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, isto é, o mesmo não tem que provar a sua inocência para ser absolvido.
46) As testemunhas Inspectores não presenciaram os factos.
47) Pois nada viram à época da ocorrência dos factos, não podendo assim garantir seja o que for com certeza absoluta.
48) Tais dúvidas deveriam ter imposto uma maior exigência nos depoimentos efectuados, e não se satisfazer apenas com meros indícios ou provas indirectas.
49) Ninguém presenciou os factos.
50) Nem existe no processo qualquer prova do exercício da gerência de facto pelo arguido no ano a que se reporta a acusação, designadamente ano de 2003.
51) Pelo contrário, existe prova documental (Certidão Predial com hipoteca) que demonstra que o gerente de facto é o Pai, KK.
53) Assim sendo, a douta Decisão recorrida, quanto à factualidade considerada provada, não se encontra devidamente fundamentada, com o que infringe o preceituado nos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2. Por tudo isto, no presente caso, face a tantas incertezas, devemos atender ao princípio do "in dúbio pró reo", segundo o qual perante a incerteza dos factos, o Tribunal devia absolver o arguido por falta de provas e por conseguinte rejeitar a posição da acusação.
54) Pelo exposto, deve o Tribunal "Ad Quem" concluir que o Tribunal "A Quo" fez uma errada interpretação e aplicação de Direito, alterando-se a douta Decisão recorrida e, consequentemente, absolver o arguido.
55) O Douto Acórdão não podia ter condenado o arguido, aqui recorrente, a menos que a actividade investigatória desenvolvida permitisse concluir (mas não permite, no caso sub judice) que os factos imputados nos autos ao arguido correspondem à realidade. Tendo, apesar disso, procedido a uma condenação sem qualquer fundamentação concreta, foram violados os princípios constitucional e legalmente consagrados, da legalidade, da justiça, do inquisitório, da busca da verdade material, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos.
56) Em processo penal cabe ao Tribunal “a quo" fazer a prova concreta, indubitável e sem qualquer dúvida, prova esta que notóriamente não logrou fazer.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a douta sentença recorrida e, em consequência, ser declarada a prescrição do procedimento criminal e absolvido AA, fazendo-se assim a habitual e esperada JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [1], após o que se procedeu a exame preliminar e, colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
As questões colocadas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
1) Da prescrição do procedimento criminal e respetiva omissão de pronúncia
2) Da nulidade da acusação art.283, nº3, al. b), Código Processo Penal
3) Da nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à gerência de facto - artigos 379.0, n.0 1, al. a) e 374.0, n.02, ambos do Código Processo Penal
4) Impugnação restrita: insuficiência da decisão e erro notório na apreciação da prova – art.410º, nº2, do Código Processo Penal
5) Impugnação ampla: errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido violados os princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da legalidade, da justiça, do inquisitório, da busca da verdade material, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada quanto ao exercício da gerência de facto de AA da Sociedade M....
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, no excerto relevante aqui impugnado.
Da decisão recorrida:
“O arguido apresentou contestação, invocando a prescrição do procedimento criminal e a nulidade da acusação, questões já apreciadas e decididas, no sentido da sua improcedência, mediante despacho proferido nos autos a fls. 1234 e ss., sendo de realçar que não há, neste momento, qualquer elemento de facto ou de direito que implique a necessidade da sua reapreciação, em sede de prescrição.
(...)

2.1. DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade M..., Lda. foi constituída a 26 de junho de 1998, com o NIPC ..., com a sede na Rua ..., em ..., Santa Maria da Feira, tendo por objeto a indústria de cortiça, enquadrada fiscalmente com o CAE ...
2. Tal sociedade veio a ser dissolvida, administrativamente, e encerrada a respetiva liquidação a 23 de novembro de 2011, encontrando-se com a matrícula cancelada.
3. Foram sócios e gerentes da M..., Lda. KK e o arguido AA.
4. Porém, foi o arguido AA quem sempre, inclusive no ano de 2003, de forma exclusiva, assumiu as funções de gerente de facto desta sociedade, competindo-lhe a representação perante os fornecedores, clientes e com a administração fiscal, emitindo e recebendo faturas e recibos, assinando cheques, chamando a si os deveres inerentes ao cumprimento das respetivas obrigações fiscais e tomando todas as decisões relativas ao giro comercial da sociedade arguida.
5. Esta sociedade esteve enquadrada em sede Imposto sobre Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) no regime geral e para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade mensal.
DOS EMITENTES
6. FF, com o NIF ..., esteve coletado para o exercício da indústria da cortiça entre 03/07/1986 e 13/10/1993 e para o exercício da atividade de comércio a retalho de materiais de bricolage, equipamentos sanitários, ladrilhos e materiais similares, entre 18/02/2004 cessando a 06/08/2004.
7. Entre os anos de 1999 e 2003, FF não esteve coletado para o exercício de qualquer atividade, nem apresentou qualquer declaração de rendimentos, nesses anos.
8. Em março de 2003, FF criou, ficticiamente, uma sociedade com o nome de S... Unipessoal, Lda., atribuindo-lhe o NIPC ... e o domicílio fiscal sito na Rua ..., freguesia ..., Santa Maria da Feira, sociedade esta inexistente, tratando-se de sociedade sem qualquer existência jurídica, nunca registada comercialmente e sem qualquer atividade declarada junto da autoridade tributária.
9. Fê-lo, com o propósito de prosseguir com a sua atividade criminosa de requisição, emissão e venda de faturas falsas, que vinha a desenvolver desde os anos anteriores e que manteve até março de 2003, data em que, através de tal pseudo-sociedade, requisitou livros de faturas e outros documentos associados com tal denominação, faturas essas que depois vendeu a vários utilizadores, entre os quais ao arguido AA, enquanto gerente da M..., Lda.
10. No ano de 2003, FF não exerceu qualquer atividade empresarial ou de qualquer outra natureza no sector da cortiça, nem por si nem através da sociedade fictícia que passou a usar, pois que, além do mais, não tinha quaisquer instalações, equipamento industrial ou viaturas, meios humanos ou administrativos, que suportassem qualquer atividade empresarial, ou de qualquer outra natureza no sector da cortiça, nomeadamente por referência às faturas abaixo descritas.
11. GG, com o NIF ..., coletou-se a 10/05/2002 para a atividade de Indústria de Cortiça, tendo requisitado livros de faturas e livros de guias de transportes.
12. Porém, este indivíduo apenas apresentou declarações de rendimentos relativos a trabalhador dependente e apenas relativas aos anos de 1999, 2001 e 2004, sendo não declarante fiscal em sede de IVA.
13. Nunca desenvolveu qualquer atividade empresarial ou de qualquer outra natureza no sector da cortiça, pois que, além do mais, não tinha quaisquer instalações, equipamento industrial ou viaturas, meios humanos ou administrativos, que suportassem qualquer atividade empresarial ou de qualquer outra natureza no sector da cortiça, nomeadamente por referência às faturas abaixo descritas.
14. R... Unipessoal, Lda., com NIPC provisório ..., é também uma sociedade fictícia, que foi criada por MM no ano de 2003, com o propósito de prosseguir com a sua atividade criminosa de requisição, emissão e venda de faturas falsas que exercia em nome individual, passando, assim, a usar esta “pseudo-sociedade”, com tal denominação.
15. Trata-se de uma sociedade que, apesar de ter sido requerido o respetivo registo e lhe ter sido atribuído um número de pessoa coletiva provisório, tal registo nunca foi concluído, tendo sido cancelado.
16. Tal sociedade nunca iniciou qualquer atividade junto da autoridade tributária, sendo uma sociedade não declarante em sede de IVA e IRC, designadamente durante o ano de 2003.
17. Através desta sociedade, MM requisitou livros de faturas e outros documentos associados, nelas inscrevendo como domicílio o apartado sito na Rua ... – Apartado ..., em Lisboa, faturas essas que depois vendeu a vários utilizadores, entre os quais a AA, enquanto gerente da M..., Lda.
18. Tal sociedade nunca existiu e nunca desenvolveu qualquer atividade empresarial ou de qualquer outra natureza no sector da cortiça, pois que, além do mais, não tinha quaisquer instalações, equipamento industrial ou viaturas, meios humanos ou administrativos, que suportassem qualquer atividade empresarial, ou de qualquer outra natureza, no sector da cortiça, nomeadamente por referência às faturas abaixo descritas.
DOS FACTOS
19. Durante o ano de 2003, AA decidiu inscrever na contabilidade da sociedade M..., diversas faturas que não correspondiam a qualquer transação real, com o objetivo de, através da contabilização de tais faturas, obter vantagens fiscais indevidas, nomeadamente em sede de IVA, deduzindo os respetivos valores, com o intuito de anular o valor de imposto que deveria de liquidar à administração tributária.
20. Para tanto, contou com a colaboração, de FF, de indivíduo de identidade não concretamente apurada que viria a preencher ou a permitir que preenchesse e/ou a entregar a fatura que infra se indicará com o timbre de GG e de MM a quem deu a conhecer o seu objetivo criminoso, solicitando-lhes a necessária colaboração na emissão de faturas que pretendia inscrever na contabilidade daquela sociedade M..., Lda.
21. FF, o referido indivíduo de identidade não concretamente apurada que viria a preencher ou a permitir que preenchesse e/ou a entregar a fatura que infra se indicará com o timbre de GG e MM, anuíram à proposta de AA, o que fizeram a troco de recompensas pecuniárias, em quantias não concretamente apuradas, perfeitamente cientes que as faturas que iriam emitir não correspondiam a qualquer transação real e que as mesmas seriam integradas na contabilidade daquela empresa.
22. Com tal objetivo, FF, em nome individual e usando a sociedade fictícia S... Unipessoal, Lda., o referido indivíduo de identidade não concretamente apurada que viria a preencher ou a permitir que preenchesse e/ou a entregar a fatura que infra se indicará com o timbre de GG e MM através da sociedade fictícia R... Unipessoal, Lda., emitiram ou permitiram que emitissem, as faturas abaixo descritas sabendo, ou admitindo como possível, que da sua contabilização poderiam advir vantagens patrimoniais para sociedade M..., Lda. de valor superior a €15.000,00 por cada declaração fiscal que aquela apresentasse.
23. Assim, tais indivíduos emitiram, ou permitiram que emitissem, as seguintes faturas em nome da sociedade M..., Lda. que entregaram a AA:

24. Na posse de tais faturas, AA integrou-as na contabilidade da sociedade arguida M..., Lda. contabilizando-as nos respetivos períodos e apresentando as declarações fiscais de IVA com base nas mesmas.
25. Dessa utilização, o arguido, através da sociedade que geria, obteve vantagens patrimoniais ilegítimas em sede de IVA, com a dedução indevida nas respetivas declarações nos seguintes valores:

PERÍODO IVA DEDUZIDO
janeiro 03 €19.554,80
fevereiro 03 €45.486,00
março 03 €23.241,75
abril 03 €17.855,00
junho 03 €37.178,44
julho 03 €40.677,10
novembro 03 €28.608,69
TOTAL €212.601,78

26. Tais faturas são falsas, pois que não correspondem a qualquer transação efetuada entre os seus emitentes e a sociedade representada pelo arguido.
27. Pelo que, a utilização por parte da sociedade M..., Lda. das aludidas faturas teve como consequência a dedução indevida de IVA que implicou a obtenção das vantagens patrimoniais supra descritas.
28. Tais vantagens ilícitas obtidas pelo arguido através da sociedade M..., Lda., foram conscientemente, facultadas pelos referidos indivíduos/emitentes, que agiram combinados com o arguido, nos termos supra expostos.
29. AA atuou sempre com o propósito, conseguido, de obter para si e para a sociedade que representava, benefícios económicos que sabia serem ilegítimos, à custa da diminuição do património do Estado, e ainda de utilizar as importâncias monetárias correspondentes em seu proveito e em proveito da sociedade que geria, não obstante saber que tais quantias não lhe pertenciam, nem à sociedade, mas sim ao Estado.
30. Para tanto, contou com a colaboração daqueles indivíduos que agindo com repartição de tarefas entre si e consigo, anuíram ao desígnio criminoso que implementou, perfeitamente cientes ou admitindo como possível e com isso se conformando, que as mesmas iriam ser integradas na contabilidade da sociedade M..., Lda. e que da sua contabilização adviriam para aquela sociedade vantagens patrimoniais de valor superior a €15.000,00.
31. Agiu sempre o arguido AA de forma livre, consciente e deliberada, perfeitamente ciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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Da situação pessoal do arguido:
Consta do respetivo relatório social que:
32. O arguido tem origem numa família de modesta condição socioeconómica e cultural, sendo o mais velho de uma fratria de seis elementos.
33. Cresceu num ambiente familiar equilibrado, com sentimentos de pertença e solidariedade que se mantêm ao longo dos anos, denotando esta família, no momento atual (irmãos, cunhados e sobrinhos) um relacionamento próximo e elevada partilha, que confere ao arguido sentimentos de segurança e bem-estar.
34. Concluiu o 6º ano de escolaridade e iniciou, ainda muito jovem, a vida laboral ativa, vindo a adquirir experiência profissional no ramo da cortiça como operário por conta de outrem, na empresa que empregava o pai, valorando o conhecimento e a experiência que lhe possibilitaram coadjuvar o pai na empresa que, entretanto, este constituiu neste mesmo ramo de atividade.
35. Os seus irmãos vieram a integrar a empresa paterna, transformando-a numa empresa familiar, onde o arguido passou a assumir as funções de empresário, vindo o arguido a constituir sucessivamente várias empresas, designadamente a M..., Lda. (em 1998), a M... - Unipessoal, Lda. (em 2002) e a sociedade Cortiças D... - Sociedade Unipessoal, Lda. (em 2004), entre outras.
36. No seu percurso laboral sobressai a cessão de quotas e/ou o encerramento de empresas confrontadas com dívidas a entidades públicas (segurança social, A.T.), mantendo, contudo, a representação das mesmas perante trabalhadores, clientes e fornecedores. Com efeito, tendo passado a trabalhar por conta de familiares, nomeadamente, na empresa do seu irmão JJ, que, entretanto, constituiu empresa em nome individual, utilizando instalações, equipamentos e pessoal daquela que fora a sua própria empresa, a sua imagem social e, nomeadamente, no ramo empresarial, mantinha-se associada à posse e gestão das mesmas.
37. Contraiu matrimónio com NN quando tinha 18 anos de idade, tendo o casal uma única filha, com 37 anos de idade, com agregado familiar autónomo constituído há já vários anos.
38. O casal construiu habitação própria e aí residiu até à separação conjugal, há cerca de 10/11anos, sendo a casa atualmente pertença da filha, onde o ex-cônjuge também reside.
39. O arguido refere que sofreu um acidente cardiovascular em 27/12/2015, padecendo atualmente de diferentes problemas de saúde, designadamente, diabetes, cardíacos e depressão, afirmando estar em acompanhamento nas respetivas consultas de especialidade e junto do seu médico de família.
40. No domínio da sua inserção social, constata-se o fortalecimento de laços sociais e associativos pela via da columbofilia, paixão que partilhava com o próprio pai, assumindo a presidência da Sociedade Columbófila local há já vários anos, afirmando que não se recandidatará ao cargo, por não se sentir emocionalmente estabilizado.
41. Por altura dos factos aqui em apreço, AA mantinha atividade profissional por conta própria, laborando em empresa ligada ao fabrico de rolhas de cortiça.
42. Com a dissolução do casamento, por divórcio, há cerca de 10/11 anos, AA retornou ao agregado materno, passando então a residir com a mãe e com o irmão JJ.
43. Em 03/08/2018 deu início ao cumprimento de uma pena de prisão efetiva de 3 anos, à ordem do processo nº 1047/08.4TAVFR, pela autoria de crime de fraude fiscal qualificada, sendo que por acórdão cumulatório foi condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, por crimes de fraude fiscal.
44. No decurso do cumprimento da pena de prisão beneficiou da proximidade relacional com os seus familiares através de contactos telefónicos e em regime presencial de visitas efetuadas pelos mesmos.
45. Manteve o cumprimento da prisão efetiva até 13/04/2020, data em que lhe foi restituído à liberdade com aplicação de perdão (Lei 9/2020).
46. Após a sua libertação, fixou residência na morada indicada nos presentes autos, junto da sua mãe, de 83 anos de idade, viúva, reformada.
47. Residem em habitação própria, dotada de condições de habitabilidade e comodidade.
48. Num pavilhão anexo, mantém-se em laboração uma empresa ligada à cortiça, atualmente pertença de uma irmã e sobrinho do arguido, onde os seus irmãos também laboram, bem como o próprio o fez, em regime de biscates, segundo referiu, correspondendo às instalações onde a empresa do seu pai e também as suas e a de seu irmão JJ outrora laboraram, assim justificando a sua imagem social atual associada ao ramo empresarial (continua a ser o rosto da empresa da sua família).
49. Segundo o arguido, também trabalhou num café e na construção civil, aproveitando todas as oportunidades de trabalho, designadamente, tarefas indiferenciadas que vem conseguindo, contudo, atualmente não tem conseguido trabalho de espécie nenhuma.
50. Não especificou os seus rendimentos atuais, dando conta de que vive em condições deficitárias, necessitando de apoio familiar, nomeadamente, da sua mãe, reformada.
51. O ex-cônjuge, com quem sempre manteve um bom relacionamento, assegura a confeção das refeições da família (arguido, mãe e irmãos do mesmo), bem como, a prestação de cuidados de assistência à pessoa idosa.
52. Esta família, no seu meio vicinal, está referenciada ao ramo empresarial no setor da cortiça, expondo dedicação ao trabalho, partilha e coesão familiar.
53. O arguido refere um quadro vivencial fragilizado pela sua situação de saúde (depressão e dificuldades em superar a vivência prisional), afirmado dificuldades em ultrapassar os sentimentos de vergonha e constrangimento decorrente da vivência prisional, tendo recorrido a apoio psicológico.
54. AA vem sofrendo várias condenações e, inclusivamente, foi condenado em pena efetiva de prisão por factos de idêntica natureza aos aqui denunciados, tendo beneficiado de perdão e libertação antecipada.
55. Perante a intervenção judicial anterior, o arguido reconhece a ilicitude e a oportunidade da reação penal, identifica as consequências negativas da sua conduta para a sociedade em geral.
56. Verbaliza vontade de pautar o seu comportamento em conformidade com os normativos sociais, demonstrando consciência crítica face à ilicitude da sua conduta.
57. Tem, ainda, pendentes contra si, neste tribunal, os processos nºs 77/06.5IDAVR e 342/16.3IDAVR.
58. Pese embora venha desde há vários anos a ver-se confrontado com o sistema de administração da justiça penal, em múltiplos processos de idêntica natureza do presente, segundo os técnicos de reinserção social, denota, no momento atual, uma adequada interiorização do desvalor da sua conduta, identificando as consequências negativas da sua conduta para a sociedade em geral e para o ramo da cortiça em particular.
59. Tendo estado privado da sua liberdade e tendo beneficiado de perdão, expõe, no momento atual, intenção de pautar a sua conduta por valores e princípios legais.
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60. O arguido já foi condenado:
i. Por decisão proferida em 13.11.2002, transitada em julgado em 09.10.2003, pela prática em 31.07.2000 de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de €4,00, já declarada extinta pelo pagamento [Processo Comum-Singular nº 2712/00.0TAVFR];
ii. Por decisão proferida em 18.01.2005, transitada em julgado em 03.02.2005, pela prática em 01.1998 de um crime de falsificação de documento, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €4,00, já declarada extinta pelo pagamento [Processo Comum-Singular nº 4280/00.3TAVFR];
iii. Por decisão proferida em 26.11.2009, transitada em julgado em 16.12.2009, pela prática em 2001 de um crime de abuso confiança contra a Segurança Social, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €4,00, já declarada extinta pelo pagamento [Processo Comum-Singular nº 393/06.6TAVFR];
iv. Por decisão proferida em 10.07.2012, transitada em julgado em 17.09.2012, pela prática em 01.03.2007 de um crime de abuso confiança contra a Segurança Social, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00, já declarada extinta pelo pagamento [Processo Comum-Singular nº 943/10.3TAVFR];
v. Por decisão proferida em 24.02.2014, transitada em julgado em 24.02.2014 pela prática em 06.10.2009 de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de €5,00, já declarada extinta pelo pagamento [Processo Sumaríssimo nº 1292/09.5TAVFR];
vi. Por decisão proferida em 29.05.2015, transitada em julgado em 10.05.2017, pela prática em 2000 de dois crimes de fraude fiscal qualificada, na pena de 3 anos de prisão efetiva [Processo Comum Coletivo nº 1047/08.4TAVFR].
vii. Por decisão proferida em 17.11.2017, transitada em julgado em 19.11.2018, pela prática em 2006 de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 5 anos, sujeito a condição do pagamento da quantia de 30.000,00 [Processo Comum-Coletivo nº 75/08.4TAVFR];
viii. Por decisão proferida em 14.02.2018, transitada em julgado em 12.07.2018, pela prática em 10.01.2002 de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por igual período [Processo Comum-Singular nº 1411/08.9TAVFR].
ix. Efetuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos processos n.ºs 1411/08.9TAVFR e 1047/08.4TAVFR, foi o mesmo condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva, já declarada extinta pelo cumprimento, tendo o arguido beneficiado do perdão concedido pela Lei 9/2020 de 10-04 [Processo de Cúmulo Jurídico n.º 3758/18.7T8VFR].
x. Por decisão proferida em 02.05.2019, transitada em julgado em 05.12.2019, pela prática em 05.2001 de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 5 anos condicionada ao pagamento da quantia de €219.230,99 e respetivos acréscimos legais [Processo Comum-Singular nº 790/18.4T9VFR].
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2.2. DA MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Com relevância para a decisão da causa, além dos factos que se encontram logicamente excluídos pela factualidade provada, não se provou que:
As recompensas pecuniárias referidas na factualidade provada correspondiam a uma percentagem sobre o valor do IVA inscrito em cada fatura a emitir.
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2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal coletivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental com a prova oral e aferindo-se, quanto a esta última, do conhecimento de causa, da isenção dos depoimentos prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais.
A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal. O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
Uma tal convicção existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
O princípio in dubio pro reo, enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se, precisamente, na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Opera, exclusivamente, sobre o regime do ónus da prova – a dúvida resolve-se a favor do arguido.
Por fim, cumpre trazer à colação que a convicção do tribunal está submetida ao princípio da legalidade da prova, decorrendo do artigo 125.º do Código de Processo Penal que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, prevendo-se no artigo 126.º do Código de Processo Penal os métodos proibidos de prova.
Porém, a convicção sobre a verdade dos “factos juridicamente relevantes” não se forma exclusivamente com base na prova direta, que frequentemente não existe ou não se encontra disponível, podendo igualmente alcançar-se através da prova indireta ou indiciária, ou seja, da demonstração de factos dos quais se pode, por raciocínio lógico, inferir a existência daqueloutros “factos juridicamente relevantes” [2]
A convicção do tribunal pode ser alcançada com base em raciocínios lógico-dedutivos ou demonstrativos, que se elaboram a partir da prova indiciária. Estamos no domínio das presunções naturais que são, afinal, produto das regras da experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto conduz à existência de outro.
No que se reporta à gerência da sociedade, fazendo apelo a regras da experiência, refira-se que o usual é que o gerente de direito seja o efetivo representante e detenha a gerência de facto da sociedade, o poder representativo e deliberativo, e também as responsabilidades que lhes são inerentes.
Não havendo razões ou circunstâncias que inculquem que assim não seja no caso concreto é de considerar que quem exercia a gerência de facto no que se reporta à sociedade M..., Lda. era o arguido AA, seu gerente de direito.
Aliás, tal conclusão sai reforçada pelo depoimento da testemunha EE, que foi TOC da M..., Lda. e declarou que, pese embora nunca tenha ido às instalações da empresa [era uma empresa de cortiça], era o arguido quem lhe levava os documentos da sociedade M..., Lda., para que o depoente pusesse fazer a contabilidade da referida sociedade, razão pela qual o conhecia.
A dada altura, apareceu a fiscalização das finanças de Aveiro, viram toda a documentação, tiraram fotocópias dos documentos que entenderam [que deixaram ficar, levando os originais], fizeram apreensões, tendo sido o depoente, os dois fiscais e o arguido que assinaram o que foi necessário [facto corroborado pelo auto de apreensão de fls. 112 a 113 do Anexo II].
Mais esclareceu que já não via o arguido há vários anos, desde a altura em que o depoente se recusou a continuar a prestar os seus serviços de TOC à M..., Lda., facto que, na altura, deu a conhecer à direção de Finanças e à Ordem [facto corroborado pelos documentos juntos a fls. 49 a 51 e 53 a 55 do Anexo II].
Mais se recordava que, segundo a escritura da sociedade, eram dois os seus sócios gerentes, concretamente o arguido e o seu irmão JJ, mas nunca conheceu este último, tal como nunca conheceu o pai deles.
O que tinha a tratar relativamente à sociedade M..., Lda. fazia-o sempre com o arguido [são exemplos disso os documentos juntos a fls. 53 a 55 do Anexo II, assinado pelo arguido] e era este que lhe dizia que “não lhe pagava a avença porque não tinha dinheiro, estava mal de finanças” [o que reforça a conclusão que era o arguido quem comandava e tomava decisões sobre a M..., Lda. e que estava a par da situação financeira da empresa].
É certo que a este propósito as testemunhas HH e II irmãos do arguido, referiram que quem geria a empresa era o seu pai, entretanto falecido, sendo este quem mandava e decidia, todavia aludiram-no de forma genérica e vaga, não tendo concretizado qualquer ato que nos permitisse tirar tal conclusão. Diga-se, aliás, que, na ânsia de tentar fazer crer ao tribunal que o arguido estava arredado dos destinos da empresa, a testemunha HH até foi mais longe, afirmando que era o contabilista que ia “às fábricas” falar com o seu pai, todavia tal facto foi frontalmente contrariado pelo testemunho perentório do contabilista da empresa EE que, conforme se referiu, nunca se deslocou à M..., Lda. e não conhecia sequer o pai do arguido.
Aliás, a testemunha HH referiu mesmo que a dada altura (data que não concretizou) o arguido foi operado ao coração e “afastou-se dos negócios” (sic), daí a depoente ter ficado com a gerência, o que só corrobora o facto de que era o arguido quem decidia os destinos da empresa, pois se assim não fosse, não careceria de ser substituído.
Diga-se, ainda, que a testemunha II além de ter prestado um depoimento vago, foi todo ele contraditório entre si, tanto referia que ia à empresa de vez em quando, como referia que ia lá praticamente todos os dias, tanto referia que desconhecia o que o arguido fazia na fábrica, como dizia que o via muitas vezes a trabalhar na broca. O seu depoimento não foi, de todo, consistente e seguro, pelo que não nos mereceu qualquer credibilidade.
Em suma, o depoimento comprometido e parcial das testemunhas HH e II, irmãos do arguido, não foi de modo a abalar a prova produzida de que quem exercia, de facto, as funções de gerência da sociedade M..., Lda. era o arguido quem, aliás, nos termos que também constam do respetivo relatório social sempre foi “o rosto da empresa da sua família”.
Diga-se, ainda, que de toda a documentação junta bem como das testemunhas inquiridas (com exceção dos referidos irmãos do arguido), o nome do pai do arguido KK nunca foi referido.
Uma última palavra para referir, a este respeito, que o facto de o pai do arguido ter dado de hipoteca um prédio urbano da sua propriedade como garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade M..., Lda. [nos termos que constam do documento junto com a contestação a fls. 1217 verso e ss.], tal, como é obvio, não consubstancia ou comprova qualquer ato de gerência pelo mesmo.
Acresce dizer que, como se refere no relatório de inspeção tributária de fls. 415 e ss., concretamente a fls. 422, foi sempre o arguido quem se apresentou perante a Inspeção Tributária como único responsável (gerente) pela M..., Lda., era sempre o arguido quem representava a M..., Lda. junto do gabinete de contabilidade U..., local onde exerce a atividade de Técnico Oficial de Constas da M..., Lda. à data dos factos, EE, bem como, todos os contactos estabelecidos com terceiros que se relacionaram com a M..., Lda. identificam esta sociedade como sendo a empresa do arguido, factos que foram corroborados, a título de exemplo, pelos documentos juntos aos autos a fls. 104 e a fls. 112 e ss., todos do Anexo II.
Assim sendo, por tudo quanto ficou exposto, o facto de o arguido, além de gerente de direito, ser também o gerente de facto da sociedade M..., Lda. só poderia ter sida dado como provado, da forma como o foi.
No que respeita à impressão de faturas, recibos e documentos de transporte, cumpre atender que se encontra sujeita a condicionalismo legal, sendo possível apenas em estabelecimentos autorizados, sob requisição escrita do adquirente utilizador.
Concomitantemente, constando aposta em determinado documento assinatura, não sendo a mesma impugnada, e inexistindo razões ou indícios para questionar a sua autenticidade, é de reputar a mesma como genuína.
Como tal, e por apelo também a regras da experiência, atender-se-á que as faturas (ou outros documentos equivalentes, designadamente recibos, guias de transporte e de remessa) com o timbre de uma determinada pessoa foram por ela requisitadas e posteriormente utilizadas, facto que, conforme se analisará infra, assim apenas não ocorreu no que respeita ao emitente GG, que se limitou a requisitar a fatura a si respeitante, a qual viria a ser emitida por terceiro.
No presente caso cabe, também, trazer à colação que os comerciantes estão, por regra, obrigados a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei comercial e fiscal.
A contabilidade deve obedecer ao Plano Oficial, um conjunto de regras de natureza técnica (no sentido de princípios que resultaram da prática contabilística) que se transformaram em normas jurídicas cogentes por força da lei. E que, por isso, vai impor um certo tipo de arrumação para os dados comercial e fiscalmente relevantes [3].
Há ainda a considerar que na atividade mercantil é prática corrente a troca de correspondência e de documentação, pois a realização de negócios, no âmbito de atividade mercantil, gera, comummente, fluxos documentais que estão para além da fatura, do recibo, das guias de remessa e de transporte.
Nesta senda, a inexistência de elementos desse cariz nas empresas (diga-se, aliás, “empresas inexistentes”), por referência aos supostos negócios subjacentes às faturas aqui em causa e relativamente aos emitentes, não é destituída de significado.
Significativa é, também, a ausência de movimentação bancária ou discrepância significativa entre esta e o volume de negócios escriturados.
Há a considerar, ainda, que a emissão e utilização de faturas falsas, na aceção decorrente do n.º 2 do artigo 104.º do RGIT, é um ilícito, por regra, de comissão plurisubjectiva [4].
Importa, por outro lado, considerar que o IVA é um imposto cujo mecanismo de funcionamento é do conhecimento da generalidade das pessoas e, por maioria de razão, das pessoas com contacto à atividade mercantil.
O conluio e o acordo entre os envolvidos - mormente entre quem cede ou entrega a fatura falsa e quem a utiliza na escrita para efeitos fiscais, em detrimento do Erário Público - decorre, por apelo a regras de experiência comum, de condutas externas concertadas dos mesmos.
O conhecimento e vontade de atuação, de modo livre e esclarecido, por parte do arguido é, igualmente, uma decorrência das suas condutas exteriores objetivamente constatadas.
Cumpre, ainda, apelar desde logo às regras da experiência para concluir que, havendo emissão de faturas falsas, quem as emite ou faculta a terceiros, ciente de que vão ser inscritas na contabilidade e nas declarações periódicas de IVA, o faz a troco de contrapartida de valor económico. Com efeito, quem se sujeita a praticar ato ilícito, em proveito de terceiro, arriscando ser detetado e sancionado, apenas o faz se lograr obter vantagem que sinta como compensadora da sua conduta e dos riscos envolvidos, compensação essa que, aliás, o próprio emitente FF admitiu ter recebido [“Vendi faturas sem mercadoria” (sic)].
Refira-se, ainda, que o tribunal coletivo valorou os relatórios técnicos, bem como as informações e os relatórios de inspeção tributária e respetivos anexos que foram juntos aos autos relativamente à sociedade utilizadora e aos emitentes das faturas em causa, apenas na medida em que relevam factos ou circunstâncias fácticas diretamente apreendidas, verificadas ou constatadas, isto é, expurgou-se dos mesmos e, por isso não se atendeu, aos segmentos em que são expressos meros juízos subjetivos, opinativos e quando assentam em declarações dos inspecionados ou depoimentos de terceiros. Aliás, tais relatórios técnicos, informações e relatórios de inspeção tributária foram atendidos em conjugação com as demais provas produzidas, mormente com os depoimentos dos inspetores tributários prestados em audiência de julgamento, que permitiram, na recolha de elementos de prova que indicaram, elaborar os mesmos, bem como o manancial de prova documental trazida aos autos.
Há que assinalar que a incidência societária da empresa gerida pelo arguido, bem como a respetiva caracterização fiscal e apontamentos sobre o respetivo percurso contributivo resultam, de um modo geral, da certidão da Conservatória do Registo Comercial e do teor do print do cadastro fiscal juntos aos autos, devidamente concatenadas com os depoimentos dos inspetores tributários, ouvidos no decurso da audiência de julgamento.
A inscrição das faturas na escrita da sociedade resulta, conjugadamente, dos depoimentos dos inspetores tributários, devidamente concatenados com as faturas juntas aos autos, com os relatórios de inspeção tributária e informação tributária e com o relatório técnico já referido.
Além disso, é de realçar, no caso, os seguintes meios de prova:
 Relatório técnico de fls. 145 e ss./1.º vol. na parte respeitante à sociedade M..., Lda. e ao ano de 2003;
 Relatório de inspeção tributária à sociedade M..., Lda., de fls. 4 e ss., Anexo I e respetivos documentos anexos, apenas na parte que diz respeito ao ano de 2003;
 Relatório de inspeção tributária à sociedade M..., Lda., de fls. 415 e ss./2.º vol. (584 e ss./3.º vol.);
 A certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls. 38 e ss. do Anexo II, da sociedade M..., Lda.;
 Print da síntese cadastral de fls. 69 do Anexo II, da sociedade M..., Lda.;
 Autos de apreensão de documentos de fls. 128 e ss. do Anexo I e de fls. 112 e ss., 124 e ss. do Anexo II;
 Certidão permanente respeitante à sociedade M..., Lda., de fls. 301 e ss./2.º vol.
 Relatório técnico de fls. 519 e ss./ 2.º vol. (688 e ss./3.º vol.), respeitante aos emitentes C... Unipessoal, Lda.
 Informação da inspeção tributária de fls. 180 e ss. do Anexo II e documento anexo de fls. 204 do Anexo II respeitante aos emitentes C... Unipessoal, Lda.
 Informação da inspeção tributária de fls. 207 e ss. do Anexo II, respeitante ao emitente GG e documentos anexos de fls. 213 a 217 do Anexo II;
 Relatório técnico de fls. 539 e ss./ 2.º vol. (708 e ss./3.º vol.), respeitante à emitente R... Unipessoal, Lda.;
 Informação da inspeção tributária de fls. 238 e ss. do Anexo II, respeitante à emitente R... Unipessoal, Lda. e documentos anexos de fls. 241 a 245 do Anexo II;
 As faturas juntas aos autos a que se reporta o libelo acusatório, que se encontram nas folhas ali indicadas;
 Documentação constante dos anexos que incorporam este processo, à qual aqui será feita concreta alusão quando tal se justificar.
 Declarações periódicas e respetiva informação da AT de fls. 1261 e ss..

Posto isto, passar-se-á a analisar a situação concreta dos autos:
§ Vejamos:
O arguido usou do seu direito ao silêncio, não tendo prestado declarações em audiência de julgamento.
A testemunha FF, emitente de faturas à M..., Lda., referiu, de forma perentória, precisa e isenta, que trabalhava para uma empresa de cortiça [cujo nome não se recordava] da qual era funcionário, nunca tendo tido qualquer fábrica de cortiça, qualquer armazém, ou qualquer escritório, mas “passava faturas”, “vendia faturas sem mercadoria” (sic), embora já não se recordasse se entregava faturas em branco.
Confrontado com todas as faturas que constam do libelo acusatório, quer as respeitantes a FF, quer as respeitantes à sociedade S... Unipessoal, Lda. foi perentório ao negar a sua emissão, não reconhecendo nem a letra nem a assinatura ali apostas como sendo suas.
O seu depoimento é corroborado pelo depoimento da testemunha DD, Inspetor Tributário, DF de Aveiro, que depôs no sentido de que FF já era procurado pela autoridade tributária há vários anos, tendo mesmo o depoente chegado a deslocar-se a casa da irmã deste para tentar saber do seu paradeiro. Este emitente não tinha instalações, não tinha compras e não tinha dinheiro nas contas bancárias, factos estes que eram transversais à sociedade S... Unipessoal, Lda., melhor dizendo, à pseudo sociedade, que surge, exclusivamente, para FF dar continuidade à atividade de emissão de faturas falsas. A este propósito, realça-se, que o próprio NIPC é um número fiscal inválido, inexistente, logo não existe qualquer sociedade com esse número, nem qualquer sociedade com a denominação “S... Unipessoal, Lda.”, já para não falar que o domicílio que consta das respetivas faturas corresponde a uma residência particular.
Ou seja, tratam-se de faturas falsas, pois não titulam qualquer real negócio existente entre os ali referidos emitentes C... Unipessoal, Lda. e a mencionada sociedade M..., Lda., gerida pelo arguido.
O depoimento objetivo prestado por esta testemunha, foi ainda ao encontro do plasmado no relatório técnico de fls. 519 e ss./ 2.º vol. (688 e ss./3.º vol.), respeitante aos emitentes C... Unipessoal, Lda. e à informação da inspeção tributária de fls. 180 e ss. do Anexo II e documento anexo de fls. 204 do Anexo II, a que, igualmente, se atendeu.
Atendeu-se, ainda, aos documentos juntos aos presentes autos e anexos respeitantes a estes emitentes, constando dos mesmos cópias de todas as faturas timbradas em nome de C... Unipessoal, Lda. [nos termos em que consta dos factos provados, cujas folhas ali constam identificadas].
Relativamente ao emitente GG, o próprio referiu não só não conhecer o arguido como também não conhece a sociedade M..., Lda.
Nunca exerceu qualquer atividade na área da cortiça, e, tal como atualmente, já em 2003 era motorista internacional.
De facto, chegou a coletar-se na área da cortiça, e até chegou a adquirir um carimbo e a requisitar livros de faturas, guias de transporte e recibos na gráfica L..., porém, acabou por entregar tudo ao seu contabilista pedindo-lhe para que este tratasse de encerrar tal atividade, que nunca chegou a exercer. Só em 2005, ao pretender proceder à exploração de um café e coletar-se no ramo da hotelaria, é que tomou conhecimento que tal assunto não tinha sido tratado, data em que ficou a conhecer que circulavam faturas em seu nome, faturas essas que, tal como a dos autos [com a qual foi confrontado], nunca emitiu ou assinou, tal como nunca vendeu qualquer cortiça.
O depoimento objetivo, escorreito, espontâneo e claro prestado por esta testemunha, foi ainda ao encontro do plasmado na informação da inspeção tributária de fls. 207 e ss. do Anexo II, respeitante ao emitente GG e documentos anexos de fls. 213 a 217 do Anexo II.
Relativamente à emitente R... Unipessoal, Lda. relevou, além dos documentos supra indicados respeitantes a esta sociedade, o depoimento do já referido Inspetor Tributário DD que esclareceu ter elaborado o relatório técnico junto aos autos 708 e ss./3.º vol. [que se encontra na integra a fls. 539 e ss./ 2.º vol.] respeitante à emitente R... Unipessoal, Lda., com base na informação que lhe chegou, precisando, por sua vez, a testemunha BB, também Inspetor Tributário, DF Aveiro, que a informação da inspeção tributária de fls. 238 e ss. do Anexo II, respeitante à emitente R... Unipessoal, Lda. e documentos anexos de fls. 241 a 245 do Anexo II resumem as diligências que efetuaram a respeito desta sociedade.
Da conjugação de tais elementos de prova decorre que se trata de uma empresa que nunca teve quaisquer instalações, nunca chegou a estar definitivamente constituída, apenas havendo o seu registo oriundo do RNPC, o seu domicilio fiscal é inexistente, trata-se de um contribuinte sem atividade, e o seu representante MM exercia funções numa área completamente distante da aqui em apreço – era eletricista, no entanto, faturava milhões na área da cortiça.
Além disso, CC Inspetor Tributário, DF Aveiro, focou-se na inspeção à sociedade M..., Lda., tendo mesmo se deslocado às instalações dessa empresa.
Começou por esclarecer que centralizaram a investigação em diversos emitentes e dessa investigação constataram que C... Unipessoal, Lda., GG e R... Unipessoal, Lda., não tinham qualquer atividade desenvolvida no ramo da cortiça.
Tinham faturas emitidas para a sociedade M..., Lda., daí terem procedido à investigação também desta sociedade.
F tinha uma faturação que representava, no total, mais de 50 milhões de euros, porém nunca teve qualquer atividade na área da cortiça que justificasse esses valores, não tinha instalações, não tinha atividade, “a sua atividade era emitir faturas falsas” (sic).
Diligenciaram, durante cerca de 8 meses para o conseguir localizar, o arguido é que lhes facultou o contacto dele, mas nem assim o conseguiam contactar. Só o conseguiram fazer quando tomaram conhecimento que FF tinha que se apresentar no posto da GNR de Lourosa, no âmbito de uma medida de coação, para onde se deslocaram. Pese embora este tenha, inicialmente, negado a atividade e a faturação, chamaram ao posto o senhor da tipografia, onde tinham sido requisitados os livros de faturas e este senhor, lá no posto da GNR, reconheceu FF como tendo sido quem requisitou os livros das faturas.
Além disso, deslocaram-se ao local onde nas faturas figurava como sendo a sede da empresa e constataram que era a casa de habitação de um senhor de idade, que nem conhecia FF.
FF vivia num anexo da casa da irmã e possuía um veículo automóvel velho, com o para-choques amarrado com uns arames, facto incompatível para quem faturava milhões.
Questionaram FF se podiam ver a bagageira do veículo automóvel e quando ele abriu a mala, verificaram que ali se encontrava uma pasta com livros de faturas e recibos de C... Unipessoal, Lda.
O emitente GG era camionista, trabalhava e trabalhou em diversas empresas de camionagem.
Não tinha qualquer ligação com a cortiça.
Só tinha o apartamento onde morava, não tinha instalações.
A R... Unipessoal, Lda. foi criada por MM que criou a empresa com sede em Lisboa. Efetuaram diligencias junto do gabinete de contabilidade e constataram que após ter sido criado um número de contribuinte provisório nunca mais MM apareceu naquele gabinete de contabilidade, que nem os honorários pagou.
Não possuía nada, nem funcionários nem instalações, correspondendo a respetiva sede a um apartamento, 6.º andar, sito em Lisboa.
Tratou-se de uma empresa que não passou da fase embrionária, ficando-se pelo número de contribuinte provisório, no entanto a respetiva fatura respeita a serviços de brocagem de 1470 fardos e escolha e topejamento de 7.644.000 rolhas, sem que possua quaisquer instalações, equipamentos e pessoal ao seu serviço.
Relativamente à sociedade M..., Lda. constataram que relativamente aos referidos emitentes só existiam as respetivas faturas e recibo, não havendo qualquer evidencia de que esses negócios tivessem ocorrido.
A faturação da M..., Lda. respeitante ao ano de 2003 era suportada praticamente nestes emitentes, o que corrobora o que já constava do relatório de inspeção tributária respeitante a esta sociedade, concretamente a fls. 434, de onde decorre que o valor do IVA liquidado pela M..., Lda. no ano de 2003, no valor global de €271.279,68 do qual apenas a quantia de €14.457,51 não se encontra absorvido por faturas falsas.
Os meios de pagamento alegadamente utilizados pela M..., Lda. para liquidação das faturas era em numerário, atingindo, em alguns casos, valores superiores a 600 mil euros, no que se reporta aos emitentes C... Unipessoal, Lda., o que, como é bom de ver, é inverosímil face às regras da experiência.
Além disso, conforme decorre de fls. 438 do mesmo relatório de inspeção tributária, há faturas que nem sequer são pagas, caso das faturas do emitente GG, que apesar de ter sido emitido documento da M..., Lda. a simular o pagamento por numerário, foi depois declarado sem efeito.
Mais esclareceu esta testemunha que ao longo da inspeção constataram que o arguido criou 4 ou 5 empresas. Sempre que inspecionavam uma empresa era criada outra.
Confrontado com o auto de notícia de fls. 3 e ss. e com as informações da inspeção tributária de 179 e ss., 206 e ss. e 238 e ss., todos do Anexo II, confirmou os mesmos.
Note-se que, pese embora esta testemunha também tenha confirmado que a M..., Lda. possuía instalações, maquinaria, trabalhadores e encontrava-se em laboração no ano aqui em causa, 2003, e que não punha em causa a capacidade produtiva da empresa, o certo é que as faturas em causa não espelham a realidade, desde logo no que respeita aos respetivos emitentes que, como se viu, não celebraram qualquer negócio com a arguida, não lhe venderam qualquer cortiça, rolhas, o que fosse, nem lhe prestaram quaisquer dos serviços que constam das mesmas, pelo que sempre se tratam de faturas falsas.
No mesmo sentido foi o depoimento do inspetor tributário BB.
Sobre os emitentes C... Unipessoal, Lda. declarou que quando abordaram FF este abriu o veículo automóvel e tinha um saco com livros de faturas, de recibos, guias de remessa, do C... Unipessoal, Lda.
Porém, não tinha instalações, nem pessoal, nunca lhe foram conhecidas compras de cortiça que pudesse vender, no entanto emitiu faturas no total de cerca 50 milhões de euros e nem 1000 euros tinha na sua conta bancária.
Tratava-se de um indivíduo que vivia da emissão de faturas, “era essa a sua profissão” (sic), chegando a vender livros inteiros de faturas.
Confirma a respetiva informação da inspeção tributária de fls. 179 e ss. do Anexo II.
O emitente GG coletou-se, mas nunca exerceu qualquer atividade no ramo da cortiça. Era um motorista de pesados.
Não exercia qualquer atividade na área da cortiça.
Não tinha empresa, trabalhadores, nada.
Confrontado com a informação da inspeção tributária de fls. 206 e ss. do anexo II confirmou o seu teor, esclarecendo que corresponde ao resume das diligencias efetuadas no terreno, com vista a aferir se GG exercia ou não atividade na área da cortiça.
Confrontado, ainda, com a informação da inspeção tributária de fls. 238 e ss. anexo II respeitante à R... Unipessoal, Lda. confirma que resume as diligencias que fizeram no terreno.
Concluiu dizendo que a caraterística comum a todos os emitentes é que não tinham instalações, pessoal, compras, nada, logo, se não havia compras, não podiam vender.
Note-se, portanto, que a inspeção tributária incidiu não apenas sobre a M..., Lda., representada do arguido, utilizadora das referidas faturas, como também, incidiu sobre os respetivos emitentes C... Unipessoal, Lda., GG e R... Unipessoal, Lda. resultando, à saciedade da prova ante analisada, como se deixou supra exposto, que estamos perante faturas falsas, “faturas simuladas”, pois entre os seus emitentes e a respetiva utilizadora sociedade M..., Lda. não existiu qualquer transação, não tendo aqueles emitentes lhe vendido a mercadoria, nem prestou os serviços titulados nas referidas faturas [o próprio GG e FF o referiram].
Perante todo o exposto, é apodítico que as faturas em causa nos presentes autos, inscritas na contabilidade da sociedade M..., Lda. e nas declarações periódicas de IVA, não têm correspondência a transações reais.
Verifica-se, portanto, a inclusão na contabilidade, de elevados montantes de compras (inputs) não acontecidas, as vertidas nos autos.
Conforme se constata, de todo quanto ficou exposto, os elementos probatórios acima enunciados, são plúrimos e, quando conjugados e logicamente valorados, convergem para uma só conclusão: a de que tais faturas não corresponderam às transações nelas mencionadas.
Os depoimentos testemunhais da defesa não derrogam as conclusões supra vertidas, não tendo merecido credibilidade bastante, tendo, antes, sido prestados de forma genérica e vaga, além de que a demais prova aponta no sentido inverso, conforme se acaba de analisar.
Uma última palavra para dizer que se revela inócuo para o desfecho dos autos saber se as vendas efetuadas pela sociedade M..., Lda., a sua capacidade produtiva e a sua capacidade financeira e os respetivos pagamentos foram, ou não, postos em causa, tal como se releva inócuo para o desfecho destes autos saber se o arguido adquiria cortiça na “Feira dos 10” ou no Alentejo, pois o que está aqui em causa é o facto de a mercadoria constante das faturas em apreço não ter sido adquirida aos respetivos emitentes, nem os serviços ali descritos foram por este prestados, continuando, portanto, a tratar-se de faturas falsas.
Quanto aos factos não provados o tribunal deu-os como tal por não ter sido feita qualquer prova segura nesse sentido, sendo que os invocados na contestação resultaram, logicamente, excluídos pela factualidade provada.
Quanto à situação sócio-profissional e económica do arguido o tribunal atendeu ao respetivo relatório social junto aos autos a fls. 1231 e ss.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido atendeu-se ao respetivo Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 1238 e ss”..
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Apreciando os fundamentos do recurso.
1. Da prescrição do procedimento criminal e respetiva omissão de pronúncia
O arguido recorrente veio invocar a extinção do procedimento criminal, por decurso do prazo máximo de prescrição – art.12 do Código Penal
Previamente suscita a nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente à mesma questão.
Contudo, como bem refere o Ministério Público, o tribunal a quo não se eximiu ao conhecimento da prescrição invocada, antes reiterou tratar-se de “… questões já apreciadas e decididas, no sentido da sua improcedência… sendo de realçar que não há, neste momento, qualquer elemento de facto ou de direito que implique a necessidade da sua reapreciação, em sede de prescrição”.
Assim, o que o tribunal a quo fez foi reafirmar a não prescrição do procedimento criminal, conhecida por despacho sob Referência: 120925613 de 23.03.2022 por não ocorrer a superveniência de quaisquer elementos que conduzissem ao decurso do respetivo prazo.
Daí que não se verifique a invocada nulidade por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 379.0, n.0 1, al. a) e 374.0, n.02, ambos do Código Processo Penal.
No mais, constatasse que não se verificou o prazo máximo de prescrição previsto no art.120º, nº3, do Código Penal.
Nos crimes de fraude fiscal em apreço, estamos perante a previsão do n.º 2 do artigo 21º do RGIT, pelo que o prazo prescricional a considerar é de 10 anos (facto, aliás, com que o arguido concorda), mas ressalvadas as interrupções e as suspensões ocorridas, conforme prevê o n.º 4 do referido artigo.
Com efeito, o prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º.”.
O recorrente aponta como fundamento da prescrição o número 3, do artigo 121.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 65/98, de 02 de setembro, vigente na data da prática dos factos, que reza o seguinte:
“3 - A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. (…)”.
Ora, segundo a regra geral do artigo 120.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 65/98, de 02 de setembro:
“1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;
e) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
3 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”
Haverá, por fim, que considerar a causa de suspensão especificamente prevista no artigo 21.º, n.º 4 do RGIT, que nos remete, no que para o presente caso importa, para o artigo 47.º, n.º1, do RGIT, segundo o qual “1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.”.
Ora, o arguido vem acusado, pronunciado e condenado pela prática de um só crime de fraude fiscal, cujo prazo de prescrição se inicia no dia em que o facto se tiver consumado e, tratando-se de um crime de execução continuada, no dia da prática do último ato (art.º 119.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal).
No que ao tipo objetivo do crime de fraude fiscal concerne, necessário – e suficiente – ao preenchimento da factualidade típica é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no nº 1 do art.º 103º do RGIT. Uma infração que se consumará mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar [5].
No crime de fraude fiscal punem-se desde logo os atos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses atos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não.
O crime de fraude fiscal consuma-se com a apresentação da declaração que há de servir de suporte para a liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias [6].
No caso concreto, o arguido, que era o gerente de direito e de facto, da sociedade M..., Lda., dolosamente, utilizou na respetiva contabilidade e inscreveu nas declarações periódicas de IVA respeitantes ao exercício de 2003 da M..., Lda. as faturas mencionadas no libelo acusatório, não correspondentes a transações ou prestações de serviços reais entre o emitente e o respetivo utilizador (faturas falsas), sendo o montante de IVA global de €212.601,78.
Dos pontos 23 a 28 dos factos provados resulta que as últimas faturas falsas utilizadas para defraudar a liquidação de IVA respeitam a novembro de 2003.
Posto isto, cumpre então verificar se ocorreu alguma causa de suspensão da prescrição, para efeitos da ressalva do cit. art.120º, nº3, do Código Penal, tendo presente que o prazo normal de prescrição acrescido de metade é de 15 anos [10 + 5], prazo esse que teria ocorrido em novembro de 2018.
Aquando da notificação da acusação ao arguido em 22-07-2021 (cfr. fls. 1146), circunstância que interrompe e suspende a prescrição, aquele prazo já teria decorrido.
Contudo, o prazo de prescrição fora anteriormente suspenso pelo menos desde o despacho que determinou a suspensão dos presentes autos ao abrigo do artigo 47.º, n.º 2, do RGIT, proferido a 07-07-2008, (cfr. despacho cuja certidão deu origem a estes autos) até ao trânsito em julgado do acórdão respeitante à impugnação judicial n.º 181/07.2BEVIS, ocorrido a 16-06-2021 (cfr. fls. 1108 e ss. e 1124).
Por força do referido despacho de 07-07-2008, atento o disposto no artigo 47.º do RGIT, operou-se a suspensão do processo e, consequentemente, a suspensão da prescrição do procedimento criminal – artigo 21.º, n.º, 2ª parte do RGIT.
Em suma, ressalvado o tempo de suspensão, não se verificou o prazo máximo de prescrição indicado pelo recorrente (n.º 3 do artigo 121.º, do Código Penal), donde improceder nesta parte o recurso.
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2. Da nulidade da acusação art.283º, nº3, al.b), Código Processo Penal
Invoca o arguido a nulidade da acusação, ao abrigo do artigo 283º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal.
Alega, para tanto, em síntese, que a acusação não descreve suficientemente os elementos que em concreto permitam o preenchimento típico do crime que lhe vinha imputado.
Sucede que na sequência da contestação do arguido, a questão já foi decidida por despacho sob Referência: 120925613 de 23.03.2022 (fls. 1234ss), o qual transitou em julgado, concluindo pela suficiência narrativa dos factos contidos na acusação, em obediência ao disposto no art.283º, nº3, al.b), Código Processo Penal.
De resto, pode ler-se na sentença recorrida que “O arguido apresentou contestação, invocando a prescrição do procedimento criminal e a nulidade da acusação, questões já apreciadas e decididas, no sentido da sua improcedência, mediante despacho proferido nos autos a fls. 1234 e ss..
Por conseguinte, formou-se caso julgado formal sobre a questão em apreço, improcedendo também nesta parte o recurso.
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3. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à gerência de facto
O arguido veio invocar a nulidade da sentença, por falta de fundamentação quanto à gerência de facto - artigos 379.0, n.0 1, al. a) e 374.0, n.02, ambos do Código Processo Penal.
A sentença deve conter, sob pena de nulidade, o exame crítico da prova, que envolve a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, os motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, as razões da credibilidade atribuída aos depoimentos, valoração de documentos e exames, que interferiram na formação da convicção do tribunal, de acordo com os comandos legais vertidos nos arts. 374º, nº 2 e 379º nº 1 alínea a) do Código Processo Penal.
Pois sempre que observa o condicionalismo legal, a motivação de facto permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior a análise do percurso lógico ou racional em que se apoia a decisão de facto. O que se exige é uma enunciação, ainda que sucinta, das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.
Ora, no que especificamente concerne à impugnada gerência de facto do recorrente, na decisão recorrida foi efetivamente levado a cabo o exame crítico do manancial probatório a que alude o citado art. 374º, nº 2.
Da leitura da decisão recorrida é possível reter que dela consta a respetiva e obrigatória motivação da decisão da matéria de facto, na qual o tribunal explicita e examina de forma suficientemente detalhada em que se estribou para fixar aquela factualidade, analisando criticamente, naquilo que aqui se impunha, as provas de que se socorreu.
Efetivamente, a sentença recorrida inclui, em sede própria, a explanação do raciocínio lógico em que o tribunal a quo ancorou essa decisão de facto, resultando, em suma, do confronto dos meios de prova produzidos e sujeitos a contraditório em audiência, avaliados à luz das regras da experiência comum.
Portanto, independentemente da discordância do recorrente sobre a interpretação da prova, a sentença inclui menção completa da prova atendida e em que se ancora a convicção do tribunal sobre a atuação atribuída ao arguido, pelo que a censura produzida no recurso carece de substrato.
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4. Impugnação restrita: insuficiência da decisão e erro notório na apreciação da prova – art.410º, nº2, do Código Processo Penal.
Invoca o recorrente que existe insuficiência da decisão e erro notório na apreciação da prova, ao considerarem-se provados os factos constantes nos pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 quando não foi realizada a mínima prova que possibilitasse alicerçar uma condenação do arguido como gerente de facto, tudo com os seguintes fundamentos previsto no nº 2 do art.410° do Cód. Proc. Penal (conclusões):
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
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Do erro notório na apreciação da prova
O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt.
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [7].
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Para se verificar este vício tem pois de existir uma “ (…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [8].
Também na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, recorda que o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se evidencia a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decidido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido. Este erro tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, acrescenta o mesmo Autor.
Por sua vez, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág.77, escrevem que tal vicio ocorre quando se verifica “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
Ao tribunal de recurso apenas cabe “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. [9]
Daí que o eventual erro na apreciação da prova, por regra, nunca emerge como erro notório na apreciação da prova. Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não invocar o vício do erro notório.
Contudo, estando em causa a “apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.
Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como se escreve no ac STJ 2013-07-18 (Rui Gonçalves) in www.dgsi.pt, “são os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e “imediata” podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas. A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal)”.
Em síntese, o vício vindo de referir refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva, na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
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Dito isto, a partir do texto da decisão recorrida, nenhum erro notório se verifica na apreciação dos factos impugnados quanto à gerência de facto do recorrente, nem o recorrente arguido o explica a partir do que se escreveu na sentença colocada em crise.
Consta-se, na verdade, que a análise efetuada pelo recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos meios de prova por si elencados, sobretudo os testemunhais e a interpretação subjetivada da sua mundividência, com a finalidade de contrariar a valoração da prova vertida na sentença recorrida quanto aos pontos de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório.
Da leitura da motivação de recurso resulta, isso sim, que nessa parte o arguido pretende impugnar a matéria de facto nos termos da impugnação ampla a que se refere o art.412º, nºs 3, 4 e 6.
Na verdade, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as mais elementares regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Do seu texto e contexto lógico e de fundamentação não resulta que os factos dados como provados, ora impugnados pelo recorrente arguido, se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.
Nesta parte, tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é absurda, ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.
O que o recorrente arguido pretende é colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
Ora, como já se disse, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.
Em conclusão, improcede nesta parte o recurso.
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Da insuficiência da matéria de facto
Argumenta o recorrente arguido, nos termos do artigo 410º, nº2, do CPP, ter havido insuficiência da matéria de facto provada, por si aqui impugnada, na medida em que não permite o juízo valorativo deduzido sob a matéria vertida naquele.
O vício previsto no art.410º, nº 2, al. a), ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito alcançada na decisão e sempre que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão final.
O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa pois que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
Deste modo, a insuficiência em causa neste vício decisório reporta-se aos factos indispensáveis para a decisão de direito, daí que o vício se considere demonstrado quando a sentença, por si só considerada evidencie que os factos dados como provados não permitiam atingir a decisão de direito a que se chegou. Ou seja, o vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a decisão de direito, em resultado de o tribunal ter omitido o dever de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
Portanto a insuficiência diz respeito aos factos e não à prova, por isso, o que importa indagar é se a sentença contém falha, hiato ou omissão ao nível dos factos e não se a decisão da matéria de facto tem apoio na prova ou se era exigível ao tribunal produzir ou valorar de forma diversa as provas, como vem invocado pelo aqui recorrente.
Ora a ocorrência do nomeado vício é justificada pelo recorrente arguido porque, em seu entender, o Tribunal a quo não foi rigoroso na sustentação e prova da matéria de facto que considerou provada a sua gerência de facto sob pontos aqui impugnados, não havendo, na interpretação que faz daquela, prova que o sustentasse.
No fundo, apela à sua convicção quanto à prova que foi produzida em audiência e que, em seu entender, impunha decisão diversa, o que nada tem a ver com a insuficiência enquanto vicio decisório, tal como acabou de se expor.
Há uma diametral diferença entre omissão na sentença de elementos do tipo e insuficiência de prova desses mesmos elementos do tipo, equivoco em que o recorrente notoriamente incorre.
O que o recorrente expressa é a sua divergência sobre o modo como a prova foi examinada e valorada na sentença, contrapondo uma diferente visão sobre a mesma, por não “concordar” com a decisão de facto, ou seja, que exista prova que permita suportar os pontos de facto impugnados.
A verificação do vício em causa implicaria a deteção, na própria decisão, de uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a imputação do crime em causa, o que não se vislumbra no texto da sentença, nem o recorrente a especifica na motivação e conclusões do recurso.
Deste modo, resta concluir que a decisão recorrida não padece dos supra apontados vícios, mostrando-se a sua arguição infundada.
Não ocorrendo vício que inquine a matéria de facto nos termos do art.410º, nº2, do Código Processo Penal, a factualidade assente é insuscetível de modificação pela via da impugnação restrita.
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5. Da impugnação ampla art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal
Ao abrigo do disposto no art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal, o recorrente suscita a errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido violados – diz - os princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da legalidade, da justiça, do inquisitório, da busca da verdade material, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada quanto ao exercício da gerência de facto de AA da Sociedade M....
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Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:
1º) no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do Código Processo Penal (diploma a que pertencem as disposições que, doravante, vierem a ser citadas sem indicação de origem), cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento, a chamada revista alargada;
2º) na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Vejamos, pois, este modo de sindicância da matéria de facto.
Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Sucede que a impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3,4 e 6.
Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado [10].
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida [11].
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.
Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012.
Assim, quanto ao cumprimento do ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), com o AFJ (STJ) nº 3/2012, foi fixada a seguinte jurisprudência:
- Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).
Na situação dos autos, o recorrente impugna os pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada quanto ao exercício da gerência de facto de AA da Sociedade M... ao tempo a que se reportam os factos (ano de 2003), impondo a prova, no seu entender, que este segmento de facto fosse dado como não provado.
Na abordagem da impugnação trazida pelo recorrente importa ter presente que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso [12].
Com efeito, o recurso da matéria de facto não representa um novo julgamento (o que só ocorre nos casos restritos de renovação da prova em segunda instância, nos termos do art. 430º).
A impugnação da matéria de facto constitui um meio de reparar eventuais vícios de julgamento em primeira instância, tendo sempre em atenção que neste último o tribunal dispõe da oralidade e da imediação como princípios basilares na recolha dos elementos probatórios e, por isso, em melhores condições de avaliar a validade e a credibilidade de um documento, ou de um depoimento, quer de um declarante, quer de uma testemunha, quer mesmo de um arguido.
O juízo de credibilidade das provas oralmente produzidas depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta, não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas.
Daí que, por regra, o tribunal de recurso deva adotar o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo [13].
Para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º., n.º 3, alínea b), do CPP).
Não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos.
“A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito. Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.” – cfr. RP 9/11/2016 (Neto de Moura) in www.dgsi.pt.
Por assim ser, na situação dos autos, nada obstava a que o tribunal formasse a sua convicção apenas no depoimento de algumas testemunhas, contanto que se mostrem sérias e credíveis, devendo o julgador explicitar as razões do seu convencimento, aferidas segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e inteiramente suportada pelo princípio in dubio pro reo.
E nada obsta, ao contrário do que o recorrente reclama, que a prova de um facto seja lograda de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência.
Nestas situações é admissível que a prova seja feita por presunções, que não se confundem com presunções legais de culpa de consagração inadmissível de acordo com o artigo 32.º, n.º2, da CRP, mas sim presunções judiciais, nas quais a autoridade judiciária, com recurso a regras de experiência e lógica, retira conclusões em matéria de facto, apoiadas em elementos concretos apurados nos autos, mediante o seu desenvolvimento dedutivo, possuindo a prova indiciária resultante valor idêntico aos meios de prova clássicos.
Prosseguindo, com a impugnação da matéria de facto suscitada pelo recorrente, os pontos de facto que considera incorretamente julgados são aqueles vertidos nos pontos 4, 9, 10, 13, 17, 19 a 31 da matéria de facto provada quanto ao exercício da gerência de facto de AA da Sociedade M... durante o ano de 2003, gerência essa que deveria, em seu entender, ter sido julgada não provada.
Aqui chegados, recorta-se da motivação da sentença que a gerência de facto foi comprovada pelo julgador a partir da presunção de quem exerce a gerência de direito, corroborada pela seguinte prova:
- depoimento da testemunha EE, que foi TOC da M..., Lda., ao afirmar ser o arguido quem lhe levava os documentos da sociedade M..., Lda., para que o depoente pusesse fazer a respetiva contabilidade; foi o arguido que assinou, aquando da fiscalização tributária, o que foi necessário [facto corroborado pelo auto de apreensão de fls. 112 a 113 do Anexo II]; o que tinha a tratar relativamente à sociedade M..., Lda. fazia-o sempre com o arguido, não tendo conhecido outro gerente [são exemplos disso os documentos juntos a fls. 53 a 55 do Anexo II, assinado pelo arguido] e era este que lhe dizia que “não lhe pagava a avença porque não tinha dinheiro, estava mal de finanças” [o que reforça a conclusão que era o arguido quem comandava e tomava decisões sobre a M..., Lda. e que estava a par da situação financeira da empresa];
- do relatório social consta que o arguido sempre foi “o rosto da empresa da sua família”;
- o facto de o pai do arguido ter dado de hipoteca um prédio urbano da sua propriedade como garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade M..., Lda. [nos termos que constam do documento junto com a contestação a fls. 1217 verso e ss.], tal, como é obvio, não consubstancia ou comprova qualquer ato de gerência pelo mesmo;
- no relatório de inspeção tributária de fls. 415 e ss., concretamente a fls. 422, foi sempre o arguido quem se apresentou perante a Inspeção Tributária como único responsável (gerente) pela M..., Lda., era sempre o arguido quem representava a M..., Lda. junto do gabinete de contabilidade U..., local onde exerce a atividade de Técnico Oficial de Constas da M..., Lda. à data dos factos, EE, bem como, todos os contactos estabelecidos com terceiros que se relacionaram com a M..., Lda. identificam esta sociedade como sendo a empresa do arguido, factos que foram corroborados, a título de exemplo, pelos documentos juntos aos autos a fls. 104 e a fls. 112 e ss., todos do Anexo II.
Por todas estas razões o tribunal a quo considerou que, além de gerente de direito, o arguido também era gerente de facto da sociedade M..., Lda. aquando dos factos que lhe são imputados.
Vejamos, então, se merece reparo o juízo probatório formulado pelo tribunal a quo quanto à gerência de facto atribuída ao arguido no ano de 2003.
Concorda-se que, ressalvados os casos em que da titularidade do cargo de mero administrador de direito resultam deveres de agir (dever de garante) e este não os cumpra voluntariamente [14], apenas a gerência de facto, real e efetiva, constitui requisito da responsabilidade dos gerentes, não bastando a mera titularidade do cargo, dita gerência nominal ou de direito.
Também é verdade que não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente nominal ou de direito o efetivo exercício da função. Da inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (art.11º do Código do Registo Comercial) de que o nomeado é gerente de direito [15].
Mas, tal não significa que da qualidade de gerente nominal ou de direito não se possa extrair a presunção natural ou judicial da gerência de facto.
Com efeito, da nomeação para gerente (gerente de direito) de uma sociedade resulta a presunção natural ou judicial, baseada em regras da vida, da experiência e da lógica, de que o mesmo exercerá as correspondentes funções, por ser natural que quem é nomeado, para um cargo, o exerça efetivamente [16].
Essa presunção sai reforçada se o julgador, caso a caso e com base no conjunto de prova produzida, com base nas regras da experiência e em juízos de probabilidade infira a gerência efetiva de outros factos.
Desse modo, escapará o juízo probatório, ainda que dele se deva prestar contas sob a exigência da adequada fundamentação (art.374º, nº2, do Código Processo Penal), ao reparo de que a intima convicção do julgador e a prova livre, com base nas regras da experiência (art.127º, do Código Processo Penal), promovem a arbitrariedade e subjetivismo das decisões.
Apenas assim não será se da prova produzida em julgamento resulta comprovado, no limite uma dúvida séria, objetiva e fundada, de que o gerente nomeado apenas figura como um “testa de ferro” dos verdadeiros sócios e gerentes.
O gerente nominal, ou «meramente de direito», “pratica actos aparentes de gerência, mas fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes, normalmente a «mando» de alguém que na organização societária se resguarda de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detém o poder efectivo de controlar os destinos da sociedade incluindo os de «mandar assinar» documentos da sociedade, como gerente, alguém que, de facto, o não é “ [17].
Quando «assina» ou «dá o nome», o mero gerente de direito “não o faz no uso de qualquer critério de oportunidade ou prossecução de interesse estatutário, mas sim para satisfazer um interesse pessoal alheio ao qual está vinculado ou subordinado por razões «não estatutárias. Neste cenário, o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe determina a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso. Precisamente porque lhe falta a densidade substantiva do cargo. O «gerente efectivo», por seu turno, não pratica (normalmente) actos formais de gerência mas conserva e exerce o respectivo poder, nele se incluindo, obviamente, o poder/autoridade que exerce sobre o designado «gerente de direito». [18]
A «gerência» é, assim, antes do mais, a investidura num poder (poderes de gerência, como expressamente consta dos art.ºs 253º/1 e 260º/1 do CSC). [19]
Retomando o caso dos autos, a questão que se coloca consiste em saber se, por força das circunstâncias conhecidas, é possível inferir esse poder de gerência efetiva, através dos atos realizados e o modo como o foram pelo arguido.
Só assim é possível concluir se as funções desempenhadas e o poder de gerência se situam ou não na mesma pessoa, no caso na titularidade do autor dos atos.
A gerência de facto de uma sociedade consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que se revelam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade [20].
No caso em apreço, nenhuma circunstância probatória, cuja gravação especificada tenha sido indicada pelo recorrente, é suscetível de abalar a convicção do julgador formada a partir da adequada presunção natural de que o arguido, enquanto gerente de direito, exercia com efetividade tais funções, conjugada com o juízo indiciário forte logrado, à luz das regras da experiência comum, com outros factos indiciários apontados na motivação da sentença recorrida, quais sejam:
- o arguido levava ao TOC os documentos da sociedade para que este pusesse fazer a respetiva contabilidade;
- o arguido tratava, à data dos factos, com o TOC, EE, os assuntos relativos à fiscalidade/contabilidade da empresa, assinando os documentos necessários [são exemplos disso os documentos juntos a fls. 53 a 55 do Anexo II, assinado pelo arguido], representando a sociedade junto do respetivo gabinete de contabilidade, sem que o TOC tivesse conhecido outro gerente; aliás, o arguido tratava com o TOC a oportunidade do pagamento da respetiva avença, revelando estar a par da situação financeira desta; tudo revela que, ao contrário do que pretende faze crer, o arguido não era perante o gabinete de contabilidade e TOC um qualquer "moço de recados";
- do relatório social consta que o arguido sempre foi “o rosto da empresa da sua família”, tendo constituído a sociedade M..., Lda., na qual figurava como empresário;
- assinou a documentação necessária aquando da fiscalização tributária, como se vê no auto de apreensão de fls. 112 a 113 do Anexo II, apresentando-se perante a Inspeção Tributária como único responsável (gerente);
- os contactos estabelecidos com terceiros que se relacionaram com a M..., Lda. identificam esta sociedade como sendo a empresa do arguido, factos que foram corroborados, a título de exemplo, pelos documentos juntos aos autos a fls. 104 e a fls. 112 e ss., todos do Anexo II.
Por conseguinte, a presunção natural apontada mostra-se corroborada, à luz das regras da experiência e da lógica, por todos estes factos que insofismavelmente apontam- para além de qualquer réstia de dúvida razoável e fundada - que, além de gerente de direito, o arguido também era gerente de facto da sociedade M..., Lda. aquando dos factos que lhe são imputados.
Ademais, mantendo a sociedade a sua atividade, nenhuma prova indiciou, nem o recorrente a indica, que ao praticar aqueles atos, que não se esgotavam sequer na mera assinatura dos documentos, o arguido atuasse como “testa de ferro” de quem quer que fosse, antes no exercício das funções e poder de gerência que estava investido pelo pacto social.
Nenhuma prova sugere sequer que o arguido atuasse a «mando» de outrem, no caso o seu pai, que na organização societária este se resguardava de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detinha exclusivamente o poder efetivo de controlar os destinos da sociedade M..., Lda., incluindo os de mandar o filho, aqui arguido, assinar documentos da sociedade, como gerente, quando, de facto, não o era.
Naturalmente que o facto de o pai do arguido ter dado de hipoteca um prédio urbano da sua propriedade como garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade M..., Lda. [nos termos que constam do documento junto com a contestação a fls. 1217 verso e ss.], não só não faz dele gerente de facto, até porque a gerência efetiva pressupõe uma prática reiterada de atos de gestão, como não exclui o arguido de praticar consigo outros atos de gerência efetiva.
De resto, havendo dois gerentes (composição plural da administração), ao caso pouco importa se o pai do arguido exercia efetivamente tais funções, mas apenas e só se o arguido as desempenhava. É errado pensar que pela circunstância de KK ser gerente, ainda que de facto, o arguido deixasse de o ser concomitantemente.
Tudo o mais adiantado na sentença explica a descredibilização atribuída, no que concerne à gerência de facto da empresa pelo arguido, ao depoimento das testemunhas HH e II, irmãos do arguido, ao referirem que quem geria a empresa era o seu pai, entretanto falecido, sendo este quem mandava e decidia.
De resto, se a credibilidade do depoimento destes familiares diretos do arguido se mostra fragilizado pelo grau de parentesco das testemunhas no contexto de uma empresa familiar, atribuindo a responsabilidade a quem, entretanto, faleceu, mais desautorizado se mostra perante as pertinentes incongruências que lhe foram apontadas na sentença.
De resto, não especifica o recorrente os pontos da gravação dos depoimentos que, no seu entender, impõem decisão diversa sobre o exercício das funções de gerência.
A prova indicada na sentença encontra arrimo nas regras da experiência, explicitando aquela a credibilidade que lhe mereceram os depoimentos relevantes, no confronto com outros, a partir da razão de ciência (perceção direta e indireta dos factos).
Além disso, não se pode afirmar que a motivação de facto não encontra apoio nas regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, ou que o juízo probatório não se encontra formulado de acordo com critérios de objetividade.
Expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos resultante do conjunto da prova produzida, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador, a decisão do tribunal encontra-se devidamente fundamentada e não merece reparo.
Resta, finalmente, saber se foi violado o princípio in dubio pro reo, ou seja, se perante a dúvida insanável, séria e fundada a respeito dos factos impugnados, o tribunal a quo decidiu contra o arguido.
Ora, o certo é que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação da factualidade impugnada pelo recorrente, que pudesse ter resolvido de forma favorável ao mesmo.
Conforme já se fez notar, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
Ora, este princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (art. 32º, nº 2 da CRP), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
O convocado princípio in dubio pro reo constitui efetivamente uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
O aludido princípio impõe, pois, uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito.
Donde, a apreciação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
Ora, o recorrente limita-se a concluir simplisticamente que, em relação aos propalados factos por si impugnados, face à prova produzida, houve violação do princípio in dubio pro reo.
No entanto, não resulta da decisão recorrida relativamente aos assinalados factos provados por si impugnados que o Tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra o arguido recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.
Emerge da motivação da decisão recorrida que o tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto ao cometimento pelo arguido dos factos nucleares respeitantes à imputação efetuada, que se baseiam em prova legal, escorreita e consistente.
A alegação do recorrente, no sentido de que foi condenado sem prova bastante, e dessa forma violado o princípio in dubio pro reo, é baseada numa determinada perspetiva da defesa sobre a prova produzida, de todo não coincidente com aquela que foi a do tribunal recorrido e que está detalhadamente explanada no texto da decisão condenatória.
Da análise da decisão recorrida, sem que o recorrente tenha aberto a porta da impugnação ampla por via das necessárias especificações, previstas no art.412º, nº4, do Código Processo Penal, que impusessem decisão diversa, não emerge qualquer dúvida insuperável e razoável sobre a valorização da prova concernente à factualidade impugnada.
Pelo contrário, não obstante a interpretação subjetiva diferente do recorrente, da sentença resulta uma análise criteriosa da prova, de modo a permitir a compreensão da razão pela qual os factos em causa foram dados como provados, num adequado e pleno exercício da livre apreciação da prova, carecendo, pois, totalmente de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo.
Assim, improcedem os argumentos aduzidos pelos recorrentes para pugnar pela sua absolvição ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
Em suma, não padecendo a sentença recorrida de erro ou vício na apreciação da prova que serviu de relevante fundamento decisório, a matéria de facto provada deverá ter-se por definitivamente consolidada, sem que da interpretação e aplicação do artigo 127.º do Código Processo Penal pelo Tribunal a quo, condenando o recorrente, se mostre violado o artigo 32.º, n.º 1 e 2 da CRP e o artigo 6.º da CEDH.
Tanto mais que, como referido, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cfr. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Nem bastaria à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitissem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas impusessem a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como se pode ler no ac RC 8/2/2012 (Brízida Martins) www.dgsi.pt: “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se” [21].
O que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
A prova deve ser apreciada na sua globalidade e em conjugação com juízos de normalidade (isto é, de plausibilidade), decorrentes das regras da experiência.
Ora, a prova analisada pelo tribunal de julgamento é suficientemente clara e precisa para afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo, que os factos ocorreram do modo descrito no acórdão recorrido.
Nenhuma censura merece, assim, a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao recorrente, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida).
De resto, inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, pelo que tão pouco se vislumbra nesta matéria qualquer violação do princípio da legalidade.
Tudo o mais, aventada violação dos princípios da justiça, do inquisitório, da busca da verdade material, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos são generalizações do recorrente sem cuidar de especificar, na motivação e conclusões do recurso, o sentido em que, no seu entender, o tribunal recorrido interpretou cada uma das normas que os corporizam ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada (art.412º, nº2, al.b), do Código Processo Penal), o que inviabiliza o conhecimento do recurso nessa parte.
O recorrente não especifica a ‘interpretação normativa’ que foi sustentada pela decisão recorrida, em dissonância com o juízo interpretativo por si proposto em relação aos visados princípios, deixando claro que é do juízo concreto do julgador sobre a valoração da prova que o arguido realmente recorre.
O que verdadeiramente se impugna é a decisão judicial em si mesma, a concreta aplicação do direito efetuada pela primeira instância sobre o exame critico da prova, isto é, a correção jurídica do concreto julgamento efetuado.
Encontrando-se definitivamente fixada a matéria de facto, a responsabilidade criminal do arguido é patente com o incontestado preenchimento do tipo legal de crime pelo qual foi condenado.
Improcede, assim, na totalidade o presente recurso.
*

III - Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.

Porto, 18.01.2023

(Elaborado e revisto pelo relator – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
___________
[1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados, sem indicação expressa da sua origem.
[2] Conforme a este propósito, Germano Marque da Silva, Direito Penal Tributário, p. 166 e 167, salientando que a prova indireta ou indiciária é uma prova válida também em direito criminal.
[3] Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, p. 61. Refere, ainda, este autor que as “sociedades têm de ter contabilidade. Mais do que resultado de quaisquer exigências legais (cfr. art. 115º do CIRC - obrigações contabilísticas das empresas), tal será uma condição mínima para o seu normal funcionamento. A existência de registos fiáveis, capazes de revelar a real situação económica da empresa, é requisito mínimo de gestão e exigência normal daqueles que com ela se relacionam (a começar pelos próprios sócios)”.
[4] Cfr. Isabel Marques da Silva, Responsabilidade Fiscal Penal Cumulativa, p. 114. Salienta esta autora que, existindo simulação, mormente nos casos de faturação falsa, há comparticipação necessária dos agentes.
[5] Neste sentido, Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, in RPCC (Revista Portuguesa de Ciência Criminal), 6, p. 90.
[6] Germano Marques da Silva, in Responsabilidade Penal dos Dirigentes das sociedades, UCE, 2021, pg.125-8, apontando como elemento estrutural essencial do crime de fraude fiscal a falsificação ideológica da declaração apresentada pelo contribuinte para efeitos da referida liquidação, sendo irrelevante que o contribuinte venha a obter ou não a vantagem que intenta com a falsificação.
Daí, segundo o Autor, tratar-se de um crime de resultado cortado, bastando a intenção de obter o beneficio patrimonial, mas sem que o agente tenha de o conseguir.
No mesmo sentido, Manuel da Costa Andrade, in “A Fraude Fiscal, Dez anos depois, ainda um crime de resultado cortado? ”, in Direito Penal Económico e Europeu, Vol. II, Coimbra Editora, recordando a fraude fiscal como tipicamente um crime de falsidade, ainda que votado à proteção do património fiscal.
[7] Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
[8] Ac. STJ 19/07/2006 (Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt.
[9] Paulo Saragoça da Matta, in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[10] Sobre o alcance de cada uma das especificações – cfr. Ac. TRL de 21.05.2015 (Francisco Caramelo) www.dgsi.pt.
[11] Não existem fontes no documento atual.
[12] Ac STJ de 16.06.2005 in www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, conforme se escreve no Ac. do STJ de 10.01.2007 www.dgsi.pt, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente.
[14] Afirmando a responsabilidade penal dos administradores de direito e não de facto, verificados os pressupostos do facto típico de ação ou omissão, nos seus elementos objetivos e subjetivos, e a culpa, Germano Marques da Silva, in Responsabilidade Penal dos Dirigentes das sociedades, UCE, 2021, pg.30 e do mesmo Autor, Sobre a responsabilidade penal dos administradores de direito e não de facto, in Constitucionalismos e (con)temporaneidade : estudos em homenagem ao Professor Doutor Manuel Afonso Vaz / coordenação Rita Lobo Xavier, Raquel Carvalho, Manuel Fontaine Campos. - 1ª ed. - Porto: Universidade Católica Editora Porto, [2020]. - p. 589-611.
[15] O art. 6.º do RGIT, em linha com o que dispõe o art.º 12.º do C. Penal, quando define os pressupostos da responsabilidade criminal de quem atua ou deixa de atuar como titular de um órgão de pessoa coletiva, refere à cabeça o elemento da voluntariedade. Ao exigir que a ação ou omissão típica seja voluntária, a lei afasta a responsabilidade objetiva do gerente da sociedade decorrente da relação jurídico-funcional com a mesma. A voluntariedade em que se fundamenta a responsabilidade criminal pressupõe a existência de uma relação de facto entre o agente do crime – que pode ser o gerente da empresa ou outra pessoa que exerça a gerência de facto naquela concreta decisão – e o bem jurídico protegido. Uma pessoa não pode ser criminalmente responsável pela simples circunstância de ser gerente da sociedade, mas, pelo contrário, pelas ações ou omissões em que incorre dolosamente nessa qualidade.
Os crimes fiscais, vistos à luz do art. 6.º do RGIT, nenhuma particularidade trazem ao regime geral da responsabilidade penal dos dirigentes das pessoas coletivas previsto no art.12º, do Código Penal, pressupondo sempre a imputação objetiva e subjetiva do facto típico ilícito e culposo do agente.
Não existe norma que dispense o administrador do cumprimento dos deveres que lhe são impostos por lei, nem a lei distingue entre administradores de direito, de direito e de facto ou só de facto.
Como sublinha Germano Marques da Silva, para efeitos penais importa sobretudo quem praticou a ação ou omissão, independentemente da qualidade formal que o agente assuma, nem a qualidade de administrador ou gerente implica por si só responsabilidade penal por facto de outrem, mesmo por facto praticado no âmbito ou no interesse da sociedade – cfr. “Sobre a responsabilidade penal dos administradores de direito e não de facto…”, pg.596.
[16] ac do Tribunal Central Administrativo Sul 08-02-2011, e de 31-10-2013, ac do Tribunal Central Administrativo Norte 3-10-2018 www.dgsi.pt; ac do Tribunal Central Administrativo Sul 6.10.2009 ((Processo nº 03336/09), in https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/03336-2009-91109375?_ts=1651104000034, ac do Tribunal Central Administrativo Sul 18.01.2005 https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/00324-2005-90765975 .
De resto, como se escreve no ac STA 09-04-2014 (FRANCISCO ROTHES) www.dgsi.pt: “O juízo sobre a presunção (judicial) de que o juiz lançou mão para concluir pela gerência de facto com base na gerência de direito, quer no que respeita à sua validade, quer quanto à sua ilisão, constitui, essencialmente, um juízo de facto, pois para o formular é necessário utilizar regras da vida e da experiência comum e não a apreciação directa ou indirecta de qualquer norma jurídica ou aplicação da sensibilidade ou intuição jurídica.
[17] Como refere o ac do Tribunal Central Administrativo Norte 3-10-2018 www.dgsi.pt que vimos citando, “estas situações ocorrem na maior parte das vezes num contexto em que de um lado está o «gerente efectivo», regra geral o detentor do capital e do poder que lhe subjaz, que oculta essa qualidade (normalmente por dificuldades de financiamento junto da banca devido a antecedentes de incumprimento, ou por restrição do uso de cheques, etc. Do outro lado, está (quase sempre) um sujeito numa relação de dependência (filho, empregado, cônjuge) ou de favor, que por isso aceita «assinar», ou «dar o nome».
[18] Cfr. ac Tribunal Central Administrativo Norte 3-10-2018 www.dgsi.pt
[19] A esse poder refere-se a LGT quando responsabiliza subsidiariamente os gerentes (administradores e diretores ou outras pessoas) que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas ou entes fiscalmente equiparados (art.º 24º/1 LGT).
[20] No entanto, importa ter em atenção que numa empresa com mais que um gerente, sobretudo havendo várias áreas funcionais (financeira, recursos humanos, gestão de stocks, técnica, etc), é natural que haja uma repartição de responsabilidades no exercício das várias funções. São atos de gerência todos aqueles que consubstanciam decisões condicionadoras do destino empresarial, todos aqueles que são praticados com animus decidendi no exercício de uma gerência de direito devidamente formalizada, ainda que esses atos sejam praticados em áreas não financeiras da empresa, como por exemplo na área técnica.
[21] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no ac RP 2/6/2019 (Paulo Costa) www.dgsi.pt): “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Também o ac RP 6/3/2002 (Fernando Monterroso) www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.