Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP00038121 | ||
Relator: | JOSÉ ADRIANO | ||
Descritores: | BURLA | ||
Nº do Documento: | RP200506010242497 | ||
Data do Acordão: | 06/01/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE. | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | Cometeu um crime de burla aquele que: - Acordou com outrem comprar-lhe um automóvel, por preço que logo é estabelecido; - Recebeu esse automóvel, os respectivos documentos e declaração de venda, entregando em troca, a título de pagamento, um cheque que então preencheu e assinou, cheque esse que foi determinante para a entrega do automóvel e dos referidos documentos por parte do vendedor e, apresentado a pagamento, foi devolvido, por falta de provisão, irregularidade de saque e cancelamento da respectiva conta há mais de 3 anos; - Sabia que o cheque não seria pago, tendo actuado com intenção de se apropriar do automóvel sem nada pagar por ele. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO: Em processo comum que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, sob acusação do Ministério Público foi submetido a julgamento, perante tribunal colectivo, o arguido B.........., o qual foi condenado: - Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, 218.º n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; - Pela prática de um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 217.º, 218.º n.º 2, al. a), 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; - Em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, encerrando a respectiva motivação com as seguintes conclusões: «1º - Ao Recorrente são imputados os crimes de Burla qualificada e tentativa de pratica burla qualificada, na pratica do mesmo acto. 2º - A burla qualificada implica que a mesma tenha sido levada a efeito, gerando dai prejuízo para terceiros, o que não foi manifestamente o caso pois a arguido depois de tentar praticar a burla, por motives endógenos e exógenos não a praticou tendo mesmo vindo a indemnizar o ofendido nos Autos. 3º - Exactamente por isso não praticou o crime, apenas o tendo tentado praticar. 4º - Consequentemente a pena abstracta e menor, pois apenas poderá, com o devido respeito ser condenado na pena já referida relativa a tentativa da prática do crime, pena essa que atenta a conduta do arguido lhe devera ser suspensa 5º - Tendo assim o Tribunal "a quo" violado o disposto no Art. 218 do C. P, pois apenas deveria aplicar o Artº 217 nº 2 do citado diploma. 6º - Entendendo nos que para que não haja violação da lei penal deveria atento o exposto ser aplicado o referido normativo a saber o Artº 217 nº2, com referenda aos Artºs 22º e 23º do C.P., pois entendemos que não e juridicamente possível serem praticados no mesmo acto, dois crimes distintos, ou seja ou o arguido praticou o crime ou tentou praticá-lo. 7º - Pelo que deve ser o arguido absolvido do crime de burla qualificada de que vem condenado e ser somente condenado pelo crime de tentativa de burla como acima se explana sob pena de violação do Artº 217 nº 2 do C.P., 8º - Nesta conformidade e atenta a conduta do arguido, deve-lhe ser suspensa a pena de que vem condenado. 9º - Assim não tanto pelo alegado, mas mais pelo doutamente suprido deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e absolvendo-se o arguido. 10º - Assim se fará como sempre a mais perfeita e sã 11º - Deve ainda ser concedido ao arguido o apoio judiciário na modalidade requerido». O Ministério Público respondeu ao recurso apresentado, pugnando pela sua improcedência e pela confirmação da decisão recorrida. Nesta instância, aquando da vista a que alude o art. 416º do Cód. Proc. Penal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela redução das penas parcelares, fixando-se uma pena única não superior a três anos de prisão, a suspender na respectiva execução pelo período de cerca de quatro anos. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o recorrente nada acrescentou. Proferido despacho preliminar e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância das formalidades legais, cumprindo decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO: A) O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos (transcrição): «1. O arguido concebeu um projecto que consistia, fundamentalmente, em passar a comercializar veículos adquiridos por meios fraudulentos, por forma a conseguir lucro total na venda dos mesmos, sem dispêndio da sua parte. 2. O arguido actuava na aquisição e venda de veículos, elaborando documentos, preenchendo cheques, e encaminhando-os para stands por forma a não permanecerem muito tempo na sua posse. 3. Nos dias 13 e 14 de Janeiro de 2001, o ofendido C.........., colocou no Jornal de Notícias do Porto um anúncio, onde dava conta da intenção de proceder à venda do veículo, de matrícula ..-..-AO, marca BMW, modelo 320 D/4, de cor preta. 4. No dia 16 de Janeiro de 2001, cerca das 11 horas, o arguido estabeleceu contacto telefónico com o C.........., mostrando-se interessado no veículo referido em 3), tendo ficado acordado que o poderia ver junto da residência deste, sita na Rua ....., ..., .., ....., Gondomar. 5. Cerca das 11,35 horas desse mesmo dia, o arguido compareceu na aludida morada e, após ter verificado o veículo em causa, acordaram em efectivar o negócio, pelo preço de 6.250.000$00 (seis milhões duzentos e cinquenta mil escudos), 6. Quantia a entregar, nesse mesmo dia ao final da tarde, com pagamento mediante cheque “visado”, por indicação do arguido, e com a aceitação do C........... 7. Assim, cerca das 17,30 horas do dia 16 de Janeiro do corrente ano, o arguido telefonicamente contactou o C.........., a fim de que este lhe entregasse o veículo conforme o acordado, solicitando-lhe que a transacção fosse efectuada junto à estação da CP, de Ermesinde, área desta comarca, pois segundo o arguido não pretendia que os seus funcionários vissem tal veículo. 8. Ali, o arguido entregou ao C.......... o cheque n.º 001, no montante de 6.250.000$00, sacado sobre uma conta do BES, de Ermesinde, pertencente a “D..........”, constante de fls. 4, com os dizeres “Compensado ao portador em 16/01/2001”, 9. Circunstância que foi determinante para a entrega imediata do veículo e respectivos documentos ao arguido, incluindo a declaração de venda, atenta a “fiabilidade” do cheque entregue. 10. Porém, tal cheque não logrou obter pagamento, por se tratar de cheque com falta de provisão, saque irregular e de conta cancelada há mais de 3 anos, pelo que, ao ser desapossado de tal veículo, sem que tenha conseguido receber o pagamento correspondente, sofreu o ofendido, prejuízo patrimonial no valor atribuído ao veículo e referido em 5). 11. Na posse do veículo, o arguido em 17/01/2.001, cerca das 11 horas, dirigiu-se ao Stand “E..........”, sito no lugar de ....., ....., Amarante, e ali perguntou se estavam interessados em adquiri-lo pelo preço de 4.500.000$00, cujo pagamento queria no acto e em dinheiro. 12. Atendendo a que se tratava de veículo de elevado valor e de o preço pedido ser baixo (o arguido havia pedido inicialmente 5 milhões de escudos e baixou de repente para 4 milhões e quinhentos mil escudos), o proprietário de tal Stand, E.........., desconfiado da proveniência do veículo, “apalavrou” o negócio ficando acordado com o arguido que ali deveria voltar às 14 horas. 13. Porém, o E.......... veio a saber, de forma que não foi possível determinar, que o veículo já constava para apreender, dando conhecimento do facto à GNR de Amarante, ficando combinado que estariam no Stand à hora marcada com o arguido. 14. Então, cerca das 14,05 horas compareceu no Stand, referido em 11), o arguido, fazendo-se transportar no veículo em causa, vindo a ser detido pela GNR. 15. O arguido actuou com o propósito concretizado de lhe ser entregue o veículo, de matrícula ..-..-OA, em benefício próprio e prejuízo alheio, através de meio e artifício enganoso, susceptível de criar no destinatário C.......... a confiança necessária à realização dos seus objectivos. 16. O arguido apôs a sua assinatura no local próprio das assinaturas do cheque e entregou-o ao vendedor do veículo, ora em questão, por forma a fazer acreditar, que era bom para pagamento, criando um clima de confiança que, conjugado com os demais elementos, determinando o vendedor a entregar o veículo e respectivos documentos, em troca do cheque, sem curar da validade deste ou da confirmação do provisionamento da conta respectiva. 17. Sabia o arguido que ao preencher e assinar o cheque de fls. 4, que entregou ao C.........., punha em causa a fé pública que tais documentos gozam perante a generalidade das pessoas e os comerciantes em particular e que causava, com tal conduta, prejuízo a terceiros. 18. Sabia ainda, que as suas condutas eram punidas por lei. 19. Agiu deliberada, livre e conscientemente. 20. Em nome do arguido foi entregue ao ofendido a quantia de 50.000$00, como compensação parcial dos prejuízos sofridos por este. 21. O ofendido C.......... declarou desistir da queixa apresentada contra o arguido B.........., tendo este declarado aceitar a desistência da queixa. 22. O arguido não tem antecedentes criminais». B) Factualidade não provada: «Não se provaram outros factos com relevo para a causa, para além do que antecede e, nomeadamente, que: Nas circunstâncias descritas no ponto 8) da matéria de facto dada como provada, o cheque que o arguido entregou ao C.........., com o n.º 001, no montante de 6.250.000$00, sacado sobre uma conta do BES, de Ermesinde, pertencente a “D..........”, constante de fls. 4, tivesse o carimbo de “visado”. Ao actuar da forma descrita no ponto 16) da matéria de facto dada como provada, o arguido tenha imitado a assinatura do titular da conta a que o cheque respeitava». C) O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção, quanto aos factos que considerou provados: «A convicção do tribunal sobre a matéria de facto apurada baseou-se no depoimento das testemunhas: - C.........., que é o ofendido e depôs quanto ao circunstancialismo em que ocorreram os factos, que presenciou, bem como quanto às consequências da actividade do arguido, de que foi vítima; - F.........., 1.º Sargento da GNR que, na ocasião, prestava serviço em Amarante, e G.........., soldado da GNR de Amarante, os quais tiveram conhecimento da intenção do arguido de proceder à venda da viatura BMW, em ....., Amarante, alertados pelo dono do Stand de automóveis que o arguido contactou, o qual suspeitou da proveniência ilícita da viatura em causa, atentas as condições em que o arguido pretendia efectuar a transacção com o referido Stand, depondo ainda as testemunhas quanto à existência de um pedido policial de apreensão da viatura referida, os quais se deslocaram ao local onde o arguido viria a efectuar a entrega da viatura, bem como quanto à da reacção do arguido quanto à intervenção da GNR, bem como das intenções deste. As testemunhas depuseram de modo credível e coerente relativamente aos factos de que tiveram conhecimento directo, por forma a convencerem o tribunal. Mais se baseou o tribunal nos documentos juntos aos autos e, designadamente, nos de fls. 3 a 7, 18 a 22, 101 a 105, 152 a 156, 199 a 201 e certificado de registo criminal». D) QUANTO AO MÉRITO DO RECURSO: Conforme vem sendo defendido uniformemente pelos tribunais superiores, é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda se possa conhecer. No caso sub judice, segundo as conclusões do recorrente - delimitadoras do objecto do recurso -, conjugadas com o douto parecer do MP neste Tribunal, aquele versa sobre as seguintes questões de direito: - cometeu o arguido apenas um crime de burla agravada, na forma tentada, como aquele defende, ou, pelo contrário, cometeu dois crimes de burla agravada, um na forma consumada e outro na forma tentada, com defendido na decisão recorrida? - Devem ser reduzidas as penas aplicadas ao arguido? - Se vier a ser aplicada ao arguido uma pena única não superior a três anos de prisão, deve esta ser suspensa na sua execução? Vejamos cada uma das aludidas questões: 1) Verifica-se um, ou dois crimes de burla? Dispõe o art. 217.º, n.º 1, do CP: «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa». São, pois, elementos típicos deste ilícito: a) que o agente tenha a intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; b) com tal finalidade, astuciosamente, induza outrem em erro ou engano; c) determinando o ofendido à prática de factos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. O bem jurídico protegido por tal crime é o património, globalmente considerado, «como o conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica» [Almeida Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Tomo II, pág. 279.]. Trata-se de um crime de dano, pois só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção (o burlado) ou de um terceiro. Consuma-se o crime com a saída das coisas ou dos valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou da vítima, razão por que consubstancia um crime material ou de resultado [Idem, pág. 276]. Por outro lado, é um crime de resultado parcial ou cortado, na medida em que se caracteriza por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo, porquanto, exigindo-se que o agente actue com a intenção de obter - para si ou para outrem - um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização desse enriquecimento, bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (dano) da vítima. Por último, a burla integra um delito de execução vinculada, no qual a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência da utilização, pelo agente, de um meio ardiloso, que induza a outra pessoa em erro, de molde a levá-la a praticar actos que lhe causem prejuízo. O que pressupõe um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património e entre estes actos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial [Idem, pág. 293]. O que resulta da matéria de facto provada é que o arguido, tendo tomado conhecimento, mediante anúncios publicados no jornal, que o ofendido C.......... pretendia vender o veículo automóvel BMW de matrícula ..-..-AO, formou o propósito de dele se apoderar, sem ter de o pagar, para de seguida o vender, locupletando-se com o respectivo valor. Assim, no dia 16/01/01 contactou o C.........., mostrando-se interessado no veículo, combinaram encontrar-se e nesse mesmo dia, após o arguido verificar o veículo, acordaram transaccionar o mesmo pelo preço de 6250000$00. No mesmo dia, cerca das 17,30 horas, encontraram-se de novo, para concretizarem o negócio, entregando o arguido, para pagamento, um cheque naquele valor, sendo-lhe entregue o automóvel, respectivos documentos e declaração de venda, que levou consigo. O cheque entregue pelo arguido não foi pago por falta de provisão e saque irregular, respeitando o mesmo a uma conta de uma empresa que foi do arguido, cancelada há mais de três anos. Sabia o arguido que o cheque que entregou jamais seria pago, tendo o ofendido entregue o veículo porque convencido que receberia o valor correspondente, confiando na regularidade do cheque porquanto no seu verso tinha os seguintes dizeres: «Compensado ao portador em 16/01/2001». Ou seja, o arguido enganou o C.........., fazendo-lhe crer que ia pagar o veículo em questão, levou este a aceitar, como modo de pagamento do respectivo preço, um cheque duma conta cancelada que sabia não iria ser pago, determinando o mesmo ofendido a entregar-lhe o veículo, documentos e declaração de venda, sem receber a contrapartida do respectivo preço. Em conclusão, o arguido, com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo (ficar com o veículo), induziu em erro o ofendido - convencendo-o que o cheque entregue era um modo de pagamento válido -, fazendo com que este lhe entregasse o dito veículo. Com tal atitude, causou o arguido ao ofendido C.......... um prejuízo correspondente ao valor do bem entregue (6250000$00). Estão, pois, preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla, enunciados supra e definidos no art. 217.º, n.º 1 do CP. Porque o ofendido ficou efectivamente desapossado do veículo sem ter recebido o correspondente valor a título de preço de venda, concretizando-se um efectivo prejuízo no seu património, o crime cometido pelo arguido consumou-se, não se tendo ficado pela mera tentativa, como ele defende. Sendo o prejuízo de “valor consideravelmente elevado”, o crime é agravado nos termos dos arts. 218.º, n.º 2, al. a) e 202.º, al. b), do CP, correspondendo-lhe pena de 2 a 8 anos de prisão. No dia seguinte, o arguido quis vender o veículo num “stand” de automóveis, pelo preço de 4.500.000$00. O dono do “stand” (E..........), desconfiando da proveniência ilícita do veículo devido ao baixo preço pedido, combinou a transacção para algumas horas mais tarde e alertou de imediato as autoridades, acabando o arguido por ser detido quando se dirigiu a mesmo “stand” para concretizar o negócio da venda. O arguido, após se apropriar ilicitamente do veículo automóvel, apresentando-se como legítimo possuidor do mesmo, tentou vendê-lo ao E.......... pelo preço de 4.500.000$00. Era sua intenção receber esta quantia, em troca do veículo. Quis enganar o E.........., convencendo-o que podia vender-lhe o carro, pretendendo que este lhe entregasse aquela quantia a título de preço. O que não conseguiu. Estaremos aqui perante um novo crime de burla, desta vez na forma tentada? Não há dúvida de que, à primeira vista, parece estarem reunidos todos os pressupostos acima definidos: - intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, com o recebimento da quantia pedida; - induzindo outrem (o dono do stand) em erro; - determinando este à entrega de uma quantia em dinheiro. Só que, por um lado, o arguido entregava um veículo com o valor de 6.250.000$00, recebendo apenas 4.500.000$00. Se o arguido já havia feito seu o aludido veículo, dele se apropriando - ainda que ilicitamente -, entregava um bem de valor superior à quantia que pretendia receber. Em termos económicos não se pode falar em benefício, mas em prejuízo. É claro que, quando “comprou” o veículo, sem o pagar, obteve um benefício de 6.250.000$00, valor tomado em consideração para efeitos de crime de burla agravada consumada, já acima tratada. Com a venda que o arguido pretendia fazer ao stand do E.........., aquele visava converter em dinheiro o aludido bem, ainda que por preço inferior ao seu valor real, pois, em última análise, o que o arguido visava com a sua actuação, globalmente considerada, era a obtenção de dinheiro. Só que, esta transacção não lhe trazia maior enriquecimento do que aquele que já havia anteriormente conseguido. Convém, a este propósito, fazer aqui um alerta para o facto de a situação dos autos não dever ser confundida com aquelas outras situações, que por vezes também acontecem, do “ladrão que rouba ladrão”. Enquanto nessas situações, é o agente do crime (de furto, roubo, burla ou abuso de confiança) que posteriormente passa a vítima, sendo desapossado, por outrem (novo agente do crime), do bem de que antes se havia ilicitamente apropriado - situações que são, sem dúvida, puníveis [Idem, pág. 289 a 292], verificando-se todos os elementos objectivos do respectivo crime -, no caso dos autos, diferentemente, é o mesmo agente (o arguido) que, primeiramente, burlou um ofendido, obtendo a entrega de um veículo, para de seguida ir vender esse mesmo veículo a terceira pessoa. No presente caso, o enriquecimento pretendido pelo agente é, em toda a sua actuação, o valor do veículo ou uma quantia equivalente. O segundo momento, da venda do veículo pelo arguido, não traz a este qualquer acréscimo patrimonial. Por outro lado, se em troca da quantia de 4.500.000$00 pedida ao E.......... este recebia um veículo cujo valor real e de mercado era bastante superior, então para este não haveria qualquer prejuízo, antes havia vantagem no negócio. Não estava a ser determinado à prática de actos que lhe causassem, a ele, prejuízo patrimonial, nem tal negócio iria causar maior prejuízo ao dono do carro, do que aquele que já lhe havia sido provocado pelo próprio arguido. Poderia a sua atitude (do comprador), porém, ter como consequência a comissão do crime de receptação, p. p. pelo art. 231.º, do CP, caso o negócio se concretizasse apesar da desconfiança do adquirente quanto à proveniência ilícita do bem. Em suma, os factos provados integram a prática, pelo arguido, de apenas um crime de burla agravada, tal como defende o recorrente, mas assume tal crime a forma consumada e não meramente tentada, contrariamente ao que aquele defende. 2) Quanto à medida da pena: Ao crime consumado foi imposta pena de três (3) anos de prisão. O recorrente não impugna expressamente a medida da pena, pedindo todavia a sua suspensão, o que pressupunha a redução da pena única para limite não superior a 3 anos, face à condicionante do art. 50.º, do CP. Por isso, propôs o MP junto deste Tribunal a redução das penas parcelares e única para aquele limite. Com o desaparecimento do crime tentado desaparece a correspondente pena, pelo que remanesce apenas a pena de três anos de prisão cominada ao crime consumado. Será esta justa e adequada? Dispõe o art.º 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2). Acrescenta o art.º 71.º, n.º 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Dos citados artigos extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente. Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena. Como se extrai do acórdão do STJ de 17-03-1999, Proc. n.º 1135/98 - 3.ª Secção: «Sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa - “nulla poena sine culpa” - a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem a virtualidade para determinar o limite mínimo. Este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza eficazmente aquela protecção. Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que, dentro da moldura legal, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social». Para dar concretização legal aos mencionados parâmetros, enumera o n.º 2 do citado art.º 71.º, do CP, a título exemplificativo, um conjunto de circunstâncias que devem ser tomadas em consideração, na medida em que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o respectivo agente. É, pois, à luz de tais princípios, que terá de ser encontrada a pena adequada ao caso concreto. Dentro da moldura penal já referenciada de 2 a 8 anos de prisão e tendo em conta o elevado grau de ilicitude dos factos, o modo de execução destes - com recurso à utilização de cheque de conta cancelada há mais de três anos -, a gravidade das suas consequências, traduzidas no montante do prejuízo causado que, apesar de posteriormente recuperado na sequência de intervenção policial, corresponde ao valor do carro em causa - valor que se considera substancialmente acima do mínimo necessário à integração do conceito de valor “consideravelmente elevado”, tomado em consideração para efeitos de subsunção jurídica e determinação da pena aplicável -, a elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, motivos que determinaram a prática da infracção - obtenção de dinheiro fácil -, condições pessoais e situação económica do arguido, ausência de antecedentes criminais, bem como a recuperação do veículo e compensação parcial do dano causado, tudo devidamente ponderado, nos termos e para os efeitos do já citado art. 71.º, nºs 1 e 2 als. a) a e), do CP, conclui-se pela justeza e adequação da pena aplicada em primeira instância. 3) Quanto à suspensão da execução da pena: O arguido pede aquela suspensão sem que alegue qualquer circunstancialismo em que apoie a sua pretensão. Todavia, verificado o condicionalismo objectivo de ter sido aplicada uma pena de 3 anos de prisão, o tribunal tem o poder-dever de analisar se estão ou não preenchidos os demais requisitos do art. 50.º, do CP, decretando a suspensão se aqueles se verificarem. Dispõe aquele normativo: «1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. 3 - Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente. 4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições. 5 - O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão». «O tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente (...) a denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao carácter (...) desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do ordenamento jurídico» [Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As Consequências do Crime”, Editorial Notícias, 1993, § 523]. A «conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade» [F. Dias, ob. cit., § 520 e 521]. Porém, «havendo razões sérias», «para duvidar da capacidade do agente de não cometer crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada». Acresce que «a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada» - mesmo em caso de «conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem … as finalidades da punição» (arts. 50.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, do CP), nomeadamente «considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico», pois que «só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto». Impõe-se, pois, que “o crime não compense” e, por isso, é preciso não descaracterizar «o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui «sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico» e «como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização». E daí que a pena de substituição, mesmo que «aconselhada à luz de exigências de socialização» - como a primariedade de um arguido poderá, de algum modo sugerir -, não seja de aplicar «se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postos irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» [Idem, § 501; Ac. do STJ de 30-01-2003, Proc. n.º 3594/02 - 5.ª Secção]. No presente caso, o arguido não tem antecedentes criminais, foi recuperado o veículo objecto de apropriação ilícita, o arguido pagou 50.000$00 ao ofendido C.........., este declarou desistir da queixa por si apresentada, tendo estado desapossado da viatura apenas um dia. O arguido esteve preso à ordem destes autos durante um mês, tendo tido oportunidade de avaliar as consequências da privação da liberdade e o que é a vida num estabelecimento prisional, crendo este tribunal que tal experiência lhe terá servido para amadurecer um pouco e de reflectir quanto às possíveis consequências da eventual prática de futuros crimes. Por isso, estamos em crer que a simples censura dos factos e a ameaça da pena aplicada serão suficientes para a realização, de forma adequada e suficiente, das finalidades da punição, desde que acompanhada aquela suspensão de regime de prova e por período de 4 anos. Nessa conformidade, é de deferir a requerida suspensão, nos termos enunciados. III - DECISÃO: Perante o exposto, acordam os juízes desta 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso, e em consequência: a) absolver o arguido do crime de burla agravada na forma tentada; b) suspender a execução da pena de 3 anos de prisão - aplicada ao arguido pela prática de um crime de burla agravada na forma consumada -, pelo período de quatro (4) anos, sob regime de prova (arts. 50.º e segs. do CP), segundo plano individual de readaptação social a elaborar oportunamente pelos serviços de reinserção social; c) confirmar, quanto ao mais, a decisão recorrida; d) Condenar o recorrente nas custas, com taxa de justiça em 4 (quatro) UCs, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Notifique. Porto, 1 de Junho de 2005 José do Nascimento Adriano Joaquim Rodrigues Dias Cabral Isabel Celeste Alves Pais Martins Arlindo Manuel Teixeira Pinto |