Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636941
Nº Convencional: JTRP00040071
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: HIPOTECA GENÉRICA
NULIDADE
OBJECTO INDETERMINADO
DETERMINABILIDADE
CRITÉRIO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PROCESSO AUTÓNOMO
INCIDENTE
REFORMA
ACÇÃO EXECUTIVA
NORMAS TRANSITÓRIAS
Nº do Documento: RP200702140636941
Data do Acordão: 02/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 706 - FLS 150.
Área Temática: .
Sumário: I - O principio da especialidade que caracteriza a garantia hipotecária reporta-se ao seu objecto – indispensabilidade dos elementos individualizadores da coisa sobre que incide a garantia – e ao crédito – deve estar suficientemente determinado e quantificado o montante máximo que a divida pode atingir – isto é, o valor que a hipoteca garante, bem como o seu fundamento, os juros e os acessórios do crédito devem constar do registo, sob pena de nulidade (art. 96° do CRP).
II - Deste requisito da hipoteca – relativo ao crédito – decorre que a exigência de determinabilidade não assume na hipoteca o relevo verificado no caso da fiança omnibus.
III - Exigindo-se que a quantia máxima conste do registo, o devedor (ou o dador da hipoteca, sendo terceiro) pode tomar conhecimento do real valor do ónus que incide sobre o prédio e, quanto a obrigações futuras, estas sempre estarão limitadas por aquele valor, esse limite máximo pode servir, no fundo, como critério objectivo para determinar o objecto da garantia, podendo o devedor controlar a sua própria vinculação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
A B………. veio propor esta execução para pagamento de quantia certa contra C………. e mulher D………. e E………. .

A execução prosseguiu a tramitação normal, tendo sido penhorado o bem imóvel id. a fls. 160.

Efectuadas as citações previstas no art. 864º do CPC, veio o F………., S.A. apresentar quatro reclamações de créditos, todos com garantia hipotecária, as três primeiras, nos termos do art. 871º do CPC, na sequência da sustação das execuções nºs 121/2002, 1042/2001 e 662/2001, e a última na sequência da citação efectuada, no montante global de €134.430,61.
A exequente impugnou esses créditos, concluindo pelo seu não reconhecimento.

Posteriormente, invocando o disposto no art. 864º nº 10 do CPC, apresentaram-se G………. e H………., a reclamar o crédito de 119.711,48, invocando serem titulares de um direito de retenção sobre o prédio penhorado.
Este crédito foi igualmente impugnado quer pela exequente quer pelo 1º reclamante.

No saneador foi proferida decisão a indeferir a reclamação de G………. por extemporânea.
Foram também julgadas improcedentes duas das excepções suscitadas pela Exequente, respeitantes à extemporaneidade das reclamações apresentadas pelo F………., S.A. e à nulidade da hipoteca, por o objecto da obrigação ser indeterminável.

Discordando desta decisão, dela interpuseram recurso os reclamantes G………. e mulher e a exequente.

Conclusões dos reclamantes:
A) Fundamenta, no essencial, o Senhor Juiz a sua decisão, de indeferimento da reclamação de créditos dos aqui recorrentes, por a julgar extemporânea e por duas ordens de razões.
B) A primeira razão relacionada com a questão da não aplicação do art. 864º - A do CPC (anterior código) porque à data da reclamação já havia sido transmitido o bem penhorado.
C) Sobre tal questão, importa salientar que os recorrentes muito antes dessa transmissão constataram nos presentes autos um despacho de sustação da execução relativamente ao bem penhorado, por haver penhora anterior.
D) Por tal motivo, os recorrentes foram reclamar o seu crédito no único processo a correr termos, e à ordem do qual havia sido penhorado o mesmo bem, ou seja nos Juízos Cíveis do Porto.
E) Apenas em Novembro de 2005, é que os aqui recorrentes, foram notificados pelo .º Juízo Cível do Porto, da sustação daquela execução, e de imediato verificaram que havia sido proferido novo despacho nos presentes autos, dando sem efeito o anterior despacho de sustação, por ter havido lapso.
F) Os aqui recorrentes não apresentaram a sua reclamação nos presentes autos em data anterior, porque foram induzidos em erro, por um despacho judicial, que num primeiro momento suspendeu a instância executiva relativamente àquele bem, e num momento posterior, e sem que nada o fizesse prever, fê-la prosseguir, sem que para talos recorrentes tivessem possibilidade de ser alertados. Por outro lado,
G) No momento em que os aqui recorrentes, reclamaram o seu crédito ainda não havia sido transmitido o bem em causa, uma vez que havendo despacho de adjudicação, ainda não havia sido entregue nem emitido o termo de transmissão da propriedade, pelo que, a reclamação de créditos, com as invocações dos arts. 864°-A do CPC (anterior código) e o art. 865° nº3 (novo código) não deverá ser julgada extemporânea. Por outro lado ainda,
H) Os valores actualmente inerentes à protecção dos interesses dos credores com garantia real, e vigentes no novo código de processo civil, são os mesmos anteriores a esta nova versão, e se, actualmente, o legislador julgou poder-se ir mais longe na defesa desses interesses, não nos parece, até por razões de justiça, (que se procura através do processo), que se atenda a um procedimento com efeitos preclusivos, deixando se aplicar regras de justiça, entretanto sufragadas no novo código processual. Aliás,
I) Neste sentido, como ensinam A. Marques dos Santos, Lebre de Freitas e outros, 1997, Aspectos do Novo Processo Civil, "O procedimento demasiado ritualizado e com efeitos preclusivos não permite atingir justiça que se procura através do processo". O que está de acordo com o facto de o novo código colocar maior ênfase no direito substantivo sobre o processual, manifestado nos princípios da cooperação e da descoberta da verdade material.
J) Quanto à segunda questão, relacionada com a não aplicação dos arts. 865°, nº3 e 864° nº 10 do CPC (versão actual) por não ser de aplicar os preceitos legais em causa, "... aos presentes autos..."
K) Ora, quanto à natureza do apenso de reclamação de créditos, deverá ser considerado que o mesmo é um verdadeiro processo (autónomo) e não apenas um mero incidente do processo executivo.
L) A maioria da doutrina e jurisprudência assim refere, que, de facto, o processo de reclamação de créditos é um verdadeiro processo, e não mero incidente. (neste sentido Alberto dos Reis, Proc. de Execução, 11, pág. 267, Lebre de Freitas, A Acção executiva depois da reforma, pág. 317 entre outros e Ac. Rel. Lisboa, de 12/10/2000 in www.dqsi.pt.
M) Ora, sendo o processo de reclamação de créditos autónomo da acção executiva, é mister que se conclua, que, sendo o mesmo intentado, em data posterior ao inicio de vigência do novo código, sejam as regras deste aplicáveis, e em nada pode ser afectado pela data de entrada da acção de que é apenso.
N) Ao assim não entender, o meritíssimo Juiz "a quo" com a sua decisão aqui posta em crise, violou as regras constantes dos itens 864°-A do CPC, (anterior código) e art. 865°, n° 3 e art. 864° nº 10 do CPC, bem como as disposições transitórias constantes do art. 21° do Dec.Lei 38/2003.
O) Assim, dever-se-á julgar o presente recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos, relativamente aos créditos reclamados pelos aqui recorrentes.

Conclusões da exequente
1. A redacção da hipoteca invocada pela agravada não apresenta os requisitos mínimos de determinabilidade que permitam conferir-lhe a validade e a eficácia necessárias para conceder ao respectivo titular – a reclamante do crédito e aqui agravada – o privilégio creditório invocado, pelo que inevitável se torna concluir pela nulidade da hipoteca em causa.
2. Não há nos autos e na redacção da própria hipoteca que permita fazer coincidir o crédito reclamado com a garantia hipotecária invocada, tanto mais que a agravada juntou aos autos um contrato assinado em 5 de Novembro de 1999, o qual faz referência (manuscrita) e remete para uma hipoteca constituída em 3 de Dezembro de 1999 (ou seja constituída quase um mês depois do contrato invocado como suposto título executivo) e a hipoteca invocada nas reclamações pela reclamante (que sintomaticamente não instruiu os autos com um exemplar...) incluir outro lote (vd. cláusula primeira do contrato de empréstimo que faz referência a dois lotes de terreno) que não está identificado ou sequer referido nas reclamações.
3. O crédito reclamado pela agravada está garantido por outra hipoteca (esta eventualmente válida e eficaz ao contrário da invocada nos autos), não resultando dos autos, nem tendo sido alegado pela agravada que nada recebeu no âmbito dessa hipoteca, tentando a agravada jogar com o carácter vago, abstracto e indeterminado da hipoteca invocada nos autos para receber mais do que aquilo a que terá eventualmente direito.
4. No que diz respeito à extemporaneidade das reclamações apresentadas, a agravada apresentou as suas reclamações depois de decorridos os respectivos prazos, não podendo, pois, ser atendidas para nomeadamente efeitos do seu reconhecimento e da sua graduação.
5. O Douto Despacho agravado viola nomeadamente o disposto nos arts. 280º CCivil e 871º CPC.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e o douto despacho agravado ser substituído por acórdão que declare a nulidade da hipoteca invocada pela agravada e que declare a extemporaneidade das reclamações apresentadas pela agravada.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

No recurso dos reclamantes, cumpre decidir se a reclamação é extemporânea, o que tem subjacente, segundo os recorrentes, a questão da lei aplicável.
No recurso da exequente discute-se a validade da hipoteca que garante os créditos do reclamante F………., S.A., por ter por objecto obrigação alegadamente indeterminada e, bem assim, se as correspondentes reclamações são extemporâneas.

III.

Tendo em conta os elementos que constam dos autos e a posição assumida pela exequente/impugnante, importa considerar o seguinte:
- G………. e mulher apresentaram reclamação de créditos em 14/11/2005, com fundamento em direito de retenção;
- Procedeu-se, em 14/06/2005, à abertura das propostas em carta fechada (auto de fls. 232 da execução), tendo sido aceite a proposta apresentada por I………., no valor de € 60.100,00;
- Em 14.10.2005 foi proferido despacho de adjudicação do imóvel vendido e ordenada a passagem do título de transmissão;
- No proc. nº …/2002, o reclamante F………., S.A. foi notificado do despacho que sustou a execução por carta remetida a 21/09/2004, tendo a reclamação, assente em cinco livranças subscritas pelos executados, sido apresentada em 12/10/2004, mas remetida em 11/10/04 (fls. 14);
- No proc. nº …./01, o reclamante F………., S.A. foi notificado do despacho que sustou a execução por carta remetida a 30/09/2004, tendo a reclamação, com base em seis livranças subscritas pelos executados, sido apresentada em 19/10/04;
- No proc. nº …/01, o reclamante F………., S.A. foi notificado do despacho que sustou a execução por carta remetida a 01/10/2004, tendo a reclamação, assente em contrato de mútuo, sido apresentada em 19/10/04;
- O mesmo reclamante foi citado na execução para reclamar créditos em 03/12/2004 (fls. 184 da execução), tendo apresentado a sua reclamação (fls. 74 e segs.) – que inclui, de novo, créditos derivados de uma letra sacada pelos executados e de uma livrança avalizada por estes – em 21/12/2004;
- Da escritura de hipoteca, outorgada por C………. e mulher a favor do F………., S.A., em 03/12/1999, de fls. 208 e segs., consta que a hipoteca, sobre o prédio descrito na CRP sob o nº 1248, foi constituída para garantia de pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir perante o Banco por eles outorgantes, até ao montante de quinze milhões de escudos, decorrentes de toda e qualquer operação bancária em direito permitida, nomeadamente financiamentos directos e indirectos, mútuos simples ou sob a forma de abertura de crédito, financiamentos externos, operações de desconto bancário de letras, livranças, remessas documentárias e outros títulos de crédito, pagamento de cheques, fianças e garantias bancárias, descobertos em contas de depósitos, operações de bolsa, incluindo juros remuneratórios e compensatórios, despesas e demais encargos legais e contratuais que recaírem sobre as respectivas operações (...) a hipoteca garante ainda os juros e/ou comissões até ao limite de 7% ao ano, acrescidos de 4% ao ano em caso de mora e a título de cláusula penal e ainda das despesas extrajudiciais, fixadas para efeitos de registo em seiscentos mil escudos. Montante máximo de capital e acessórios vinte milhões quinhentos e cinquenta escudos.

IV.

Cumpre apreciar as questões acima enunciadas.

1. Recurso dos Reclamantes

1.1. Começam os recorrentes por afirmar que não apresentaram a sua reclamação nos presentes autos em data anterior, porque foram induzidos em erro, por um despacho judicial, que num primeiro momento suspendeu a instância executiva relativamente àquele bem, e num momento posterior, e sem que nada o fizesse prever, fê-la prosseguir, sem que para tal os recorrentes tivessem possibilidade de ser alertados.

A questão assim posta é nova, não tendo sido suscitada anteriormente por forma a poder ser apreciada na 1ª instância.
Daí que não deva, nesta instância de recurso, ser objecto de análise, sabido que os recursos ordinários são, em regra, recursos de revisão ou reponderação, cujo objecto é, fundamentalmente, a decisão impugnada ou recorrida; por isso, como vem sendo afirmado repetidamente, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido[1].

Importa acrescentar que os recorrentes iniciaram a sua reclamação – fls. 136 e segs. – justificando a oportunidade da mesma e concluindo que não era extemporânea (por não ter sido efectuada a transmissão do bem), requerendo, para o caso de assim se não entender, a aplicação do disposto no art. 864º nº 10 do CPC[2] (falta de citação por culpa dos executados por estes não terem cumprido o dever de informação sobre a existência do direito de retenção dos reclamantes).
Teria sido essa, parece-nos, uma boa oportunidade para os reclamantes suscitarem a questão agora posta, ex novo, no recurso.
Até porque, configurando tal questão uma situação de justo impedimento, deveria, desde logo, ter sido invocada quando o acto foi praticado e logo após a cessação do alegado impedimento (art. 146º nº 1).
Decorre, com efeito, desta norma o ónus de requerer a prática extemporânea do acto mediante alegação e prova de justo impedimento, mas logo que cesse a causa impeditiva[3]; ónus que, no caso, não foi satisfeito.
Não relevam, pois, as conclusões A) a F).

1.2. As demais questões deste recurso suscitam um problema prévio de aplicação de leis no tempo: o de saber se, ao caso, é aplicável o regime saído da reforma da acção executiva, operada pelo DL 38/2003, de 8/3.
Segundo a norma transitória do art. 21º nº 1 deste diploma, as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil só se aplicam nos ou relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003.

Entendeu-se na decisão recorrida que tais alterações não seriam aqui de observar, uma vez que a execução foi instaurada em 28.01.2003.
Os apelantes sustentam, porém, que, quanto à natureza, o apenso da reclamação de créditos deverá ser considerado um verdadeiro processo autónomo e não um mero incidente do processo executivo. Assim, uma vez que esta acção foi instaurada em Outubro de 2004, deve ser aplicado o regime saído da Reforma.

Esta questão tem sido discutida na jurisprudência, a propósito do novo regime de custas instituído pelo DL 324/2003, de 27/12, tendo tido soluções diferentes[4].
Na doutrina, em geral, é realçada a natureza declarativa do processo, a estrutura autónoma, embora funcionalmente subordinada ao processo executivo[5].

Cremos, porém, que tal questão não tem aqui cabimento, por estarem em causa normas que respeitam apenas ao processo de execução.
Como afirma Lebre de Freitas[6], a convocação é feita nos autos de processo executivo e só com as reclamações (petições iniciais) é que tem início a acção declarativa.
Ora, no caso, estão em causa, essencialmente, as normas dos arts. 865º nº 3 e 864º nº 10 na sua nova redacção.
O primeiro veio permitir a reclamação espontânea, dos titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados, até à transmissão dos bens penhorados.
O segundo dispõe sobre os efeitos da falta das citações prescritas nos primeiros números do mesmo artigo.
Note-se, porém, que a reclamação espontânea já era prevista anteriormente (art. 864º-A nº 2), nos casos em que a citação tivesse sido dispensada pelo juiz (nº 1 do mesmo preceito).
Por outro lado, a nulidade por falta de citação também era estabelecida no anterior art. 864º nº 3; a novidade do regime introduzido em 2003 respeita apenas à segunda parte do preceito, onde se passou a prever o ressarcimento do credor preterido segundo as regras do enriquecimento sem causa, tendo sido alterado também o regime de responsabilidade civil (que deixou de onerar sempre e exclusivamente o exequente).

Como parece evidente, esta segunda parte do art. 864º nº 10 não releva para a nossa questão, isto é, para decidir da tempestividade da reclamação dos recorrentes.
Para este efeito, interessa apenas a primeira parte do preceito, que estatui sobre o efeito imediato da falta de citação, mas, neste preciso âmbito, a lei não foi alterada: a falta das citações prescritas tem o mesmo efeito da falta de citação do réu, aplicando-se as disposições dos arts. 194º e segs, com ressalva para a validade dos actos de transmissão já efectuados[7].
Depreende-se do que fica dito que a questão em apreço não respeita à fase das reclamações, situando-se a montante desta. Trata-se, no fundo, de saber se ocorreu falta de citação dos recorrentes, estando, pois, em causa normas do processo de execução propriamente dito.
Daí que seja aplicável o regime vigente à data da instauração da execução, anterior à reforma operada pelo DL 38/2003 (art. 21º deste diploma).

No caso, junta a certidão de ónus e encargos que incidiam sobre o prédio penhorado (fls. 160 e segs.), foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 864º (fls. 169), tendo-se procedido às citações prescritas no nº 1 deste preceito, incluindo a citação edital dos credores desconhecidos (fls. 178, 186 e 187).
Foi assim integralmente cumprido o que dispõe o referido normativo quanto às citações.
Daí que não possa dizer-se que ocorre, no caso, falta das citações prescritas nessa disposição legal, não existindo fundamento para aplicação do disposto no art. 864º nº 3 (redacção anterior a 2003).
Por outro lado, a reclamação espontânea não encontra fundamento no disposto no anterior art. 864º-A nº 2, por não ser subsumível na previsão desta norma, que se dirige apenas aos casos de dispensa de citação indicados no nº 1.
Pela razão acima indicada, isto é, por não haver falta de citação, falha o pressuposto de aplicação do novo regime previsto no art. 865º nº 3 (solução diferente envolveria a aplicação desse novo regime ao próprio processo de execução, o que é vedado pelo citado art. 21º nº 1 do DL 38/2003).

Chegados a esta conclusão, não será já determinante saber se, antes da reclamação, ocorreu a "transmissão" do bem, questão que não é também pacífica (apesar de ter sido proferido despacho de adjudicação em momento anterior a tal reclamação)[8].

Em suma, tendo em conta o regime legal aplicável, não se verifica falta de citação, sendo extemporânea a reclamação espontânea apresentada pelos recorrentes, não merecendo censura, por isso, a decisão que a indeferiu.

2. Recurso da exequente

São duas, como vimos, as questões levantadas neste recurso:
- a extemporaneidade das reclamações apresentadas pelo F………., S.A.;
- nulidade da hipoteca genérica.

2.1. Extemporaneidade das reclamações

Pode referir-se, desde já, que a recorrente não tem razão no que respeita a esta questão, como decorre claramente, parece-nos, dos factos acima indicados.
Com efeito,
- Reclamação referente ao processo …/2002:
O despacho que sustou a execução foi notificado por carta remetida a 21.09.2004, presumindo-se que a notificação foi feita em 24/9 (art. 254º nº 2); portanto, tendo a reclamação sido enviada para o Tribunal a 11.10.2004, deve ter-se por apresentada no 15º dia (art. 150º nº 2 b)), satisfazendo o prazo legal (art. 871º nº 2).
- Reclamação respeitante ao processo nº …./01:
A carta para notificação do despacho de sustação foi enviada a 30.09.2004; o 3º dia posterior foi um domingo (3/10), pelo que se considera recebida no 1º dia útil seguinte (4/10), iniciando-se o prazo a 5/10. Daí que a reclamação apresentada a 19.10.2004 seja tempestiva.
- Reclamação respeitante ao processo nº …/01:
Expedida a carta para notificação do despacho de sustação a 01.10.2004, o prazo iniciou-se, como no caso anterior, a 5/10, pelo que a apresentação, a 19.10.2004 é tempestiva.
- Reclamação global de fls. 74 e segs.:
O credor foi citado, nos termos do art. 864º, a 03.12.2004 (fls. 184, tendo apresentado a reclamação a 21.12.2004. O prazo de 15 dias (art. 865º nº 2) terminou a 20.12.2004, mas o reclamante beneficia da dilação de 5 dias, prevista no art. 252º-A nº 1 b), por a citação ter sido efectuada fora da comarca onde pende a execução[9].

2. Nulidade da hipoteca

A recorrente sustenta que a hipoteca invocada pelo reclamante F………., S.A. é nula, por ter objecto indeterminável.
Na decisão recorrida, afirmou-se, a este propósito, que analisada a escritura de hipoteca junta aos autos verifica-se que pela mesma foi fixado um critério delimitador da responsabilidade dos executados, quer no que tange à individualização, especificação e pormenorização do bem que responderia pela responsabilidade das dívidas, quer no que toca ao montante máximo garantido.
Vejamos.

Nos termos do art. 686º nº 2 do CC a obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional.
Todavia, o art. 280º nº 1 do mesmo diploma comina com nulidade o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
Assim, o objecto do negócio pode ser indeterminado; o que não pode ser é indeterminável.

Afirmam Romano Martinez e Fuzeta da Ponte[10] que, tal como acontece com a fiança, a lei permite a constituição da hipoteca como forma de garantia de obrigações futuras, mas, em qualquer caso, do contrato tem de constar um critério objectivo para a determinação da prestação garantida ou a garantir.
Acrescentam que a hipoteca genérica não reveste, todavia, a mesma complexidade da fiança omnibus, pois do registo constará o valor garantido. Deste modo, mesmo que a hipoteca garantisse qualquer obrigação a constituir, estaria sempre limitada pelo montante constante do registo.

No mesmo sentido se pronuncia Isabel Menéres Campos[11], ao afirmar que a obrigatoriedade legal de indicar um limite máximo que a hipoteca garante, corresponde, de alguma forma, à fixação pelas partes de um critério objectivo para determinar o objecto da garantia. Sublinhe-se também que, do ponto de vista da acessoriedade, é irrelevante que se trate de um crédito futuro, uma vez que a hipoteca só pode executar-se se a dívida nasce e se houver incumprimento.

O Acórdão da Rel. de Coimbra de 16.11.2004[12], citado pela Recorrente, não diverge deste entendimento.
Com efeito, apesar de nele se reconhecer que a vulgarmente designada hipoteca genérica, para ser válida, tem de obedecer a parâmetros objectivos de determinabilidade, também se afirma que não se verifica esta indeterminabilidade se constar do registo o valor máximo garantido pela hipoteca, visto que, neste caso, esta estará sempre limitada pelo montante constante do registo.

Esta questão da determinabilidade foi vivamente discutida a propósito da fiança omnibus, predominando na doutrina o entendimento de que a mesma é nula[13].
No mesmo sentido se pronunciou também, maioritariamente, a jurisprudência[14], tendo o Acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 2001 (DR IS de 8.3.2001) uniformizado a jurisprudência no sentido de que é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

As razões da invalidade da fiança omnibus assentam na ideia de que a fiança não deve expor o fiador a riscos excessivos; o seu objecto deve ser suficientemente delimitado, logo no momento constitutivo, de tal modo que o fiador esteja em condições de avaliar o risco que a sua vinculação implica e não fique à mercê do devedor e do credor.

Vem sendo suscitada, porém, a questão de saber se, dentro de determinado circunstancialismo - revelador de que não se verificam as razões apontadas - se deve considerar satisfeita a exigência de determinabilidade, apesar do carácter genérico da fiança.
Evaristo Mendes defende esta solução designadamente nas hipóteses - frequentes na prática - em que todos os sócios, ou aquele ou aqueles que detêm o poder de controlo ou domínio, prestam a garantia por débitos da sua sociedade[15].
Januário da Costa Gomes alude a situações em que a fiança é prestada pelo sócio-gerente da sociedade (de responsabilidade limitada) - sem cuja assinatura o empréstimo do banco não pode viabilizar-se - ou pelo gerente, que controla os negócios da empresa ou pelo único sócio da sociedade devedora.
Nestes casos, o fiador é um sócio-timoneiro da sociedade devedora, que está em condições de controlar os seu andamento, o seu endividamento e, mediatamente, a sua própria responsabilidade fidejussória.
Ocorre aqui uma situação de controlo e de poder ao longo da relação fidejussória, que satisfaz as preocupações que estão na base da exigência de determinabilidade[16].
A jurisprudência tem atribuído relevo a tal especificidade da fiança para afastar a indeterminabilidade[17].
Estas considerações, apesar de feitas a propósito da fiança, podem auxiliar-nos, parece-nos, na apreciação do caso em apreço.

Na caracterização da hipoteca domina o princípio da especialidade, que comporta dois sentidos[18]:
Especialidade quanto ao objecto, sendo indispensável a determinação dos elementos individualizadores da coisa sobre que incide a garantia e a situação jurídica do prédio; e
Especialidade quanto ao crédito, pois deve estar suficientemente determinado e quantificado o montante máximo que a dívida pode atingir, isto é, o valor que a hipoteca garante, bem como o seu fundamento, os juros e os acessórios do crédito devem constar do registo, sob pena de nulidade (art. 96º do CRP).
Deste requisito da hipoteca decorre, sem sombra de dúvida, que a exigência de determinabilidade não assume na hipoteca o relevo verificado no caso da fiança omnibus.
Exigindo-se que a quantia máxima conste do registo, o devedor (ou o dador da hipoteca, sendo terceiro) pode tomar conhecimento do real valor do ónus que incide sobre o prédio e, quanto a obrigações futuras, estas sempre estarão limitadas por aquele valor. Como acima se disse, esse limite máximo que a hipoteca garante pode servir, no fundo, como critério objectivo para determinar o objecto da garantia.

Por outro lado, importa considerar que, no caso, a hipoteca foi constituída pelos próprios devedores, sendo aqui pertinentes, por identidade de razão, as considerações que expusemos sobre o fiador que está em posição de controlar a sua própria vinculação. O hipotecador, sendo o devedor, está naturalmente a par do crédito que lhe é concedido, podendo controlar o seu endividamento e a sua própria responsabilidade.
Nesta situação, o devedor, como afirma Januário da Costa Gomes[19], encontra-se em perfeitas condições de dosear a sua vinculação, dele dependendo o quantum dessa vinculação. Tanto basta para que esteja preenchida a ratio da exigência da determinabilidade.

Assim, apesar de inteiramente redigida em termos genéricos, conclui-se pela validade da hipoteca constituída pelos executados.

Resta acrescentar, sobre a existência de uma alegada segunda hipoteca, que, na certidão do registo predial, apenas consta uma segunda inscrição – C-2 – de ampliação do C-1 a favor do F………., S.A., elevação do juro anual ...
Trata-se, parece, de mera actualização de juros da primeira hipoteca, como referiu o reclamante nos autos (fls. 122).
Não vemos como possam daí decorrer os riscos alegados pela recorrente.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões deste recurso.

V.

Em face do exposto, decide-se negar provimento aos recursos, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Porto, 14 de Fevereiro de 2007
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes

_______________________________
[1] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., 175; no mesmo sentido, os acs. da Rel. de Lisboa de 2.11.95, CJ XX, 5, 98 e do STJ de 26.3.85, 19.9.89 e de 29.4.92, BMJ 345-362, 389-536 e 416-612.
[2] Como todos os preceitos adiante citados sem outra menção.
[3] Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 2º, 79; Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 1º, 259; Acs. do STJ de 04.05.2005, em www.dgsi.pt.
[4] Algumas decisões, de que são exemplo, os Acs. desta Relação de 16.12.2004 e de 11.05.2006 e da Rel. de Lisboa de 27.06.2006, defendem que a reclamação de créditos constitui um verdadeiro processo declarativo de estrutura autónoma e não um mero incidente da acção executiva.
Outras decisões sustentam que a reclamação de créditos é incidental face ao processo de execução no qual está inserida e ao qual se encontra subordinada, assumindo carácter instrumental; não goza de autonomia, nem subsiste sem a execução que corre por apenso – v.g. Acs. desta Relação de 21.02.2005, de 17.01.2005 e de 22.01.2007 e da Rel. de Coimbra de 25.11.2004.
Chegando a idêntico resultado (desta última posição), mas com fundamentação diferente – a execução não é um incidente nem um processo novo, inserindo-se no prosseguimento normal da acção executiva, sendo uma fase desta acção, os Acs. da rel. de Lisboa de 02.06.2005 e de 17.10.2006 (em www.dgsi.pt, como todos os demais).
[5] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed., 317 e Excertos Declarativos no Processo Executivo, em Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, 641 a 643; Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, 310; Paulo Pimenta, Acções e Incidentes Declarativos na Dependência da Execução, Themis, Ano V, nº 9, 55 e 56.
Teixeira de Sousa, afirma que se trata de uma acção declarativa de carácter incidental – A Acção Executiva Singular, 341.
[6] Ibidem.
[7] Cfr. Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, 501; Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª ed., 245.
[8] No regime legal considerado, anterior à Reforma de 2003, entendia-se, face ao disposto no art. 900º nºs 1 e 2 que a transferência da propriedade e a entrega efectiva ficavam condicionados ao pagamento integral do preço e à satisfação das obrigações fiscais, só nesse momento sendo lavrado despacho de adjudicação e emitido título de transmissão – neste sentido Remédio Marques, Ob. Cit., 360, Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 240 e 241. Também Teixeira de Sousa, ao afirmar que a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento do preço e a passagem pelo tribunal do respectivo título de transmissão – Ob. Cit., 385.
Note-se, porém, que, mesmo no regime actual, que não prevê o despacho de adjudicação (o título de transmissão é emitido pelo agente de execução), Lebre de Freitas considera que, uma vez pago o preço, os bens não podem deixar de ter-se por transmitidos, transferindo-se a sua propriedade para o proponente, ainda que o título de transmissão só seja emitido após a satisfação das obrigações fiscais – CPC Anotado, Vol. 3º, 331. Em sentido diferente e reiterando a sua posição anterior, Amâncio Ferreira afirma que a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução – Ob. Cit., 6ª ed., 345.
[9] Apesar de a dilação não ter sido indicada na carta; no sentido da aplicação deste regime à citação prevista no art. 864º, expressamente, Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. I, 440.
[10] Garantias de Cumprimento, 3ª ed., 186.
[11] Da Hipoteca, 112.
[12] Em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Vaz Serra, Fiança e figuras análogas, BMJ 71-60 e RLJ 107-259; Menezes Cordeiro, CJ XVII, 3, 62.; Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, Ob. Cit., 86 e segs; Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória da Dívida, 672 e 673.
[14] Cfr. Acs. do STJ de 21.1.93, CJ STJ, I, 1, 71; de 14.12.94, BMJ 442-185; de 18.6.96, BMJ 458-281; de 15.12.98, BMJ 482-227; de 3.2.99, CJ STJ VII, 1, 75; de 22.6.99, BMJ 488-337; de 20.9.99, CJ STJ VII, 3, 48 e de 19.10.99, BMJ 490-262. Em sentido diferente o Ac. de 22.11.95, BMJ 451-406.
[15] Fiança geral, RDES, XXXVII (1995), 1-3, 133 e 134; também Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, 332. No citado Acórdão Uniformizador parece apontar-se para a validade de tais fianças aludindo-se ao caso de o fiador, por desempenhar funções de gerente, poder influir no desenvolvimento da actividade comercial da sociedade devedora; nada se concluiu, porém, por não se verificar, no caso, esse condicionalismo.
[16] Ob. Cit., 687 e 688. Mais recentemente, este Autor veio reafirmar a mesma ideia, aludindo a situações em que o fiador está em posição de controlar o fluxo da vinculação - Estudos de Direito das Garantias, Vol. I, 133 e segs.
[17] Neste sentido, posteriormente ao citado Ac. Uniformizador, cfr. os Acs. do STJ de 03.04.2001, de 30.10.2001, de 11.02.2003 e de 18.02.2003, todos em www.dgsi.pt.
[18] Isabel Menéres Campos, Ob. Cit., 48 e 76.
[19] Assunção cit., 688.