Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1603/16.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIZAÇÃO POR ACTOS DE ADMINISTRAÇÃO DO PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP201702091603/16.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 83, FLS. 267-273)
Área Temática: .
Sumário: I - Nos artigos 1681.º/1 e 1792.º/1 do CC prevêem-se duas situações distintas de responsabilidade; naquele a responsabilidade por actos de administração do património comum praticados pelo cônjuge intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro, neste a responsabilidade por actos pessoais do cônjuge sobre a pessoa e os direitos subjectivos do outro ou mesmo sobre a própria relação conjugal, enquanto fonte legal de deveres jurídicos recíprocos.
II - O art. 1681.º/1 do CC eleva à categoria de facto ilícito a actuação com intenção de causar dano e a responsabilidade aí prevista tem natureza extracontratual, estando sujeita ao prazo de prescrição do art. 498.º do CC.
III - Cabe à parte que argui a excepção o ónus de demonstrar os factos necessárias à sua procedência, designadamente, tratando-se da prescrição, os factos relativos ao momento em que o autor teve conhecimento dos pressupostos de facto do direito já que só nesse momento de inicia a contagem do prazo que pode determinar a prescrição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1603/16.7T8VNG.P1 [Comarca do Porto - Juízo Local Cível de V. N. Gaia]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, contribuinte n.º ………, residente em Vila Nova de Gaia, instaurou contra C…, contribuinte n.º ………, residente em Vila Nova de Gaia, acção judicial que classificou como «acção declarativa de condenação nos termos do artigo 1681, nº 1, do Código Civil», pedindo que o réu seja «condenado a devolver à autora metade das poupanças do dissolvido casal, a saber € 22.018,04, acrescido de juros a partir da citação».
Para o efeito alegou que autora e réu se encontram divorciados desde 08.10.2009, após o que foi instaurado inventário para separação de meações que findou no dia 22.01.2015 gerando a necessidade de a autora instaurar a presente acção para obter uma indemnização por parte do réu por perdas e danos; o réu abandonou o lar conjugar em 26.02.2008, antes da instauração da acção de divórcio, sendo que à data desse abandono existiam no Banco D… dois depósitos a prazo pertença da autora e do réu, nos montantes de €7.036,08 e de €37.000,00, valores que o réu ou alguém a seu mando, tendo em vista prejudicar a autora, levantou em 02.06.2008 e 11.06.2008; o réu não devolveu à autora metade desses depósitos que pertenciam ao casal e provinham das poupanças de ambos, sendo que nos termos do artigo 1681.º, nº 1, do Código Civil, que serve de «fundamento da presente acção», «o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro conjugue … responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge».
O réu contestou a acção, clamando pela sua improcedência, excepcionando para o efeito a «prescrição e/ou caducidade» do alegado direito da autora por aquando da instauração da acção e citação do réu já estarem decorridos mais de três e mesmo mais de cinco anos sobre a data dos levantamentos referidos na petição inicial, e impugnando os factos alegados e alegando que o dinheiro das contas bancárias referidas não pertencia aos cônjuges e não foi levantado pelo réu que também nunca teve qualquer intenção de prejudicar nem prejudicou a autora.
A autora foi convidada a pronunciar-se sobre a excepção arguida e veio dizer somente que apenas em 22.01.2015 teve conhecimento da necessidade de instaurar a presente acção para obter do réu uma indemnização por perdas e danos, uma vez que o réu se recusou a prestar contas desses depósitos.
Após foi proferida decisão na qual se conheceu da excepção da prescrição nos seguintes termos (que se reproduzem sem as notas de rodapé):
«Estão, …, com fundamento nos documentos que estão nos autos, que se valoraram em todo o seu teor, provados os seguintes factos: 1) A autora intentou contra o réu a acção de divórcio litigioso com o n.º 5438/09.5TBVNG, da 5ª Secção de Família e Menores, J3, de Vila Nova de Gaia. 2) No âmbito dessa acção foi dissolvido o casamento, por divórcio por mútuo consentimento, entre a autora e o réu, tendo a sentença transitado em julgado na data de 09.11.2009. 3) A presente acção entrou em Juízo no dia 25.02.2016. […]
Fazendo o enquadramento geral da questão e com base no quadro legal aplicável importa ter em conta que com as alterações introduzidas pela Lei 61/2008 de 31/10 ao regime jurídico do divórcio – alterações que aqui se aplicam e que determinaram, por um lado, o fim do divórcio litigioso e, por outro, consagração do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (art.º 1773º, n.º 1 CC) nas situações de ausência de acordo ou consentimento mutuo – o legislador […] pôs definitivamente termo à figura do divórcio-sanção ou divorcio remédio, ainda que no nosso direito anterior à reforma de 2008 estivesse já consagrado um sistema de compromisso cuja componente dominante era a do divorcio-constatação da ruptura do casamento. Ao mesmo tempo e no sentido de assegurar verdadeira sistematização e coerência lógica a todo o regime implementado e protecção legal adequada ao cônjuge eventualmente lesado eliminou definitivamente aqueles que eram os últimos elementos subsistentes da doutrina da fragilidade da garantia, por via da qual a responsabilidade civil se não aplicava, pelo menos em princípio, no âmbito dos direitos familiares pessoais. Com a nova redacção dada ao artigo 1792 pela Lei nº 61/2008, de 31/10 permite-se que o cônjuge lesado possa intentar acção para efectivação de responsabilidade civil nos tribunais comuns, fazendo-o nos termos gerais dos artigos 483º e seguintes.
Dispõe o nº 1 do art.º 1792º CC, na redacção introduzida pelo diploma legal acima citado que “o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”, acrescentando no nº 2 que o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781.º (casos de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum”) deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento, devendo este pedido deve ser deduzido na própria acção de divórcio.
A norma do actual n.º 1 do artº 1792º, de cujo âmbito se exclui o fundamento de divórcio decorrente da alteração das faculdades mentais do outro cônjuge nos termos supra referidos, remete literal e intencionalmente para os termos gerais da responsabilidade civil extracontratual, afastando a doutrina da fragilidade da garantia. Por isso o dever de indemnizar o cônjuge lesado não prescinde da efectiva verificação de um facto voluntário praticado pelo cônjuge lesante, que seja ilícito, adequadamente causador de danos e culposo. Não é já a mera violação dos deveres conjugais o facto gerador da obrigação de indemnização, mas o facto-fundamento do divórcio. Porém, a violação dos deveres conjugais pode continuar a ter efectivo relevo no âmbito da responsabilidade civil, nomeadamente quando o próprio facto-fundamento constitua violação de direitos absolutos. A indemnização não se funda na mera violação dos deveres conjugais, mas antes no próprio facto lesivo, ilícito, culposo e gerador de danos. Daí que não se prescinda do juízo de culpa, o qual, em algumas situações, pode respaldar-se coincidentemente no acervo fático alegado como violação dos deveres conjugais para efeitos de declaração do divórcio e, sendo assim, não ficam os (ex-) cônjuges imunes ao desconforto da discussão processual da sua culpa.
O regime de prescrição em causa é o previsto no artigo 498º, do Código Civil. Ora, estabelece o nº 1 do art. 498º do citado código que "o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso". No caso destes autos verifica-se a circunstância do conhecimento efectivo com a data do trânsito em julgado da sentença proferida – cfr. facto Provado em 2) –.
Seguindo a tendência dos mais recentes códigos de reduzirem os prazos de prescrição do direito a indemnização por responsabilidade civil extracontratual, também o nº 1 do art. 498º do C.Civil veio, como excepção ao prazo prescricional ordinário (art. 309º) estabelecer para tais casos uma prescrição de mais curto prazo. E veio, na sequência da legislação germânica, fixar o início da contagem do prazo no momento em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora - e afastando-se aqui daquela - com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos.
Quando determina que o prazo de prescrição se conta do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito quer o preceito em causa significar que tal prazo é contado a partir da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu e não da consciência da possibilidade legal do ressarcimento. Assim, o lesado tem conhecimento do direito que invoca - para o efeito do início da contagem do prazo de prescrição - quando se mostra detentor dos elementos que integram a responsabilidade civil, ou melhor, "o início da contagem do prazo especial de três anos não está dependente do conhecimento jurídico, pelo lesado, do respectivo direito, antes supondo, apenas, que o lesado conheça os factos constitutivos desse direito, isto é, saiba que o acto foi praticado ou omitido por alguém - saiba ou não do seu carácter ilícito - e dessa prática ou omissão resultaram para si danos". Todavia, no caso dos autos, não obstante, vamos considerar a data de 09.11.2009 (a do trânsito em julgado da sentença) – muito embora se pudesse questionar se a data a considerar não seria a de 26.02.2008 quando o réu sai de casa (alegação da autora na PI – artigo 3º -), porém, tendo em conta a data da entrada em Juízo da acção o efeito é o mesmo considerando o conhecimento em 2008 ou em 2011 –. Em concreto nos autos não se verifica qualquer causa interruptiva da prescrição, nem a circunstância a que alude o n.º 3 do artigo 498º, do Código Civil. Portanto, tendo entrado a presente acção em Juízo na data de 25.02.2016, já o direito da autora estava, nos termos do n.º 1 do artigo 498º, do Código Civil, prescrito.
Assim, nos termos conjugados dos artigos 1792º e 498º, do Código Civil, e dos artigos 576º, 578º e 579º, do Código de Processo Civil, conhecendo da invocada excepção da prescrição, absolvo o réu do pedido que contra si a autora formulou, por estar o direito desta prescrito.»
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- A douta sentença não está de acordo com os factos alegados nem está de acordo com os documentos juntos com a p.i. e juntos pelo próprio r. no seu último requerimento.
2- Diz o artigo 498.º nº 1 do C. Civil: o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete … sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”.
3- Está provado por documentos que estão nos autos que a autora, para além de invocar tal direito no Inventario nº 5438/09.5TBVNG-A que correu termos na Comarca do Porto-V. N. Gaia-Inst. Central 5ª Secção F. Menores-J.3, apenas teve conhecimento de que deveria socorrer-se do previsto no artigo 1681º nº 1 do C. Civil, em 22 de Janeiro de 2015.
4- A autora está dentro do prazo de 3 anos para exercer o seu direito.
5- Se se entender que estamos âmbito da responsabilidade contratual o prazo da prescrição é superior.
6- Autora e réu encontram-se divorciados desde 08.10.2009 no âmbito do Proc. Nº 5438/09.5TBVNG, cujo processo deu entrada a 26.05.2009.
7- Foi instaurado a 08.04.2011 no apenso A um Inventario para separação de meações, que teve como corolário no dia 22 de Janeiro de 2015 o fim do mesmo e o conhecimento por parte da autora da necessidade de instaurar uma acção tendo em vista obter uma indemnização por parte do réu por perdas e danos.
8- O réu antes da propositura da acção de divórcio que ocorreu a 26 de Maio de 2009, abandonou o lar conjugal em 26 de Fevereiro de 2008.
9- À data desse abandono para além de outros bens existiam no D… dois depósitos a prazo pertença de autora e réu no valor total de €44.036,08, sendo um de €7.036,08 e outro de €37.000,00 depositados na Conta pertença dos então marido e mulher.
10- Em 02.06.2008 e 11.06.2008, o réu ou alguém a seu mando intencionalmente e tendo em vista prejudicar a autora levantou tais montantes.
11- “O cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge … responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge”, é o que refere o artigo 1681º nº 1, do Código Civil, com base no qual assentam os fundamentos da presente acção.
12- Não estão preenchidos os requisitos para se operar a prescrição nos termos exarados na douta sentença.
13- A autora pretende que seja revogada a sentença objecto do recurso e que se ordene a remissão dos autos para julgamento para analise e prova da matéria controvertida.
O recorrido não respondeu ao recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o direito de indemnização que a autora pretende exercer se encontra prescrito.

III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir e que se encontram provados por certidões juntas aos autos são os seguintes:
1] Autora e réu celebraram entre si no dia 25.03.2000, casamento católico sem convenção antenupcial.
2] Esse casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 08.10.2009 e transitada em 09.11.2009, no processo de divórcio n.º 5438/09.5TBVNG, da Secção de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, instaurado sem consentimento do outro cônjuge mas depois convertido em divórcio por mútuo consentimento.
3] Por apenso ao referido processo foi instaurado inventário para partilha dos bens comuns do casal.
4] Nesse inventário e no decurso da diligência que teve lugar no dia 22.01.2015, a aqui autora ditou para a acta um requerimento no qual referiu ter conhecimento de que o saldo da conta bancária que identifica não pode ser relacionado no inventário por ter sido levantado cerca de um ano antes de cessarem os efeitos das relações patrimoniais entre os cônjuges, razão pela qual só pode reagir contra o levantamento através de uma acção de indemnização ao abrigo do artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, e por isso desiste da reclamação da relação de bens que apresentou.
5] Essa desistência foi no mesmo acto homologada por despacho judicial que em consequência declarou findo o incidente da reclamação da relação de bens, o qual transitou em julgado em 23.02.2015.
6] A autora instaurou a presente acção em 25.02.2016, tendo o réu sido citado em 20.03.2016.

IV. O mérito do recurso:
Para determinar se um determinado direito se encontra prescrito é necessário, em primeiro lugar, qualificar o direito para determinar a sua natureza e regime jurídico e, em segundo lugar, determinar o prazo de prescrição a que a lei subordina o exercício desse direito.
Lendo a petição inicial e a decisão recorrida conclui-se de imediato que nos dois locais não se aborda o mesmo direito, melhor dizendo, que o direito que a autora pretende exercer não coincide com o direito que na decisão recorrida se considera estar a ser exercido pela autora na acção.
A autora instaurou a acção fundando expressamente o direito que reclama no disposto no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, no qual se prevê a responsabilidade dos cônjuges pelos actos praticados no âmbito da administração de bens comuns intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
Não importa abordar aqui se esse é o melhor ou o único enquadramento jurídico possível para servir de fundamento à pretensão da autora de receber metade dos saldos de duas contas bancárias que sustentar serem bens comuns. Também não importa decidir se a autora podia ou não obter a satisfação desse direito através do inventário no qual desistiu da reclamação da relação de bens e da faculdade de obter a partilha dos saldos. Nenhuma dessas questões é objecto da acção. A autora deixou claro na sua petição inicial que o que pretende é exercer o direito de indemnização por danos decorrentes de actos praticados pelo réu, enquanto administrador de bens comuns, com intenção de lhe causar prejuízo, com fundamento na previsão do artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil.
A decisão recorrida, no entanto, situa a fonte jurídica do direito que diz estar a ser exercido pela autora no disposto no artigo 1792.º do Código Civil que rege sobre a responsabilidade civil do cônjuge pelos danos causados ao outro em consequência do divórcio ou dos actos que lhe serviram de fundamento.
Ora são bem distintas as situações de responsabilidade previstas nos nos.1 dos artigos 1681.º e 1792.º do Código Civil.
Já na anterior redacção do artigo 1792.º, introduzida pelo artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25.11, estava consagrado um dever de indemnização embora regulado em termos distintos. Segundo essa redacção o cônjuge declarado único ou principal culpado estava obrigado a reparar apenas os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento.
A actual redacção amplia esse direito de indemnização, estabelecendo que o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil. Deixou, pois, de ser necessário o apuramento da culpa dos cônjuges no divórcio e a declaração judicial dessa culpa exclusiva ou principal, a responsabilidade passou a recair sobre qualquer dos cônjuges a favor do outro que tenha sofrido danos, os danos indemnizáveis são tanto os não patrimoniais como os patrimoniais e o fundamento do dever de indemnização deixou de ser somente a dissolução do casamento (isto é, a própria extinção do vínculo do casamento) e passou a ser qualquer actuação que preencha os demais pressupostos da responsabilidade civil (isto é, seja ilícita, culposa e causa adequada dos danos).
Conforme se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 2012, relatado por Hélder Roque no proc. n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, as alterações ao regime jurídico do divórcio introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, afastaram do processo de divórcio as questões relativas à violação culposa dos deveres conjugais para efeitos de aplicação de quaisquer sanções patrimoniais ou outras, mas «tal não significa que a valoração dos deveres conjugais não continue a merecer a tutela do direito, em acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos, separada da acção de divórcio, nos termos do estipulado pelo artigo 1792º, nº 1, do CC, mas não já, a título de declaração de cônjuge único ou principal culpado pelo divórcio, na acção de divórcio autónoma, incluindo, igualmente, a declaração de existência de créditos de compensação, quando houver manifesta desigualdade de contributos dos cônjuges para os encargos da vida familiar. A violação culposa dos deveres conjugais deixa, assim, de constituir um dos fundamentos da acção de divórcio autónoma, para passar apenas a representar uma causa de pedir da acção de responsabilidade civil, destinada ao ressarcimento do cônjuge lesado, nos termos do disposto pelo artigo 1792º, nº 1, do CC
Identicamente, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.09.2013, relatado por Mário Mendes no proc. n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citado e acompanhado de perto pela decisão recorrida, que «com a redacção dada ao nº 1 do artigo 1792 CC pela Lei nº 61/2008, de 31/10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento quer de factos que possam ter conduzido à ruptura da vida em comum passa a ser feita nos meios comuns de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil; com excepção dos casos em que a ruptura do casamento é consequência de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge – nº 2 do artigo 1792º CC – a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos directamente resultantes da dissolução do casamento e os danos resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter conduzido ao divorcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstracto, ressarcíveis através de acção judicial para efectivação de responsabilidade civil».
Por outro lado, o artigo 1681.º do CC estipula que «o cônjuge que administrar os bens comuns ou próprios do outro cônjuge não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge». De acordo com esta regra, em regra o cônjuge administrador de bens comuns não tem de prestar contas da sua administração, sendo irresponsável pelas consequências de uma administração negligente, relapsa ou desastrosa ainda que isso redunde em prejuízo do casal e do outro cônjuge. A norma apenas o responsabiliza pelas consequências dos actos praticados intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. A norma eleva pois à categoria de facto ilícito a actuação com intenção de causar dano, exigindo no entanto que se trate de uma actuação no âmbito da administração dos bens comuns.
Para Antunes Varela, in Direito da Família, 1.º vol., 5.ª ed., pág. 384, «o cônjuge administrador só responde pelos danos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge (art. 1681º, 1). Não é assim obrigado a reparar os prejuízos devidos a mera negligência, nem os danos provenientes de pura omissão, ainda que intencional». O mesmo autor, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 115, pág. 126, acrescenta que as «questiúnculas frequentes vezes nascidas da obrigação de prestar contas ou da apreciação da diligência do administrador poderiam perturbar de tal modo o bom entendimento entre os cônjuges e a paz familiar, que a lei civil prefere fazer vista grossa sobre a matéria, dispensando o cônjuge administrador daquela obrigação e só o considerando responsável pelos danos causados com dolo directo ou indirecto».
Segundo o Acórdão de 02.05.2012, relatado por Azevedo Ramos, no proc. n.º 238/06.7TCGMR-B.G1.S1, in www.dgsi.pt:
«Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges – art. 1789, nº1, do C.C. Com a ressalva de que os efeitos do divórcio, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, se retroagem à data da proposição da acção, a lei pretende evitar “que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed, pág. 561). Por sua vez, o art. 1681, nº1, do C.C. preceitua: “O cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do nº2 do art. 1678, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge”.
A alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária – art. 1682.º, nº 1. Quando um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados levado em conta da sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais – art. 1682.º, nº 4. A alienação considerar-se-á como tendo sido feita exclusivamente à custa dele, quando se procede à partilha dos bens do casal – art. 1689 do C.C. (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. pág. 301).
Face a esta regulamentação, podem surgir três situações, no caso de alienação de bens móveis comuns do casal: a primeira, a de ter sido feita pelo cônjuge administrador, antes da proposição da acção de divórcio; a segunda, a de ter sido feita pelo cônjuge administrador, depois da instauração da acção de divórcio; a terceira, a de ter sido feita, a título gratuito, por um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, quando a administração do bem a ambos pertencia.
No caso de se verificar a primeira situação, não haverá lugar à relacionação do bem móvel alienado, aquando do inventário para partilha de meações. O ex-cônjuge que se sentir prejudicado com a alienação poderá reagir propondo acção de indemnização de perdas e danos, nos termos previstos na parte final, do nº 1, do citado art. 1681.º
Podemos assim distinguir o artigo 1681.º e o artigo 1792.º dizendo que no primeiro caso se trata de uma responsabilidade por actos de administração do património comum praticados pelo cônjuge, enquanto no segundo caso se trata de uma responsabilidade por actos pessoais do cônjuge sobre a pessoa e os direitos subjectivos do outro ou mesmo sobre a própria relação conjugal, enquanto fonte legal de deveres jurídicos recíprocos.
Tanto basta para concluir que a decisão de julgar prescrito o direito da autora pelos fundamentos jurídicos constantes da decisão recorrida não pode ser confirmada.
Contudo, não obstante essa conclusão, se houver outro fundamento jurídico que impuser a solução de julgar prescrito o direito que a autora pretende exercer na acção, esta Relação pode julgar procedente a excepção da prescrição (aliás, alegada sem indicação do respectivo fundamento legal) com fundamento diverso do exposto na 1.ª Instância.
Isso obriga a verificar oficiosamente se esse outro fundamento existe. A questão pode suscitar-se a propósito da definição da natureza da responsabilidade prevista no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil.
Como é sabido, o artigo 498.º do Código Civil que subordina o direito de indemnização, em regra, ao prazo de prescrição de três anos (podendo ser superior apenas nos casos de o facto ilícito constituir crime), tem o seu campo de aplicação restrito ao domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco. No domínio da responsabilidade contratual, melhor dizendo aos direitos de indemnização emergentes da violação de deveres de prestação de origem contratual, já não se aplica essa norma legal, estando os mesmos sujeitos aos prazos de prescrição dos artigos 309.º e seguintes, sendo o prazo de prescrição ordinária de 20 anos. Por isso, se o artigo 1681.º do Código Civil consagrar uma situação de responsabilidade civil, o direito da autora poderá estar prescrito; se, ao invés, consagrar uma situação de responsabilidade contratual o direito da autora não estará prescrito.
A administração dos bens do casal encontra-se regulada no artigo 1678.º do Código Civil. Nos termos deste preceito, em princípio, os bens comuns estão sujeitos à administração de ambos os cônjuges, cada um deles apenas tem a administração dos seus bens próprios, a administração dos bens expressamente indicados nas diversas alíneas do n.º 2 do preceito, independentemente de serem bens próprios ou comuns, e ainda a administração dos bens na qual consentir o outro cônjuge.
Pode, portanto, um dos cônjuges administrar bens próprios do outro cônjuge se este lhe conferir mandato para o efeito (e não dizendo a lei que o mandato seja expresso, parece que nada obsta a que o mesmo seja tácito) e administrar bens comuns mediante consentimento do outro cônjuge (que parece poder revestir a forma de simples autorização, expressa ou tácita, ou constituir um verdadeiro contrato de mandato).
É por essa razão que os nos. 1 e 2 do artigo 1681.º distinguem duas situações diversas: no n.º 1 os casos em que a administração dos bens comuns é feita por o cônjuge administrador estar autorizado a fazê-la (por se tratar de um bem compreendido na previsão de uma das alíneas do n.º 2 do artigo 1678.º ou por existir consentimento do outro cônjuge que não advenha da celebração de um contrato de mandato), no n.º 2 os casos em que a administração é realizada ao abrigo de um contrato de mandato celebrado entre os cônjuges.
Nesta última situação, os deveres a que o cônjuge administrador está vinculado no exercício da administração têm fonte no contrato de mandato, são deveres de prestação e a sua responsabilidade tem natureza contratual. Os direitos do cônjuge que mandatou o outro para fazer a administração emergentes da violação por este dos deveres resultantes do acordo das partes e do regime jurídico do contrato de mandato têm a dimensão e o regime advenientes da relação contratual pelo que as acções tendentes ao exercício desses direitos (a exercer a responsabilidade pela violação dos mesmos) são acções de responsabilidade contratual.
Ao invés, se não existe contrato de mandato e a administração é feita apenas porque nos termos da lei qualquer dos cônjuges a pode fazer ou porque o outro autorizou ou consentiu que o cônjuge administrasse esses bens sozinho, tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 1681.º do Código Civil, donde resulta que não existe a obrigação de prestar contas (isto é, o cônjuge administrador não é responsável pelo sucesso ou insucesso da administração) mas se cometer o acto tipificado na norma como ilícito (praticar no exercício da administração actos com intenção – directa ou necessária – de causar prejuízo ao casal ou ao outro cônjuge) pode ser responsabilizado pelas consequências danosas do acto se estiverem verificados os restantes requisitos da responsabilidade civil.
Neste caso, estamos no domínio das acções de responsabilidade civil por factos ilícitos que seguem o regime geral do artigo 483.º e seguintes do Código Civil, com a única diferença de a ilicitude do acto estar prevista no artigo 1681.º sem necessidade de recurso à cláusula geral da ilicitude do artigo 483.º. Por conseguinte, o direito de indemnização correspondente encontra-se subordinado ao prazo de prescrição do artigo 498.º do Código Civil.
Lendo a petição inicial não existe qualquer dúvida de que a autora pretende responsabilizar o réu com fundamento no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, que aliás reproduz e invoca expressamente, imputando-lhe o acto ilícito da prática de actos de administração das contas bancárias com intenção (e resultado) de causar prejuízo à autora. Logo, a acção tem natureza de acção de responsabilidade civil e o direito reclamado pela autora estava sujeito ao prazo de prescrição de três anos estabelecido no n.º 1 do artigo 498.º.
Comparando as datas em que os levantamentos foram feitos ou mesmo a data da instauração da acção de divórcio ou ainda a data do trânsito em julgado da sentença de divórcio (para o caso de se entender, como alguns defendem, que a acção de responsabilidade civil com fundamento no artigo 1681.º do Código Civil só podia ser instaurada após a extinção do casamento) com a data em que a presente acção foi instaurada e o réu foi citado (a prescrição interrompe-se com a citação ou decorridos cinco dias sobre a data da instauração da acção: artigo 323.º, nos. 1 e 2), apura-se com segurança que estavam há muito decorridos mais de três anos. O que coloca a questão de saber se o início e/ou a contagem do prazo de prescrição foi de alguma forma influenciado pelo inventário, como defende a recorrente.
Por ser uma acção especial e pela sua configuração legal o inventário nunca é o lugar próprio para discutir a responsabilidade civil dos ex-cônjuges e fixar indemnizações a favor do cônjuge lesado. Pode suscitar-se se através do inventário a autora conseguia obter o mesmo resultado prático que deseja alcançar com a presente acção, designadamente por outro fundamento legal que não o que invoca nesta (v.g. artigo 1682.º, n.º 4, do Código Civil), mas essa é uma questão que interessava ao inventário, não é questão que contenda com a presente acção porque o seu fundamento (responsabilidade civil) e objecto (restituição de metade dos saldos) são específicos e, enquanto tal, a acção é estranha e independente do processo de inventário. Por isso mesmo, a autora não só não estava obrigada a discutir a acção de responsabilidade civil no inventário, como não o podia sequer fazer, como não tinha que esperar pelo resultado deste para poder exercer o seu direito de indemnização, razão pela qual o prazo de prescrição iniciou o seu curso independentemente da instauração do processo de inventário e ou do seu desfecho (artigo 306.º do Código Civil). Aliás, a recorrente não pode defender coisa diversa porque foi ela que no processo de inventário desistiu da reclamação de bens onde acusava a falta dos saldos e depois veio colocar a questão numa acção autónoma com o aludido fundamento e objecto, numa demonstração que entendia que o podia fazer à margem e independentemente do inventário.
Por outro lado, não é correcto afirmar como faz a recorrente que só teve conhecimento que deveria instaurar a presente acção em 22 de Janeiro de 2015. Nessa data, na diligência realizada no processo de inventário a recorrente desistiu da reclamação de bens afirmando ter conhecimento de que devia instaurar a acção prevista no artigo 1681.º do Código Civil. No processo de inventário não foi proferido nenhum despacho nem junta qualquer informação que desse à recorrente, nessa ocasião, tal conhecimento, foi ela que o afirmou (não dizendo desde quando tinha esse conhecimento) e que em consequência desistiu da reclamação, impedindo o tribunal de decidir a reclamação caso entendesse que o podia fazer sem recorrer ao disposto no artigo 1681.º do Código Civil.
De todo o modo, nos termos do artigo 498.º do Código Civil o prazo de prescrição conta-se da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos. Em virtude desta norma, o que releva para efeitos de início de contagem do prazo é o conhecimento dos pressupostos de facto do direito, não o conhecimento de que juridicamente se é titular de um direito (artigo 6.º do Código Civil), pelo que a afirmação da recorrente é totalmente irrelevante.
Sucede, contudo, que a prescrição é uma excepção, pelo que compete à parte que pretende beneficiar dela a alegação e demonstração dos pressupostos do decurso do prazo de prescrição (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). Vale isso por dizer que cabia ao réu alegar e demonstrar em que data a autora teve conhecimento que os saldos bancários em causa tinham sido levantados pelo autor ou por alguém a seu mando para impedir a autora de receber a sua meação neles, isto é, o conhecimento dos pressupostos de facto do direito que ela pretende exercer na acção.
Na contestação, ao invocar a prescrição, o réu limitou-se a invocar a data em que os levantamentos foram feitos, quando o que era indispensável para a procedência da excepção era a data em que a autora teve conhecimento dos levantamentos pois só a partir desse conhecimento se podia sustentar que a autora teve conhecimento (dos pressupostos de facto) do direito que pretende exercer na acção, sendo certo que da mera realização dos levantamentos não é possível deduzir o conhecimento dos mesmos por quem não os realizou. Acresce que também a autora não alega da data em que teve esse conhecimento, mas não era a ela que competia fazer essa alegação para afastar a excepção que lhe foi oposta pelo réu. Por isso, na dúvida quanto à verificação do pressuposto da excepção deduzida o tribunal tem de decidir contra a parte a quem competia o respectivo ónus da prova, ou seja, contra a parte que invocou a excepção, julgando-a improcedente. Em suma, também pelo outro fundamento jurídico possível e passível de ser conhecido pela Relação, os autos não possuem elementos para julgar procedente a excepção da prescrição do direito da autora. O recurso deve por isso proceder e a decisão recorrida ser revogada.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação revogam a sentença recorrida julgando improcedente a excepção da prescrição e determinando o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito da acção.
Custas do recurso nos termos da decisão a proferir a final na acção (tabela I-B).

Porto, 9 de Fevereiro de 2017
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto323)
Inês Moura
Paulo Dias da Silva