Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2493/17.8T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RP201906052493/17.8T9VCD.P1
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AOS RECURSOS
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º802, FLS.299-308)
Área Temática: .
Sumário: I - Mantém-se válida a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010, no sentido de que a existência de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não exige que o montante das contribuições retidas e não entregues, por declaração, seja superior a sete mil e quinhentos euros.
II - A entrada em vigor, em data posterior à da prolação desse acórdão, da Lei n.º 110/2009, de 30 de dezembro, que veio a qualificar como contra - ordenação a retenção e não entrega das contribuições devidas à Segurança Social, não veio alterar os pressupostos que serviram de base à fixação dessa jurisprudência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2493/17.8T9VCD.P1

Tribunal da Relação do Porto
(2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial)

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:

No processo supra identificado, por decisão instrutória proferida em 18/01/2019, e no que ora importa salientar, decidiu-se:

• julgar improcedentes as invocadas prescrição do procedimento criminal e ausência de poderes de facto de gerência por parte do arguido/requerente B… e o alegado não cumprimento, quanto a este, da notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT;

• afastar-se a aplicação da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2010, assim considerando que a existência de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto pelo art. 107º/1 do RGIT, por referência ao art. 105º/1 do mesmo diploma, exige que o montante das contribuições retidas e não entregues, por declaração, seja superior a sete mil e quinhentos euros;

• não pronunciar os arguidos B… e “C…, Lda.” pelos crimes pelos quais vinham acusados, assim se determinando o oportuno arquivamento dos autos.

Inconformado com uma parte da sobredita decisão, dela veio recorrer o Ministério Público nos termos que constam de fls. 378 a 387, aqui tidos como especificados, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):
1° Os arguidos destes autos foram acusados da prática de um crime de abuso de confiança de fiscal à Segurança Social, p e p pelo art. 107°, n° 1 e 105° do RGIT.

2° O arguido B… veio requerer a abertura da instrução, invocando que:
- Não era gerente de facto da arguida;
- que a obrigação de pagamento das cotizações e contribuições devidas à Segurança Social prescrevem no prazo de 5 anos, razão pela qual a divida se encontra prescrita;
- não ter sido cumprida quanto ao requerente a notificação a que alude o art. 105°, n° 4, b) do RGIT.

3° O Mm° Juiz a quo não deu razão ao arguido mas proferiu despacho de não pronuncia em relação aos dois arguidos, afastando a aplicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n°8/2010 do STJ, por entender que com a entrada em vigor (no dia 01 de janeiro de 2011), do Código Contributivo deixava de ser aplicável esse acórdão.

4° Salvo melhor opinião, este argumento não pode prevalecer pois que à data da prolação do acórdão já estava publicada a Lei n° 110/2009, de 16/09 e, embora a mesma não tivesse em vigor, essa previsão não teve força para afastar a tese da não descriminalização.

5° Foi fixada a jurisprudência, no sentido de que a exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o nº 1 do art. 105° do Regime Geral das Infrações Tributárias RGIT (aprovado pela lei n.° 15/2001, de 5 de junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 13.° da Lei n° 64-A/2008, de 31 de dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.°, n.° 1, do mesmo diploma, não por causa “da completa impunidade dos comportamentos que se analisassem em não entregas inferiores a esse montante”.

6° Mas por se ter entendido como não sendo admissível a conformidade entre o princípio da legalidade penal e a integração de lacunas, por analogia, em matéria de definição do comportamento do agente para o efeito de se considerar preenchido ou não preenchido, o tipo legal de crime.

7° E, muito especialmente, por se ter entendido que o bem jurídico subjacente ao crime de abuso de confiança contra a segurança social é integrado antes do mais pelas receitas da Segurança Social, nunca poderá perder-se de vista a singularidade do financiamento desta. Singularidade que assenta em princípios como o da sustentabilidade, autonomia orçamental, reserva de lei, ou contributividade, e que não interessam da mesma maneira na área da fiscalidade”.

8º É, assim, a natureza destas contribuições para a Segurança Social e o seu modelo de Financiamento, previsto na Lei de Bases da Segurança Social, baseado no Princípio da Contributividade e no Princípio da Adequação Seletiva, (prevendo que o Sistema Previdencial deve ser financiado, fundamentalmente pelas contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais), bem como o conhecimento do tecido empresarial que ditaram a opção do legislador de punir de forma mais severa os crimes contra a Segurança Social, tendo sido já decidido pelo Tribunal Constitucional que esta opção não viola o princípio da proporcionalidade e da igualdade.

9° Ao interpretar a norma contida no art. 107° do RGIT, ao arrepio do Acórdão de Fixação de Jurisprudência supra descrito e ainda do princípio da liberdade de conformação do legislador reconhecido pelo Tribunal Constitucional (vide o Acórdão n° 97/2011 do Tribunal Constitucional (www.tribunalconstitucional.pt), no sentido de que se aplica o limite dos €7.500 previsto para o crime de abuso de confiança fiscal, o douto despacho recorrido violou o disposto no art. 107° do RGIT e o art. 9° do Cód. Civil.

Igualmente não se conformando com parte do decidido, o assistente “Instituto da Segurança Social, I.P.” (abreviadamente, ISS), também veio recorrer nos termos vertidos a fls. 390 a 395vº, aqui tidos como reproduzidos, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição, com numeração da nossa autoria):

1. Quer a letra da lei, quer o espírito da norma, quer os elementos históricos, quer os elementos teleológicos do art. 107.º do RGIT conduzem, necessária e prudentemente, à manutenção da interpretação fixada pelo Acórdão Uniformizador do STJ n.º 8/2010.

2. A própria Decisão Instrutória aceita, na pág. 14, “Concedendo-se em suma que o legislador bem poderia ter usado de outros cuidados (…) sendo certo que a solução que acolhemos não deixa de ter uma expressão, ainda que imperfeita, na letra da lei (…)” que a matéria é dúbia.

3. O que temos aqui é um intérprete e aplicador da lei a ser, ele próprio, e ao mesmo tempo, o fazedor da lei, o legislador, alterando a política criminal que subjaz a todo o RGIT.

4. O art. 107.º do RGIT e o Acórdão do STJ n.º 8/2010 fixaram que não se aplica à Segurança Social a exigência mínima de € 7.500, de valor das cotizações retidas e não pagas, para que se verifique um crime de abuso de confiança contra a segurança social.

5. O legislador, que teve oportunidade para o fazer, não quis descriminalizar, não alterou voluntariamente a norma, não realizou interpretação autêntica, não descriminalizou uma conduta ou prática das empresas.
6. E não o fez pois que o Estado, por um lado tem de garantir a manutenção financeira do próprio sistema da segurança social, do próprio Estado Providência; e, por outro lado, por uma questão de política criminal, por razões de prevenção geral do Estado Legislador (pedagogia empresarial a longo prazo).

7. Nesta conformidade fica prejudicada a análise da exigência de que tal patamar mínimo se verifique por declaração, sendo certo que essa regra versa especificamente as declarações de IVA, entregues à AT, e não as declarações de remunerações, entregues ao ISS.

Os recursos foram regularmente admitidos (cfr. fls. 399).

Não há respostas.

Nesta instância, o Ex.mo PGA emitiu o parecer que consta de fls. 412 a 414, aqui tido como renovado, através do qual sustentou a procedência dos recursos.

No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, pois que nada obsta a tal.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) a decisão recorrida:

A decisão instrutória, no que ora importa salientar, é do teor seguinte (transcrição):
(…)

Resta a questão que nós próprios havíamos suscitado, isto é, a de saber se é aplicável ao abuso de confiança contra a Segurança Social o limite mínimo dos €7.500,00 por declaração a que alude o art. 105º/1 do RGIT, matéria que tem particular relevo no caso concreto uma vez que, embora o montante global atinja €19.292,71, a verdade é que, olhando aos valores parcelares em causa, que figuram, por remissão operada pela douta acusação pública, a fls. 12 a 14, neles não encontrámos nenhuma declaração individual com valor superior a €7.500,00 (e é a cada declaração que importará atender, como no-lo diz o art. 105º/7, aplicável por força do art. 107º/2).
Concentremo-nos então nesta questão: para que exista um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é necessário que o valor por declaração seja superior a €7.500,00, nos termos para que aponta o art. 105º/1 do RGIT?
Trata-se como se sabe de problema sobre o qual se produziu o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2010 (DR 1ª Série, de 23/09/2010), que concluiu que a exigência daquele montante mínimo não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
É-nos devida obediência a esse acórdão?
Diz-nos a propósito o art. 445º/3 do Código de Processo Penal que «a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».
Tem sido esta norma entendida, para o que aqui releva, no sentido de que a jurisprudência fixada apenas deve ser afastada se invocadas razões ponderosas que não existiam ou não foram consideradas ao tempo da prolação do acórdão, e que o tornem ultrapassado.
Com o máximo respeito devido pelo que ficou exarado no acórdão de fixação de jurisprudência em apreço, entendemos que é justamente isso que sucede na situação em apreço, no sentido em que existe um dado novo.
Senão vejamos.
Olhando aos fundamentos do Ac. nº 8/2010, um deles é este: se acaso fosse exigido que a importância suplante o limite mínimo de €7.500,00 para o abuso de confiança contra a segurança social, ficariam impunes os comportamentos que se traduzissem na não entrega de valor inferior, o que não pode ter sido querido pelo legislador, tanto mais que este, na situação próxima do crime de abuso de confiança fiscal, salvaguardou essa situação, dado que se as quantias em causa não atingirem nesse contexto aquele limiar mínimo, sempre haverá que ler o comportamento em referência a título de contraordenação, nos termos do art. 114º do RGIT.
À data em que o Ac. nº 8/2010 foi proferido já se encontrava publicada a Lei nº 110/2009, de 16/09, que previa a punição como contraordenação a não entrega no tempo devido das contribuições retidas (arts. 42º e 228º); sucede que o início de vigência desse diploma esteve previsto para 1/01/2010 (art. 6º), mas a Lei nº 119/2009, de 30/12 adiou esse início de vigência para um ano depois, fazendo-a ainda depender de uma avaliação a efetuar em sede de Comissão Permanente de Concertação Social (art. 2º).
Reconhecendo então que a entrada em vigor daquele diploma (e da previsão das contraordenações) estava ao tempo sob uma «nuvem de incerteza», a posição que fez vencimento no Ac. nº 8/2010 acabou por desconsiderar o potencial hermenêutico que daquele diploma adviria para o problema em discussão (ponto 3.5.2), potencial esse que é tal que na declaração de voto do Conselheiro Santos Cabral, a que aderiram os Conselheiros Maia Costa, Fernando Fróis, Pereira Madeira e Oliveira Mendes, é dito que a jurisprudência fixada ficará rapidamente desatualizada com a previsível entrada em vigor da Lei nº 110/2009 (ponto I).
Pois bem: esta Lei nº 110/2009, de 30/12, entretanto, entrou efetivamente em vigor no dia 1/01/2011, em conformidade com o seu art. 6º/1, na redação derivada da Lei nº 119/2009, de 30/12.
Eis-nos então diante um quadro jurídico novo, que se traduz na circunstância de a retenção e a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social poderem configurar contraordenações, o que justifica o reexame da jurisprudência fixada, tanto mais que o próprio Ac. nº 8/2010 assumidamente não enfrentara as questões suscitadas por esse quadro jurídico novo apenas porque o diploma que o corporizava, embora publicado, ainda não se encontrava em vigor, e por existir alguma incerteza a esse propósito.
Dito isto, entendemos que nada obsta então a que seja reponderada a questão de saber se o limite mínimo de €7.500 a que se alude no art. 105º/1 do RGIT tem ou não aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto pelo art. 107º do mesmo diploma.
Trata-se de problemática sobre a qual já se discorreu longamente em múltiplos lugares, não pretendendo nós repisar resenhas e argumentações esgrimidas e bem condensadas nomeadamente no Ac. nº 8/2010 e nas suas declarações de voto, que para este espaço convocámos com a devida vénia e para memória futura; de toda essa discussão limitar-nos-emos a sintetizar o essencial das razões que nos levam agora, particularmente à nova luz existente sobre a matéria proveniente da entrada em vigor da Lei nº 110/2009, a acolher a tese de que o crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto pelo art. 107º do RGIT demanda que o montante das contribuições, por declaração, seja superior a €7.500.
Recuando à enunciação do problema, recordemos muito sumariamente os seus traços gerais:
- no art. 107º do RGIT prevê-se o crime de abuso de confiança contra a segurança social, dizendo-se no seu nº 1 que são aplicáveis as penas previstas nos nºs 1 e 5 do art. 105º;
- no nº 1 desse art. 105º foi introduzida pelo art. 113º da Lei nº 64-A/2008, de 31/12 a menção a que a prestação tributária deve ser de valor superior a €7.500;
- e ao resultar do art. 107º a remissão para a pena prevista, entre o mais, no nº 1 daquele art. 105º, deve ou não considerar-se, também quanto ao abuso de confiança contra a segurança social, que as contribuições em causa devam ser de valor superior àqueles €7.500?
A resposta que damos, como resulta do já antecipado, é no sentido de que este limite mínimo tem na verdade lugar também no crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Porquê?
São fundamentalmente três as ideias para nós decisivas, inspiradas na declaração de voto do Conselheiro Santos Cabral atrás mencionada, cuja pertinência ora resulta aclarada e reforçada com a efetiva entrada em vigor da Lei nº 110/2009.
Primeira ideia: a essencial identidade do bem jurídico protegido pelo abuso de confiança fiscal e pelo abuso de confiança contra a segurança social.
Podemos ir ao detalhe de considerar que o abuso de confiança fiscal visa a prevenção e a repressão de comportamentos que afetem as fontes de financiamento do orçamento geral do Estado e que o abuso de confiança contra a segurança social visa a prevenção e a repressão de comportamentos que afetem o financiamento da segurança social.
Podemos ir ao detalhe de considerar que o orçamento geral do Estado é o instrumento pelo qual os poderes públicos procuram realizar as finalidades gerais do Estado, e que o orçamento da segurança social é o instrumento pelo qual os serviços da Segurança Social cumprem a sua missão específica (art. 63º/3 da Constituição).
Podemos ir ao detalhe de considerar que a Segurança Social é uma entidade que goza de um estatuto de autonomia na prossecução das suas funções.
Tudo isso é verdade; mas é-o também que em última análise é do erário público aquilo de que se cuida – é o erário público, entendido este em sentido amplo, que o legislador pretende proteger, seja com a tipificação do abuso de confiança fiscal, seja com o abuso de confiança contra a segurança social, pois é dele e da sua solidez que dependem o bom cumprimento pelo Estado, visto este no seu conjunto, das suas responsabilidades públicas.
Isso mesmo aliás no-lo dizem várias normas da nossa Constituição, na justa medida em que sublinham o papel do Estado na garantia do bom funcionamento da Segurança Social: vejam-se a este nível o art. 63º/2, que nos diz que «incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social (…)»; o art. 105º/1 b), que prescreve que «o orçamento do Estado contém o orçamento da segurança social»; e o art. 107º, que estatui que «a execução do Orçamento será fiscalizada pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia da República, que, precedendo parecer daquele Tribunal, apreciará e aprovará a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social».
E na mesma senda do que vimos de dizer, a Lei nº 4/2007, de 16/01, que estabelece as Bases Gerais do Sistema de Segurança Social, apresenta-nos diversos preceitos que também concorrem no sentido de que não é de coisas muito diferentes aquilo de que falamos quando falamos em Estado e em Segurança Social: o art. 24º, que prevê que «compete ao Estado garantir a boa administração da Segurança Social»; os arts. 90º/1 e 92ºc), dos quais decorre que «constituem fontes de financiamento do sistema [entre outras] as transferências do Estado e de outras entidades públicas»; o art. 93º/1, que nos diz que «o orçamento da segurança social é apresentado pelo Governo»; e o art. 94º/1, que define que «a estrutura orgânica do sistema compreende serviços que fazem parte da administração direta e da administração indireta do Estado».
Ainda neste sentido que defendemos, de que o bem jurídico é essencialmente o mesmo nos dois tipos de crime em causa, converge a própria sistematização adotada pelo legislador do RGIT, na medida em que aglutinou sob um mesmo título, denominado «crimes tributários», entre outros, os crimes fiscais e os crimes contra a segurança social.
Bem se vê então que, de uma forma geral, as incriminações em presença pretendem garantir o efetivo e atempado recebimento dos «tributos» de que o Estado em sentido geral carece para cumprir as suas muito diversificadas funções e punir os comportamentos que a um tal recebimento atentem.
Se é pois um mesmo, no essencial, o bem jurídico protegido, isto leva-nos à segunda ideia que nos parece importante sublinhar: não obstante manter o legislador, ao nível da chamada fragmentariedade de segundo grau, uma certa margem de liberdade para definir os termos exatos de proteção do bem jurídico em referência em cada uma das várias dimensões em que o mesmo é convocado, é de esperar que, optando por procurar essa proteção, entre outras vias, pela incriminação do abuso de confiança fiscal e pelo abuso de confiança contra a segurança social, escolha tipos legais próximos.
E foi precisamente isso o que se viu no RGIT, logo desde a versão inicial deste: embora prevendo um tipo autónomo de incriminação do abuso de confiança contra a segurança social – opção que decerto se justificará pela especificidade dos comportamentos visados e pela titularidade subjetiva das obrigações correspondentes -, embora prevendo um tipo autónomo de incriminação do abuso de confiança contra a segurança social, dizíamos, o legislador aproximou sobremaneira o regime deste ilícito ao do abuso de confiança fiscal, seja porque a ele associou as penas, por via da remissão para os nºs 1 e 5 do art. 105º, seja porque, no nº 2 do art. 107º, remeteu abertamente para o regime dos nºs 4, 6 e 7 daquele art. 105º.
Se é assim, terá o legislador querido, com a Lei nº 64-A/2008, de 31/12, alterar radicalmente este estado de coisas, introduzindo um limite mínimo de incriminação para o abuso de confiança fiscal e não o fazendo para o abuso de confiança contra a segurança social?
O mencionado diploma não contém, explícita ou implicitamente, uma qualquer justificação para essa hipotética mudança essencial de tratamento; e esta ausência de justificação é bem um sinal de que o legislador não terá querido verdadeiramente alterar o estado das coisas de outro modo que não este – introduzir um limite mínimo de incriminação ao bloco sancionatório que sempre tratara como tal, isto é, como um bloco, a saber, o constituído pelo abuso de confiança fiscal e pelo abuso de confiança contra a segurança social.
Poderia o legislador ter usado de outro cuidado na redação legislativa, evitando as dúvidas entretanto geradas?
Decerto que sim – essa falta do cuidado exigível é bem ilustrada pela circunstância de aquele mesmo art. 113º da Lei nº 64-A/2008 ter eliminado o nº 6 do art. 105º do RGIT, mas no art. 107º deste continuar a figurar, no nº 2, a remissão para tal nº 6 (remissão só eliminada com a Lei nº 66-B/2012, de 31/12).
Não terá assim havido o propósito de introduzir qualquer diferenciação no tratamento típico dos crimes em causa, nas suas linhas rudimentares.
Aliás, o Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal, Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal, elaborado sob a égide da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais em 3/10/2009, tê-lo-á reconhecido quando, no seu ponto 10.4.3, veio dizer, entre o mais, o seguinte «[que] há um paralelismo manifesto entre este tipo legal de crime [abuso de confiança fiscal] e o crime de abuso de confiança contra a segurança social (…), que, aliás, remete para o tipo legal do crime fiscal em ambos os seus números. (…) discute-se nas instâncias criminais se a alteração ao crime fiscal se reflete ou não igualmente no crime contra a segurança social, sendo já conhecidas soluções judiciais contraditórias entre si com prejuízo para a segurança social e a paz social. (…) Recomendação: Deverá proceder-se à alteração da lei no sentido de harmonizar os dois tipos legais de crime de abuso de confiança previstos no RGIT» (in https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/rcp_ma_12632.pdf , pg. 787).
Concedendo-se em suma que o legislador bem poderia ter usado de outros cuidados, evitando-se toda a querela entretanto desenvolvida, certo é que a solução que acolhemos não deixa de ter uma expressão, ainda que imperfeita, na letra da lei, pois o nº 1 do art. 107º do RGIT, remetendo para a punição prevista pelos nºs 1 e 5 do art. 105º, comporta um sentido interpretativo que atenda aos dois padrões de desvalor do resultado naquele último previstos, a saber, quanto a valores acima de €7.500 e até €50.000, num primeiro patamar, e quanto a valores acima de €50.000, num segundo.
Terceira ideia: a unidade e a coerência lógica do sistema.
Olhemos o abuso de confiança contra a segurança social por contraposição com a fraude contra a segurança social, prevista, esta, no art. 106º do RGIT.
Para a fraude, que sob muitos aspetos poderá revestir-se em concreto de gravidade superior, está previsto que a vantagem ilegítima procurada tenha que ser superior a €7.500 (desde a versão originária do RGIT); se é assim, fará sentido que o legislador tenha procurado pelo menos uma harmonização relativa de regimes, criando um valor mínimo também para o abuso de confiança contra a segurança social, que corresponda, na leitura que faz do princípio da necessidade de tutela de bens jurídicos, ao limiar mínimo de dignidade penal, em linha concretizadora do art. 18º/2 e 3 da Constituição.
Ainda neste mesmo registo, importa ter presente que o art. 113º da Lei nº 64-A/2008, de 31/12, eliminou, como já dito acima, o nº 6 do art. 105º do RGIT, que era aplicável também ao abuso de confiança contra a segurança social por força do art. 107º/2 do mesmo diploma.
E que nos dizia esse nº 6?
Que se extinguia a responsabilidade criminal pelo pagamento da prestação em falta, juros respetivos e valor da coima devida pela não entrega dentro do prazo legal, conquanto estivéssemos diante uma prestação que não excedesse a quantia de € 1.000, na versão originária do RGIT, ou de €2.000, a partir da redação introduzida pelo art. 52º da Lei nº 60-A/2005, de 30/12.
A eliminação pura e simples daquele nº 6 está decerto relacionada com a alteração introduzida no nº 1 do preceito, com a criação do valor mínimo para efeitos de incriminação que surgiu com a mesma Lei nº 64-A/2008: elimina-se a causa de exclusão da responsabilidade inicialmente fixada por referência à quantia de €1.000 e depois de €2.000, porque do mesmo passo a incriminação só existe se a prestação em causa for superior a €7.500.
Ora, na tese segundo a qual este valor mínimo não se aplica ao abuso de confiança contra a segurança social, o que em boa verdade teríamos era isto: sem justificação aparente, o legislador poria fim a uma causa de extinção da responsabilidade criminal, podendo afinal passar a punir-se condutas de abuso de
confiança contra a segurança social em relação às quais antes seria possível a extinção da responsabilidade criminal, quando, do lado do abuso de confiança fiscal, que pretende proteger o mesmo bem jurídico e que sempre teve um tratamento paralelo, como dissemos, não haveria sequer preenchimento dos requisitos típicos, por não ser atingido o patamar de valor mínimo.
Aqui chegados, eis-nos diante a entrada em vigor da Lei nº 110/2009, de 16/09, em 1/01/2011.
Este diploma, que consagrou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, prevê no seu art. 42º o seguinte: «1. As entidades contribuintes são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço. 2. As entidades contribuintes descontam nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetem-no, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente. 3. Sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, a violação do disposto nos n.os 1 e 2 constitui contraordenação leve quando seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo e constitui contraordenação grave nas demais situações».
E depois, nos arts. 221º e seguintes, estatui todo o regime contraordenacional.
Olhando descomprometidamente para o que resulta do contraste entre este Código e o RGIT, o que nos parece ocorrer é o seguinte:
(a) quem não entrega no prazo devido a contribuição legal para a segurança social comete um ilícito;
(b) esse ilícito poderá consubstanciar uma contraordenação leve, se o pagamento tiver lugar dentro dos 30 dias subsequentes ao termo do prazo;
(c) mas já será uma contraordenação grave em todas as demais situações que não atinjam o preenchimento dos requisitos do tipo de ilícito criminal, a saber, e entre o mais, teremos uma contraordenação grave, independentemente do valor da prestação, se for ultrapassado o assinalado prazo de 30 dias a seguir ao prazo normal de pagamento; e passará a conduta a ir além da mera contraordenação grave e a integrar o tipo de crime do art. 107º se estiver em causa uma prestação de valor superior a €7.500, por este tipo legal se traçando doravante a forma de reação do sistema (cfr. art. 2º/3 do RGIT).
Se acaso não fizermos esta interpretação que deixámos explanada, que tratamento daremos, por exemplo, a uma prestação no valor de €300 não paga dentro do prazo suplementar de 30 dias? Teríamos uma mesmíssima conduta que concitaria a verificação simultânea dos requisitos típicos de um crime de abuso de confiança contra a segurança social e de uma contraordenação grave, o que nos parece que não quadra com o esquema global proposto pelo legislador, que via de regra deixa para a esfera das contraordenações condutas tidas por menos gravosas, nomeadamente em função, entre outras variáveis possíveis, do desvalor do resultado.
Dir-se-á: este regime contraordenacional só se tornou vigente no dia 1/01/2011, e portanto não pode ser convocado para a interpretação do RGIT, que lhe é anterior, e em particular da Lei nº 64-A/2009, de 31/12.
Não subscrevemos essa orientação.
Em primeiro lugar, cumpre notar que a publicação dos dois diplomas – o que alterou o RGIT e o que plasmou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social – surgiu em momentos temporais próximos, o que significa que nada obsta a que, pese embora este último não tenha entrado de imediato em vigor, o encaremos desde logo como cânone interpretativo, nomeadamente como sinal do pensamento do legislador à época.
Em segundo lugar, certo é que esse Código, com a forma e o conteúdo com que havia sido publicado, entrou efetivamente em vigor, com isso como que ficando selado oficialmente aquele pensamento legislativo.
E em terceiro lugar importa não esquecer que o legislador do RGIT terá desde o início pretendido erigir um esquema de ilícitos criminais e contraordenacionais nesta matéria, relegando embora as contraordenações em relação à segurança social para diploma próprio, bem se vendo portanto que tinha em mente quanto ao abuso de confiança contra a segurança social, à semelhança do abuso de confiança fiscal, uma duplicidade punitiva, com a qual não é congruente a jurisprudência firmada no Ac. nº 8/2010.
Vale o exposto e em suma por dizer que entendemos que a entrada em vigor do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social constitui um dado novo que permite que se repense o Acórdão de Fixação de Jurisprudência em causa, alcançando-se resultado oposto àquele que fez então vencimento.
Aliás, sempre se diga que esse Acórdão, sendo obviamente de grande requinte jurídico, foi alvo de uma votação de resultado frágil (10/8), antevendo-se como expectável que, perante o dado novo a que nos referimos, possa dar origem a uma inversão da jurisprudência ali fixada.
*
Dito isto, aplicando as conclusões a que chegámos ao caso concreto, e considerando que os valores a atender são os que devam constar de cada declaração a apresentar, em conformidade com o que decorre do art. 105º/7 do RGIT, aplicável por via do art. 107º/2 do mesmo diploma, há algum mês em que o valor em causa seja superior a €7.500?
Não.
Nessa medida, fica por preencher o tipo legal de crime em referência – seja quanto ao Arguido/requerente, seja quanto à Arguida/sociedade que não requerera a instrução, dando assim origem à não pronúncia de ambos (cfr. ainda o art. 307º/4 do Código de Processo Penal).
*
b) apreciação do mérito:
Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, daquilo que possa e deva ser oficiosamente conhecido, devendo anotar-se ainda que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
*
Neste contexto, e na síntese das efetivas conclusões apontadas por cada um dos recorrentes, importa saber:

1 – se deverá manter-se válida e, por isso, aplicável a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2010, no sentido de que a existência de um crime de abuso de confiança contra a segurança social não exige que o montante das contribuições retidas e não entregues, por declaração, seja superior a sete mil e quinhentos euros, com a concomitante pronúncia dos arguidos (ambos os recorrentes);

2 – se, a manter-se a exigência de tal montante mínimo, este não terá que se verificar relativamente a cada declaração mensal entregue à Segurança Social (recorrente ISS).

Vejamos, pois.
1 – da aplicação da referenciada jurisprudência fixada.
O recorrente Ministério Público veio alegar, em suma, que o argumento que esteva na génese do afastamento da referenciada jurisprudência fixada não podia prevalecer, pois que à data da prolação do referido acórdão já estava publicada a Lei n° 110/2009, de 16/09 e, embora a mesma não estivesse em vigor, essa previsão não teve força para afastar a tese da não descriminalização, sublinhando depois que tal jurisprudência foi fixada, não por causa da completa impunidade dos comportamentos que se analisassem em não entregas inferiores a esse montante, mas por se ter entendido como não sendo admissível a
conformidade entre o princípio da legalidade penal e a integração de lacunas, por analogia, em matéria de definição do comportamento do agente para o efeito de se considerar preenchido ou não preenchido, o tipo legal de crime, e, muito especialmente, por se ter entendido que o bem jurídico subjacente ao crime de abuso de confiança contra a segurança social é integrado antes do mais pelas receitas da Segurança Social, pelo que nunca poderá perder-se de vista a singularidade do financiamento desta, a qual assenta em princípios como o da sustentabilidade, autonomia orçamental, reserva de lei, ou contributividade, e que não interessam da mesma maneira na área da fiscalidade, em termos que depois procurou especificar em moldes aqui considerados como reproduzidos, concluindo que é a natureza destas contribuições para a Segurança Social e o seu modelo de financiamento, previsto na Lei de Bases da Segurança Social, baseado no Princípio da Contributividade e no Princípio da Adequação Seletiva, (prevendo que o Sistema Previdencial deve ser financiado, fundamentalmente pelas contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais), bem como o conhecimento do tecido empresarial que ditaram a opção do legislador de punir de forma mais severa os crimes contra a Segurança Social, tendo sido já decidido pelo Tribunal Constitucional que esta opção não viola o princípio da proporcionalidade e da igualdade, pelo que sustentava que ao interpretar a norma contida no artigo 107° do RGIT ao arrepio do Acórdão de Fixação de Jurisprudência supra descrito e ainda do princípio da liberdade de conformação do legislador reconhecido pelo Tribunal Constitucional, conforme acórdão que identifica, indicando a respetiva fonte, no sentido de que se aplica o limite dos sete mil e quinhentos euros previsto para o crime de abuso de confiança fiscal, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 107° do RGIT e 9° do Código Civil.

Por seu turno, o “ISS” veio destacar, em síntese, que quer a letra da lei, quer o espírito da norma, quer os elementos históricos, quer os elementos teleológicos do artigo 107º do RGIT conduzem, necessária e prudentemente, à manutenção da interpretação fixada pelo referenciado acórdão, sendo que a própria decisão instrutória aceita que a matéria é dúbia, pelo que entendia que o que temos aqui é um intérprete e aplicador da lei a ser, ele próprio, e ao mesmo tempo, o fazedor da lei, o legislador, alterando a política criminal que subjaz a todo o RGIT, quando é certo que o legislador, tendo tido oportunidade para o fazer, não quis descriminalizar, não alterou voluntariamente a norma, não realizou interpretação autêntica, não descriminalizou uma conduta ou prática das empresas, e não o fez pois que o Estado tem de garantir a manutenção financeira do próprio sistema da segurança social, do próprio Estado Providência, bem como por uma questão de política criminal, por razões de prevenção geral, ou seja, pedagogia empresarial a longo prazo, contexto em que entende que a decisão instrutória mais não faz do que descriminalizar uma conduta sem que seja essa a vontade, expressa ou tácita, do legislador, não sendo acompanhada pelos elementos históricos ou teleológicos da lei, conforme procura demonstrar em pormenor em termos aqui tidos como renovados.

Os arguidos não responderam.

O Ex.mo PGA, no aludido parecer, começando por fazer a destrinça entre a instrução e o julgamento, e relembrando que a apropriação típica do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social fica preenchida quando a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhado ou órgão social com a finalidade de a entregar à Segurança Social e não o faz, passando a dispor dessa quantia como se fosse sua, afetando-a a outra finalidade, assim invertendo o título da posse, sustentou depois que perante a redação dada ao artigo 107º do RGIT pela Lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro, só emerge reforçada a doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência 8/2010.

Apreciando.
1. Breve enquadramento.
Antes de descermos ao caso “sub judice”, e para nos situarmos em termos interpretativos, importa anotar que temos como linear que para a pronúncia basta que tenham sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não sendo necessária a certeza ontológica dos factos que dela constam.
Na verdade, retém-se da leitura do artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, na sua versão atual, que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
E daí que, e pese embora algumas divergências interpretativas, resulta hoje mais linear que “… a instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita investigação (cfr., v.g., artigo 288º, nº 4). O juiz investiga autonomamente, mas dentro do acervo factual que lhe é apresentado no requerimento de abertura de instrução. Tal requerimento delimita os poderes de atuação do juiz”[2].
Por outro lado, “Só na fase de julgamento é que o juiz procede à audição integral da prova. Só aí o princípio da imediação tem a sua ampla aplicação. Só aí se espraia, em pleno, o princípio do contraditório (v. artigo 327º do CPP)”[3].
Finalmente, não pode perder-se de vista a disciplina contida no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, ali se prevendo que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Ou seja: ainda que com um contraditório algo ténue, só pode haver pronúncia se os coligidos indícios fizerem antever que, em princípio, será sustentável uma futura condenação, o que vale por dizer que “os indícios são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição”[4].
Tal é, de resto, inequivocamente, o sentir pacífico, quer da doutrina, quer da jurisprudência, podendo sublinhar-se que a esmagadora maioria da jurisprudência, quer do STJ, quer das Relações, adota o denominado critério da probabilidade preponderante, através do qual se visa traduzir o conceito que encerra a expressão “probabilidade razoável” a que alude o artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal[5].
2. O caso concreto.
Cientes da “ratio” subjacente ao referenciado conceito, e descendo ao caso vertente, está aqui apenas em causa a posição assumida pelo tribunal recorrido de afastar a aplicação da jurisprudência uniformizada pelo STJ através do supra mencionado acórdão nº 8/2010, publicado no DR. em 23/09/2010, e no âmbito do qual se decidiu “Fixar jurisprudência, no sentido de que a exigência do montante mínimo de € 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
Do que se apreende do decidido, a ponderação do afastamento da aplicação de tal jurisprudência, ulteriormente consumado, derivou da existência de um quadro jurídico novo, que se traduz na circunstância de a retenção e a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social poderem configurar contraordenações, conforme resulta da Lei nº 110/2009, de 30/12, outrora já publicada, mas que veio a entrar em vigor posteriormente, mais concretamente, no dia 01/01/2001, pelo que se entendeu justificar o reexame da jurisprudência fixada, tanto mais que o próprio acórdão nº 8/2010 assumidamente não enfrentara as questões suscitadas, precisamente porque o referido diploma que corporizava esse
quadro jurídico, embora já então publicado, ainda não se encontrava em vigor, e por existir alguma incerteza a esse propósito.
De facto, assinala-se na decisão recorrida, reconhecendo-se então que a entrada em vigor daquele diploma estava ao tempo sob uma «nuvem de incerteza», a posição que fez vencimento naquele acórdão acabou por desconsiderar o potencial hermenêutico que daquele diploma adviria para o problema em discussão, conforme decorre do seu ponto 3.5.2, potencial esse que é tal que, na declaração de voto do Conselheiro Santos Cabral, a que aderiram os Conselheiros Maia Costa, Fernando Fróis, Pereira Madeira e Oliveira Mendes, é dito que a jurisprudência fixada ficará rapidamente desatualizada com a previsível entrada em vigor da Lei nº 110/2009 (cfr. ponto I).

Ora bem.

Situada que fica a razão do afastamento de tal jurisprudência que veio colocar um ponto final na vasta querela até então existente sobre a matéria e que, no essencial, se centrava em duas teses opostas, uma e outra com argumentação de valia considerável e que, porque por demais consabida, nos dispensamos de aqui recordar[6], e pese embora o empenho, o brio e a valia que resulta da fundamentação inserta na decisão recorrida, cremos que o decretado afastamento de tal jurisprudência não tem por detrás as invocadas razões ponderosas que não existiam ou não foram consideradas ao tempo da prolação do acórdão, e que o tivessem tornado ultrapassado, assim possibilitando o seu acolhimento na previsão ínsita no artigo 445º, nº 3, do Código de Processo Penal, atenta a sua consabida “ratio”.
Na verdade, no seio da argumentação vertida em tal aresto uniformizador vem efetivamente anotado a um tal propósito, no referido ponto 352, “in fine”, que “Se em termos de dividendos a extrair do elemento sistemático de interpretação não voltamos ao ponto de partida, o que é certo é que paira sobre o tema uma nuvem de incerteza, que nos leva a pouco valorizar esse tipo de argumento no setor das contraordenações.
Porém, e independentemente desse argumento e assumida nuvem de incerteza a ele associada, o certo é que o tribunal socorreu-se doutros argumentos, desde logo o referente à teleologia da norma do artigo 107º do RGIT, conforme resulta do subsequente ponto 3.6, aí se anotando, além do mais, que “Arriscamos a afirmação de que no crime do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT aflora um bem jurídico em que se joga à partida e, sobretudo, o património da segurança social”, o que o afasta dos assinalados votos de vencido, sublinhando-se ainda que “De qualquer modo, a relevância que a eleição do bem jurídico possa ter, no que nos interessa, para efeitos interpretativos, e centrados na teleologia da norma, dependerá da resposta que se der sobre o melhor modo de se protegerem as receitas da segurança social. Ora, se são os proventos desta que se querem ver aumentados, é evidente que, se se não estabelecer o limite dos € 7500, mais facilmente se atingirá esse desiderato. Sendo certo que o crime nunca surge, antes de se ter dado a possibilidade ao agente de regularizar a sua situação, nos termos do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
Significa isto que, sendo embora já perfeitamente conhecedores daquela nova lei atinente a contraordenações e a sua expectável vigência a curto prazo, os juízes que subscreveram a referida posição maioritária não se coibiram de reforçar a sua argumentação com base na própria teleologia da norma, afastando depois a analogia que vinha preconizada no, diríamos nós, principal voto de vencido da autoria do Conselheiro Santos Cabral, aqui, de resto, seguido de perto na decisão recorrida, e assim alcançando a jurisprudência fixada.
Assim sendo, não cremos que exista nada de realmente novo, sendo certo que, e apesar da preconizada equiparação que resultava do referido Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal, Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal, elaborado sob a égide da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, datado de 03/10/2009, logo, já então acessível a todos os Senhores Conselheiros (de resto, ele vem referido no aresto em questão, ainda que em voto de vencido), o que de novo sobreveio em sede legislativa, mais concretamente a publicação da Lei nº 66-B/2012, de 31/12, só veio reforçar a doutrina do mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, conforme se anotava no supra aludido parecer.
Resta, pois, concluir que, a não ser por razões de natureza constitucional que coloquem a tónica na arguição de uma eventual inconstitucionalidade decorrente da coexistência parcial de crime e contraordenação, tal como, de resto, vinha discretamente abordado no tal voto de vencido acima identificado, não existe a propalada novidade que permita alicerçar a decisão recorrida na parte em que se decidiu afastar-se a aplicação da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2010 e, por via disso, não pronunciar os arguidos.
Neste contexto, deverá revogar-se, nessa parte, a decisão instrutória, a qual deverá ser substituída por outra que, analisando os indícios aqui presentes, decida em conformidade, devendo aproveitar-se para, em caso de pronúncia, apurar ao certo o valor global aqui em apreço, face ao desfasamento que consta da acusação e do próprio pedido civil deduzido posteriormente pelo arguido, bem como da documentação que a tal propósito consta dos autos.
Flui do exposto que fica prejudicada a apreciação da segunda questão supra erigida, dada a sua evidente inutilidade.
*
Procedem, pois, ambos os recursos, o do “ISS” na parte apreciada, obviamente, o que implica a sua não tributação em sede de custas (o Ministério Público estaria sempre isento (cfr. artigos 515º, nº1, al. b), “a contrario” e 522º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
*
III – DISPOSITIVO:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente “Instituto da Segurança Social, I.P.”, este na parte apreciada, em consequência do que decidem revogar, nessa parte, a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que, analisando os indícios aqui presentes, decida em conformidade, devendo aproveitar-se para, em caso de pronúncia, apurar o valor global aqui em apreço, face ao desfasamento que consta da acusação e do próprio pedido civil deduzido já posteriormente pelo arguido, bem como da documentação que a tal propósito consta dos autos, tudo nos moldes sobreditos.

Sem tributação.

Notifique.
*
Porto, 05/06/2019[7]
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
_____________________
[1] Vide, entre muitos outros de igual sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Vide, Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, Edição de 2008, pág. 581.
[3] Vide, autor e ob. cit., pág. 582.
[4] Vide, Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 133, Coimbra Editora, 1974, aqui citado.
[5] Vide Vinício Ribeiro, ob. cit. Pág. 623,
[6] Anote-se que, e ao contrário da aqui Adjunta, o ora Relator sustentou a tese oposta à que veio a constituir a supra mencionada jurisprudência fixada que, por razões óbvias, passou a seguir, embora admita que o número elevado de votos de vencido e a correspondente argumentação não sejam fatores de desprezar.
[7] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).