Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
984/15.4T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
INJÚRIA
Nº do Documento: RP20170118984/15.4T9VFR.P1
Data do Acordão: 01/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 3/2017, FLS.34-35)
Área Temática: .
Sumário: I – Se não houve instrução, o juiz pode rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, por exemplo, quando os factos nela descritos não constituírem crime.
II – Tal conclusão, porém, tem que se impor como inquestionável, ou seja, a leitura que se fizer dos factos não pode suscitar dúvidas de que aqueles concretos factos imputados ao arguido não constituem crime.
III – Na avaliação do preenchimento do tipo de crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões proferidas: é preciso situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 984/15.4T9VFR.P1
Relatora: Maria Manuela Paupério
Adjunta; Desembargadora Maria Ermelinda Carneiro

Acordam em conferência na Primeira Secção do Tribunal da Relação do Porto

I) - Relatório

Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que correram termos na Secção Crimina (J1) da Instância Local de Santa Maria da Feira, Tribunal da Comarca de Aveiro, veio a assistente B… interpor recurso da decisão proferida pela senhora juíza a quo apenas na parte em que rejeitou o recebimento da acusação particular por si deduzida e que imputava ao arguido C… o cometimento de dois crimes de injúrias, previstos e punidos, cada um deles, pelo disposto no artigo 182º do Código Penal, fazendo-o nos termos e com os fundamentos que constam de folhas 128 verso a 146 verso, destes autos, que agora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte: (transcrição)

«I. A Recorrente instaurou em 11/05/2015, queixa-crime contra C…, pela prática de dois crimes de injúria e um crime de ameaça.
II. A ofendida requereu em devido tempo a sua constituição como Assistente, estatuto processual que lhe foi reconhecido e admitido por despacho notificado à mesma em 29/19/2015.
III. Foram inquiridas as testemunhas por si indicadas, todas elas colegas de trabalho, com conhecimento directo dos factos denunciados e que confirmaram a prática dos mesmos pelo denunciado, aliás nem isso foi posto em causa no despacho recorrido.
IV. Foi posteriormente, questionada presencialmente a ofendida, nos Serviços do M.P. de Santa Maria da Feira, sobre a concordância com a aplicação da Medida de Suspensão Provisória do Processo, a qual declinou, justificadamente, explicando que o arguido trabalha lado a lado consigo todos dos dias, nunca mostrou arrependimento, bem pelo contrário persiste numa atitude altiva, provocatória, tapando o nariz quando a ofendida passa (sugerindo que esta cheira mal), à frente dos demais colegas, vexando e humilhando-a.
V. Em 13/11/2015, foi a assistente notificada para, querendo, em 10 dias deduzir Acusação Particular, o que esta veio a fazer por requerimento que deu entrada em 23/11/2015.
VI. A referida Acusação Particular foi acompanhada pelo Digno Magistrado do Ministério Público, relativamente aos dois crimes de injúria.
VII. Em 30/11/2015, a ofendida foi notificada do despacho de Arquivamento/Acusação Particular, em que o Ministério Público veio acompanhar a Acusação Particular apresentada pela ofendida, quanto à prática pelo arguido na forma consumada de dois crimes de Injúria, p.p. pelo art° 182º do C.Penal, já não acusando quanto ao crime de ameaça, por entender não se vislumbrar a prática de tal crime.
VIII. Deste despacho não houve recurso por parte da ofendida, que embora não concordando, sendo de parcos recursos económicos, ponderou tal facto e no pressuposto para si inquestionável - até porque corroborado pelo Digno Magistrado do M.º Público - de que o processo prosseguiria até à fase de julgamento, quanto aos crimes de injúria, teria possibilidade de pelo menos ver reparado o dano provocado pelo arguido na sua dignidade como pessoa e mulher.
IX. Recorre apenas da parte do Despacho de Rejeição da Acusação Particular quanto à prática pelo arguido de dois crimes de injúria, por ter sido julgada infundada, considerando as expressões proferidas "lamber as botas" e "andou em direcção à ofendida, olhou para ela e colocou as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios erguidos e virou-lhe costas!" apenas sinal de má educação ou grosseria e nada mais.
X. Recebido o despacho que acaba de se transcrever e verificado o lapso de escrita que continha "lamber as bolas" e não "lamber as botas", apresentou a Recorrente em 09/03/2016 um requerimento pedindo que se rectificasse o douto despacho proferido a fls, quanto ao lapso que, em seu entender só podia ter sido a causa da rejeição da acusação particular e o sentido da decisão (encontrando em curso o prazo de recurso que terminava a 15/04/201 6),
XI. Seguiu-se despacho ordenando a rectificação do lapso de escrita "lamber as bolas" e não "lamber as botas", mas concluindo que "Apesar da rectificação do lapso acima mencionada, a mesma afigura-se-nos absolutamente irrelevante para a decisão proferida".
XII. A recorrente não se conforma com a decisão proferida, já que a expressão "tem ali aquelas folhas estragadas para ir mostrar ao patrão e ficar bem vista, "só lhe falta lamber-lhe as bolas:" é uma expressão sempre e por si só injuriosa, o que o arguido quis dizer foi "só lhe falta lamber os testículos ao patrão".
XIII. Quis dizer o arguido maldosa e dolosamente que a ofendida até era capaz de ter relações de sexo, (inclusivamente sexo oral) com o mesmo para lhe agradar.
XVI. Já quanto aos factos passados no dia 23 de Abril, dia seguinte, "andou em direcção à ofendida, olhou para ela e colocou as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios erguidos e virou-lhe costas!", é do senso comum que é esse o significado de tal gesto, de carácter altamente injurioso e que o dedo médio erguido alude, para a generalidade dos cidadãos a um "pénis erecto",
XVII. Tais palavras e gestos humilharam a ofendida na sua dignidade de ser humano e mulher.
XVIII. A análise das expressões e gestos em causa, tem que ser feita no contexto do presente processo, as expressões proferidas não podem ser analisadas apenas em teoria mas tendo ainda em conta o local onde ocorreram, e o facto de a recorrente continuar aí a conviver diariamente com o arguido diariamente e com os restantes colegas de trabalho.
XIX. As injúrias praticadas pelo arguido quer através das palavras proferidas que por força dos gestos levados a cabo, visaram vexar. humilhar. diminuir a auto estima da recorrente. afectá-Ia na sua dignidade, quer como ser humano e como mulher.
XX. E pelo exposto, entende a recorrente que a acusação particular deveria ter merecido um despacho de recebimento e nunca de rejeição e ao não o ter feito violou a decisão recorrida, o disposto não só no aludido, preceito bem como no art.º 3110 do C. P. Penal, bem como lesa ainda o direito ao "bom nome e reputação" previsto no art° 260 da Constituição da Republica Portuguesa e a honra do aqui recorrente, violando assim a lei fundamental.
XXI. As palavras proferidas e gestos realizados são expressão objectiva e subjectiva da verdadeira ofensa, tudo praticado de forma livre, voluntária e pensada pelo arguido. No presente caso o arguido ao proferir as palavras descritas, teve como finalidade fazer um juízo acerca da dignidade da recorrente, verificando-se para além do elemento objectivo o elemento subjectivo do crime de injúria.
XXII. O bem jurídico protegido pela incriminação do crime de injúria é a honra, a qual se pode desdobrar numa perspectiva interna traduzida na ideia que cada um de nós tem de si, e numa outra, externa, traduzida na conta em que somos tidos por terceiros.
XXIII. A decisão recorrida violou entre outros o art° 181° e 311° do C. P. Penal, o art° 70° e seguintes do Código Civil e o art° 26° da Constituição da Republica Portuguesa.»

A este recurso respondeu o arguido, conforme emerge de folhas 161 a 165, pronunciando-se no sentido de que a decisão proferida não merece qualquer reparo.
A folhas 168 a 183 encontra-se a posição do Ministério Público junto do tribunal recorrido a qual se encontra condensada nas conclusões seguintes: (transcrição)

«I. A Recorrente instaurou em 11/05/2015, queixa - crime contra C…, pela prática de dois crimes de injúria e um crime de ameaça
Incide o recurso na decisão de rejeição da acusação particular quanto aos factos subsumíveis aos crimes de injúria considerando o tribunal “a quo” ser a acusação manifestamente infundada por não configurar crime qualquer das condutas que ao arguido são imputadas;
Porém, o despacho de recebimento da acusação a que se referem os artigos 311.° e 312.° do CPP, e, se divergir da qualificação jurídica dos respectivos factos, o Juiz pode (e deve) proceder ao enquadramento jurídico - penal que tenha por mais adequado, sem contudo, perder de vista que, em caso de considerar a inexistência do crime, tão só em casos limite e claramente inequívocos e incontroversos tal deve ocorrer;
Com efeito, o Tribunal ao proferir o despacho a que alude o art. 311º do Código de Processo Penal, quando se trata de crime particular, terá de analisar a acusação no seu todo, ou seja, a acusação particular apresentada pela assistente e ainda, quando haja acompanhamento ou aditamento à mesma, o teor do despacho proferido pelo Ministério Público;
Ademais, a previsão da al. d) do n°3 do art° 311° do C.P.P. não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes, como no caso sub judicie.
Até, porque o processo criminal assume, por imposição constitucional, uma estrutura acusatória que, no essencial, se revela no facto do julgador se circunscrever dentro dos limites estabelecidos por uma acusação deduzida por um órgão diferençado.
A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do n°3 do art° 311° do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
Pressuposto este que não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho saneador, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis.
Ora, do mínimo de dignidade existe uma certa variedade de concepções, da qual resulta que palavras ou actos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes, pelo que, pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo;
No acervo fáctico da acusação particular deduzida, mostra-se preenchido o tipo objectivo de ilícito, por referência ao artigo 182.º do Código Penal, e, não apenas 181.º, n.º 1, do crime de injúria, como o lado subjectivo, pelo carácter do comportamento do arguido exprimir a intenção de desvalorizar a pessoa a quem se dirige;
Não sendo claramente inequívoco e incontroverso que qualquer das condutas do arguido não seja de qualificar como ilícito tipificado no art.º 181º e 182º do Cód. Penal, o entender-se pela inexistência do crime, apenas é defensável em casos limite, mesmo que, a acusação, a final, possa vir a ser julgada improcedente, certo é que, na fase processual em que o processo se encontra, a acusação não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a respectiva rejeição.
A rejeição da acusação, nestes termos, constitui violação ao art.º 311º, do C.P.P., ao considerar que não decorre da conduta do arguido a lesão do direito ao bom nome e reputação previsto no art.° 26° da Constituição da Republica Portuguesa,
Considerando que a Douta Decisão recorrida se não mostra conforme aos termos doo art.º 311º do C.P.P., deve o recurso apresentado ser declarado procedente, e, determinar-se a substituição do teor da decisão no sentido do recebimento da acusação particular deduzida pela Assistente »

Idêntico entendimento foi sufragado pelo Digno Procurador Geral Adjunto neste Tribunal de recurso, como se retira do teor do parecer de folhas 190 e 191 destes autos.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado no processo.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

Fundamentação:

Tem o seguinte teor a decisão recorrida: (transcrição da parte atinente à rejeição da acusação particular pelo crime de injúrias)

«1. Tribunal é competente.
2. Do (não) recebimento da acusação particular: Os presentes autos, a Assistente B… deduziu a acusação particular de fls. 80 a 82, imputando-lhe a prática, na forma consumada e em autoria material, “de dois crimes de injúrias p. p. pelo art.º 182 e na prática de um crime de ameaça p. p. pelo art.º 153.º, ambos do Código Penal”. Para tanto, a assistente invoca os seguintes factos:
1. A Ofendida é funcionária da empresa D…, Lda., há mais de 12 anos, e aí desempenha as funções de Operadora de máquina, sendo que aí também trabalha o arguido, com as funções de impressor.
2. Na manhã do dia 23 de Abril de 2015, por volta das 7h55m, ainda antes da hora normal de entrada, o arguido chegou perto da Ofendida, que se encontrava na máquina de corte e vinco e olhando para ela disse, em voz alta, o seguinte: “tem ali aquelas folhas estragadas para ir mostrar ao patrão e ficar bem vista, só lhe falta lamber-lhe as botas…”.
3. Encontrava-se a ajudar Ofendida, uma outra funcionária E…, ficando ambas de tal modo estupefactas e incrédulas com tais palavras, que nada argumentaram, ficando apenas a olhar para ele e uma para a outra.
4. O arguido continuou dizendo “há pessoas que não sabem estar no mundo”.
5. Esta reacção deve-se ao facto de, na véspera, dia 22 de Abril, o arguido ter sido chamado à atenção, pela entidade patronal, por ter executado de forma defeituosa um serviço.
6. Quem dá sequência ao serviço que sai da máquina do arguido é a Ofendida que foi obrigada a questionar a entidade patronal sobre o destino a dar ao referido serviço.
7. No dia 23 de Abril, logo após o toque de entrada às 8.00h, a Ofendida dirigiu-se ao arguido e disse-lhe: “O que me veio dizer à um bocado à frente da E…, vai ter que dizer ao patrão!”.
8. O arguido andou em direcção à ofendida, olhou para ela e colocou as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios arguidos, e virou-lhe costas.
9. Num dos dias que se seguiram e chamados a uma reunião no escritório da fábrica, onde estavam presentes vários trabalhadores, o arguido tentou escamotear a situação, mentindo e querendo alterar a verdade dos factos.
10. Perante a atitude do arguido a Ofendida disse-lhe que iria apresentar queixa no Tribunal.
11. O arguido respondeu em tom ameaçador “Lá fora falámos”, dando a entender que lhe ia bater a acertar contas consigo.
12. Até esta data, o arguido continua a trabalhar numa máquina que fica atrás da Denunciante, sem nunca ter mostrado arrependimento pela sua conduta criminosa e continuando a provocar a ofendida, tapando o nariz quando ela passa, com ar insultuoso e irónico.
13. A Ofendida teme pela sua segurança, tem medo de andar sozinha, quer à entrada quer à saída da fábrica, passando a ser uma pessoa amedrontada, tendo sido obrigada a modificar os seus hábitos e rotinas diárias.
14. O arguido quis ameaçar e insultar a Ofendida, atentou contra a sua honra e dignidade, provocou-lhe receio e fê-la viver em constante sobressalto, perante a ameaça de que, fora do local e horário de trabalho o arguido lhe bateria ou causaria mal físico, fez com que se sentisse humilhada e menosprezada perante os seus colegas de trabalho, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua integridade psíquica querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que logrou.
15. Não ignorava que os seus comportamentos são proibidos e punidos por lei, agindo o arguido de forma livre, deliberada e consciente.
Por despacho de fls. 86, o Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular acima descrita, considerando reproduzido para os devidos efeitos legais. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem á apreciação do mérito da causa, de que possa conhecer – art.º 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Nos termos do artigo 285.º, n.º 1, do CPP, findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público noticia o assistente para que este deduza acusação em dez dias, querendo, acusação particular. (…)
Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: (…) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, (…) – art.º 311.º, n.º 2, al. a), do CPP. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (…) Se os factos não constituírem crime – art.º 311.º, n.º 3, al. d), do CPP. Dispõe o art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal que: “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três esses ou com pena de multa até 120 dias.”. À injúria verbal é equiparada a feita por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão – art.º 182.º, do CP.
A questão que se coloca é a de saber, quais os factos ou juízos descritos na acusação particular susceptíveis de ser considerados injuriosos. Em abstracto, a resposta é simples: apenas os que atentem contra a honra ou a consideração da pessoa com eles visados. Em concreto, é mais complexa. Vejamos. Por honra tem-se entendido aquele reduto essencial de respeitabilidade de que a cada pessoa é tributária pela “simples” circunstância de o ser e que se associa de modo indelével à sua dignidade – algo que é próprio do ser em si -; enquanto a consideração que a cada um é devida reporta-se mais à sua circunstância e condição social – algo que se reporta mais ao ser em relação –. Estes valores (honra e a consideração) são, aliás, constitucionalmente tutelados – cf. n.º 1 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa. Mas porque assim é não se pode equivaler o ataque à honra de uma pessoa ou à sua consideração, com falta de educação ou grosseria, com faltas de cortesia ou gentileza. Porque a sociedade em que vivemos não é habitada apenas por pessoas perfeitas, existe um espetro alargado de situações com as quais nos podemos ver confrontados, que podendo não ser as mais corretas, adequadas e ajustadas não têm de ser necessariamente criminosas – acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/10/2015, proc. 79/14.8TAEPS.G1 (in www.dgsi.pt). Analisada a matéria de facto constante da acusação particular, verifica-se que no essencial, para efeitos de imputação da prática dos dois crimes de injúria p. p. pelos art.º 181.º e 182.º do Código Penal, que são imputados os seguintes factos: - num dia, o arguido se ter dirigido à assistente dizendo-lhe: tem ali aquelas folhas estragadas para ir mostrar ao patrão e ficar bem vista, só lhe falta lamber-lhe as botas…”, acrescentando depois a expressão “há pessoas que não sabem estar no mundo”. - num outro dia, o arguido ter andado em direcção à ofendida, olhado para ela e colocado as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios arguidos, e virando-lhe costas. Para que se tivesse verificado, em função de tais afirmações e gestos, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões ou gestos consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras ou gestos dirigidos à visada tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. É certo que a expressão acima indicada, designadamente “só lhe falta lamber-lhe as botas” não é delicada. Pode classificar-se como grosseira. Mas está muito longe de ser injuriosa, ou seja, de se afirmar como um atentado á personalidade moral da Assistente. E, o gesto efectuado pelo arguido (colocando as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios erguidos), constituindo um gesto obsceno, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere. Mas, também neste caso, daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do interlocutor, medeia significativa distância. Aquela expressão não contende com o conteúdo ético da personalidade moral da visada nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal. Não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/01/2010, proc. 862/08.3TAPBL.C1 (in www.dgsi.pt)
Em face do exposto, na medida em que as expressões e gestos imputados ao arguido, apesar de censuráveis do ponto de vista moral, não assumem relevância penal nos termos que lhes foram atribuídos, consideramos que os mesmos não consubstanciam a prática de qualquer crime, nomeadamente dos dois crimes de injúrias de que vem acusados. Deste modo, rejeito também a acusação particular de fls. 80 a 82, na parte relativa à imputação dos dois crimes de injúria. Pelo exposto: Rejeita-se a acusação particular deduzida pela Assistente B… a fls. 80/82, - na parte em que a mesma imputa 1 crime de ameaça ao arguido C…, por carecer de legitimidade para acusar por tal crime; - na parte em que a mesma imputa 2 crimes de injúria ao arguido C…., por ser manifestamente infundada, nos termos do art.º 311.º, n.º 3, al. d), do CPP.
Condena-se o assistente nas custas do incidente de rejeição da acusação particular, cuja taxa de justiça se fixa em 2 UC (artigo 515, n.º 1, al. f) do Código Penal, e artigo 8, n.º 9, por referência à tabela III do Regulamento das Custas Processuais), tomando em consideração a taxa de justiça paga pela constituição de assistente»

Esta decisão veio posteriormente a ser objeto de uma “reclamação” por parte da assistente (cfr. folhas 114) na qual esta alega que, ao contrário do que consta na decisão proferida, a expressão usada pelo arguido e que havia sido denunciada não era “lamber as botas” mas sim “lamber as bolas” pelo que, na sequência, verificada a razão que assistia à assistente, foi proferida a decisão seguinte: (transcrição)

«Fls. 111:
Assiste absoluta razão à assistente, na parte em que refere ter havido lapso de escrita no despacho que rejeitou a acusação particular, constante de fls. 101/106. Efectivamente, a fls. 101 (linha 18) e 105 (linhas 9 e 19) fez-se constar a expressão “(…) lamber-lhe as botas …” quando se pretendia escrever “(…) lamber-lhe as bolas…”, o que, por ser citação do despacho de acusação particular corresponde a um lapso de escrita manifesto. Pelo exposto, rectifico o referido despacho quanto às expressões em causa e ao abrigo do disposto no art.º 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do CPP. Apesar da rectificação do lapso acima mencionada, a mesma afigura-se-nos absolutamente irrelevante para a decisão proferida, não sendo susceptível de alteração a nossa posição relativamente à inexistência do crime de injúria imputado na acusação particular ao arguido, o que mantenho, indeferindo-se nesta parte o requerimento da assistente.
*
Notifique e proceda às rectificações nos locais próprios.»

Sendo as conclusões de recurso que balizam e limitam a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, no caso em apreço a que nos vem colocada é a de saber se bem andou a senhora juíza a quo ao não receber a acusação particular deduzida pela assistente, considerando-a manifestamente infundada por ser patente que os factos denunciados não constituem crime.
Vejamos então a questão em concreto.
Deduzida acusação particular pela assistente, que foi acompanhada pelo Ministério Público, não tendo sido requerida a abertura da instrução foram os autos remetidos para julgamento. Aí a senhora juíza a quo, proferiu despacho ao abrigo do preceituado no artigo 311º do Código Processo Penal.
Estatui este preceito legal que:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime. (sublinhado nosso)

Decorre deste normativo que quando o juiz recebe o processo para julgamento tem de o sanear, ou seja, certificar-se da inexistência de nulidades ou de questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa. Ademais se não tiver havido instrução o juiz pode ainda rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada. Este conceito encontra-se densificado nas diversas alíneas do número 3 e, para o que aqui nos importa, sê-lo-á, quando os factos dela constantes não constituírem crime.
Foi exatamente este o entendimento tido no tribunal recorrido e que congruentemente levou à rejeição da acusação.
No entanto como tem sido entendido na jurisprudência, esta conclusão tem de se impor como inquestionável, ou seja, a leitura que se fizer dos factos não pode suscitar dúvidas, a ninguém, de que aqueles concretos factos imputados ao arguido não constituem crime[1].
Atentemos então nos factos constantes da acusação e dos quais a assistente retira a comissão por parte do arguido do crime de injúria:
1. A Ofendida é funcionária da empresa D…, Lda., há mais de 12 anos, e aí desempenha as funções de Operadora de máquina, sendo que aí também trabalha o arguido, com as funções de impressor.
2. Na manhã do dia 23 de Abril de 2015, por volta das 7h55m, ainda antes da hora normal de entrada, o arguido chegou perto da Ofendida, que se encontrava na máquina de corte e vinco e olhando para ela disse, em voz alta, o seguinte: “tem ali aquelas folhas estragadas para ir mostrar ao patrão e ficar bem vista, só lhe falta lamber-lhe as botas…”.
3. Encontrava-se a ajudar Ofendida, uma outra funcionária E…, ficando ambas de tal modo estupefactas e incrédulas com tais palavras, que nada argumentaram, ficando apenas a olhar para ele e uma para a outra.
4. O arguido continuou dizendo “há pessoas que não sabem estar no mundo”.
5. Esta reacção deve-se ao facto de, na véspera, dia 22 de Abril, o arguido ter sido chamado à atenção, pela entidade patronal, por ter executado de forma defeituosa um serviço.
6. Quem dá sequência ao serviço que sai da máquina do arguido é a Ofendida que foi obrigada a questionar a entidade patronal sobre o destino a dar ao referido serviço.
7. No dia 23 de Abril, logo após o toque de entrada às 8.00h, a Ofendida dirigiu-se ao arguido e disse-lhe: “O que me veio dizer à um bocado à frente da E…, vai ter que dizer ao patrão!”.
8. O arguido andou em direcção à ofendida, olhou para ela e colocou as duas mãos no ar, apenas com os dedos médios arguidos, e virou-lhe costas.
(…)
14. O arguido quis (…) insultar a Ofendida, atentou contra a sua honra e dignidade, (…) fez com que se sentisse humilhada e menosprezada perante os seus colegas de trabalho, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua integridade psíquica querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que logrou.
15. Não ignorava que os seus comportamentos são proibidos e punidos por lei, agindo o arguido de forma livre, deliberada e consciente.
É esta a factualidade.
Sucede, porém, que no que ao crime de injúrias concerne existe um problema acrescido. Importa, para a conclusão a retirar relativamente aos factos imputados a sua consideração objetiva – digamos a apreciação do seu teor literal – mas importa muito, quase mais ainda, o “sentido”, o significado que as palavras proferidas têm socialmente e o contexto no qual elas são proferidas.
Explicitando:
Estatui o artigo 181º do Código Penal que:
“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2. Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.”
O tipo objetivo deste ilícito pressupõe, assim, que o agente do crime se dirija uma pessoa utilizando palavras ou expressões que atentem contra honra ou consideração.
O bem jurídico tutelado neste preceito é, consequentemente, a honra e a consideração devidas a uma pessoa (a qualquer pessoa); o direito que lhe assiste ao seu bom nome, à sua consideração pessoal e social (e profissional). A honra e considerações contra a qual o crime de injúrias atenta, não se confunde, no entanto, com a apreciação subjetiva que o sujeito faça de si, nem é maior nem menor em virtude do seu estatuto social. Contudo, quer a dimensão subjetiva quer a dimensão social não podem deixar de ser consideradas para se concluir se determinada palavra ou expressão contende ou não com a honra e consideração da concreta pessoa visada.
Assim a define Faria e Costa [2] “a honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. Na sintética formulação do Supremo Tribunal Federal alemão, o que se protege "é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora (Trciger) de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência (Geltung) deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, núcleo da capacidade de honra do indivíduo, é a irrenunciável dignidade pessoal (Personenwürde) que lhe pertence desde o nascimento e cuja inviolabilidade a Lei Fundamental reconhece no art. 1 (...). Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas" (BGH, 18-11-1957, JZ 1958 617) 15.
Uma conclusão que, acentue-se desde já, é a única compatível com a nossa própria lei. Na verdade, e ao contrário do que acontece noutras legislações, o ordenamento jurídico-penal português, na linha da tradição anterior e, sobretudo, em inteira consonância com a ordem constitucional, alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores. Forma de perceber as coisas que é posta em destaque e salientada por Figueiredo Dias quando escreve: "a jurisprudência e a doutrina jurídico - penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico 'honra', que o faça contrastar com o conceito de 'consideração' (...) ou com os conceitos jurídico - constitucionais de 'bom nome' e de 'reputação'. Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da 'honra' ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer — no outro extremo — estritamente normativo"
Ora existem palavras e expressões que objetiva e univocamente são tidas como injuriosas e, à guisa de exemplo, a expressão mais comum que objetivamente assim se considera, é o apodo de “filho da puta”, à qual, cremos, ninguém negará essa carga objetivamente injuriosa. No entanto, pode acontecer e acontece muitas vezes, ela ser dirigida a uma determinada pessoa não com essa intenção injuriosa, mas, pelo contrário, com intenção laudatória, como manifestação de apreço por determinada pessoa ou sublinhando uma atuação sua a merecer louvor e no contexto e nas circunstâncias em que é proferida não suscita dúvidas a quem a ouve de que, ao invés do que as palavras objetivamente traduzem o significado delas é outro, até elogioso- Cremos não carecer de grandes explicações esta conclusão, sendo da gíria, da linguagem corrente, o conhecimento geral do que se vem de afirmar, sobretudo em determinados contextos mais distendidos.
E esta “especificidade” vislumbrou-a a senhora juíza a quo quando, na decisão em crise, refere que é mais difícil aquilatar no concreto quando se está perante o crime de injúria do que defini-lo no geral.
Assim é de facto.
Daí que na avaliação quanto ao preenchimento deste tipo de crime não baste a consideração das palavras e expressões que, em cada caso concreto, tiverem sido proferidas, até porque o direito penal não pode ser chamado a intervir para impedir que alguém use linguagem desabrida, que possa incomodar, imprópria, ainda que suscetível de ferir sensibilidades. Não se trata de pretender que todos sejam “educados” e cordatos no seu relacionamento inter pessoal. O direito penal será chamado a intervir quando, por meio de palavras, se atinja qualidades do visado, que com elas se atente ou contra a sua honra ou contra a consideração (social ou profissional) que lhe é devida. Pois se é verdade que todos têm liberdade de expressão – direito que merece consagração constitucional cfr. artigo 37º da Constituição da República Portuguesa – na mesma lei fundamental se encontra a consagração do direito ao bom nome e à reputação – artigo 26º -
Ora, no caso que aqui nos ocupa, dizer da assistente que «só lhe falta lamber as bolas (ou mesmo de lamber as botas) ao patrão», expressão usada no contexto laboral, na presença de colegas de trabalho poderá ser considerado, atentatório da reputação da pessoa visada. Porque quem assim se dirige e se refere a um colega de trabalho poderá quer dizer que essa pessoa é capaz de qualquer coisa para se colocar nas boas graças do patrão, que faz tudo para o bajular, que não tem “espinha dorsal”, que não se rege por princípios, que não é integra, que não tem qualidades. E a ser assim não pode deixar de ser considerado ofensivo. Injurioso. Porque a atingirá na sua reputação profissional.
A confusão entre a expressão “lamber as botas” e a denunciada “lamber as bolas” não releva para a conclusão que retiramos; a primeira é mais comummente usada a outra mais grosseira, mais soez, mas a ambas se poderia associar qualidades desvaliosas do caráter da visada. E, por isso, ambas podem ser, na apreciação que fazemos, atentórias da sua consideração.
Por outro lado, o gesto, que o arguido fez na presença da assistente, poderá ser considerado tão só uma grosseria, uma falta de educação. É como se fosse a tradução gestual de um impropério, de uma obscenidade. Porém sequer este entendimento é incontroverso, encontrando-se decisões jurisprudências com entendimentos divergentes. [3] Por esse facto a decisão a tomar relativamente à existência ou não de crime só deve ser aquilatada em sede de julgamento e nunca nesta fase perfunctória que é o da prolação do despacho proferido ao abrigo do artigo 311º do Código Processo Penal, não podendo considerar-se ser notório, patente ou incontroverso que os factos narrados (agora apenas no que se refere ao gesto que nós qualificamos de obsceno) não possam ser considerados como integrando o cometimento de crime de injúria.
De tudo o que se vem de dizer para se concluir que, ao contrário do decidido, a acusação formulada pelo assistente não é manifestamente improcedente, devendo, por isso, ser recebida a acusação e designado dia para julgamento.

Decisão:
Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente B… devendo ser recebida a acusação e designado dia para julgamento seguindo o processo os seus normais trâmites legais.

Sem tributação
(elaborada pela relatora e revisto por ambas as subscritoras)

Porto, 18 de janeiro de 2017
Maria Manuela Paupério
Maria Ermelinda Carneiro
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[1] Neste sentido ver entre outros:
Ac da RL de 7/12/2010, processo 475/08.0TAAGH.L1-5, in www.dgsi.pt
I – Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório.
II - Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, nº 2 CPP, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
III - Uma opinião divergente, como a manifestada pelo M.º. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação.
Ac da RC de 27/4/2011, processo 134/10.3TAGRD.C1, in www.dgsi.pt
Se os factos em causa assumem um conteúdo cuja interpretação não é incontroversa, não podendo, por isso, de forma inequívoca, afirmar-se que os mesmos não constituem o crime imputado, a acusação não deve ser considerada manifestamente infundada e, como tal, rejeitada, nos termos do art.º 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d), do C. Proc. Penal.
Ac da RE de 15/10/2013, processo 321/12.0TDEVR.E1, in www.dgsi.pt
I - Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados.
II - O conceito de acusação “manifestamente infundada”, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
III - Mas a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
IV - Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada
[2] Anotação ao artigo 180º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Volume I pag. 602 e ss.
[3] Ver entre outros;
Acórdão da Relação de Coimbra de 25/02/2015 relatada pelo Desembargador Orlando Gonçalves, pesquisado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf «(...) No circunstancialismo, existem indícios suficientes de que o arguido ao escarrar, de forma ostensiva e ruidosa, em direção da assistente, num lugar público, de uma pequena localidade, e quando a assistente se encontra na companhia de uma pessoa, quis deliberada, livre e conscientemente, ofender a honra e consideração da assistente.»
Acórdão da Relação do Porto de 27/04/2016, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, pesquisado no mesmo sítio: «Dirigir a outrem uma expressão obscena é destituído de relevância penal.»