Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3113/18.9T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONTENCIOSA SIMPLIFICADA
DESPESAS DE DESLOCAÇÃO
PEDIDO
INCIDENTE DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP202006223113/18.9T8PNF.P1
Data do Acordão: 06/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE, ANULADO PARTE DO PROCESSADO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Processando-se a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho de acordo com a forma simplificada prevista nos arts. 117º, al. b), 138º, nº 2, 139º e 140º, nº1, do CPT [exame por junta médica para determinação da incapacidade], pretendendo o sinistrado, que não tenha mandatário judicial constituído, reclamar despesas de deslocação, mormente para comparência ao exame por junta médica, deverá fazê-lo em requerimento subscrito pelo Ministério Público que, na fase contenciosa, assume imediatamente o seu patrocínio.
II - Os documentos são apenas meios de prova de factos que hajam sido alegados [o que pressupõe essa prévia alegação] e não a própria alegação, pelo que, pretendendo o sinistrado reclamar despesas de deslocação, não basta a junção dos documentos comprovativos das mesmas, devendo estas ser objecto de um concreto pedido, com indicação do(s) montantes(s) objecto da condenação pretendida e com a alegação dos concretos factos que integram a causa de pedir, designadamente, que concretas deslocações foram efectuadas, por que razão foram efectuadas e despesas que, respectivamente, acarretaram.
III - Face à tramitação própria simplificada referida em I), que não comporta a apresentação de articulados [mormente articulados supervenientes], o pedido de pagamento de despesas referido em II) deverá ser configurado como consubstanciando incidente da instância, sujeito à tramitação prevista nos arts. 292º a 295º do CPC/2013.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 3113/18.9T8PNF.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1171)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado B…, patrocinado pelo Ministério Público, e entidade responsável Companhia de Seguros C…, S.A., participado, aos 19.10.2018, acidente de trabalho, realizado exame médico singular e, aos 26.11.2019, tentativa de conciliação, que se frustrou apenas por a Ré/Seguradora não se ter conformado com o coeficiente de desvalorização de IPP atribuído em tal exame, veio esta requerer exame por junta médica, à qual se procedeu aos 19.12.2019.

Nessa mesma data (19.12.2019), o A. apresentou requerimento, por si subscrito, em que refere que “vem juntar as seguintes despesas”, juntando seguidamente diversos documentos alegadamente comprovativos de despesas de deslocação.

Aos 06.01.2020 foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“(…) reconhecendo-se que o sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho do qual lhe resultou uma incapacidade permanente parcial de 1% desde o dia 14.05.2018, condena-se a entidade responsável a pagar-lhe:
1 - o capital de remição da pensão anual de € 193,13, devida desde o dia 15.05.2018, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4% ano, desde tal data e até efectivo e integral pagamento;
2 - a quantia de € 30,00 de despesas com deslocações obrigatórias a tribunal, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde o dia 26-11-2019 e até efectivo e integral pagamento.
*
(…)
Fixo o valor de processo em € 2 862,06- artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho.”.

A Ré, notificada, através do citius com data de elaboração de 09.01.2020, do requerimento apresentado pelo A., veio, aos 24.01.2020, em requerimento por si subscrito, responder alegando que: não se responsabiliza pelas despesas apresentadas pelo A. aos 19.12.2019, apenas se responsabilizando pelas despesas de deslocação entre a residência do sinistrado, cuja morada consta dos autos (R. … nº …. R/c Esqº, ….-…, …-Marco de Canavezes) e o Tribunal e, bem assim que o A., na tentativa de conciliação, apenas reclamou as despesas de €30,00 de deslocações ao gabinete médico-legal de Penafiel e ao Tribunal.

Aberta vista ao MP, este emitiu a seguinte promoção:
“É certo que na tentativa de conciliação, realizada no passado dia 26/11/2019, o sinistrado somente reclamou da seguradora a quantia de 30,00€, para pagamento das despesas de deslocação obrigatórias ao GML e ao Tribunal.
No entanto, posteriormente, mais precisamente no dia 19 de dezembro de 2019, o sinistrado esteve presente na Junta Médica para a qual foi convocado e que não foi por ele requerida. Presença que era obrigatória.
Assim, é nosso parecer que a companhia de seguros deve suportar as despesas de deslocação do sinistrado que se reportem à sua comparência na Junta Médica, ou seja, desde Brugge, na Bélgica, até este Tribunal, documentadas a fls. 92 a 93, 95, e os recibos com data de 18/12/2019 de fls. 96 e de fls. 97.”

Aos 29.01.2020, foi proferida a seguinte decisão, ora recorrida:
“Resultando dos autos que o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado ocorreu em Bruges, Bélgica, quando trabalhava por conta da sua entidade patronal, tendo também aí sido assistido, sendo assim inequívoco que o sinistrado aí tem actualmente o domicilio, e estando comprovadas despesas de transporte desse seu domicílio em Bruges, Bélgica, para diligência judicial que foi consequência de pedido da R Seguradora, ao abrigo do disposto no art.º 39º, ns 1 e 2 Lei 98/2009, de 4/9, condena-se a R Seguradora a reembolsar o sinistrado por essas despesas cujo pagamento reclamou por requerimento junto aos autos em 9/1/2020.”

Inconformada, veio a Ré recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem a presente apelação interposta da douta decisão de fls., que condenou a ora apelante a reembolsar o sinistrado pelas despesas de deslocação com origem na Bélgica e cujo pagamento reclamou por requerimento junto aos autos em 9/1/2020.
2. Salvo o devido respeito, entende a ora recorrente que a douta decisão recorrida decidiu mal ao condenar a apelante a reembolsar o sinistrado dessas despesas, por assentar numa errada decisão proferida sobre a matéria de facto (decisão essa que, no entendimento da apelante, não se adequa à prova produzida).
3. Na verdade, a decisão sobre matéria de facto pertinente àquela decisão não corresponde àquilo que, efectivamente, se provou no presente processo, pelo que a ora apelante pretende que seja alterada a matéria de facto dada como provada – como o permite o facto de constarem do processo todos os meios de prova relevantes para essas decisões – a saber:
- o facto de o sinistrado residir actualmente em Bruges, na Bélgica; - o facto de estarem comprovadas despesas de transporte suportadas pelo sinistrado desde esse domicílio na Bélgica e para diligências judiciais no âmbito do presente processo.
4. Com efeito, a douta decisão recorrida dá como provada essa matéria unicamente com base nos factos de o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado ter ocorrido em Bruges, na Bélgica, quando trabalhava por conta da sua entidade patronal e aí ter sido assistido.
5. Ora, como resulta de todos os documentos clínicos juntos aos autos, só a primeira assistência ao sinistrado foi prestada na Bélgica,
6. Tendo o sinistrado regressado a Portugal em 13 de Dezembro de 2017 e neste país prosseguido os tratamentos desde essa data e até à data da alta, ocorrida em 15 de Maio de 2018 (como resulta dos documentos juntos aos autos: participação efectuada pelo sinistrado e que deu origem ao presente processo e Diário Médico e Boletim Clínico juntos aos autos pela ora apelante com o requerimento entregue em cumprimento do disposto no art. 99º-2 do Código do Processo de Trabalho.)
7. De todos os documentos juntos aos autos de que consta a morada do sinistrado (participação efectuada pelo sinistrado ao Tribunal do Trabalho, em 19/10/2018; participação de acidente de trabalho efectuada pela tomadora do seguro à ora apelante, em 06/12/2017; exames médicos ao sinistrado efectuados no IML em 05/02/2019 e 03/06/2019; auto de tentativa de conciliação efectuada em 26/11/2019; auto de exame por Junta Médica efectuado em 19/12/2019, presidido pela Mtª Juíza recorrida; todas as notificações efectuadas por este Tribunal ao sinistrado, designadamente em 17/01/2019, 25/10/2019, 04/12/2019 e 19/12/2019), esta situa-se na Rua …, nº …. – R/c Esq., ….-… …, Portugal,
8. Nunca tendo sido comunicada ao Tribunal ou à ora apelante qualquer alteração da morada do sinistrado.
9. Atendendo a que não existem quaisquer outros factos, nem qualquer outra prova, relativos à efectiva morada do sinistrado – não tendo sido comunicado que o sinistrado, trabalhador de empresa portuguesa – retomara o seu trabalho em outro país que não Portugal, não pode deixar de se considerar provado que a morada do sinistrado a considerar em todas e quaisquer questões relativas ao presente processo é a morada por este desde sempre indicada e aceite nos autos: Rua …, nº …. – R/c Esq., ….-… …, Portugal, devendo ser alterada neste sentido a matéria de facto provada.
10. Assim, só podem ser consideradas as despesas de transporte com deslocações entre a morada indicada pelo sinistrado e os locais em que este teve de comparecer obrigatoriamente por força do acidente de trabalho em causa nos autos, não podendo ser consideradas quaisquer deslocações provenientes do estrangeiro.
11. Por outro lado, as despesas com deslocações que o sinistrado vem reclamar no “requerimento junto aos autos em 9/1/2020”, já depois de proferida a sentença em 06/01/2020, haviam já sido reclamadas na tentativa de conciliação realizada nos autos e atendidas na douta sentença proferida, pelo que não poderiam nunca ser agora consideradas face ao caso julgado dela resultante.
12. Acresce ainda que, como resulta logo da primeira página dos documentos juntos pelo sinistrado, as viagens foram marcadas e pagas pela entidade patronal do sinistrado (a quem forma endereçados os bilhetes de avião) e não por este, pelo que também não lhe assistiria legitimidade para as reclamar.
13. Assim, ao decidir condenar a ora apelante no pagamento ao sinistrado das despesas, com deslocações originárias da Bélgica, por este reclamadas no requerimento junto aos autos em 9/1/2020, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 39º-1 e 2 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, e o disposto no art. 621º do Código de Processo Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que absolva a ora apelante do pedido de pagamento de despesas formulado pelo sinistrado no requerimento apresentado em 9/1/2020.”

O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. No douto despacho de 29 de janeiro de 2020 o Tribunal a quo faz uma adequada apreciação da matéria de facto e uma correta aplicação do direito.
2. Estando em causa nos autos a deslocação do sinistrado a Tribunal, para estar presente numa Junta Médica, diligência requerida pela recorrente, as despesas de transporte por ele suportadas devem ser reembolsadas pela recorrente, independentemente da deslocação se ter operado dentro do território nacional ou a partir do estrangeiro.
3. Despesas de transporte que, pese embora tivessem sido reclamadas antes de proferida a sentença – esta com data de 6 de janeiro de 2020 -o certo é que o pedido não foi aí apreciado e decidido e como tal não pode constituir caso julgado relativamente ao mesmo.
4. Consequentemente deverá o recurso improceder, mantendo-se a douta decisão recorrida.”.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso, referindo o seguinte:
“(…)
Com efeito, a Mma. Juíza “a quo”, após prolação da sentença de 06.01.2020, na sequência de ulterior formulação “ex novo” de pedido do sinistrado recorrido, deferiu a sua pretensão quanto ao pedido de reembolso de despesas de viagem de avião, esgotado que foi o seu poder jurisdicional, nos termos do artº. 613º. do CPC. (cfr. Ac. do STJ. de 12-03-2015) e o que configura nulidade absoluta, nos termos do subsequente artº. 615º. Nº. 1.
Está afastada a menção ao caso julgado e em contrário do que menciona a recorrente – cfr. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1993, págs. 305 e 306, e, Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 307.
Com efeito, resulta da sentença “sub iudice” que não foi considerada a deslocação do recorrido para a Bélgica, pelo que, tal facto ora surgido, não possa ser atendível, conforme o artigo 74.º do CPT., por exceder a causa de pedir que havia sido inicialmente manifestada aquando da tentativa de conciliação, que teve lugar a 26/11/2019 – cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ., de 23 de Abril de 2008 e do TRLx., de 08 de Maio de 2000, agora aplicáveis “mutatis mutandis”.
O sinistrado recorrido limitou-se a juntar cópia dos documentos e sem que tenha alegado e comprovado que procedeu ao dispêndio de qualquer quantia para suportar a viagem em causa, não tendo exibido prova de seu pagamento concreto, que parecer ter sido suportada por outra entidade e o que é causa de sua ilegitimidade quanto ao crédito reclamado.
Mesmo que fosse admissível a sua pretensão, evidencia-se uma condenação extra vel ultra petitum, violadora do artigo 74.º do CPT., por exceder a causa de pedir inicial.
Ou seja, no decurso da acção e antes da prolação da sentença, o sinistrado recorrido exerceu o ónus da prova dos factos jurídicos que sustentaram o seu pedido, enquanto constitutivos do direito de que se arrugou e em ordem a que a acção fosse decidida a seu contento - cfr. artigos 342.º n.º 1, do CC e 414.º do CPC.
O tribunal apreciou, então, o pedido e a causa de pedir para decidir o mérito da causa na conjuntura da prolação da sentença, tendo concluído pela procedência da pretensão da parte “rectius”, do aqui trabalhador sinistrado – cfr. Carlos Alegre, in Código de Processo de Trabalho – Anotado, Almedina, 6.ª Edição e Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, Almedina, 3.ª Edição.
Consequentemente, à Mma. Juíza “a quo” estava vedado condenar a recorrida, face à previsão do artº, 613º. do CPC – cfr. Ac. deste TRP de 21 de Outubro de 2019 (relator Exmo. Sr. Juiz Desembargador Jerónimo Freitas – acórdãos consultáveis in www.dgsi.pt), quanto à sua fundamentação e no que diz respeito a este normativo.”

Não foram apresentadas respostas.

Foram colhidos os vistos legais.
***
II. Matéria de facto assente:
Tem-se como assente o seguinte:
A. O que consta do relatório precedente;
B. Na sentença proferida aos 06.01.2020 deu-se como assente a seguinte factualidade:
“Por acordo das partes e documentos encontram-se assentes os seguintes factos:
1 - O sinistrado sofreu um acidente no dia 05 de Dezembro de 2017...
2 - ... Quando trabalhava por conta de “D…, Ldª” ...
3 - ... Mediante o salário anual de €561,60 x 14 + €127,82 x 11 + €1.526,74 x 12 (total anual de €27.589,30).
4 – A responsabilidade infortunístico laboral da entidade patronal encontrava-se transferida para a seguradora pelo referido salário anual.
5 – Do acidente resultaram para o sinistrado, como consequência directa e necessária, as lesões e sequelas descritas no exame médico de 19/12/2019.
6 – A consolidação médico-legal das lesões ocorreu no dia 15.05.2018.
7 – O sinistrado despendeu em deslocações obrigatórias a tribunal a quantia de € 30,00.
8 – O sinistrado nasceu no dia 16-11-1972.”
C. Na decisão recorrida referiu-se o seguinte:
“Resultando dos autos que o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado ocorreu em Bruges, Bélgica, quando trabalhava por conta da sua entidade patronal, tendo também aí sido assistido, sendo assim inequívoco que o sinistrado aí tem actualmente o domicilio, e estando comprovadas despesas de transporte desse seu domicílio em Bruges, Bélgica, para diligência judicial que foi consequência de pedido da R Seguradora, (…)”.
D. Porque documentalmente provado, tem-se ainda como assente o seguinte:
d.1. Na participação do acidente de trabalho é indicada como residência do A. a Rua …, nº …. – R/c Esq., ….-… …, Portugal, morada esta que figura também: na notificação do A. para o exame singular, o qual teve lugar aos 05.02.2019; no auto de exame médico singular; na notificação do A. para a tentativa de conciliação que teve lugar, na fase conciliatória do processo, aos 26.11.2019 e no respectivo no auto dessa tentativa de conciliação; na notificação do A., datada de 04.12.2019, para o exame por junta médica realizado aos 19.12.2019; na notificação do A., datada de 19.12.2019, do resultado da referida junta médica; e, bem assim, da sentença.
d.2. Da referida tentativa de conciliação, realizada aos 26.11.2019, consta, para além do mais [que não importa ao recurso], o seguinte:
“ Iniciada a diligência pelo:
SINISTRADO foi dito: (…) Reclama o capital de remição (…),bem como a quantia de €30,00 relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de Penafiel e a este Tribunal.”.
E. Da participação do acidente de trabalho da empregadora à Ré Seguradora consta como local do acidente “Bélgica”.
F. No relatório de exame médico singular consta, para além do mais, ter sido dito pelo sinistrado que este foi inicialmente assistido na Bélgica e que, depois, veio para Portugal, onde foi assistido.
G. Do referido relatório, bem como dos elementos clínicos juntos pela Ré, resulta que o sinistrado foi assistido por esta.
***
III. Fundamentação

1. Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões em apreço:
- Caso julgado;
- Impugnação da matéria de facto;
- Do (não) reembolso das despesas.
Pelo Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto é ainda suscitada a questão da extinção do poder jurisdicional.

1.1. Importa referir que dos documentos juntos pelo A. aos 19.12.2019 consta a referência a viagens, e respectivo custo, com datas de: 24.11.2019 e 27.11.2019 [de avião Bruxelas-Porto e Porto – Bruxelas, com um custo global de €43,98]; de 24.11.2019 [de comboio, Porto Campanhã-Marco de Canavezes e o valor de €6,15]; 27.11.2019 [Transportes Intermodais do Porto, ACE- €2.00; CP-€3,75; e outras na Bélgica]; e de 18.12.2019 [de avião, Bruxelas-Porto; e outras terrestres, em Portugal (Transportes Intermodais do Porto, ACE, CP-Porto Campanhã-Marco de Canavezes) e Bruxelas].

2. Questão prévia

Previamente às questões objecto do recurso, importa apreciar uma outra que se coloca e que poderá prejudicar o conhecimento das demais.
Expliquemos.
2.1. Do art. 40º, nºs 1, al. b) e 2 do CPC/2013 resulta que é obrigatória a constituição de mandatário nas causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor e, bem assim [a contrario sensu] que, as partes, por si só, não podem fazer requerimentos em que se levantem questões de direito.
Na fase contenciosa das acções emergentes de acidente de trabalho, caso o sinistrado não haja constituído mandatário judicial ou não litigue com o benefício de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, o magistrado do Ministério Público assume, oficiosamente, o seu patrocínio [cfr. arts. 7º, al. a), 119º, 113º e 26º, nºs 1, al. e) e 3, do CPT], sendo que, em tal espécie de acções, é sempre admissível recurso até à Relação [art. 79º, al. b), do CPT].
De referir também, ainda que sumariamente, que o processo especial emergente de acidente de trabalho encontra-se regulado nos arts. 99º e segs. do CPT, destacando-se o seguinte: o processo é constituído obrigatoriamente, por uma primeira fase, a conciliatória, dirigida pelo Ministério Público e que culmina com uma tentativa de conciliação [obtido o acordo, deverá o mesmo ser presente ao juiz para homologação – art. 114º] e, por uma segunda fase, a contenciosa, que tem lugar quando se fruste a tentativa de conciliação.
Esta fase, contenciosa, comporta um de dois processados: caso a tentativa de conciliação se haja frustrado por, unicamente, ter existido divergência quanto à incapacidade, prevê o CPT um processado simplificado, que visa o apuramento dessa incapacidade através da realização de exame por junta médica e que se inicia com o requerimento da parte(s) discordante(s) para realização de tal junta e a que se lhe segue a prolação de sentença [cfr. arts. 117º, al. b), 138º, nº 2, 139º e 140º, nº1]; caso na tentativa de conciliação haja divergência em relação a qualquer outra questão que não aquela ou que não apenas aquela, a fase contenciosa inicia-se com a apresentação de petição inicial, seguindo-se-lhe a contestação, resposta [se a ela houver lugar], saneamento, consignação dos factos assentes[1], desdobramento do processo com abertura de apenso para fixação da incapacidade [se também esta estiver em discussão], julgamento e sentença [arts. 117º, nº 1, al. a), 118º, 119º, 126º, 129º, 131º. 132º, 135º].
E, de uma forma muito sintética, é também sabido que a natureza da intervenção do Ministério Público, na fase contenciosa, difere consoante intervenha, ou não, como patrono do sinistrado, sendo que, neste caso, actua em representação do sinistrado, na veste de “advogado” [oficioso] e em pé de igualdade em relação à(s) parte(s) contrária(s) e seu(s) mandatário(s), estando sujeito aos mesmos prazos e disciplina processual aplicável às partes. E porque assim é, é que, designadamente na qualidade de patrono, apresenta, em nome do sinistrado, requerimentos [ou articulados, se fosse o caso], e não promoções, requerimentos esses que, quando se suscitem questões de direito, deverão ser apresentados pelo mesmo e não pela própria parte.
Por outro lado, pretendendo o A., seja por via da acção [petição inicial], seja em via incidental, a condenação da parte contrária em qualquer prestação, deverá fazê-lo de forma fundamentada, indicando concretamente a pretensão que deseja [ou seja, formulação do pedido] e se pretender, designadamente, a condenação da Ré no pagamento de determinada quantia, deverá proceder à concreta indicação/liquidação do montante objecto do pedido de condenação, assim como deverá invocar a concreta causa de pedir dessa pretensão, com a indicação dos concretos factos que a fundamentam. É o que decorre als. d) e e) do nº 1 do art. 552º do CPC e como, aliás, é corolário do princípio do contraditório que deverá ser, sempre, assegurado ao demandado em todas as fases do processo – cfr. art. 3º da p.i.-, requisitos esses também aplicáveis ainda que a pretensão seja formulada em via incidental. E é também de salientar que os documentos são apenas meios de prova de factos, não dispensando a alegação dos factos a cuja prova se destinam, nem dispensando a formulação do pedido.

2.2. Revertendo ao caso em apreço constata-se que:
- o A., que não tem mandatário judicial constituído ou patrono nomeado no âmbito de apoio judiciário, por si próprio, aos 19.12.2019, já no âmbito da fase contenciosa, subscreveu e apresentou um requerimento a juntar documentos, nada mais alegando ou requerendo nesse requerimento.
- Foi esse o requerimento e documentos que foram notificados à Ré, a qual respondeu [porém em requerimento também por ela própria subscrito e não por mandatário judicial];
- Ao Ministério Público foi aberta “vista” o qual emitiu a promoção que deixámos consignada no relatório.
Todos os mencionados actos, à excepção da apresentação pelo A. do requerimento de 19.12.2019, não se poderão ter como validamente praticados.
Com efeito, perante a apresentação, pelo A., de tal requerimento juntando documentos, o que se impunha era a notificação dos mesmos ao Ministério Público, pois que, assumindo este, como assume, a qualidade de patrono do A. [já que este não tem mandatário judicial constituído e os documentos foram apresentados na fase contenciosa], era a ele, Ministério Público, que cabia e cabe a formulação e apresentação, no âmbito desse patrocínio, de requerimento, em nome e representação do sinistrado [e não a apresentação de “promoção”], pedindo o que for tido por conveniente, designadamente formulando o correspondente e concreto pedido de condenação da Ré no pagamento de despesas e fundamentando devidamente o pedido. Diga-se que se trata de questão que envolve matéria de direito, pelo que não pode a parte, por si própria, levar a cabo a prática de tal acto [aliás até poderia o A., ao invés de juntar os documentos aos autos, tê-los entregue ao MP, enquanto seu patrono e, este, então, formular o pedido correspondente se assim o entendesse o que, diga-se por dever de ofício, até nos pareceria mais correcto].
Por outro lado, não basta ao A., por si próprio, juntar documentos, sendo que os documentos são apenas meios de prova de factos que hajam sido alegados, o que pressupõe essa alegação, e não a própria alegação. Caso com a junção dos documentos se pretenda a formulação de pedido de condenação da Ré no pagamento de (eventuais) despesas, deverão estas ser objecto de um concreto pedido, com indicação do(s) montantes(s) objecto da condenação pretendida e com a alegação dos concretos factos que integram a causa de pedir, designadamente, que concretas deslocações foram efectuadas, por que razão foram efectuadas e despesas que, respectivamente, acarretaram e, se porventura anteriores, contemporâneas ou em data próxima da tentativa de conciliação, se estão ou não incluídas no montante das despesas reclamadas em tal tentativa e, em caso negativo, por que não foram aí reclamadas. E tudo a formular em requerimento subscrito pelo MP no âmbito do respectivo patrocínio oficioso do A. E, só após, deveria(rá) o requerimento ser notificado à Ré que, querendo, poderá responder [naturalmente que também em requerimento subscrito por advogado].
Acresce que, perante a apresentação, pelo A., do mencionado requerimento a solicitar a junção dos documentos, cabia à Mmª juíza o dever de determinar a prática de tais actos, tanto mais estando-se, como se está, perante matéria de direitos subtraídos à disponibilidade das partes (art. 12º e 78º da Lei 98/2009, de 04.09), tendo a acção de acidente de natureza oficiosa e cabendo ao MP o patrocínio oficioso do sinistrado.
Importa também dizer o seguinte:
No caso, o desacordo na tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória ocorreu porque se verificou discordância, apenas, em relação ao grau de incapacidade do A., pelo que seguiu-se-lhe a fase contenciosa simplificada, em que não existem articulados. Dada a diferente estrutura desta fase e da sua tramitação, que não comporta a apresentação de articulados, não faz sentido falar-se em articulado superveniente [cfr. arts. 588º e 589º do CPC] como forma de invocação de (eventuais) despesas.
Não obstante tal facto não é, nem pode constituir, impedimento à possibilidade de exercício do (eventual) direito ao pagamento de despesas.
O juiz tem o dever de gestão processual [art. 6º do CPC], no âmbito do qual cabe o dever de adequar o processado à finalidade a que se destina [sendo que é a lei adjectiva que está ao serviço da lei substantiva].
No caso, essa adequação compatibiliza-se e enquadra-se perfeitamente no seu tratamento como consubstanciando um incidente da instância, sujeito à tramitação prevista nos arts. 292º a 295º do CPC/2013, de que se destaca: a apresentação de requerimento em que o incidente é suscitado, ou seja, com a formulação do pedido e correspondente causa de pedir nos termos já acima referidos e apresentação dos meios de prova; notificação para oposição e cominação do nº 3 do art. 293º, nº 3; apresentação de oposição e dos meios de prova; produção de prova e decisão conforme art. 295º e aplicando-se, quanto à decisão, o art. 607º do CPC/2013.
Na situação em apreço, toda a referida tramitação foi omitida [faltando, desde logo, o requerimento inicial com o pedido e respectiva causa de pedir, assim suscitando o incidente e, por consequência, desencadeando os actos subsequentes], o que consubstancia, nos termos do art. 193º, nºs 1 e 2, do CPC/2013, erro na forma do processo ou, pelo menos, situação equiparável, que determina, à excepção da sentença [de 06.01.2019] e do requerimento do A. de 19.12.2019 [e junção dos documentos que o acompanham], a nulidade de todos os actos posteriores, mormente da resposta da Ré de 24.02.2020 e da decisão recorrida. Acrescente-se que, de todo o modo, a falta de todo o mencionado processado, designadamente a falta de requerimento inicial com a alegação, nos termos já apontados, de factualidade necessária à boa apreciação e decisão da questão objecto recurso sempre determinaria, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), do CPC, a anulação da decisão recorrida com vista à ampliação da decisão da matéria de facto pertinente.
Do exposto decorre ainda a necessidade quer de notificação, pela 1ª instância, do Ministério Público para, enquanto patrono do A., requerer o que tiver por conveniente face à apresentação, por este, dos mencionados documentos, quer da subsequente tramitação processual, em conformidade com o acima referido, a que haja lugar.

3. Face à anulação acima determinada fica, por ora, prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso, incluindo a relativa à invocação do caso julgado e da extinção do poder jurisdicional do juiz.
Para que se aprecie da existência de caso julgado, necessário é que, após uma sentença transitada em julgado, seja formulado um outro ou outros pedidos, com a indicação da(s) respectiva(s) causa(s) de pedir para, no confronto entre ambos, se poder avaliar da existência, ou não, de violação do caso julgado material, ou da sua autoridade, formado pela primeira decisão.
É certo que, nas contra-alegações, o Recorrido alega que as despesas se reportam a despesas para comparência à junta médica e que, sendo posteriores à tentativa de conciliação, não estão abrangidas pelas despesas reclamadas na referida tentativa e consideradas na sentença. E que alguns dos documentos juntos pelo A. se reportam a datas próximas da junta médica, sendo, todavia, que outros se reportam a datas anterior à tentativa de conciliação ou próxima da mesma (dia seguinte).
Porém, o local próprio para tal alegação, ou outra tida por conveniente, é em requerimento em que se formule o pedido de condenação no reembolso de despesas que o A. haja realizado, indicando as concretas despesas que realizou, quando as realizou e por que razão as realizou, tanto mais que, no caso e se, porventura, o Recorrente, no recurso, se reporta às despesas que são referidas nos documentos juntos a 19.12.2019, constata-se, como já referido, que se, umas, são posteriores à tentativa de conciliação, em data próxima da junta médica [cfr. as relativas, de acordo com os documentos, ao dia 18.12.2019], outras existem que são anteriores à tentativa de conciliação [cfr. as relativas, de acordo com os documentos, ao dia 24/11/2019] ou próximas de tal tentativa [cfr. as relativas, de acordo com os documentos, ao dia 27.11.2019].
Admite-se, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito e pelo menos quanto a despesas determinadas pela presença a actos judiciais posteriores à tentativa de conciliação e que não hajam sido contempladas na sentença, que esta não faça caso julgado ou que não tenha autoridade de caso julgado.
E, mesmo que, como hipótese de raciocínio e também de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, se admita que possa o sinistrado pedir o reembolso de (outras) despesas anteriores ou decorrentes de comparência à tentativa de conciliação (e não já à junta médica) que não haja reclamado em tal tentativa, necessário seria, no caso, que as mesmas não hajam sido já contempladas na condenação constante da sentença o que, tendo em conta, como referido, as várias soluções plausíveis de direito e se for o caso, deverá também ser apurado pela 1ª instância [na tentativa de conciliação o A. pediu o reembolso da quantia de €30,00 “relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de Penafiel e a este Tribunal” e na sentença condenou-se na “quantia de € 30,00 de despesas com deslocações obrigatórias a tribunal” sem outras concretizações].
Ora, perante o que se disse e se decidiu no ponto III.2, designadamente dada a falta de formulação do pedido e de causa de pedir, é prematuro e intempestivo o conhecimento, por ora, do invocado caso julgado, incluindo quanto ao apuramento da questão de saber se as (eventuais) despesas que possam vir a ser reclamadas estão, ou não, já contempladas na condenação constante da sentença.
E, no essencial e tendo em conta as várias soluções plausíveis de direito, o mesmo se diga quanto à invocada violação da extinção do poder jurisdicional, incluindo quanto ao apuramento da questão de saber se as (eventuais) despesas que possam vir a ser reclamadas estão, ou não, já contempladas na condenação constante da sentença.
E fica também prejudicado o conhecimento das questões relativas à impugnação da decisão da matéria de facto [a Recorrente impugna: “- o facto de o sinistrado residir actualmente em Bruges, na Bélgica; - o facto de estarem comprovadas despesas de transporte suportadas pelo sinistrado desde esse domicílio na Bélgica e para diligências judiciais no âmbito do presente processo.”] e à revogação da decisão condenatória da Recorrente constante da decisão recorrida.
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IV. Decisão

Em face do exposto e com excepção da sentença [de 06.01.2019] e do requerimento do A. de 19.12.2019 [e junção dos documentos que o acompanham], acorda-se em anular todos os actos posteriores a tal requerimento, mormente a resposta da Ré de 24.02.2020 e a decisão recorrida, mais se determinando à 1ª instância quer a notificação do Ministério Público para, enquanto patrono do A., requerer o que tiver por conveniente face à apresentação, por este, dos mencionados documentos, quer a subsequente tramitação processual a que haja lugar, tudo em conformidade com o acima referido.

Sem custas.

Porto, 22.06.2020
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
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[1] Nos termos do CPT, na redacção anterior à introduzida pela Lei 107/2019, havia ainda lugar à selecção da matéria de facto controvertida conforme o dispunha a al. d) do art. 131º, alínea esta que foi revogada pela citada Lei.