Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
778/21.8T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RP20230109778/21.8T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE/DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O âmbito do aperfeiçoamento do articulado, em regra, apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações impostas pelo nº 6 do artigo 590.º do CPCivil.
II - No cumprimento do despacho de aperfeiçoamento não pode a parte, na resposta, apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial que conduza a uma “alteração unilateral” do pedido ou da causa de pedir, em colisão com o preceituado no citado artigo 265.º do CPCivil e com o princípio da estabilidade de instância consagrado na lei processual civil (cf. artigo 260.º do mesmo diploma legal).
III - Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
IV - Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 778/21.8T8AMT.P1 - Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Local Cível de Penafiel

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

AA e marido BB, residentes na Rua ..., União de Freguesias ... e de ..., Amarante, propuseram ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31/08 (Ação Popular), no seu artigo 12.º, n.º 2, contra CC e mulher, DD, residentes na … ..., União de Freguesias ... e de ..., Amarante, Herdeiros de EE, representados pela cabeça de casal FF, residente na Calçada ..., União de Freguesias ... e de ..., Amarante, pedindo que os Réus sejam condenados:
a)- a reconhecer o caminho que descrevem na petição inicial, em toda a sua extensão, como caminho público;
b)- a desobstruir o caminho em todo o cumprimento das suas propriedades, cerca de setenta metros, demolindo necessariamente o muro edificado, quer na sua parte vertical, quer na sua parte horizontal, de modo a que o caminho, tenha como sempre teve, o respetivo leito, tudo a expensas exclusivas dos Réus;
c)- a absterem-se de praticar de futuro todo e qualquer ato que possa de alguma forma turvar, limitar ou impedir em toda a respetiva plenitude a utilização por todos do referido caminho;
d)- caso os réus venham contestar a presente ação, procedendo esta, nos honorários da mandatária, que foram firmados em 2.500 EUR se ficar decidido em primeira instância, ou 3.500 EUR em caso de recurso, a pagar no final do processo.
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Conclusos os autos foi proferido despacho que, julgando por verificada a excepção dilatória insuprível do caso julgado e pela manifesta improcedência dos pedidos, indeferiu liminarmente a petição inicial.
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Decisão essa que, por acórdão de 13 de Janeiro de 2022 desta Relação, foi revogada determinando-se o prosseguimento dos autos.
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Após a notificação dos Réus para contestar, o que fizeram, veio o tribunal recorrido exarar o seguinte despacho:
Antes de tudo o mais deverão os autores instruir a acção com as certidões do registo predial pretendidas, já que não podem endossar o ónus de instrução da acção para o Tribunal ou para a Conservatória”.[1]
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Na sequência desse despacho os Autores impetraram em 09/06/2022 o seguinte requerimento:
“(…)
1.º - Segundo informação prestada pela Conservatória do Registo Predial de Amarante o prédio identificado na petição inicial e sob contestação encontra-se omisso.
2. º- Assim sendo, o pedido ínsito na P.I (petição inicial) é retirado.
3.º - Sendo certo que “(...) em relação aos aqui Réus foi proferida decisão vinculativa no sentido de que têm de aceitar que o caminho é público (...)” – Cfr. página 19, parágrafo terceiro (3.º). do Acórdão da Relação do Porto, de 13.01.2022.
4.º - Ademais, tal caminho público está identificado e delimitado no documento n.º 4 junto com a P.I. (petição inicial).
5.º - Neste sentido, apenas interessa “(...) aferir se essa ocupação existe, se é efetuada pelos Réus e se causa danos aos Autores, com a realização da necessária ou subsequente prova (...)”. – Cfr. página 22, parágrafo segundo (2.º). do Acórdão da Relação do Porto, de 13.01.2022.
É o que traz ao conhecimento dos autos”.
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Com data de 29/06 o tribunal recorrido exarou o seguinte despacho:
“Em conformidade com a “desistência” agora formulada, deverão os autores, apresentar nova petição depurada daquilo que se lhes afigura consolidado pelo VTRP”.
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Em resposta ao assim exarado os Autos vieram os autos em 14/07 apresentar nova petição inicial cujo teor aqui se dá por reproduzida para todos os legais efeitos.
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Nesta conformidade os Réus apresentaram nova contestação onde, além do mais, levantaram a seguinte questão prévia:
“Foram os Autores convidados, por douto Despacho de 29/06/2022, a apresentar nova petição depurada daquilo que se lhes afigura consolidado pelo VTRP. Assim, é este o limite que, salvo melhor opinião, terá que respeitar a nova P.I.. Contudo, verifica-se que os Autores ultrapassaram tal limite no que toca ao pedido formulado na sua alínea c) actual (alínea d) na primitiva P.I.), bem como formularam um novo pedido que agora tem a designação d) na nova P.I.
A - Na verdade, constava dos artigos 67º e 68º da primitiva P.I. que, “para intentar a presente ação os Autores foram obrigados a constituir Advogado”, e que com esta terão estabelecido, por acordo, que os respectivos honorários “foram firmados em 2.500,00 Euros (…), se ficar decidido em primeira instância, ou 3.500,00 (…), em caso de recurso, a pagar no final do processo.” Ora, consta agora do artigo 26º da nova P.I. que “após acordo estabelecido com a sua mandatária, os honorários à Advogada foram firmados em 80 Euros por hora de trabalho (acrescido da compensação de êxito)”.
Na verdade, estamos perante dois “acordos” diferentes, para a mesma situação, pelo que apenas um dos mesmos pode corresponder à verdade. Ora tendo em conta o limite resultante do convite para apresentação de nova P.I., não deverá ser admitida a alteração do pedido respeitante à eventual condenação dos Réus no pagamento de honorários à sua Advogada, devendo manter-se o teor igual ao constante da alínea d) da primitiva P.I..
B – Da mesma forma entendemos que o aditamento do pedido de condenação em taxa sancionatória por cada dia de incumprimento, formulado como alínea d) da nova P.I., não deverá ser admitido, pois não constava igual pedido do primitivo requerimento inicial. E, mais uma vez, tendo em conta o limite resultante do convite à apresentação de nova P.I., não deverá ser admitido”.
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Com data de 10/10/2022 o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho:
“Assiste total razão aos réus.
Os autores, na nova petição, não se limitaram a suprimir pedidos, antes os modificaram e aditaram, o que extravasa o objecto do convite à apresentação, designadamente, quanto ao pedido de pagamento de honorários e quanto à taxa sancionatória (nesta parte um aditamento ou inovação).
Nesta decorrência, a petição apenas conserva intactos os pedidos de desobstrução do caminho e abstenção de turbação da sua utilização, reformulando o pedido de pagamento de honorários e inovando quanto a uma taxa sancionatória, o que significa que os autores praticaram um acto defeso.
Assim sendo, considero ineficaz e desentranhada a nova petição, devendo em 10 dias, querendo os autores, ser substituída por uma petição decalcada apenas nos pedidos originários nesta matéria (que claro está, podem ser restringidos, mas jamais reinventados) e depurada de excrescências.
Pela prática de um acto indevido, que gerou anulação e retrocesso no processado, condeno os autores na multa de 2 UCs.
d.s.”.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso rematando a alegação recursiva com as seguintes conclusões:
I. O Tribunal a quo vem a decidir, por considerar ineficaz, desentranhar a nova petição e condenar os Autores em multa.
II. A decisão de desentranhar a nova petição e a condenação dos Autores em multa, por ato praticado por Advogada, só deve ser proferida quando previamente for ouvida a parte sancionada, a fim de apresentar defesa.
III. Em 2012 foi intentada uma ação popular, que correu os seus termos sob o n.º 552/12.2TBAMT, tendo sido determinado que o caminho aludido, com as características e localização referenciados nos factos provados, é pertença do domínio público.
IV. Os demandados, não aceitando tal decisão judicial, posteriormente ao seu transito em julgado, procederem à construção de um muro horizontal e de um outro muro vertical, ambos com cerca de dois (2) metros de altura, impedindo assim a utilização deste caminho pela população em geral.
V. Nesse sentido, no presente processo foi pedido que sejam condenados a desobstruir o caminho nos setenta metros que atravessam as suas propriedades, que obstruíram após a decisão proferida no processo 552/12.2TBAMT, demolindo o muro edificado, de modo que o caminho, tenha como sempre teve, o respetivo leito, tudo a expensas exclusivas dos Réus.
VI. No acórdão da Relação do Porto de 13 de janeiro de 2022, já proferido no presente processo que revogou a decisão de indeferimento liminar, está inter alea sumariado que “O interessado que não foi aí citado, por força da sanação do apontado vício, tem de ser considerado como tendo intervindo na ação…”
VII. Assim, tendo ficado definitivamente delimitado o caminho no mapa junto aos autos, entre a rua ... e a rua da ..., numa extensão de cerca de cem metros, sequer seria de admitir a contestação nos moldes apresentados pelos Réus, nomeadamente “No que toca ao exposto a título prévio na douta P.I., dirão os aqui Contestantes apenas que não foram(…) aos mesmos chamados, nem no mesmo foi visada qualquer parte do seu prédio, já que se o fosse, teriam que ter sido ali demandados” e “… repete-se, os agora Contestantes (…), não tiveram a possibilidade de nela deduzir contraditório, nem a douta Decisão se refere nem se aplica a qualquer parte do seu prédio urbano, tendo incidido o mesmo processo sobre o que se passava no prédio dos ali Réus, GG e mulher, pelo que aquela douta decisão não se lhes aplica”.
VIII. Ademais, dendo sido testemunhas arroladas pelos RR/Recorridos (GG e HH), no âmbito do Proc. nº 552/12.2TBAMT, onde conheceram e discutiram o caminho em questão, vêm impedindo a utilização do identificado caminho público pelos Autores, e outros habitantes.
IX. Por conseguinte, persistindo em invocar que não foram citados, ao abrigo do art.º 15.º da Lei de Ação Popular (LAP), a fim de exercerem o seu direito de autoexclusão, na primitiva ação popular que correu termos sob o n.º 552/12.2TBAMT, toda a argumentação vertida na contestação terá de relevar como litigância de má-fé e abuso de direito.
X. No que tange aos valores referidos na primitiva petição inicial “firmados em 2.500,00 Euros (…), se ficar decidido em primeira instância, ou 3.500,00 (…), em caso de recurso, a pagar no final do processo” resultaram da previsão do número de horas necessárias (ao preço de 80 Euros) para uma tramitação normal, sem as incidências estranhas à lide.
XI. Daí, na nova petição estar somente vertido “… 80 Euros por hora de trabalho (acrescido da compensação de êxito)” e, ao contrário da conclusão dos Réus não «estamos perante dois “acordos” diferentes, para a mesma situação».
XII. Outrossim, mercê de incidências estranhas à vontade da mandatária, o processo tem-se arrastado demasiado pelo tempo, na verdade há mais de uma década;
XIII. Por conseguinte, na nova petição foi efetuado o pedido de condenação numa taxa sancionatória na tentativa de os Réus deixarem de perturbar a normal e livre circulação de pessoas pelo identificado (e decidido) caminho público.
XIV. Sendo de referir que todas as decisões no tribunal de primeira instância, quer no Proc. nº 552/12.2TBAMT quer no presente processo, foram proferidas pela mesma Meritíssima Juíza, sempre em prejuízo dos aqui ora Recorrentes, que, face ao desenrolar dos múltiplos atos processuais poderá indiciar inimizade com a mandatária.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos legais.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se havia fundamento para o desentranhamento e ineficácia da petição inicial apresentada pelos Autores.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em conta para apreciar e decidir a questão colocada é que resulta do relatório supra e que aqui se dá por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se havia fundamento para o desentranhamento e ineficácia da petição inicial apresentada pelos Autores.
Como se evidencia do despacho recorrido o desentranhamento da nova petição estribou-se na circunstância de os Autores terem extravasado o convite que lhe foi endereçado para a sua apresentação, designadamente quanto à formulação dos pedidos de pagamento de honorários e a aplicação de uma taxa sancionatória.
Vejamos então se ocorreu ou não tal extravasamento.
Importa, desde logo, começar por salientar que o acórdão proferido por esta Relação e constante dos autos, tendo revogado o despacho de indeferimento liminar, determinou tão só o prosseguimento dos autos, ou seja, nele nada se refere quanto à necessidade de o articulado inicial ser, por alguma forma, aperfeiçoado.
Aliás, a esse respeito é bastante elucidativo o seguinte trecho do mesmo:
Estando em causa uma ação que reveste a forma do processo comum do processo civil, naturalmente seguindo as regras aqui previstas que não estejam especialmente afastadas, não há impedimento legal para a cumulação dos pedidos de declaração do caminho como público, desobstrução do mesmo e pagamento de uma quantia por alegados danos patrimoniais que são causados por a causa de pedir ser a mesma–caráter público do caminho e sua voluntária obstrução–artigos 555.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, do C. P. C. ex vi artigo 12.º, n.º 1, da L. A. P. -.
Importa então aferir se essa ocupação existe, se é efetuada pelos Réus e se causa danos aos Autores, com a realização da necessária e subsequente prova, concluindo-se pela revogação da decisão que indeferiu liminarmente a acção”, ou seja, o prosseguimento dos autos correspondia à apreciação dos pedidos formulados pelos Autores.
Daqui se conclui que o tribunal recorrido tinha, face ao acórdão assim prolatado, que ordenar apenas e tão só o prosseguimento dos autos.
Por outro lado, importa referir que com o requerimento apresentado em 09/06/2022 transcrito no Relatório supra, os Autores, ao contrário do que refere depois o tribunal a quo no despacho recorrido, não suprimiram qualquer pedido formulado na acção.
Efectivamente, do que se tratou foi apenas de, no âmbito dos meios de prova, retirar o que havia sido solicitado no ponto IV da petição inicial transcrito na nota 1.
Ora, face ao supra descrito, não se divisa a razão de ser do despacho exarado em 29/06/2022 (“Em conformidade com a “desistência” agora formulada, deverão os autores, apresentar nova petição depurada daquilo que se lhes afigura consolidado pelo VTRP”), pois os Autores não suprimiram qualquer dos pedidos formulados na acção, nem a Relação, no acórdão de 13/01/2022, mandou aperfeiçoar a petição inicialmente apresentada.
Acontece que, o tribunal recorrido, trilhando um caminho que não devia, mandou apresentar aos Autores uma nova petição depurada daquilo que se lhes afigurava estar consolidado pelo VTRP.
Todavia, como já supra se referiu, a Relação, revogando o despacho de indeferimento liminar, limitou-se a mandar prosseguir a acção.
Portanto, se o tribunal recorrido, entendia que os Autores tinham que apresentar nova petição corrigida, devia, em despacho fundamentado, ter indicado de forma expressa e perceptível quais as alterações que na petição inicial deviam ser introduzidas e, não endossar aos Autores o convite puro e simples de apresentar uma nova petição, pois que, ao não concretizar o que estava já consolidado pelo TRP e que, portanto, devia ser expurgado na nova petição a apresentar, foi isso que sucedeu, ou seja, a nova petição teria a roupagem que os Autores entendessem dentro, claro está, daqueles limites.
Não obstante o exposto, o despacho proferido em 29/06/2022 nos moldes referidos, traduziu-se, ainda assim, num simples convite ao aperfeiçoamento da petição [cfr. artigo 590.º, nº 2 al. b) e nº4 do CPCivil].
Acontece que, nos termos do preceituados nº 6 do citado artigo 590.º “as alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.os 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu”.
Portanto, no cumprimento do despacho de aperfeiçoamento não pode o autor exceder os limites impostos pelo artigo 265.º do CPCivil, ou seja, o mencionado nº 6 do artigo 590.º estabelece claramente os termos ao aperfeiçoamento “substancial” da matéria de facto alegada, não podendo o autor, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma “alteração unilateral” do pedido ou da causa de pedir, em colisão com o preceituado no citado artigo 265.º.
Isto significa que, em regra, o âmbito do aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações impostas pelo citado nº 6 do artigo 590.º.
Aliás, em rectas contas, o citado nº 6 do artigo 590.º mais não faz do que manter o princípio da estabilidade da instância a que se refere o artigo 260.º do CPCivil, isto é, citado o Réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
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Isto dito e respigando o conteúdo da nova petição inicial apresentada pelos Autores verifica-se que os mesmos não se contiveram no âmbito dos limites do despacho de aperfeiçoamento nem nos impostos pelo nº 6 do artigo 590.º do CPCivil, pois que alteraram o pedido formulado na al. c) actual [alínea d) na primitiva P.I.], bem como formularam um novo pedido que agora tem a designação d) na nova P.I.
Na verdade, constava dos artigos 67º e 68º da primitiva P.I. que, “para intentar a presente ação os Autores foram obrigados a constituir Advogado”, e que com esta terão estabelecido, por acordo, que os respectivos honorários “foram firmados em 2.500,00 Euros (…), se ficar decidido em primeira instância, ou 3.500,00 (…), em caso de recurso, a pagar no final do processo.”
Ora, consta agora do artigo 26º da nova P.I. que “após acordo estabelecido com a sua mandatária, os honorários à Advogada foram firmados em 80 Euros por hora de trabalho (acrescido da compensação de êxito)”.
Significa, assim, que estamos perante dois “acordos” diferentes, para a mesma situação, devendo, claro está, prevalecer o pedido inicialmente na alínea d) da primitiva P.I..
Por outo lado, os Autores aditaram um novo pedido que não constavam da anterior petição inicial, qual seja, a condenação em taxa sancionatória por cada dia de incumprimento, formulado como alínea d) da nova P.I..
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Daqui resulta, sem margem para dúvidas, que os Autores não se contiveram dentro do limites impostos pelo despacho de aperfeiçoamento, apresentando nova petição inicial onde procederam a uma modificação objectiva da instância nos moldes supra referidos, com manifesta violação do disposto nos artigos 260.º, 265.º do CPCivil, este último aplicável ex vi artigo 590.º, nº 6 do mesmo diploma, o que é legalmente inadmissível.
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Aqui chegados nada temos a censurar à decisão recorrida quando ordenando o desentranhamento da nova petição inicial instando os Autores recorrentes a substituir a petição inicial apresentada por outra, decalcada apenas nos pedidos originários.
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Obtemperam, todavia, os recorrentes que a decisão recorrida só devia ter sido proferida depois de terem sido ouvidos.
É verdade, que preceitua o artigo 3.º, nº 2 do CPCivil que “[Só] nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida”.
E, como regra, “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (nº 3 do mesmo preceito).
Porém, o dever de audição prévia, enquanto emanação do princípio do contraditório, só existe relativamente às soluções, de facto ou de direito que, de todo, não possam ser previstas pelas partes. Ou seja, só existe decisão surpresa se o juiz, à margem do quadro factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio.
Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade.
Quer se trate de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, casos existem em que as mesmas tinham obrigação de prever que o tribunal as podia decidir em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que, se as não suscitaram e não cuidaram de as discutir no processo, sib imputet, não se podendo, de modo equilibrado e razoável, considerar que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa.
Esta pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão, embora juridicamente possível, não estivesse sido prevista nem configurada por aquela.
Se a decisão tomada pelo tribunal tem respaldo no quadro factual alegado pelas partes e se enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever, como possível, nenhuma decisão surpresa existe.
Por outras palavras, só estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito.
Ora, não é este o caso, pois que os Autores sabiam que não se contendo dentro dos limites do despacho de aperfeiçoamento e do artigo 265.º do CPCivil, quando apresentaram a nova petição inicial, tal era legalmente inadmissível e, como tal, tinham a perfeita noção de qual seria, nesse caso, a solução jurídica que lhes iria ser imposta pelo tribunal recorrido, isto é, a decisão situou-se, dentro do abstratamente permitido pela lei.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 09 de Janeiro de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia
Jorge Seabra
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[1] Na petição inicial apresentada os Autores havia formulada o seguinte requerimento em sede de probatória: “Os Autores requerem a V. Exa., para prova do conteúdo no articulado 23.º, que seja oficiada a Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Amarante, sita … ..., ... Amarante, para proceder à junção de certidões permanentes dos prédios urbanos/rústicos que sejam propriedade dos 1.ºs e 2.º Réus e sitos na União de Freguesias ... e de ..., concelho de Amarante”.