Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2686/11.1TBGDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: COMPRA E VENDA
EMPRÉSTIMO COMERCIAL
CONTRATO MISTO
CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA DE EXCLUSIVIDADE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DA CONCORRÊNCIA
Nº do Documento: RP201411112686/11.1TBGDM-A.P1
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Um contrato de compra e venda de café, em regime de exclusividade, celebrado entre uma empresa que se dedica à comercialização e distribuição deste produto e uma sociedade que explora um estabelecimento de café e que envolve também a concessão de um mútuo pela empresa vendedora à compradora, destinado este à aquisição de equipamentos para tal estabelecimento, configura-se como um contrato misto e complexo, que incorpora elementos próprios da compra e venda e também do empréstimo comercial, onde avulta e prevalece a celebração de um contrato de fornecimento.
II - Ocorrendo reembolso integral e antecipado da quantia mutuada por parte da compradora, tal não determina para ela a extinção da obrigação de adquirir, em exclusividade, café à empresa vendedora.
III - Porém, integralmente reembolsada a quantia mutuada não pode, verificando-se posterior incumprimento da obrigação de adquirir café, ser accionada cláusula penal que prevê indemnização fundada precisamente nesse mútuo.
IV - A aposição neste contrato de uma cláusula de exclusividade - e a sua manutenção após o pagamento integral da quantia mutuada – não constitui violação das regras de concorrência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2686/11.1 TBGDM-A.P1
Tribunal Judicial de Gondomar – 3º Juízo Civel
Apelação
Recorrentes: B… e C…
Recorrida: “D…, SA”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Os executados B… e C… vieram deduzir oposição à execução que lhes é movida pela exequente “D…, SA”, alegando em síntese que:
- O tribunal é territorialmente incompetente, sendo competente o Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, conforme acordado no contrato subjacente à emissão da letra dada à execução;
-Tal letra foi avalizada pelos oponentes na sequência da celebração de um contrato de compra exclusiva de café, com mútuo gratuito entre a exequente, os executados e a aceitante da letra;
- O mútuo gratuito tinha como contrapartida a vinculação da sociedade aceitante por um longo período de 5 anos à compra exclusiva de café à exequente;
- O estabelecimento veio a encerrar e as prestações de reembolso do mútuo deixaram de ser pagas, pelo que na sequência de a exequente ter declarado vencidas todas as prestações relativas ao mútuo, os oponentes assumiram o pagamento dessa quantia, liquidando-a por completo em 6.8.2004, tendo a exequente se comprometido a entregar-lhes as letras por considerar nada mais ser devido;
- Os oponentes ficaram perfeitamente convencidos de que nada mais lhes podia ser exigido e assim aconteceu durante mais de 7 anos;
- Apenas em 3.1.2010, os oponentes receberam uma carta da exequente a resolver o contrato, pedindo uma indemnização de 20.113,92€, que os oponentes tempestivamente contestaram;
- Não há título executivo, pois a letra dada à execução foi assinada em branco e abusivamente, já que não houve qualquer pacto relativo ao seu preenchimento;
- Os valores indemnizatórios reclamados pela exequente não são devidos, pois o mútuo gratuito, que era a contrapartida da exclusividade, foi integralmente pago a 10.8.2004, pelo que nessa data desapareceu a obrigação da exclusividade da compra de café por o sinalagma ter deixado de existir;
- A considerar-se de outra forma, estará a violar-se as regras anti-concorrenciais, pois continua a manter-se a cláusula de exclusividade sem justificação, o que não pode deixar de ser havido como prática proibida pelo art. 4º da Lei nº 18/2003, de 11.6 e como tal a cláusula será nula;
- A indemnização de 25% da quantia mutuada tem a natureza de cláusula penal, pelo que, face ao disposto no art. 812º, nº 1 do Cód. Civil, não pode a exequente exigir o pagamento de cláusula penal estabelecida para uma obrigação que já foi cumprida;
- Exigir-se uma indemnização de 12.607,92€ pelo alegado incumprimento de uma obrigação para a qual a sociedade aceitante não teve contrapartida constitui um abuso do direito.
- Ainda que se considere que as cláusulas penais contratualmente estabelecidas são devidas, sempre as mesmas deverão ser reduzidas, de acordo com a equidade, por manifestamente excessivas;
- A letra dada à execução não foi objecto de protesto, nem apresentada a pagamento;
- Finalmente, a penhora do vencimento do oponente B… viola o disposto no art. 824º, n. 2 do Código Civil.
A exequente contestou, defendendo, em síntese, a competência territorial do Tribunal Judicial de Gondomar, a exequibilidade do título dado à execução, a validade do aval e do pacto de preenchimento, o montante em dívida, bem como o facto de não ter desonerado os oponentes, aquando do pagamento do mútuo, das restantes obrigações emergentes do incumprimento do contrato, nem que o mútuo fosse contrapartida da exclusividade e a cláusula penal tivesse sido acordada para o caso de incumprimento de uma única obrigação.
Quanto ao invocado excesso da cláusula penal, defende que tal cláusula tem como objectivo que a exequente receba, por essa, via, a totalidade do valor que receberia caso o contrato se mantivesse em vigor até ao final do prazo contratualmente estabelecido.
Mais requereu a condenação dos oponentes como litigantes de má fé.
Concluiu pela improcedência da oposição.
Proferiu-se despacho saneador no qual se decidiu pela improcedência da excepção de incompetência territorial e se declarou válida e regular a instância.
Considerada a simplicidade da causa, não se procedeu à selecção da matéria de facto, nos termos do disposto no art. 787º do Código de Processo Civil.
Procedeu-se depois a julgamento, como observância do legal formalismo, findo o qual se decidiu, sem reclamações, a matéria de facto, nos termos constantes de fls. 146 a 154.
Foi proferida sentença que julgou a oposição à execução parcialmente procedente e, em consequência:
a) Reduziu a quantia exequenda para o valor global 15.009,84€, absolvendo-se os oponentes do restante pedido executivo; e
b) Determinou o prosseguimento da execução.
Por outro lado, julgou a oposição à penhora procedente e, em consequência, determinou que a penhora no vencimento mensal do executado B… deverá incidir sobre o valor líquido da retribuição (incluindo o subsídio de alimentação), depois de abatidos os descontos legais devidos ao Estado (IRS), Segurança Social e ADSE e deverá deixar incólume valor líquido não inferior a um salário mínimo nacional, determinando-se que sejam restituídas ao oponente as quantias que tenham sido penhoradas sem observância deste critério.
Absolveram-se ainda os oponentes do pedido de condenação como litigantes de má fé deduzido pela exequente.
Inconformados com o decidido, os executados interpuseram recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da parte da sentença proferida pelo tribunal “a quo” que julgou parcialmente improcedente a oposição à execução formulada pela ora recorrida, e determinou o prosseguimento da execução relativamente ao valor global de 15.009,84 €.
2. Com todo o devido respeito, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” fez uma incorrecta apreciação da prova produzida nos autos, e, por consequência, proferiu uma desadequada decisão sobre a matéria de facto, o que conduziu a uma indevida interpretação e aplicação do direito, razão pela qual se impõe a sua alteração.
3. A posição tomada pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto e as consequências daí retiradas para a decisão tornam inclusive a sentença nula nos termos do artigo 615.º do CPC.
4. Entendem os Recorrentes, para efeitos do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 640.º do CPC que os pontos 15 e 16 dos factos dados como provados na sentença que se recorre foram incorrectamente julgados.
5. Como tal parece claro aos Recorrentes que, relativamente a estes factos que constam dos pontos 15 e 16 da decisão recorrida, o tribunal deveria ter dado como provado que: “O Café denominado ‘E…’, esteve em funcionamento cerca de um ano, tendo encerrado a sua actividade em finais de Agosto ou início de Setembro de 2004, mas sempre em data posterior ao pagamento integral do mútuo por parte dos avalistas”.
6. A sentença de que se recorre deve ser considerada nula nos termos do artigo 615.º do CPC uma vez que a ter-se a matéria de facto como correctamente julgada, então terá de considerar-se a decisão do tribunal como ambígua ou inintelegível face aos seus fundamentos.
7. Sem qualquer fundamento para tal constante dos autos, o Tribunal “a quo” entende que a oposição dos recorrentes deve ser improcedente porque à data do pagamento integral do mútuo o contrato já estava resolvido e as cláusulas penais eram já devidas pelos Recorrentes.
8. Ora, esta conclusão do Tribunal “a quo” não tem qualquer suporte factual e está em contradição com os próprios factos dados como provados pelo tribunal pelo que não pode deixar de se entender que a decisão está em oposição com os seus fundamentos ou que, pelo menos, [é] ambígua ou ininteligível, para efeitos e nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º1, c).
9. Estamos assim perante uma união ou coligação de contratos, união esta que doutrinalmente se deve considerar interna, i.e., em que há uma relação entre o ajuste de um contrato e a celebração do outro, de subordinação recíproca, em que as alterações produzidas em um dos contratos se reflecte no outro e vice-versa, bilateral, funcional, no sentido em que o destino de ambos os contratos está ligado não só na sua formação, como também no desenvolvimento e funcionamento das respectivas relações e, finalmente, uma coligação necessária no sentido em que há uma relação natural entre os dois contratos que é, neste caso, económica.
10. Ora, se tivermos em conta que a matéria de facto dada como provada não permite inferir como manifestamos já que o contrato foi resolvido automaticamente antes do pagamento do mútuo integral por parte dos recorrentes,
11. Tem de se considerar, então, e em alternativa, que com o pagamento integral do mútuo por parte dos recorrentes, o contrato de mútuo se extinguiu por cumprimento.
12. Na verdade, não obstante o prazo acordado entre as partes para o pagamento do mútuo, sendo este gratuito deve presumir-se que o prazo opera a seu favor e, acima de tudo,
13. Que é permitido ao mutuário antecipar o pagamento sem qualquer penalidade.
14. Deve assim considerar-se que com o pagamento integral do mútuo por parte dos recorrentes as obrigações da sociedade aceitante se extinguiram.
15. Não só a obrigação de restituição do montante mutuado como também as obrigações de compra exclusiva de café, uma vez que os dois contratos se encontravam coligados de um modo bilateral, funcional e necessário.
16. Sendo a obrigação de compra exclusiva a contraprestação do contrato de mútuo gratuito, tal como ficou provado, a extinção do mútuo gratuito tinha obrigatoriamente de determinar a extinção daquela contraprestação.
17. Ora, a manutenção de uma cláusula restritiva da liberdade de concorrência da sociedade aceitante sem nenhuma contrapartida não podia deixar de se considerar integrante daquele conceito de prática restritiva do comércio e até de abuso de posição dominante, pelo que sempre teria que ser declarada nula por violação do artigo 4.º da Lei 18/2003.
18. Assim, e considerando uma vez mais que não podia o Tribunal “a quo” considerar que o contrato estava resolvido automaticamente por incumprimento não poderia entender devida uma cláusula penal quando a obrigação do contrato já havia sido cumprida.
19. Assim deve entender-se que as duas cláusulas penais constantes do contrato subjacente aos presentes autos estão vinculadas às disposições dos artigos 559.º-A e 1146.º do Código Civil.
20. Pelo que o valor dessas cláusulas penais nunca poderia ser superior a 7% acima dos juros legais que eram, à data da celebração do contrato de 12%, nos termos da Portaria 262/99, de 12.04.
21. Ou seja as cláusulas penais constantes do contrato, nunca poderiam exigir, cumulativamente, um valor superior a 19% da quantia mutuada, ou seja um valor total € 5.704,56 (30024,00 € x 19%).
22. Assim, nos termos do disposto no artigo 1146.º, n.º3, o valor global das cláusulas penais devidas pelo incumprimento do contrato deveria ser, pelo menos, reduzido àquele valor de €5.704,56.
23. Face ao exposto, a sentença recorrida violou artigos 615.º, n.º1, c), do CPC, o artigo 4.º, da Lei 18/2003, os artigos 559.º-A, 811.º, n.º1, 812.º, 1146.º, n.º 2 e 1147.º do Código Civil, pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e dado provimento à oposição apresentada pelos recorrentes (…).Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Uma vez que estamos perante decisão proferida em 14.2.2014 em processo que foi instaurado depois de 1.1.2008, é aplicável ao presente recurso o regime previsto no Novo Cód. do Proc. Civil.
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O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Apurar se os pontos 15 e 16 da matéria de facto foram incorrectamente julgados;
II – Apurar se a sentença recorrida padece de nulidade;
III – Apurar se com o pagamento integral da quantia mutuada se extinguiu a obrigação de compra exclusiva de café;
IV Apurar se a cláusula de exclusividade constante do contrato e a sua manutenção após o reembolso integral da quantia mutuada constitui violação das normas que protegem a concorrência – art. 4º da Lei nº 18/2003;
V Apurar se são devidas as cláusulas penais constantes da cláusula 9ª do contrato e, em caso afirmativo, se as mesmas deverão ser consideradas usurárias.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância:
1 – Foi dada à execução a letra que se acha junta ao requerimento executivo, em que consta como sacadora a Exequente D…, SA, aceite por F…, Lda, com data de emissão de “2003-06-09”, no valor de “20.113,92€”, com data de vencimento de “2011-05-16” – cfr. documento junto ao requerimento executivo que, no mais, se dá por integralmente reproduzido.
2 – No verso de tal letra, depois da expressão “dou o meu aval à firma aceitante”, constam as assinaturas dos Executados B… e C…, constando ainda a expressão “Sem despesas” seguida da assinatura da Exequente.
3 – Em 9 de Junho de 2003, a Exequente e a sociedade F…, Lda celebraram o contrato intitulado “Contrato de Compra Exclusiva com Mútuo Gratuito”, ao qual foi atribuído o n.º 2003/.. cuja cópia consta a fls. 11 verso a 13 verso e se dá por integralmente reproduzida.
4 - Nos termos da cláusula 3ª do contrato referido em 3), a Exequente obrigou-se a fornecer à sociedade F…, Lda produtos da sua actividade.
5 – Nos termos da cláusula 4ª do mesmo contrato, a sociedade F…, Lda obrigou-se, designadamente, a consumir e vender no seu estabelecimento comercial, exclusivamente, “Café, Descafeinado e açúcar, produzidos ou comercializados” pela Exequente ou por entidade por ela designada e a comprar à Exequente a quantidade mínima mensal de 50 kgs de Café, Lote … – alíneas I) e V).
6 – Como contrapartida da exclusividade conferida pela sociedade F…, Lda, a Exequente emprestou à sociedade F…, Lda, sem juros, a quantia de 30.024,00€, destinada à compra de equipamento para o estabelecimento por esta explorado – cfr. cláusula 6ª do contrato.
7 – O reembolso do capital em dívida, resultante do mútuo gratuito, seria efectuado em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 834,00€ cada, vencendo-se a primeira no dia 8 de Julho de 2003 e as restantes no dia 8 dos meses subsequentes – cláusula 7ª do contrato.
8 – A cláusula 9ª do contrato estabelece que:
I) O presente contrato poderá ser resolvido por qualquer dos contraentes nos termos gerais de direito e, ainda e designadamente, pela D… nos casos seguintes, verificados conjunta ou isoladamente, o que fará por carta registada com AR, remetida à 2ª Outorgante:
a) A violação da cláusula 4ª em qualquer dos seus aspectos e seja a que título for;
b) A falta de pagamento ou incumprimento dos prazos de pagamento, do café e demais mercadorias vendidas pela 1ª Outorgante, através do seu Distribuidor, à 2ª Outorgante, no âmbito das relações comerciais e prazos estabelecidos entre ambos;
c) a violação da cláusula 7ª em qualquer dos seus aspectos e seja a que título for;
d) A violação do 2º Outorgante das cláusulas do presente contrato, isolada ou conjuntamente.
II) Considerar-se-à data de resolução do contrato aquela que for fixada na carta mencionada no número anterior.
III) A resolução terá efeito retroactivo.
IV) O incumprimento do presente contrato pelo 2º Outorgante, dará lugar ao pagamento por parte desta, de uma indemnização que, por acordo, se fixa em 25% da quantia mutuada.
V) Para além da indemnização prevista no número anterior, o incumprimento, por parte da 2ª Outorgante determina o vencimento imediato de todas as prestações em dívida e do pagamento de juros moratórios calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos arts. 559º, 559º-A e 1146º do Código Civil, acrescida de 2%, e computados desde a data de entrega da quantia mutuada e a data do efectivo pagamento daquelas prestações.
VI) Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a violação das obrigações assumidas no presente contrato, nomeadamente as mencionadas na cláusula 4ª e 12ª, fará incorrer a 2ª Outorgante na obrigação de indemnizar a 1ª Outorgante, no montante de 4,49€ por cada quilo de café não adquirido conforme o contratualmente previsto.
& Único: Os montantes que resultam da aplicação desta cláusula ficam abrangidos pela Fiança, sendo pago pelos Fiadores e principais pagadores, no prazo de 15 dias contados da data de comunicação pela D…, que poderá ser feita por qualquer meio.”
9 – A cláusula 12ª, III do contrato estabelece que:
“Não se verificando a transmissão dos direitos e obrigações, conforme o convencionado no n. I da presente cláusula e ainda nos casos de encerramento do estabelecimento, cessação do contrato, cessão de exploração do estabelecimento ou mudança do seu ramo para outro incompatível com as finalidades do presente contrato, este considerar-se-á imediata e automaticamente resolvido pela 1ª Outorgante sem necessidade de qualquer interpelação a este ou ao novo proprietário ou cessionário dos estabelecimentos, ficando essa resolução sujeita aos efeitos consignados nos n.ºs IV, V e VI da antecedente cláusula 9ª”.”.
10 – A cláusula 13ª, parágrafo único estabelece que:
“O presente contrato terá a duração mínima de 60 meses”.
11 - Os Executados B… e C.. subscreveram o contrato referido em 3) na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários à Exequente de todas as quantias em dívida resultantes do contrato, tendo declarado renunciar expressamente ao benefício da excussão prévia previsto nos arts. 638º e 639º do Código Civil – cfr. documento de fls. 11 verso a 13.
12 – Para garantia do cumprimento do contrato, foi entregue à Exequente uma letra em branco, sem indicação da importância e respectiva data de vencimento, assinada, pela aceitante “F…, Lda” e pelos avalistas, os Executados B… e C… e G…, “como caução de todos os fornecimentos por esta efectuados ao aceitante bem como para garantia do cumprimento do Contrato de Compra Exclusiva com Mútuo Gratuito n.º 2003/.., celebrado entre as partes em 09 de Junho de 2003”, tendo os Executados declarado, quanto ao respectivo preenchimento, o seguinte:
“Pela Presente vêm expressamente declarar que autorizam a D…, SA a proceder ao completo preenchimento da letra e apresentá-la a pagamento ou desconta-la, ficando desde já definido que:
“I – O seu montante será o que resultar do capital em dívida, relativo a fornecimentos anteriores ou posteriores a esta data, acrescido dos juros de mora vencidos e não pagos e/ou do valor em débito resultante do incumprimento do contrato supra referido.” (…) - cfr. documento de fls. 44, que no mais se dá por integralmente reproduzido.
13 – A sociedade “F…, Lda” iniciava, em 2003, a exploração de um café denominado “E…”, sito no …, no Porto.
14 – Por escritura de cessão de quotas outorgada em 19 de Julho de 2004, o Oponente B… cedeu a quota de que era titular na sociedade “F…, Lda” ao sócio G…, nos termos constantes de fls. 14/15 que se dão por integralmente reproduzidos.
15 – O café denominado “E…” esteve em funcionamento durante cerca de um ano, após o que encerrou a sua actividade.
16 – A sociedade “F…, Lda” deixou entretanto de pagar as prestações de reembolso do mútuo gratuito à Exequente, pelo que a Exequente declarou vencidas todas as prestações vincendas do mútuo, nos termos e para os efeitos no disposto na cláusula 8ª do contrato.
17 – A Exequente, a 27.07.2004, reclamou dos Oponentes o pagamento integral da quantia mutuada e em 10 de Agosto de 2004, os Oponentes procederam ao reembolso integral à Exequente do valor do mútuo gratuito, que à data ascendia a 20.148,14€ - cfr. documentos de fls. 16 e verso que se dão por integralmente reproduzidos.
18. Por carta datada de 3 de Janeiro de 2010, dirigida aos Oponentes, a Exequente escreveu o seguinte:
“(…) Sendo V.ª Ex.ª fiador da sociedade F…, Lda, por contrato assinado em 09.06.2003, outorgado por V.ª Ex.ª, vimos informar que o mesmo contrato não foi cumprido, pelo que foi resolvido pela D….
Em consequência desta resolução contratual fica V.ª Ex.ª co-obrigado às seguintes prestações:
a) € 7.506,00, correspondente a 25% do capital, indemnização prevista no ponto IV da cláusula 9ª;
b) € 12.607,92, correspondente aos Kg não comprados (2808kg não comprados x 4,49 € = 12.607,92), indemnização prevista no ponto VI da cláusula 9ª;
Deste modo, tendo em conta que para garantia do cumprimento do contrato supra mencionado, foi aceite pelos legais representantes da sociedade F…, Lda, uma letra comercial em branco avalizada por V.ª Ex.ª, G… e por C…, com autorização de preenchimento por parte da D…, ficam desde já notificados, V. Ex., que a D… irá proceder ao preenchimento com o valor total do débito, à data da resolução do contrato. (…) – cfr. documento de fls. 17 que, no mais, se dá por integralmente reproduzido.
19. Por carta datada de 17 de Janeiro de 2011, dirigida à Exequente pelo Mandatário dos Oponentes, em resposta à carta referida no número anterior (identificada como datada de “3 de Janeiro deste ano de 2011”), os Oponentes expressam, em síntese, que o preenchimento da letra seria um acto ilícito, não só porque aquando do pagamento do mútuo gratuito lhes tinha sido dito pela Exequente que nada mais teria deles a reclamar, como também pelo facto de ter desaparecido, com o pagamento do mútuo, a obrigação de exclusividade acordada no contrato – cfr. documento de fls. 17 verso a 18 que se dão por integralmente reproduzido.
20 – A letra dada à execução não foi apresentada a pagamento aos Oponentes, nem objecto de protesto.
21 – O Oponente B… aufere o vencimento mensal ilíquido de 748,35€, acrescido de 85,40€, do qual são efectuados os seguintes descontos: 11,23€ - ADSE, 82,32€ - Segurança Social, 32,00€ - IRS, para além da penhora no valor de 237,12€ - cfr. documento de fls. 19.
22 – A letra dada à execução foi assinada em branco e posteriormente preenchida pela Exequente.
23 – A quantidade de café adquirida à Exequente pela sociedade “F…, Lda” até à data do encerramento do estabelecimento, ascendeu a um total de 192 kgs.
24 – Em Abril, Maio e Julho de 2004, o preço do quilo do café adquirido pela sociedade “F…, Lda” à Exequente era de 18,95€.*
Passemos à apreciação do mérito de recurso.
I – Os recorrentes, nas suas alegações, começam por se insurgir contra a decisão da matéria de facto, sustentando que os pontos 15 e 16 foram incorrectamente julgados. Em sua alternativa, pretendem que se considere provado o seguinte:
“O Café denominado ‘E…’ esteve em funcionamento cerca de um ano, tendo encerrado a sua actividade em finais de Agosto ou início de Setembro de 2004, mas sempre em data posterior ao pagamento integral do mútuo por parte dos avalistas”.
Nesse sentido indicam o depoimento prestado pela testemunha H…, referido no corpo das suas alegações, conjugando-o com o ponto 17 da matéria de facto, que assentou nos documentos juntos a fls. 16 e verso.
Procedemos assim à audição do depoimento da testemunha H…, vendedor da exequente “D…, SA”. Disse que o café esteve aberto mais ou menos durante um ano. Em Julho de 2004 ainda estava aberto. E mais adiante disse: “Eu fiz o Julho, Agosto, penso que em Agosto ainda estaria aberto. Não me recordo bem qual foi o dia, qual é a semana.”
Face ao teor deste depoimento, prestado por pessoa que na qualidade de vendedor da exequente visitava com frequência o café, entendemos que se impõe determinar com o rigor possível o momento em que neste cessou a respectiva actividade, o que será de situar em finais do mês de Agosto ou no início do mês de Setembro de 2004.
Assim, a redacção do nº 15 da matéria de facto provada passará a ser a seguinte:
“O café denominado “E…” esteve em funcionamento durante cerca de um ano, após o que encerrou a sua actividade em data não determinada de finais de Agosto ou do início de Setembro de 2004.”
Já a redacção do nº 16 da matéria de facto – “A sociedade “F…, Lda” deixou entretanto de pagar as prestações de reembolso do mútuo gratuito à Exequente, pelo que a Exequente declarou vencidas todas as prestações vincendas do mútuo, nos termos e para os efeitos no disposto na cláusula 8ª do contrato” – mantém-se nos seus precisos termos.
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II – Entendem também os recorrentes nas suas alegações que a sentença é nula, atendendo a que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão proferida ou que esta é, pelo menos, ambígua ou ininteligível.
No art. 615º, nº 1, al. c) do Novo Cód. do Proc. Civil estatui-se que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Esta nulidade no seu primeiro segmento – oposição entre os fundamentos e a decisão - verifica-se quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam, logicamente, conduzir não ao resultado expresso na decisão, mas sim ao resultado oposto.[1]
Sobre esta nulidade escreve o seguinte José Lebre de Freitas (in “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333): “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”
Depois, este mesmo autor (ob. cit., pág. 333, nota 48) aponta, como exemplos desta nulidade, o caso em que o juiz justifica, na fundamentação, a condenação do réu no pagamento de dívida por ele contraída, mas, sem qualquer outra explicação, o absolve ou o caso em que o juiz acolhe um fundamento de nulidade do contrato, mas acaba condenando o réu no seu cumprimento.
Já no seu segundo segmento - ininteligibilidade da decisão – e continuando a seguir o mesmo autor (ob. cit., pág. 333) esta nulidade ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal”.
Ora, da leitura da sentença recorrida o que decorre é a inexistência de qualquer contradição entre os seus fundamentos e a decisão, tal como esta se mostra perfeitamente inteligível. Com efeito, a decisão proferida surge como o resultado lógico dos argumentos que vão sendo expostos pela Mmª Juíza “a quo” e que apontam no sentido do decidido, não se vislumbrando nela qualquer ambiguidade ou obscuridade.
Por isso, a sentença não enferma da nulidade que lhe é atribuída pelos recorrentes.
O que se pode questionar é a correcção jurídica da decisão proferida pela 1ª Instância, o que nos remete já não para o terreno das nulidades de sentença, mas sim para o eventual erro de julgamento, que adiante será apreciado.
Como tal, nesta parte improcede o recurso interposto.
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III – Sustentam os recorrentes que com o pagamento integral da quantia mutuada as obrigações da sociedade “F…, Lda.” se extinguiram, não apenas quanto ao mútuo mas também no que toca à obrigação de compra exclusiva de café, uma vez que os dois contratos se encontram coligados de modo bilateral e necessário.
Tal significa que, sendo a obrigação de compra exclusiva de café a contraprestação do contrato de mútuo gratuito, a extinção deste tinha obrigatoriamente de determinar a extinção daquela contraprestação.
Vejamos então.
Como corolário do princípio da liberdade contratual consagrado no art. 405º do Cód. Civil pertence aos contraentes, não só a selecção do tipo do negócio melhor adequado à satisfação dos seus interesses, mas ainda o seu preenchimento com o conteúdo concreto que bem entendam. É-lhes possível a escolha de um dos contratos directamente previstos pelo legislador, incluindo ou suprimindo as cláusulas que queiram, ou, consoante, se declara, a celebração de contratos diferentes desses, ou, ainda, a reunião, no mesmo contrato, de regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.
Temos assim: os contratos típicos ou nominados, que a lei prevê e regula, de modo expresso, através de normas comummente supletivas, que, enquanto tais, valem no silêncio das partes (arts. 874º a 1250º do Cód. Civil); os contratos atípicos ou inominados, que as partes criam fora dos moldes daqueles; e os contratos mistos, nos quais se reúnem num único contrato as características de dois ou mais contratos tipificados.[2]
No caso “sub judice” o contrato celebrado, em 9.6.2003, entre a “D…, SA” e a sociedade “F…, Lda.” junto a fls. 10v e segs. foi denominado “contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito”.
Dele resulta que a sociedade “F…, Lda.”, para consumo no seu estabelecimento de café, se obriga a comprar à “D…, SA”, que se obriga a fornecer-lhe, pelo período de 60 meses, a quantidade mínima mensal de 50 kgs de café, lote …. Obriga-se também a não adquirir café a terceiros e a não publicitar outras marcas de café que não a da exequente (cláusulas 3ª, 4ª e 13ª, § único).
Simultaneamente, como contrapartida da exclusividade, foi ainda convencionado o empréstimo à sociedade “F…, Lda.” da quantia de 30.024,00€, sem juros, destinada à compra de equipamentos, devendo o seu reembolso ser efectuado em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, de 834,00€ cada uma (cláusulas 6ª e 7ª).
Seguindo a argumentação explanada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2009 (proc. 257/09.1YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.) dir-se-á que o contrato de fornecimento se reconduz ao acto ou ao efeito de fornecer alguma coisa, daí que, em sentido não jurídico, se possa qualificá-lo como todo aquele que tenha por objecto essa coisa ou um serviço.
E passa-se a transcrever tal aresto:
“Essa designação [contrato de fornecimento] também tem sido atribuída aos contratos geradores de obrigações duradouras em que o âmbito das prestações de cada uma das partes dependa do consumo efectivo de uma delas.
Mas o contrato que visa directamente a transmissão do direito de propriedade sobre essa coisa ou a prestação de algum serviço há-de traduzir-se em contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, conforme os casos, ainda que se trate de contratos de execução continuada ou emparelhada, com a sua especificidade de não homogeneidade quantitativa de prestações.
O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.”
No presente caso surgem-nos declarações negociais que envolvem a obrigação da ora exequente vender à sociedade “F…, Lda.”, durante 60 meses, café da marca que comercializa e da segunda lho comprar em exclusividade na quantidade mínima mensal de 50 kgs.
Mais se acordou ainda, como contrapartida da exclusividade, o empréstimo por parte da exequente a esta sociedade da importância de 30.024,00€, sem juros, destinada à compra de equipamento para o seu estabelecimento de café, empréstimo este a ser reembolsado em 36 prestações mensais.
Estamos pois perante um contrato misto e complexo, que envolve elementos próprios da compra e venda – de café, em exclusividade relativamente ao comprador – e também elementos do empréstimo comercial, onde avulta e prevalece a celebração de um contrato de fornecimento (cfr. arts. 2º, 13º, 394 e 463º, nº 1, do Cód. Comercial e 874º do Cód. Civil).[3]
Consideram os recorrentes que tendo procedido ao pagamento integral da quantia mutuada se extinguiu a obrigação de compra exclusiva de café à ora exequente, mas tal entendimento não pode ser acolhido.
A restituição antecipada da quantia mutuada apenas sucedeu porque a sociedade “F…, Lda.” deixara entretanto de proceder ao pagamento das respectivas prestações de reembolso, o que levou a exequente, nos termos da cláusula 8ª do contrato, a considerar vencidas todas as restantes prestações que se encontravam em dívida, tendo os ora recorrentes efectuado o seu pagamento integral em 10.8.2004.
Só que, lendo-se as cláusulas do contrato celebrado, logo se tem de concluir que o pagamento antecipado do mútuo não tem qualquer reflexo na obrigação assumida pela sociedade “F…, Lda.” no tocante à compra, em exclusividade, de café à exequente “D…, SA”, a qual se mantém.
Com efeito, neste âmbito, a dita sociedade assumira a obrigação de durante 60 meses comprar café, em exclusivo, à “D…, SA”, período que nem sequer coincide com o do reembolso faseado do mútuo que se deveria concretizar ao longo de tão somente 36 prestações mensais, iguais e sucessivas.
E parece-nos óbvio não ser minimamente sustentável que, decorrendo sem patologias o cumprimento do contrato, a sociedade “F…, Lda.” deixaria de ficar obrigada a comprar café, em exclusivo, à “D…, SA” logo que integralmente efectuasse o reembolso da quantia mutuada, o que se verificaria ao fim de 36 meses.
Sem qualquer dúvida que, nesse caso, essa sua obrigação – a de comprar café em regime de exclusividade à “D…, SA” – se manteria por mais 24 meses, até se perfazerem os 60 meses assinalados na cláusula 13ª - § único do contrato.
Assim, atendendo a que o reembolso integral da quantia mutuada não determina a extinção da obrigação de compra exclusiva de café à exequente, há que julgar improcedente, nesta parte, o recurso interposto.
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IV – Os recorrentes consideram depois nas suas alegações que a manutenção da cláusula de exclusividade após o reembolso integral da quantia mutuada integra o conceito de prática restritiva do comércio e até de abuso de posição dominante, pelo que sempre deveria ser declarada nula por violação do art. 4º da Lei nº 18/2003.
Ou seja, articulando o que os recorrentes escreveram nas suas alegações de recurso com o que já haviam afirmado no requerimento de oposição, entendem estes que tal cláusula de exclusividade – a 4ª – mantendo-se por um período de cinco anos, e mesmo depois do integral reembolso da quantia mutuada, representa uma restrição da liberdade negocial e da concorrência.
O art. 4º, nº 1 da Lei nº 18/2003, de 11.6.[4] [5] estabelece o seguinte:
«1 - São proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que se traduzam em:
a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda ou interferir na sua determinação pelo livre jogo do mercado, induzindo, artificialmente, quer a sua alta quer a sua baixa;
b) Fixar, de forma directa ou indirecta, outras condições de transacção efectuadas no mesmo ou em diferentes estádios do processo económico;
c) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
d) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
e) Aplicar, de forma sistemática ou ocasional, condições discriminatórias de preço ou outras relativamente a prestações equivalentes;
f) Recusar, directa ou indirectamente, a compra ou venda de bens e a prestação de serviços;
g) Subordinar a celebração de contratos à aceitação de obrigações suplementares que, pela sua natureza ou segundo os usos comerciais, não tenham ligação com o objecto desses contratos.
2 - Excepto nos casos em que se considerem justificadas, nos termos do artigo 5.º, as práticas proibidas pelo n.º 1 são nulas.»
Ora, não se vislumbra que a aposição no contrato dos autos de uma cláusula de exclusividade como o é a 4ª, bem como a sua manutenção mesmo depois do pagamento integral da quantia mutuada, colida com a proibição constante do art. 4º da Lei nº 18/2003, de 11.6, atendendo a que dos autos em nada resulta que tal cláusula impeça, falseie ou restrinja de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional.
Na verdade, para que se lograsse demonstrar que tal cláusula de exclusividade constituía uma violação das normas de concorrência, nos termos do referido diploma, sempre se impunha apurar toda uma série de factos indispensáveis nesta aferição, como sejam: qual a percentagem do mercado que este tipo de contratação absorve? Há outros contratos de natureza semelhante envolvendo o mesmo fornecedor e marca de café? Se sim, qual a sua abrangência geográfica? Há algum reflexo negativo na actividade comercial das demais empresas concorrentes neste mercado de venda de café?
Nada se sabendo de concreto sobre este tipo de questões, que serviriam para caracterizar o contexto económico subjacente ao contrato, impõe-se concluir no sentido de que não se justifica a proibição da referida cláusula de exclusividade, sendo pois de afastar a sua nulidade.[6]
Como tal, improcede ainda neste segmento o recurso interposto.
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V – Por último, os recorrentes insurgem-se também contra a aplicação no presente caso das cláusulas penais previstas no contrato, por considerarem não serem as mesmas devidas, em virtude da respectiva obrigação já estar cumprida.
Sustentam ainda o carácter usurário de tais cláusulas.
Vejamos então.
Dispõe o art. 810º, nº 1 do Cód. Civil que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível, o que se chama cláusula penal.
Por seu turno, no art. 811, nº 1 do mesmo diploma estabelece-se que «o credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação;...»
Calvão da Silva (in “Cumprimento e sanção pecuniária compulsória”, 4ª ed., págs. 247/8) define cláusula penal “como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória”.
Prosseguindo escreve o mesmo Professor que “dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio “ne varietur”, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva.”
Mais adiante (in ob. cit., págs. 254/5) escreve ainda Calvão da Silva que “...se a obrigação principal foi cumprida, pontualmente, não há dano a compensar. A cláusula penal, porque fixa a indemnização “à forfait”, não pode funcionar onde o cumprimento tenha lugar nos termos devidos. O dever de indemnizar ocupa o lugar do dever de prestar não cumprido, operando-se uma modificação objectiva do direito, considerado, todavia, pela ordem jurídica o mesmo direito, apenas modificado no seu objecto. Ora, se o dever de prestar é cumprido – dever principal e primário da prestação -, não pode haver lugar a qualquer dever de indemnizar – dever secundário e sucedâneo do dever primário de prestação; logo, fica automaticamente excluído o dever de indemnizar “à forfait” imposto pela cláusula penal.”
Regressando ao caso concreto, verifica-se que na cláusula 9ª estão previstas as cláusulas penais cuja aplicação se discute neste recurso e cuja redacção é a seguinte:
“IV) O incumprimento do presente contrato pelo 2º Outorgante, dará lugar ao pagamento por parte desta, de uma indemnização que, por acordo, se fixa em 25% da quantia mutuada.
(…)
VI) Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a violação das obrigações assumidas no presente contrato, nomeadamente as mencionadas na cláusula 4ª e 12ª, fará incorrer a 2ª Outorgante na obrigação de indemnizar a 1ª Outorgante, no montante de 4,49€ por cada quilo de café não adquirido conforme o contratualmente previsto.
§ Único: Os montantes que resultam da aplicação desta cláusula ficam abrangidos pela Fiança, sendo pago pelos Fiadores e principais pagadores, no prazo de 15 dias contados da data de comunicação pela D…, que poderá ser feita por qualquer meio.”
No caso dos autos, a exequente em 27.7.2004, em conformidade com a cláusula 8ª do contrato[7], reclamou dos executados o pagamento integral da quantia mutuada, o que estes vieram a fazer em 10.8.2004, entregando-lhe a importância de 20.148,14€.
Daqui decorre que na vertente do mútuo o contrato foi cumprido em 10.8.2004, uma vez que os aqui recorrentes, nesta data, procederam à integral restituição da quantia que fora emprestada.
Tal como já se referiu em III, o pagamento desta quantia não determina a extinção da obrigação que impendia sobre a sociedade “F…, Lda.” de comprar café, em exclusividade, à exequente, a qual se manteve.
Só que esta obrigação não foi cumprida pela referida sociedade, tendo o estabelecimento de café que explorava cessado a sua actividade em data não determinada de finais de Agosto ou do início de Setembro de 2004.
O encerramento do estabelecimento tem como consequência a imediata e automática resolução do contrato por parte da ora exequente, ficando a mesma sujeita aos efeitos consignados nos nºs IV, V e VI da atrás referida cláusula 9ª – cfr. cláusula 12ª, nº III.
Assim, com este fundamento, veio a exequente solicitar, em 3.1.2010, o pagamento das quantias correspondentes à aplicação dos nºs IV e VI da cláusula 9ª e que corresponderão no primeiro caso a 25% da quantia mutuada (7.506,00€) e no segundo caso ao montante respeitante ao café não adquirido no período contratualmente previsto calculado a 4,49€ por quilo (12.607,92€).
Não é de colocar qualquer reticência à aplicação, no presente caso, do nº VI, mas já o mesmo não se dirá no que concerne ao nº IV.
Com efeito, não se pode ignorar que os ora recorrentes em data anterior ao encerramento do estabelecimento de café, mesmo que temporalmente muito próximo desta, procederam ao integral reembolso da quantia que fora mutuada.
Significa isto que o contrato dos autos, na vertente do mútuo, foi cumprido, de tal modo que o accionamento das cláusulas penais apenas surge em virtude do encerramento do estabelecimento que leva a sociedade “F…, Lda.” a incumprir a sua obrigação de adquirir café à exequente.
Neste contexto, uma vez que a obrigação correspondente ao contrato de mútuo se mostra cumprida, não se nos afigura que um posterior incumprimento, desligado desse mútuo por se reportar ao fornecimento de café, o possa fazer “renascer” por via da aplicação de uma cláusula penal que prevê uma indemnização de 25% da quantia mutuada.
Numa visão integrada do contrato, cremos que a aplicação do nº IV) da cláusula 9ª, por reportada ao segmento do mútuo, apenas será de accionar quando também este se encontre por cumprir, o que não ocorre no caso dos autos.
Aliás, não será despiciendo sublinhar a presteza com que os recorrentes, confrontados com a notificação para o pagamento integral da quantia mutuada, o vieram fazer, tanto mais que a quantia ascendia à já significativa importância de 20.148,14€.
Em suma: Integralmente reembolsada a quantia mutuada não pode, verificando-se posterior incumprimento da obrigação de adquirir café, ser accionada cláusula penal que prevê indemnização fundada precisamente nesse mútuo.
Afasta-se pois a aplicação do nº IV da cláusula 9ª, subsistindo, em qualquer circunstância, como já atrás se referiu, o seu nº VI, por ser inequívoco o incumprimento da obrigação de comprar café à exequente que impendia sobre a sociedade “F…, Lda.”.
Como tal, o recurso interposto merecerá, neste segmento, parcial procedência, sendo eliminado o valor correspondente à aplicação do referido nº IV da cláusula 9ª, que na sentença recorrida fora fixado em 2.401,92€.
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Por último, os recorrentes no seu recurso colocam ainda a questão da natureza usurária das referidas cláusulas penais, a qual, pelo que se acabou de explanar, se encontra prejudicada no tocante à prevista no nº IV, cuja aplicação foi recusada.
E quanto à cláusula prevista no nº VI sempre estaremos perante questão nova, que não foi suscitada perante o tribunal “a quo” e que, por esse motivo, não pode ser objecto de apreciação por parte deste tribunal de recurso.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Novo Cód. do Proc. Civil):
- Um contrato de compra e venda de café, em regime de exclusividade, celebrado entre uma empresa que se dedica à comercialização e distribuição deste produto e uma sociedade que explora um estabelecimento de café e que envolve também a concessão de um mútuo pela empresa vendedora à compradora, destinado este à aquisição de equipamentos para tal estabelecimento, configura-se como um contrato misto e complexo, que incorpora elementos próprios da compra e venda e também do empréstimo comercial, onde avulta e prevalece a celebração de um contrato de fornecimento.
- Ocorrendo reembolso integral e antecipado da quantia mutuada por parte da compradora, tal não determina para ela a extinção da obrigação de adquirir, em exclusividade, café à empresa vendedora.
- Porém, integralmente reembolsada a quantia mutuada não pode, verificando-se posterior incumprimento da obrigação de adquirir café, ser accionada cláusula penal que prevê indemnização fundada precisamente nesse mútuo.
- A aposição neste contrato de uma cláusula de exclusividade - e a sua manutenção após o pagamento integral da quantia mutuada – não constitui violação das regras de concorrência.
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos opoentes/executados B… e C… e, em consequência, reduz-se a quantia exequenda para 12.607,92€ (doze mil seiscentos e sete euros e noventa e dois cêntimos).
Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento.

Porto, 11.11.2014
Eduardo Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
________________
[1] Cfr. José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1984, pág. 141.
[2] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., págs. 240/1.
[3] Cfr. também Acs. STJ de 13.11.2001, proc. 01A1123 e de 15.1.2013, proc. 600/06.5 TCGMR.G1.S1 e Ac. Rel. Porto de 17.10.2011, proc. 64/10.9 TBSJP.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Este diploma foi entretanto revogado pela Lei nº 19/2012, de 8.5.
[5] Embora aquando da celebração do contrato ainda estivesse em vigor o Dec. Lei nº 371/93, de 29.10, será de ter em atenção o regime da Lei nº 18/2003, de 11.6, face ao que se estatui na 2ª parte do art. 12º, nº 2 do Cód. Civil.
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto de 12.4.2010, proc. 8615/08.2 TBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] É o seguinte o conteúdo desta cláusula: “O não pagamento de qualquer uma das prestações na data do respectivo vencimento, implicará por si só o vencimento imediato de todas as restantes prestações que se encontrem em dívida.”