Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0816480
Nº Convencional: JTRP00042100
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
COMINAÇÃO
ORDEM LEGÍTIMA
DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
Nº do Documento: RP200901280816480
Data do Acordão: 01/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 565 - FLS 03.
Área Temática: .
Sumário: Num inquérito por crime de falsificação de documento, é ilegítima a ordem dada pelo magistrado do Ministério Público ao arguido no sentido de escrever pelo seu punho determinadas palavras, com vista a posterior perícia à letra, com a cominação de que, não o fazendo, comete um crime de desobediência
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 6480/08-1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
No Tribunal Judicial de Gondomar, nos autos de processo abreviado nº …/08.9TAGDM-J do .º Juízo Criminal, foi proferida sentença, em 28/05/2008 (fls. 106 a 112), constando do dispositivo o seguinte:
“Nestes termos e pelos fundamentos aduzidos, o tribunal decide:
a) Absolver o arguido B………. da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CP, pelo qual vinha acusado.
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Notifique.
Deposite (art. 372.º, n.º 5, do CPP).
(…)”
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Não se conformando com essa sentença, o Ministério Público dela interpôs recurso (fls. 118 a 133), formulando as seguintes conclusões:
“I- A douta sentença padece de erro na apreciação da prova produzida em sede de julgamento e erro na interpretação das normas constantes dos arts. 60, 61 nº 3-d) do Código de Processo Penal e 348 nº 1-b) do Código Penal.
II- Das declarações do arguido, retira-se que o arguido negou veemente ter sido advertido pela magistrada do Ministério Público que, caso se recusasse a tal diligência de prova (recolha da sua escrita), incorreria na prática do crime de desobediência, o que o tribunal considerou falso.
Ora, tais declarações forçosamente tinham de levar a concluir o tribunal a quo que o arguido sabia que estava obrigado a submeter-se a tal diligência, e que estava ciente que cometia o crime de desobediência, para o qual foi advertido, motivo pelo qual terá afirmado que não lhe havia sido feita qualquer advertência, quando sabia que tal não era verdade.
III- O arguido ao negar que, após a sua recusa à realização de autógrafos, foi advertido que praticava o crime de desobediência, facto que apesar da sua negação foi dado como provado, com base no auto de diligência junto aos autos e no depoimento da testemunha C………., leva à única conclusão possível que o arguido era conhecedor que o seu comportamento era contra o direito, pelo que outra decisão não se impunha ao tribunal a quo, que não o de dar como provado que o arguido sabia que estava obrigado a proceder à diligência ordenada e referida nos factos provados e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
IV- No dia 28 de Fevereiro de 2008, o arguido ficou ciente e esclarecido da ordem que lhe foi dada e da cominação que lhe foi feita, pelo que entendemos que o arguido representou como consequência possível da conduta, o cometimento do crime de desobediência. No entanto, continuou a persistir na recusa, conformando-se com aquela realização, actuando pelo menos com dolo eventual (cfr. art. 14 nº 3 do Código Penal).
V- Não se pode concordar com a fundamentação jurídico-penal da douta sentença, ora recorrida, quando se afirma que a ordem dada ao arguido é ilegítima e que nessa medida assistia ao arguido o direito legal e constitucional de se recusar a intervir na diligência probatória da recolha de autógrafos.
Ora, tal conclusão é violadora do disposto nos arts. 60, 61 nº 3-d) do Código de Processo Penal e 348º nº 1-b) do Código Penal.
VI- Nos termos do art. 61 nº 3-d) do CPP o arguido tem o dever de “sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas pela entidade competente”.
VII- O direito a não prestar declarações consagrado no art. 61 nº 1-d) do CPP é um direito específico, só se aplicando às referidas situações em que o arguido pode recusar-se a responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados, não se aplicando a qualquer outra diligência de prova em que o arguido tenha de se submeter.
VIII- Essa direito, de não prestar declarações, não abrange qualquer outra situação, para além da expressamente prevista, sob pena de esvaziamento do estipulado no art. 61 nº 3-d) do CPP.
IX- Ora, não era legítimo ao arguido recusar-se prestar autógrafos, porquanto tinha conhecimento dos seus direitos e deveres enquanto arguido, tendo pleno conhecimento que tinha que se sujeitar a diligências de prova.
X- O arguido deve sujeitar-se às diligências de prova, desde que essa sujeição não seja obtida mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas, cfr. art. 126 nº 1 do Código de Processo Penal, caso em que tal prova é proibida e ferida de nulidade.
XI- O tribunal a quo conclui que a recusa era legítima, uma vez que o arguido não tinha que contribuir para a sua incriminação, mas tal posição não é defensável atenta a estrutura do nosso processo penal. O arguido é obrigado a sujeitar-se à recolha de autógrafos, como é obrigado a submeter-se a exames, prova por reconhecimento, a ser-lhe recolhidas impressões digitais, a ser sujeito a perícias físicas, psíquicas e outras.
Todos estes meios de prova exigem uma atitude activa do arguido, que ao se sujeitar a uma prova por reconhecimento poderá incriminar-se, ao proceder a exames físicos, de DNA etc., está a contribuir activamente para a sua eventual incriminação.
XII- A situação em apreço é tudo idêntica à obrigatoriedade de sujeição a testes de pesquisa de álcool no sangue, sendo que esta imposição/obrigação é essencialmente vista com cariz probatório. A realização de tais testes são inequivocamente o modo de obter prova do crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas ou da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Se a génese da realização de testes de alcoolímetros apenas se fundasse em questões preventivas, então deviam apenas os condutores/peões ser obrigados a efectuar os testes qualitativas e não os quantitativos.
Os agentes são obrigados a submeterem-se ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado e caso recusem tal exame são punidos por crime de desobediência.
XIII- Face ao que se deixou dito, é legítima a ordem dada ao arguido para prestar autógrafos e na ausência de disposição que comine tal actuação como desobediência, foi nos termos do art. 348 nº 1-b) do Código Penal o arguido advertido que cometia o crime de desobediência ao recusar efectuar a diligência de recolha de autógrafos.
XIV- A douta decisão proferida violou o disposto nos arts. 60, 61 nº 3-d) do Código de Processo Penal e 348 nº 1-b) do Código Penal.
XV- Face ao grau de culpa do arguido, aos antecedentes criminais, às fortes exigências de prevenção geral e especial, impõe-se a aplicação de pena de prisão. Tudo ponderado, afigura-se-nos adequada a aplicação de uma pena de seis meses de prisão, porquanto é a única pena que é adequada à culpa do arguido.”
Termina pedindo a substituição da sentença sob recurso por outra que condene o arguido, pela prática de um crime de desobediência simples p. e p. no art. 348 nº 1-b) do Código Penal, por referência ao art. 61 nº 3-d) do Código de Processo Penal, na pena de seis meses de prisão.
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Na 1ª instância, o arguido B………. não respondeu ao recurso.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (fls. 155), pugnando pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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Na sentença sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
a) “Nos autos de inquérito n.°…/04.6TAGDM foram denunciados factos susceptíveis de integrar a prática do crime de falsificação de documento, tendo o arguido B………. sido constituído arguido por existirem suspeitas de ter sido agente do crime denunciado.
b) Por esta razão, foi determinado pela magistrada do Ministério Público titular do processo a sujeição do arguido à diligência de prova de recolha de autógrafos, para posterior realização do competente exame pericial.
c) Assim, em 26 de Setembro de 2007 e em 4 de Dezembro de 2007. o arguido compareceu nos Serviços do Ministério Público de Paços de Ferreira para a realização da referida diligência, tendo recusado, em ambas as situações, submeter-se à determinada recolha de autógrafos.
d) Em 07 de Janeiro de 2008, pelas 15h00, o arguido compareceu nos Serviços do Ministério Público de Gondomar para a realização da referida diligência, tendo referido pretender ser assistido por defensor, o Sr. Dr. D………., pelo que se designou o dia 22 de Janeiro de 2008 para a realização da diligência, dando-se conhecimento ao pretendido defensor, Sr. Dr D………. .
e) Atenta a impossibilidade do Sr. Dr. D………. comparecer nos Serviços do Ministério Público no dia 22 de Janeiro de 2008, a diligência foi adiada, designando-se para a realização da mesma, após várias tentativas infrutíferas de contactar o Dr. D………., então já mandatário do arguido, o dia 28 de Fevereiro de 2008, dando-se conhecimento ao mesmo da data designada.
f) Em 19 de Fevereiro de 2008, o arguido remeteu um requerimento, via fax, ao processo de inquérito n.º …/04.6TAGDM, com o seguinte teor: “B………., arguido nos presentes autos vem: Informar que não deseja proceder à recolha de autógrafos conforme V.Exa pretende. Assim sendo requer a desmarcação da diligência agendada a fls. Pela via mais expedita, a fim de evitar o transtorno do transporte do requerente a esses Serviços do MºP”, o que foi indeferido.
g) Sucede que, no dia 28 de Fevereiro de 2008, o Sr. Dr. D………., ainda que devidamente notificado, não compareceu nos Serviços do Ministério Público de Gondomar, nem justificou a sua ausência, pelo que foi nomeado como defensor oficioso ao arguido, para o acto, o Sr. Dr. E………. .
h) Contudo, não obstante estar assistido por defensor, quando lhe foi solicitado pela Magistrada do Ministério Público que procedesse à escrita das palavras “F……….”, o arguido recusou fazê-lo, dizendo que só o faria na presença do seu advogado.
i) Então, foi informado pela magistrada do Ministério Público titular do processo de que incorreria na prática de um crime de desobediência, tendo o arguido mantido a recusa.
j) Ao agir da forma acima descrita, o arguido quis obstar a que fosse realizada a diligência de recolha de autógrafos, apesar de saber que era arguido e que a diligencia havia sido determinada pela magistrada do Ministério Público titular do processo e que esta estava a praticar um acto compreendido nas suas funções.
k) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
l) O arguido está a cumprir pena de prisão há cerca de 4 anos.
m) O arguido tem os antecedentes criminais que constam do CRC de fls. 70 a 88, que aqui se dão por reproduzidos.”

E, foram dados como não provados os seguintes factos:
b) “O arguido sabia que estava obrigado a proceder à diligência ordenada e referida nos factos provados.
c) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.”

Na respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, consignou-se o seguinte:
“A convicção do tribunal quanto aos factos provados resultaram da certidão de fls. 2 a 14, a qual traduz a sequência processual provada, conjugada com o depoimento corroborante e esclarecedor da testemunha C………. (que foi o técnico de justiça auxiliar que participou nas diligência realizadas nos serviços do Ministério Público de Gondomar) e conjugada ainda com as declarações do arguido, o qual acabou por confessar o essencial dos factos provados, com excepção do facto de ter sido advertido com a cominação do crime de desobediência.
Quanto ao referido facto essencial não confessado pelo arguido, o depoimento deste não teve a virtualidade de pôr em causa o teor do auto de fls. 14 (com a força probatória prevista no art. 169.º do CPP), o qual também foi corroborado pela aludida testemunha.
Os factos não provados decorreram das declarações do arguido, o qual afirmou estar convencido de que podia recusar-se a realizar a diligência ordenada, tanto mais que até tinha sido este o entendimento da Magistrada do Ministério Público de Paços de Ferreira, onde lhe foi primeiramente solicitada a recolha de autógrafos, conjugado a interpretação jurídica infra a expor sobre os direitos e deveres do arguido. Importa salientar que, nesta parte, as declarações do arguido foram credíveis, quando é certo que, apesar de tal não resultar expressamente da certidão, a sequência processual que retrata (a recolha de autógrafos apenas foi tentada em Gondomar, porque o arguido se recusou a fazê-lo em Paços de Ferreira e nada lhe foi cominado) é susceptível de corroborar a versão do arguido, na parte em que sustenta que a Magistrada do Ministério Público de Paços de Ferreira entendia que o arguido podia recusar-se.
Os factos provados sobre as condições pessoais e antecedentes criminais do arguido resultaram das declarações do próprio e do CRC junto aos autos.”

Na fundamentação de direito escreveu-se:
“O crime de desobediência vem previsto no art. 348.º, do CP, nos seguintes termos:
“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples; ou
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 – A pena é de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.
O bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado, na perspectiva da salvaguarda da execução da actividade administrativa, evitando entraves colocados pelos destinatários.
Os elementos objectivos deste tipo de crime são: a falta de obediência, a ordem ou mandado legítimos, a emanação da autoridade/funcionário a notificação regular e, em alternativa, a existência de disposição legal que comine a punição da desobediência ou a advertência dessa punição pela autoridade/funcionário.
O elemento subjectivo traduz-se no dolo, em qualquer das suas modalidades (art. 14.º do CP).
Revertendo ao caso dos autos, no caso da recusa a proceder à recolha de autógrafos para realização de exame pericial, inexiste qualquer disposição legal que comine com o crime de desobediência, simples ou qualificada.
Restava, pois, a eventual integração do crime de desobediência simples, na modalidade prevista na al. b) do n.º 1 do art. 348.º do CP.
A incriminação prevista na al. b) do n.º 1 do art. 348.º do CP tem carácter meramente subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou ordens ou proibições, pelo que a autoridade ou o funcionário apenas podem fazer a cominação da prática do crime de desobediência quando o comportamento em causa não integre um ilícito previsto na lei para sancionar essa mesma conduta, independentemente da natureza da sanção, criminal, contra-ordenacional ou outra.
Além disso, a ordem desrespeitada tem de ser legítima, não podendo nomeadamente impor ao visado um comportamento activo ou omissivo cuja observância a lei faça depender exclusivamente da vontade deste.
Ora, no que releva para o caso dos autos, importa ter em conta que o ora arguido era de igual modo arguido, indiciado pelo crime de falsificação de documento, no âmbito do processo em que se recusou a proceder à recolha de autógrafos para exame pericial.
Sobre os deveres do arguido, dispõe o art. 61.º, n.º 3, al. d), do CPP, que recai sobre o arguido o dever de “sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente.” (negrito e sublinhado nosso).
No entanto, o facto de o arguido dever sujeitar-se a diligências de prova, numa perspectiva eminentemente passiva que ressumbra do próprio termo “sujeitar”, não significa que o arguido seja obrigado a colaborar activamente para a descoberta da verdade e para a obtenção de prova incriminadora. Aliás, pelo contrário, atentas as exigíveis garantias de defesa do arguido, na decorrência do seu direito ao silêncio consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, no art. 6.º, n.º 1, da CEDH, e no próprio art. 61.º, n.º 1, al. d), do CPP, conclui-se que não existe qualquer dever de colaboração do arguido, especialmente quando está em causa a sua incriminação (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo penal”, Universidade Católica Editora, 2007, p. 49 e 187).
Neste âmbito, importa distinguir a exigibilidade de sujeição passiva a diligência de prova, como sejam os reconhecimentos e grande parte dos exames, da exigibilidade de um comportamento activo do arguido, sendo que, enquanto aqueles, pela passividade do comportamento que lhes é inerente, não bulem com o direito do arguido a não colaborar ou contribuir para a sua incriminação, já o mesmo não sucede com as diligências que impliquem uma conduta activa do arguido, como seja, por exemplo, a notificação do arguido para apresentar documentos ou objectos (porventura a arma do crime).
No caso dos autos, a diligência ordenada ao arguido exigia um comportamento activo que seria susceptível de contribuir para a sua incriminação, pois estava em causa apurar se a imputada falsificação de um escrito teria sido realizada pelo punho do arguido.
Assim sendo, era legítimo ao arguido recusar-se a proceder à recolha de autógrafos, o que implica a ilegitimidade da ordem em sentido contrário.
Sobre situação idêntica à dos autos e com fundamentos a que se adere, expôs-se o seguinte no Ac. RL, de 30.01.1990, cujo sumário se encontra em www.dgsi.pt: “Não comete o crime de desobediência, o arguido que em julgamento, tendo-se recusado a prestar declarações, se recusa também a intervir numa recolha de autógrafos ordenada pelo Tribunal destinada a apurar se determinado documento foi por ele assinado. É que a recolha de autógrafos para se determinar se um documento, eventualmente incriminatório, foi ou não assinado pelo Réu, tem o mesmo valor que a prestação de declarações sobre a veracidade ou falsidade dessa mesma assinatura: - equivale a um especial tipo de declarações, não por via oral, mas por escrito.”.
Aliás, a Ley de Enjuiciamiento Criminal Espanhola, mais concretamente o seu art. 391.º, consagra mesmo a possibilidade de ser ordenada ao arguido a recolha de autógrafos no âmbito das declarações do arguido sobre os factos, referindo-se expressamente que não pode, para o efeito, ser utilizada qualquer tipo de coacção para o arguido proceder à dita diligência. E, neste sentido, defende-se também que o arguido se pode recusar a intervir na recolha de autógrafos, devendo inclusive ser previamente advertido desse direito (cfr. Eduardo de Urbano Castrillo, em “la prueba Ilícita Penal”, 3ª ed., Thomson – Aranzadi, 2003, p. 148).
É certo que a acção do arguido no âmbito da recolha de autógrafos pode parecer equiparável à acção daquele que intervém na realização do teste do álcool no âmbito da condução estradal, especialmente quanto à necessidade de expelir ar para o alcoolímetro, e também é certo que a jurisprudência e a doutrina se mostra maioritária no sentido da legitimidade da ordem e da punição da recusa com o crime de desobediência (confrontar, sobre esta matéria, entre outros, na jurisprudência nacional, Ac. TC n.º 319/95, e, na jurisprudência europeia, Ac. TEDH no caso Saunders v. Reino Unido, de 17.12.1996, e Ac. Tribunal Constitucional Espanhol n.º 1271/1992, de 28.09, e n.º 76/1990, de 26.04, citados por Ricardo Rodríguez Fernández, em “Derechos Fundamentales y Garantías Individuales en el Proceso Penal”, Editorial Comares, 2000, p. 568).
No entanto, quanto ao teste de verificação da condução sobre a influência do álcool verifica-se uma particularidade que o distingue claramente da diligência de recolha de autógrafos ao arguido, que se traduz no facto de aquele assumir uma natureza preventiva (cfr., neste sentido e a propósito da constitucionalidade do dito teste, Paulo Pinto de Albuquerque, em ob. cit., p. 465), enquanto que esta assume natureza exclusivamente probatória.
Destarte, reitera-se a conclusão de que, assistindo ao arguido o direito legal e constitucional de se recusar a intervir activamente na diligência probatória de recolha de autógrafos, a ordem que lhe imponha esta intervenção, contra a sua vontade, não é legítima.
Por conseguinte, a falta de legitimidade da ordem implica o não preenchimento de um dos elementos típicos objectivos essenciais do crime de desobediência pelo qual o arguido vinha acusado.
Deve, pois, o arguido ser absolvido.”
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O recurso interposto pelo Ministério Público, demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412 nº 1 do CPP), suscita a apreciação das seguintes questões:
1º- Averiguar se há erro de julgamento quanto aos factos dados como não provados uma vez que, na perspectiva do recorrente, a prova produzida em julgamento (conjugando as declarações do arguido com o depoimento da testemunha) permitia decisão contrária, no sentido de serem tais factos dados como provados;
2º- Apurar se existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito uma vez que, na perspectiva do recorrente, a ordem dada ao arguido (de proceder à escrita de determinadas palavras sob cominação de incorrer em crime de desobediência, no âmbito de investigação de crime de falsificação de documento, em cujo inquérito existiriam suspeitas de o mesmo ter sido agente desse crime denunciado) era legítima, pelo que a sua recusa dolosa (decorrendo, na sua perspectiva, das alíneas g) e K) dadas como provadas que o arguido agiu com dolo eventual quando desobedeceu à ordem que lhe foi dada em 28/2/2008, pelo Ministério Público nos respectivos Serviços de Gondomar) o fez incorrer no crime de desobediência (art. 348 nº 1-b) do CP), devendo ser condenado na pena de 6 meses de prisão.
Passemos então a conhecer das questões colocadas.
1ª Questão
Como se verifica dos autos, procedeu-se à documentação (por meio de gravação em CD) das declarações e depoimento prestados oralmente em audiência de julgamento, encontrando-se junto aos autos o respectivo suporte magnético.
Ainda que de forma pouco modelar, percebe-se que o recorrente considera incorrectamente julgados os factos que foram dados como não provados, uma vez que, na sua perspectiva, perante as provas que indica, impor-se-ia decisão diversa (deviam dar-se como provados aqueles factos ao contrário do decidido), concluindo, assim, pela modificação da matéria de facto.
Consideramos, pois, que o recorrente cumpriu minimamente os ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, indicados no art. 412 nºs 3 e 4 do CPP, não lhe podendo ser imputado o não cumprimento integral do estabelecido no art. 412 nº 4 do CPP uma vez que, na própria acta da audiência, não foi cumprido (como devia ter sido) o disposto no art. 364 nº 2 do CPP.
Atentos os poderes de cognição das Relações (art. 428 do CPP), uma vez que a prova produzida em audiência de 1ª instância foi gravada, pode este tribunal conhecer da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Mas, convém aqui lembrar que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”[1]
Ou seja, a gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto[2].
Os elementos de que esta Relação dispõe, no caso em apreço, são apenas a gravação da prova produzida oralmente em audiência na 1ª instância e a prova documental junta aos autos, aludidas na motivação de facto da sentença sob recurso.
Assim, não obstante os seus poderes de sindicância quanto à matéria de facto, a verdade é que não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas.
O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é «colhido directamente e ao vivo», como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª instância.
É que, a credibilidade das provas (o seu mérito ou desmérito) e a convicção criada pelo julgador da 1ª instância «tem de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores»[3], fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento, «onde para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[4].
Posto isto, não esquecendo que o princípio da livre apreciação da prova (art. 127 do CPP) também se aplica ao tribunal da 2ª instância, importa “saber se existe ou não sustentabilidade na prova produzida para a factualidade dada como assente, e que é impugnada, sendo que tal sustentabilidade há-de ser aferida através da verificação da existência de prova vinculada, da verificação da existência de erros sobre a identificação da prova relevante e da constatação da inconsistência mínima de certo facto perante uma revelada fonte que o suporta”[5].
E, claro, há que ter presente que, com as provas “pretende-se comprovar a realidade dos factos”, ou seja, pretende-se “comprovar a verdade ou a falsidade de uma proposição concreta ou fáctica”[6], criar no juiz um determinado convencimento.
Produzidas as provas em audiência de julgamento, o julgador terá de as apreciar, com vista à sua valoração.
Para esse efeito vai desencadear dois tipos de juízos ou operações que estão intimamente relacionados entre si: o primeiro tem a ver com a interpretação das provas e, o segundo com a valoração propriamente dita dessas mesmas provas[7].
O que implica um exercício de comparação (entre, por um lado, os factos alegados pela acusação e pela defesa e, por outro, as afirmações instrumentais, decorrentes das provas produzidas, que se reputaram como certas e reais) que irá conduzir a uma necessária dedução de factos (dedução de um facto a partir de outro ou outros factos que se deram previamente como provados através do referido exercício de comparação)[8].
Quando procede à apreciação das provas, o julgador está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática e do funcionamento do princípio da livre apreciação da prova (art. 127 do CPP), bem como das respectivas “excepções” ou limitações.
A decisão sobre a matéria de facto há-de ser, assim, “o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz”[9].
Pois bem.
O recorrente argumenta que o tribunal da 1ª instância errou na apreciação que fez das declarações prestadas pelo arguido em julgamento, articuladas com o depoimento prestado pela testemunha por, no seu entender, das mesmas resultar prova bastante para dar os factos que impugna como provados.
Os factos que impugna, que foram dados como não provados, são os seguintes:
- que o arguido sabia que estava obrigado a proceder à diligência ordenada e referida nos factos provados;
- e que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Vejamos então.
Sustenta o recorrente que, nas declarações que prestou em julgamento, quando o arguido alegou, como motivo de recusa para proceder à realização de autógrafos, perante a Magistrada do Ministério Público, em 28/2/2008, nos serviços de Gondomar, que “só o faria eventualmente na presença do seu advogado”, isso forçosamente leva a concluir que sabia que estava obrigado a submeter-se a tal diligência e que estava ciente que cometia o crime de desobediência para o qual fora regularmente advertido.
Acrescenta que, só por saber que cometia esse crime, é que o arguido nas declarações que prestou em julgamento, procurou convencer o tribunal que não fora advertido que a sua recusa o faria incorrer em crime de desobediência.
Daí concluiu que, as declarações do arguido, articuladas com o depoimento da testemunha C………. (que teria confirmado que o arguido fora advertido que com a sua recusa cometia o crime de desobediência), eram prova bastante para dar como provados os factos que impugna (que foram dados como não provados).
Porém, lendo os segmentos das declarações que imputa ao arguido e, bem assim, à referida testemunha, não é possível acompanhar o recorrente, quando invoca que houve erro na apreciação dos factos que impugna, por (na sua perspectiva) “as declarações do arguido terem sido erradamente julgadas.”
Com efeito, o recorrente incorre em erro de raciocínio quando procura convencer (de acordo com a sua perspectiva subjectiva e pessoal da prova produzida em julgamento) que a alegação do arguido, no sentido de só proceder à realização de autógrafos eventualmente na presença do seu advogado, apenas podia significar que sabia estar obrigado a submeter-se àquela diligência, sob pena de incorrer no crime de desobediência, razão pela qual veementemente negou que lhe tivesse sido feita qualquer advertência.
O erro de raciocínio consiste precisamente em não haver o pretendido nexo causal entre, por um lado, a alegação de que só procederia à realização dos escritos (autógrafos) eventualmente na presença do seu advogado e, por outro lado, o alegado desconhecimento (que para o recorrente significaria, pelo contrário, conhecimento) de que era obrigado a submeter-se à diligência pretendida, sob pena de incorrer em crime de desobediência.
Não pode o recorrente ignorar que, na versão do arguido, a sua recusa (quer em prestar declarações no inquérito, quer em escrever o que lhe fora solicitado, nos Serviços do Ministério Público em Paços de Ferreira e na presença da Magistrada do Ministério Público, nos Serviços de Gondomar, em 28/2/2008) assentava no convencimento de que estava a exercer direitos que lhe assistiam, enquanto sujeito processual (convencimento esse que era “confortado” pela própria posição do Ministério Público de Paços de Ferreira que, na versão do arguido, não concordaria com aquela cominação constante da deprecada enviada pelos Serviços do Ministério Público de Gondomar e, portanto, o teria informado que não era obrigado a prestar autógrafos).
Por isso, era até indiferente que o arguido negasse ter sido advertido (que se persistisse na recusa de escrever o que lhe fora solicitado incorria em crime de desobediência) nos Serviços de Gondomar, em 28/2/2008.
Daí que, a alegação de “só proceder à realização de autógrafos eventualmente na presença do seu advogado” não permite deduzir (como pretende o recorrente) que o arguido soubesse que estava “obrigado” a submeter-se à diligência pretendida, sob pena de incorrer em crime de desobediência (ou que soubesse, como alega o recorrente, que com a sua recusa adoptava “conduta proibida e punida por lei”).
Independentemente de o tribunal não ter acreditado naquelas declarações do arguido quando negou ter sido advertido, em 28/2/2008, de que a sua recusa o faria incorrer em crime de desobediência (e o tribunal não acreditou porque, como refere na fundamentação de facto da sentença sob recurso, isso era claramente contrariado pela prova documental constante de fls. 14 - com a força probatória prevista no art. 169 do CPP -, a qual foi corroborada pelo depoimento da dita testemunha, provas estas que, nesse aspecto, o convenceram, não tendo sido infirmadas pelas ditas declarações do arguido), o certo é que, no mais (quanto ao que declarou, relativamente ao seu convencimento de estar a exercer um direito que lhe assistia, enquanto arguido naquele inquérito onde se investigava o crime de falsificação de documento), já o julgador aceitou a sua versão, pelos motivos que indicou, razão pela qual deu como não provados os factos impugnados.
Ora, ouvindo a prova oral produzida em julgamento (sendo certo que o arguido apenas quis prestar declarações após a inquirição da testemunha, o que foi feito na sua presença), verificamos que:
- por um lado, a testemunha C………. (técnico de justiça auxiliar nos Serviços do Ministério Público de Gondomar, que esteve presente e participou na diligência a que se refere fls. 14, ocorrida em 28/2/2008), confirmou que, na diligência efectuada nos Serviços do Ministério Público de Gondomar, em 28/2/2008, o arguido foi advertido pela Srª. Magistrada que incorria em crime de desobediência e mesmo assim recusou-se a prestar os autógrafos; e,
- por outro lado, o arguido sustentou que naquele inquérito (que teve origem em certidão extraída de processo de execução, no qual se investigava um crime de falsificação de documento e que acabou por ser arquivado – o que é confirmado pelo teor da certidão junta aos autos, v.g. fls. 25 a 37), foi constituído arguido, recusando-se a prestar declarações e autógrafos por entender que eram direitos que lhe assistiam na sua qualidade de sujeito processual (direitos que conhecia por ter formação jurídica – sendo certo que da procuração junta a fls. 8 consta que é advogado, o que significa que é licenciado em Direito), o que também lhe fora confirmado pela Magistrada do Ministério Público de Paços de Ferreira (quando se deslocou àqueles Serviços), que lhe teria dito que, apesar de na carta precatória ser pedida que fosse feita a cominação do crime de desobediência, como não concordava com isso, o arguido faria o que entendesse (por não ser obrigado a prestar autógrafos), alegando, ainda, quanto ao que se passou em Gondomar, naquele dia 28/2/2008, que se eventualmente tivesse de fazer a diligência, só o faria na presença do seu advogado e não na presença de um defensor oficioso, não tendo sido advertido de que incorria em crime de desobediência pela sua recusa (acrescentando, igualmente, que se tivesse sido advertido, só o faria na presença do seu Advogado, se tivesse instruções para isso).
Ou seja, quanto aos factos dados como não provados, tal como consta da fundamentação da sentença sob recurso, por um lado, a própria certidão junta ao processo não contraria o que o arguido alegou relativamente ao que se teria passado nos Serviços do Ministério Público de Paços de Ferreira (antes de ser convocado para ir a Gondomar) e, por outro lado, nos autos relativos às duas diligências realizadas em Paços de Ferreira (na sequência da dita carta precatória enviada pelos Serviços do Ministério Público de Gondomar que, todavia, não está integralmente documentada nos autos), não há referência a qualquer cominação de que a recusa o faria incorrer em crime de desobediência, o que sustentava a versão verbalizada pelo arguido quanto ao entendimento da Magistrada do Ministério Público de Paços de Ferreira.
Daí que, ouvindo as declarações do arguido e o depoimento da testemunha e, articulando-os também com a apontada prova documental, podia o julgador formar a sua convicção, como formou, no sentido da decisão que proferiu sobre a matéria de facto.
Por isso, ao contrário do que diz o recorrente, a prova produzida em julgamento não permite dar como provados os factos que impugna.
Não há, assim, qualquer erro de julgamento, não merecendo censura a decisão proferida sobre a matéria de facto.
O tribunal da 1ª instância fez o exame crítico de todas provas produzidas e examinadas em audiência, as quais sustentam a sua decisão, estando explicitado, de forma transparente e clara, o processo lógico e racional seguido na apreciação da prova, tendo sido observado o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do CPP.
Esqueceu o recorrente que o que é relevante é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, e não a sua (do recorrente) convicção pessoal[10].
Lendo a fundamentação de facto da decisão sob recurso, não existe qualquer violação do disposto no art. 127 do CPP.
O que sucede, portanto, é que o recorrente quer substituir-se ao tribunal, quando pretende impor a sua própria apreciação (subjectiva e parcial) de parte da prova produzida em julgamento.
Por isso, não há motivos para modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
De resto, verificado o texto e o contexto da decisão não se detecta qualquer dos vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP, que são de conhecimento oficioso.
A apreciação feita pelo julgador não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Também não há distorções de ordem lógica, nem foi feita qualquer apreciação que seja ilógica, arbitrária, incongruente ou insustentável.
Em suma: improcede a argumentação do recorrente quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e quanto ao alegado erro de apreciação da prova, v.g. das declarações prestadas pelo arguido em julgamento.
Assim, não se verificando qualquer dos vícios aludidos no art. 410 nº 2 do CPP, nem ocorrendo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, está definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto, acima transcrita, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada.
2ª Questão
Invoca, ainda, o recorrente que existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito uma vez que, na sua perspectiva, a “ordem” dada ao arguido (escrever determinadas palavras, com vista à recolha de autógrafos, sob cominação de, se não o fizesse, incorrer em crime de desobediência, ordem essa dada no âmbito de investigação de crime de falsificação de documento, em cujo inquérito existiriam suspeitas de o mesmo ter sido agente desse crime denunciado) era legítima, pelo que a sua recusa dolosa (decorrendo, na sua perspectiva, das alíneas g) e k) dadas como provadas que o arguido agiu com dolo eventual quando desobedeceu à ordem que lhe foi dada em 28/2/2008, pelo Ministério Público nos respectivos Serviços de Gondomar), o fez incorrer no crime de desobediência (art. 348 nº 1-b) do CP), devendo ser condenado na pena de 6 meses de prisão.
Vejamos.
Lendo a fundamentação de direito constante da sentença sob recurso, verifica-se que o tribunal da 1ª instância concluiu que a “ordem” dada pelo Ministério Público de Gondomar, na diligência realizada em 28/2/2008, era ilegítima, na medida em que aquele Magistrado não podia exigir (impor) ao arguido a sujeição a uma conduta activa (com o fim de obter prova), estando por isso justificada (por ser legítima) a sua recusa em colaborar para a sua própria incriminação, equivalendo essa atitude (de recusar intervir na recolha de autógrafos) ao exercício do direito de não prestar declarações por via escrita (invocando, para tanto, o decidido no Ac. do TRL de 30/1/90, proferido no processo nº 0004755, relatado por Sá Nogueira, cujo sumário foi consultado no site indicado).
Nessa medida, por falta de um dos pressupostos do crime de desobediência imputado ao arguido (por a ordem dada ser ilegítima), decidiu pela sua absolvição.
Importa, por isso, apurar, em primeiro lugar, se aquela “ordem” dada pelo MP ao arguido em 28/2/2008 era ou não legítima.
E isto, porque ao arguido foi imputado um crime de desobediência p. e p. no art. 348 nº 1-b) do CP.
Dispõe o citado art. 348 do CP (que não sofreu qualquer alteração com a entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9[11]):
1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
Na falta de disposição legal que puna a conduta do arguido (de, nos Serviços do Ministério Público, em 28/2/2008, se recusar a escrever o que lhe fora ditado pela Magistrada do Ministério Público, no âmbito de inquérito em que se investigava crime de falsificação de documento, no qual um dos suspeitos era o próprio arguido, já constituído como tal) como crime de desobediência, o pretendido “dever de obediência” apenas poderia existir se assentasse em “ordem legítima” emitida pelo Ministério Público (titular daquele inquérito e, portanto, autoridade judiciária competente), que lhe tivesse sido regularmente comunicada.
É que visando o crime de desobediência proteger a “autonomia intencional do Estado”[12], isso significa que o tipo legal pressupõe (nesta vertente aqui em questão, isto é, na falta de disposição legal que impusesse aquela conduta ao arguido[13]) desde logo que a Autoridade ou funcionário competente (que representam o Estado) tivesse dado (e regularmente comunicado ao respectivo destinatário) uma “ordem” legítima.
Só uma ordem ou mandado “legítimos” podem gerar um dever de obediência.
Foi dado como provado que, naquele acto processual, após o arguido se recusar a escrever as palavras “F……….”, o Ministério Público “informou-o” de que incorreria na prática de crime de desobediência, tendo o arguido mantido a recusa.
Mas será que a “ordem”[14] (a aceitar-se que aquela “informação”, nos moldes em que foi prestada, era bastante[15] para considerar que integrava e pressupunha uma “ordem regularmente comunicada”, acompanhada da correspondente advertência), emitida pelo Ministério Público, no exercício das suas funções de titular daquele inquérito, era legítima e, nessa medida, o arguido devia-lhe obediência, por lhe ter sido regularmente comunicada?
Ou será que era antes uma ordem ilegítima e, portanto, o arguido tinha o direito de resistir (art. 21 da CRP[16]), o que justificava a sua atitude/conduta dada como provada (de manter a recusa de escrever aquelas palavras e outras que lhe fossem determinadas)?
Estando em causa o crime de desobediência previsto no art. 348 nº 1-b) do CP, o tribunal teria que:
- em primeiro lugar analisar se aquela concreta acção (recolha de autógrafos) podia ser exigida, imposta ao arguido (sujeito processual que goza de determinados privilégios), atento o fim a que se destinava (realização de perícia à escrita, meio de prova que poderia vir a sustentar acusação contra o arguido pelo crime de falsificação de documento denunciado e em investigação);
- caso concluísse afirmativamente (que podia ser imposta a recolha de autógrafos pretendida, recaindo sobre o arguido a obrigação de a ela se sujeitar), teria, em segundo lugar, de ponderar se, não cumprindo o arguido o que lhe fora determinado, essa conduta assumia significado[17] e relevância bastante para merecer censura penal (através da advertência de incorrer em crime de desobediência, caso persistisse na recusa em prestar autógrafos).
Repare-se que o MP pretendia que o arguido escrevesse aquele nome e, por certo, outros dizeres (de forma repetida e de acordo com as indicações que são conhecidas para a recolha de autógrafos, para viabilizar a realização da respectiva perícia, sob pena de, se assim não fosse, não ter qualquer utilidade aquela diligência), para dessa forma poder ordenar a realização de perícia à escrita, o que eventualmente lhe poderia permitir mais facilmente descobrir o autor (se era o próprio arguido) do crime de falsificação de documento que investigava.
Ou seja, a “ordem” do MP foi dirigida ao arguido (exigindo-lhe um determinado comportamento activo, sem o qual não conseguiria recolher autógrafos), já constituído como tal, visando obter, com a sua colaboração, um meio de prova (o que, porém, acabou por não ser possível e, na falta de provas recolhidas, conduziu ao arquivamento daquele inquérito).
Assim sendo, compreende-se que seja essencial saber se, no âmbito de uma investigação criminal, o sujeito que já tem o estatuto de arguido e, portanto, beneficia de todos os direitos e deveres correspondentes a essa qualidade processual (cf. artigos 60 e 61 do CPP), pode ser submetido/obrigado a este tipo de diligência - recolha de autógrafos - que voluntariamente não quer fazer ou prestar.
O estatuto de arguido, pressupõe que se está na presença, como diz Figueiredo Dias[18], de um sujeito processual armado com o seu direito de defesa, cuja utilização como meio de prova está “sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade”, o que igualmente pressupõe que seja dotado «de uma vontade livremente formada e esclarecida, expressão da própria personalidade»[19].
Assim, se o arguido não colabora na pretendida recolha de autógrafos (recusa-se a prestar autógrafos), coloca-se a questão de saber se o Ministério Público (enquanto titular do inquérito, cuja atitude “não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade”[20], como também decorre do art. 53 nº 1 do CPP) podia sancionar essa recusa com a cominação do crime de desobediência.
Mas, previamente importa determinar se ao arguido podia ser exigida a prestação de autógrafos, tanto mais que inexiste disposição expressa que o obrigue a sujeitar-se a essa concreta diligência e que regule a consequência da eventual recusa[21].
Por isso, importa perguntar, até que ponto, na falta de disposição legal expressa nesse sentido (falta de disposição legal expressa que obrigasse o arguido a prestar autógrafos e que censurasse a persistência na recusa com o crime de desobediência), o Ministério Público podia censurar aquela conduta, fazendo ele a cominação em falta?
Não seria essa uma forma de “coagir”/obrigar o arguido a fornecer provas que contribuíssem para a sua incriminação?
Ou então não se trataria de uma forma de sancionar o arguido por exercer o direito de não contribuir para a sua auto-incriminação?
O artigo 60 do CPP, ao assegurar, a quem tem a qualidade de arguido, o exercício de direitos e deveres processuais, ressalva, nomeadamente, “a efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei”.
E, segundo o artigo 61 nº 3-d) do CPP, recai em especial sobre o arguido o dever de “sujeitar-se a diligências de prova (…) especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente.”
Mas, esse dever de sujeição a diligências de prova abrange todo e qualquer tipo de provas legalmente admissíveis nos termos do art. 125 do CPP[22]?
Ao contrário do recorrente, podemos responder que não, uma vez que aquelas normas (arts. 60 e 61 nº 3-d) do CPP) se referem a diligências de prova que estejam “especificadas na lei”.
Para além disso, o Ministério Público sempre poderia ter tentado obter documentos manuscritos pelo arguido, através da sua apreensão, se necessário com a realização de busca autorizada pela autoridade judiciária competente (tanto mais que o arguido, como advogado, por certo teria escritório), ordenando depois a competente realização da perícia à escrita.
A recolha de autógrafos não era a única forma de o Ministério Público obter elementos para solicitar a pretendida perícia à escrita, embora fosse a mais fácil.
Daí que, também se possa questionar até que ponto o Ministério Público não deveria - face à oposição do arguido manifestada anteriormente a 28/2/2008 - mudar a estratégia de investigação para, por outra via (v.g. através da apreensão de documentos produzidos pelo arguido, o que não foi feito, nem tentado), obter elementos que viabilizassem a realização da dita perícia à escrita.
No entanto, essa interrogação não resolve o problema e a questão não deixa de ser delicada, desde logo face aos valores em conflito:
- por um lado o interesse público da prevenção, investigação e repressão da criminalidade, bem como o interesse da vítima do crime, cujos direitos foram restringidos, aos quais se associa o desígnio da eficácia da investigação;
- e, por outro, o direito à integridade pessoal, o direito à autonomia pessoal, o direito à dignidade humana, que representam também a própria personalidade da pessoa afectada com a diligência em questão.
Claro que sempre se pode dizer que a “recolha de autógrafos” não envolve qualquer invasão da intimidade do visado e, portanto, não tem potencialidade lesiva.
De qualquer modo, isso não significa que o arguido tivesse a obrigação de a ela (recolha de autógrafos) se sujeitar, tanto mais que essa concreta diligência de prova não está especificada na lei.
E, essa especificação na lei (que sempre terá de ser exigida), não pode retirar-se do próprio art. 61 nº 3-d) do CPP, como pretende o recorrente (isso significava “dar por demonstrado o que se pretende demonstrar”, como se escreve no Ac. do TC nº 155/2007).
A delicadeza da situação sobressai quando, associando a ideia de que o arguido goza do privilégio de não contribuir para a sua incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), se pode defender que, na falta de disposição legal que regule especificamente a imposição de recolha de autógrafos, a resposta a dar será a de o arguido não ter qualquer obrigação de colaborar na investigação do crime de falsificação de documento denunciado, tal como não pode ser censurada a sua oposição (quando não quer prestar autógrafos).
Ou seja: concluindo-se que não podia ser imposta coactivamente a recolha de autógrafos, também não existia a obrigação de o arguido a ela se submeter, o que aponta igualmente para a impossibilidade de o Ministério Público poder estabelecer a cominação do crime de desobediência para a recusa àquela tipo de diligência, o que tudo se reconduz à ilegitimidade da “ordem” dada.
Isto, independentemente dos motivos (v.g. porque afinal até foi ele o autor do crime que se investiga) que levaram o arguido a recusar prestar autógrafos.
Será que ainda assim se pode defender que, o disposto nos artigos 60 e 61 nº 3-d) do CPP comporta a obrigação/dever para o arguido de se sujeitar à recolha de autógrafos contra a sua vontade e nessa medida torna “legítima” a ordem que lhe foi dada?
Mesmo que o recorrente não concorde, não podemos esquecer que aqui, a recolha de autógrafos implica uma acção positiva do arguido (contra a sua vontade), que não se confunde com “o mero tolerar passivo da actividade de terceiro”[23], v.g. que decorre da execução de decisão de juiz a “compelir” à sujeição a exame, tal como hoje se prevê expressamente no art. 172 nºs 1 e 2 do CPP (estabelecendo-se ainda que é correspondentemente aplicável o disposto no nº 2 do art. 154 e nos nºs 5 e 6 do art. 156 do mesmo código).
Repare-se que, actualmente, quando se trata da sujeição a exame nos termos do art. 172 nº 2 do CPP ou da submissão a perícia nos termos do art. 154 nº 2 do CPP - ambos da competência exclusiva do juiz de instrução (art. 269 nº 1-a) e b) do CPP) - o legislador não estabeleceu cominação em caso de eventual recusa, podendo continuar a discutir-se até que ponto a autoridade judiciária competente pode censurar essa recusa através do procedimento previsto no art. 348 nº 1-b) do CP ou, então, até se pode impor, pelo uso da força física, a execução desse tipo de decisão judicial (cf. também art. 126 nº 2-a) e c) do CPP).
Noutras situações, o legislador estabeleceu a cominação para a pessoa que recusa, que se opõe à submissão a determinadas diligências.
É o que sucede, por exemplo, quando alguém recusa submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas (punido por crime de desobediência – ver art. 152 nº 3 do CE)[24], ou quando, em determinadas circunstâncias, alguém recusa submeter-se a revista ou perícia autorizada nos termos do art. 53 nº 3 do DL nº 15/93 de 22/1 (no âmbito da prevenção e investigação do tráfico de estupefacientes, o referido artigo 53, além de prever no seu nº 3 que, na falta de consentimento do visado, a realização da revista ou perícia - necessárias quando houver indícios de que alguém oculta ou transporta no seu corpo estupefacientes ou substâncias psicotrópicas - depende de prévia autorização da autoridade judiciária competente, criou uma incriminação específica no seu nº 4, para quem, depois de devidamente advertido das consequências penais do seu acto, se recusar a ser submetido a revista ou perícia autorizada nos termos do nº 3 do mesmo artigo).
Precisamente porque o legislador, na sua liberdade de conformação, fez uma opção de política criminal, que consiste em punir, dessa forma (com o crime de desobediência ou com incriminação específica), esse tipo de recusa é que se pode deduzir que continua a ser discutível o uso da força física (ainda que na medida estritamente necessária à execução daquele tipo de actos) ou de coacção para a execução desse tipo de diligências de prova, quando o visado não colabora e se opõe (é que se fosse admissível o uso da força física não faria sentido admitir a possibilidade de recusa, nem tão pouco se justificava a punição dessa recusa com o recurso ao crime de desobediência ou através de incriminação autónoma, desde logo por ser excessivo).
Compreende-se, assim, que não é pelo facto de não ter sido alterada a redacção do nº 1 do art. 172 do CPP (v.g. no segmento em que estabelece que o visado “pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”[25]) que se pode passar a defender sem mais (tal como terá sustentado Rui Pereira, segundo Pedro Verdelho[26], que adere a essa perspectiva quando acrescenta “argumento sistemático”, adiantando que “não faz sentido consagrar a possibilidade de alguém ser compelido a fazer um exame sem que isso signifique, quanto a exames físicos, poder ser compelido pela força”) a admissibilidade da execução de decisão de autoridade judiciária através da utilização de força física[27] (que, aliás, nem sempre será o meio adequado para executar a decisão, como é disso exemplo, o caso da recolha de autógrafos).
De qualquer modo, neste caso particular (recolha de autógrafos) cremos que, na prática, seria impossível obter, mesmo com uso de força física (ainda que usada de forma proporcional), os autógrafos necessários à realização da perícia pretendida.
Isto para mostrar que, independentemente de ser ou não admissível executar decisão da autoridade judiciária competente através da utilização de força física[28], o legislador também não quis punir (v.g. com o crime de desobediência) a atitude do arguido ou do visado que recuse a colaboração necessária para a execução da diligência de prova aqui em questão (recolha de autógrafos para posterior realização de perícia à escrita).
O que também realça que não caberia na intenção do legislador obrigar/sujeitar o arguido a todas e quaisquer diligências de prova (sendo, por isso, sustentável a tese de o arguido não poder ser obrigado a submeter-se a recolha de autógrafos, em casos semelhantes ao destes autos) e muito menos censurar a sua oposição com o crime de desobediência na modalidade prevista no art. 348 nº 1-b) do CP.
Tudo melhor se compreendendo quando se olha para o arguido como sujeito processual, não o transformando (como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira) em meio de prova contra si próprio[29].
E, isto independentemente da interpretação que se fizer, mais ou menos restritiva, do privilégio que o arguido tem de não contribuir para a sua incriminação[30] (desde a visão mais minimalista, com a sua limitação à prestação de declarações no seu sentido literal até à visão mais maximalista de o admitir em relação a qualquer meio de prova).
É que mesmo quando se restringe o privilégio contra a auto-incriminação ao direito de não prestar declarações, não se pode esquecer que este (o direito ao silêncio) se fundamenta na ideia de que o arguido não é obrigado a incriminar-se e, por isso, não tem (ao menos nessa vertente) qualquer dever de colaborar com o Estado, enquanto titular do ius puniendi.
Esse direito ao silêncio do arguido acompanha-o, por exemplo, quando é ouvido como testemunha nos termos do art. 133 nº 2 do CPP (sendo para o proteger que existe a advertência contida nessa norma[31]), havendo algum consenso na doutrina[32] que deve também abarcar a não obrigatoriedade da entrega de prova documental.
Claro que no Corpus Juris (projecto que partiu de uma iniciativa da Comissão Europeia, lançada em 1995, que esteve a cargo de um grupo de investigadores, sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, visando congregar vários princípios comuns em matéria de protecção penal dos interesses financeiros da União Europeia), estabelecia-se, nos arts. 31 nº 2 e 32 nº 1-e)[33], a obrigatoriedade do acusado exibir certos documentos, o que constituía excepção ao seu direito (também ali consagrado) de não contribuir directa ou indirectamente para sua própria culpabilidade.
Essa excepção existia para os acusados (por regra “empresas ou indivíduos actuando na qualidade de representantes ou titulares dessas empresas”[34]) por crimes contra os interesses financeiros da União Europeia, ali previstos nos artigos 1 a 8.
Atenta a natureza desses crimes (que visavam acautelar os referidos interesses financeiros da UE) percebe-se o interesse no estabelecimento dessa excepção quanto à prova documental (basta pensar como a prova documental é essencial, fulcral na investigação e demonstração desse tipo de crimes, associada depois à realização de competentes e qualificadas perícias).
No entanto, essa obrigatoriedade para o arguido/acusado de entregar documentos (contribuir para a sua incriminação com a entrega de prova documental, apesar de gozar do direito ao silêncio) tem sido discutida mesmo a nível da jurisprudência do TEDH[35].
É certo que, no Ac. do TEDH de 17/12/1996, proferido no caso Saunders contra o Reino Unido[36], sustentou-se que o direito de não se auto-incriminar relaciona-se com o respeito do direito do arguido de guardar silêncio, entendendo-se comummente (nos sistemas jurídicos das Partes contratantes da Convenção), que esse princípio não se estende ao uso, no processo penal, de dados que se podem obter do acusado, recorrendo a poderes coercivos, e que existem independentemente da vontade do suspeito, como por exemplo (…), a recolha coerciva de amostra de cabelo, de sangue e de urina, assim como de tecidos corporais tendo em vista uma análise de ADN.
No entanto, o mesmo Tribunal, em Ac. de 3/5/2001, no caso J. B. contra a Suiça, refere que (usando as palavras de Vânia Costa Ramos[37]) “ao contrário da obrigação de instalar um tacógrafo nos camiões ou de se submeter a uma análise de sangue ou à urina, referidas pelo Tribunal Federal Suíço como exemplo de obrigações permitidas, o caso em questão não envolve a obrigação de providenciar materiais da natureza dos referidos no acórdão Saunders. Isto é, os documentos sobre os investimentos levados a cabo pelo investigado não têm a natureza de dados que «existam independentemente da pessoa obrigada e que, por isso, não são obtidos por meios coercivos e em violação da vontade dessa pessoa»”.
E, não há dúvidas que são diferentes (por não haver semelhança ou identidade) - o que justifica um tratamento diferenciado - o acto de recolher autógrafos e o acto de recolher uma amostra de um qualquer “produto” corporal para realizar uma análise de ADN.
Igualmente (ao contrário do que pretende o recorrente) é diferente o acto de recolha de autógrafos e a obrigatoriedade de sujeição a provas para detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas, independentemente da finalidade dessas provas (cariz preventivo e/ou cariz probatório).
Precisamente porque existe disposição legal específica nessa matéria (o referido art. 152 nº 3 do CE) é que é punido aquele que, nas condições previstas na lei, recusa fazer aquelas provas.
Ou seja, para além de se impor fazer a distinção entre as diferentes diligências de prova para saber quais são aquelas a que o arguido pode ser submetido/sujeito nos termos do art. 61 nº 3-d) do CPP (ao contrário do que defende o recorrente, é a própria norma que remete para “a efectivação de diligências probatórias especificadas na lei”, o que significa que se impõe a aludida distinção), também há que determinar se, não tendo ele a obrigação de efectuar determinada diligência de prova, ainda assim pode ser sancionado com o crime de desobediência, quando se recusar a cumprir uma “determinação” que lhe é dada mas que não é obrigado a cumprir (para este efeito, se o arguido não é obrigado a cumprir aquela determinação de “prestar autógrafos” então também essa prescrição/determinação não pode assumir a forma de uma “ordem” e muito menos envolver uma censura penal).
Ora, o escrito produzido pelo arguido, caso aceitasse prestar autógrafos (situação diferente daquela em que, por exemplo, na sequência de busca domiciliária autorizada, fossem apreendidos documentos produzidos pelo arguido), funcionava como um “documento” (que iria ser objecto da pretendida perícia), que continha dados que apenas podiam ser fornecidos pelo próprio (arguido), de acordo com a sua vontade, não podendo ser obtido por meios coercivos.
Ou seja, sem a vontade e colaboração activa do arguido (que até podia exercer o seu direito ao silêncio mas, não obstante isso, querer realizar a perícia) não era possível obter aquele escrito que iria permitir a realização da perícia à escrita.
Isto significa, desde logo (aliás de acordo com a jurisprudência citada do TEDH[38]), que no âmbito da investigação criminal subjacente ao referido inquérito, o arguido não podia ser obrigado a prestar autógrafos.
E, se é certo que, então, tudo aponta no sentido de não poder ser dada aquela pretensa “ordem”[39] (na medida em que não podia gerar um dever de obediência por parte do arguido, desde logo face à falta de “densidade normativa suficiente”[40], visto o quadro legal existente, sobre essa específica diligência probatória), resta saber se, ainda assim, a recusa do arguido podia ser censurada pela via do crime de desobediência, na modalidade prevista no art. 348 nº 1-b) do CP.
Se o legislador tivesse entendido que todos os casos de recusa de submissão a diligência de prova deviam ser censurados com o crime de desobediência, assim o teria previsto expressamente, por exemplo, no próprio art. 61 nº 3-d) do CPP (bastava acrescentar à norma “sob a cominação de incorrer em crime de desobediência em caso de recusa ou não cumprimento”).
Mas, não foi isso o que se passou, o que significa que estando em causa a obtenção de determinadas diligências de prova, recusando-se o arguido a colaborar - e não tendo o legislador expressamente previsto a possibilidade de lhe impor esse tipo de diligência, nem a possibilidade de o sancionar com o crime de desobediência (como o fez, por exemplo, no art. 152 nº 1 e 3 do CE, onde estabeleceu no nº 1 os casos de obrigatoriedade de sujeição às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas e no nº 3 previu que a recusa fosse punida por crime de desobediência) - haverá então que determinar se a autoridade judiciária o poderá fazer em sua substituição, designadamente, em situações como a destes autos, o que igualmente supõe que se apure se, essa cominação (de incorrer em crime de desobediência em caso de recusa) afecta de forma intolerável os direitos de defesa do arguido.
Sem disposição expressa que imponha a recolha de autógrafos coactiva e que sancione com o crime de desobediência a recusa do arguido a submeter-se a este tipo de diligência, sempre se pode sustentar que, então, o MP (ao fazer aquela cominação de incorrer em crime de desobediência, como sucede no caso destes autos) estaria a atentar contra o princípio da legalidade[41] e a agravar de forma sensível e ilegítima a posição do arguido no processo penal.
E, mesmo que fosse defensável que, em determinadas situações - em que estivesse em causa a sujeição do arguido a diligências de prova -, a autoridade judiciária poderia fazer essa cominação, impor-se-ia ao menos que previamente se identificassem os casos que dessa forma podiam ser sancionados, o que necessariamente pressupunha que se ponderasse a gravidade do crime em questão, a imprescindibilidade daquele meio de obtenção de prova e a ausência de outros meios (disponíveis e menos gravosos) para a investigação.
Mas, sem lei ordinária expressa que comine com o crime de desobediência a recusa do arguido em prestar autógrafos sempre se poderá dizer (como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira[42]) que, por essa via, se está a converter o papel do arguido, enquanto sujeito processual em objecto de prova.
Ora em casos como o destes autos (onde se investigava crime de falsificação de documento), em que está em causa a própria contribuição activa do arguido para a sua incriminação, compreende-se que a sua recusa mereça tutela (e não censura) por ainda se inserir no âmbito dos seus direitos de defesa, tal como são universalmente reconhecidos.
O que tudo se adequa com a ideia básica, que enforma o processo penal, de que a “descoberta da verdade material não pode ser obtida a todo o custo, antes havendo que exigir (…) que ela tenha sido lograda de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas”[43].
Não é por isso de estranhar que, em determinados casos, o legislador tenha prescindido de obter a prova em falta à custa do arguido (o que também está de acordo com a ideia de não transformar o arguido – que reconheceu como sujeito processual – em objecto de prova).
Dir-se-á, assim, que no caso da “recolha de autógrafos”, o legislador (até avisado da impossibilidade de os obter sem a colaboração do arguido) não quis impor ao arguido a obrigação de os prestar e tão pouco quis sancionar a sua oposição ou recusa como o podia ter feito (o que é lógico a partir do momento em que se chega à conclusão de que não há a obrigação para o arguido de prestar autógrafos, o que significa igualmente que não deve obediência à determinação que lhe for dada nesse sentido).
Quando se vive num Estado de Direito democrático, é necessário salvaguardar determinadas garantias e direitos, não se devendo ter receio por o legislador (movendo-se num espaço em que tem de conciliar segurança, liberdade e justiça) optar por um direito processual penal mais securitário (direito este que afinal se reconduz ao reconhecimento de um mínimo de direitos e garantias que devem ser assegurados ao arguido - já para não falar no suspeito - de acordo, aliás, com o que vem sendo defendido a nível da União Europeia, com vista ao reforço quer da confiança mútua nos sistemas policiais e judiciais de cada Estado membro, quer do princípio do reconhecimento mútuo).
De tudo isso decorre a ilegitimidade da ordem dada pelo MP ao arguido para prestar autógrafos.
Acresce que, o argumento invocado pelo tribunal da 1ª instância, de que a atitude do arguido (de recusar intervir na recolha de autógrafos) constituía o exercício do direito de não prestar declarações por via escrita (socorrendo-se do decidido no cit. Ac. do TRL de 30/1/90), não equivale a “desvirtuar” o direito que lhe é conferido, nos termos do art. 61 nº 1-c) do CPP, de “não prestar declarações”, como sustenta o recorrente.
O “direito de não prestar declarações” envolve qualquer tipo de linguagem (seja por via oral, por gestos ou por escrito) ou forma de comunicar: basta pensar no caso do arguido que é mudo, mas sabe escrever, que nos termos do art. 93 nº 1-b) do CPP, preste declarações por escrito.
Ou seja, se nos termos do art. 93 do CPP, as declarações podem ser prestados, v.g. por escrito (já para não falar do recurso a intérprete idóneo), então é lógico que o direito de não prestar declarações, especificamente consagrado no art. 61 nº 1-c) do CPP, abranja qualquer forma de comunicação (seja via oral, por gestos ou através de escrita ou mesmo de forma directa ou indirecta).
E, assim sendo, não faz sentido querer utilizar a escrita como meio de obter prova que eventualmente (através de perícia) viesse a incriminar o arguido e ao mesmo tempo querer punir o arguido que recusa a prestação de autógrafos.
Percebe-se, por isso, a equiparação efectuada entre a recusa a prestar autógrafos e o exercício do direito de não prestar declarações, quer por via oral, quer por escrito, de forma directa ou indirecta.
Nesta perspectiva, nada impedia que o tribunal a quo tivesse equiparado a recusa do arguido em prestar autógrafos ao exercício de não prestar declarações por escrito (art. 61 nº 1-c) do CPP), ainda que de forma indirecta (indirecta porque apesar dos autógrafos não se traduzirem em declaração do arguido a assumir clara e directamente a sua culpabilidade, acabavam por dessa forma funcionar caso, concluída a perícia, a escrita por ele efectuada viesse a apontar para a sua culpabilidade no crime de falsificação de documento que se investigava).
De resto, não assiste razão ao recorrente quando invoca que o arguido é obrigado a submeter-se a todas as diligências de prova previstas na lei, porque não é isso o que decorre do art. 61 nº 3-d) do CPP, como já foi esclarecido.
Por isso, se conclui que o arguido não pode ser obrigado a colaborar com a investigação e a prestar os autógrafos solicitados, sequer com a cominação de incorrer em crime de desobediência.
Esta interpretação teleológica que aqui se faz, tendo em atenção a própria ratio essendi das normas em questão e o seu efeito útil - o que exige uma compreensão racional do argumento histórico e mesmo do literal (apelando também ao artigo 9 do CC) - é a única que está de acordo com o princípio da legalidade, com “o fim almejado pela norma”, considerando o espírito do legislador e a unidade do sistema jurídico, mostrando-se, assim, “funcionalmente justificada”.
Não há, por isso, qualquer censura a fazer à sentença sob recurso.
Em conclusão: impõe-se negar provimento ao recurso, sendo certo que não foram violados os preceitos legais invocados pelo recorrente.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar a douta sentença impugnada.
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Sem custas por delas estar isento o recorrente.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária – art. 94 nº 2 do CPP)
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Porto, 28/1/2009
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério

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[1] Cf. Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[2] Assim, cit. Ac. do STJ de 21/1/2003.
[3] Ibidem.
[4] Ac. do STJ de 9/7/2003, proferido no proc. nº 3100/02, relatado por Leal-Henriques (consultado no mesmo site do ITIJ).
[5] Assim, Ac. do TRG proferido no recurso nº 1016/2005, relatado por Nazaré Saraiva.
[6] Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, tomo I, 2ª ed., Valência: tirant lo blanch, 2005, p. 65. Mais à frente, o mesmo Autor, ob. cit., p. 78, nota 64, citando K. Engisch, diz que “o objectivo da actividade probatória é «criar no juiz o convencimento da existência de certos factos»”. No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. Revista e actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1985, pp. 435-436, quando afirmam que “a prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção assente na certeza relativa do facto. (…) É o juiz da causa ou o tribunal colectivo, consoante as circunstâncias, que há-de convencer-se da realidade do facto, para que este se considere provado e se lhe possa aplicar a estatuição da norma que o tem como pressuposto”. Também Jeremias Bentham, Tratado de las Pruebas Judiciales (obra compilada dos manuscritos do Autor por E. Dumont, trad. de Manuel Ossorio Florit), Granada: Comares, 2001, p. 22, refere que a prova é «um meio que se utiliza para estabelecer a verdade de um facto, meio que pode ser bom ou mau, completo ou incompleto».
[7] Carlos Climent Durán, ob. cit., p. 91. Citando Jiménez Conde, F. (La apreciación de la prueba legal, cit., p. 122), refere, na nota 81, que este Autor, a propósito da apreciação das provas, observa que não se podem confundir os dois tipos de juízos que lhe estão subjacentes: «1º a averiguação dos dados fácticos ou juízos de facto particulares que são trazidos pelas provas produzidas, independentemente da sua verdade ou falsidade; 2º a fixação do concreto valor que se há-de conceder a esses mesmos meios de prova, ou, o que é igual, a decisão quanto à credibilidade dos resultados fácticos por eles produzidos, ou juízo sobre o grau de correspondência desses resultados fácticos com a realidade histórica objectiva do facto questionado. A primeira dessas operações constitui, como alguns autores lhe chamam, a interpretação das provas, enquanto a segunda se refere mais propriamente à sua valoração. E ambas se integram no conceito de apreciação das provas, como actividade complexa que as abarca».
[8] Neste sentido, Carlos Climent Durán, ob. cit., p. 94.
[9] Assim, Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), chamando à atenção para o que se escreveu em Ac. de 8/2/99, em recurso de apelação do proc. nº 1/99 do Tribunal de Círculo de Chaves.
[10] Aliás, como tem vindo a ser decidido por esta Relação, “o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação (…) e também não pode destinar-se a substituir a convicção formada pelo tribunal recorrido, objectivamente motivada, plausível segundo as regras da lógica, da experiência da vida e do senso comum e coerente com o sentido das provas produzidas” (assim, Ac. proferido no proc. nº 4133/05-1, relatado por Guerra Banha, citando outra jurisprudência).
[11] Ver, ainda, a Declaração de Rectificação nº 102/2007 de 31/10.
[12] Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, AAVV, dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 350.
[13] Sendo certo que o próprio art. 61 nº 3-d) do CPP não comina, a recusa do arguido em sujeitar-se a diligências de prova, com o crime de desobediência.
[14] Para José Luís Lopes da Mota, “Crimes contra a Autoridade Pública”, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, vol. II, Lisboa: CEJ, 1998, p. 430, o conceito de ordem “envolve um comando de carácter pessoal e concreto, especialmente dirigido ao agente do crime - o que afasta da punição as disposições ou actos de carácter genérico -, de natureza obrigatória para a pessoa a quem se dirige, que a vincula a uma acção ou omissão - a um facere ou non facere, consoante o sentido da ordem ou da proibição - emitido no exercício de poderes conferidos por lei, que pode ser incluído num mandado, designadamente quando se determinar a prática de um acto processual a uma entidade ou funcionário que actue no âmbito da competência de quem profere a ordem”.
[15] O que é discutível, face até ao teor do próprio auto, tal como consta dos factos dados como provados – cf. alíneas h) e i) – sendo certo que a prova do tipo subjectivo não substitui a alegação e prova de todos os elementos que integram o tipo objectivo de qualquer incriminação. Portanto, sempre se podia questionar se até aquela “informação” prestada integrava e pressupunha uma “ordem” (desde logo tendo em atenção o respectivo conceito de “ordem” e a sua natureza) dada de forma expressa, explícita e clara, desse modo entendida e percebida pelo arguido.
[16] Dispõe o art. 21 (direito de resistência) da CRP:
Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
[17] Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., p. 354, a propósito dessa modalidade do crime de desobediência recorda: “não podendo fugir à letra da lei, será tarefa dos tribunais ajuizar, caso por caso, se o princípio da significância, ancorado no carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, não levará com frequência a negar dignidade criminal a algumas condutas arguidas de desobediência (do art. 348), porventura pelo excesso de zelo de um dedicado servidor da administração pública”.
[18] Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, o Novo Código de Processo Penal, CEJ, Coimbra, Almedina, 1988, pp. 27 e 28, acrescentando que “só no exercício de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posição perante a matéria que constitui objecto do processo.”
[19] Susana Aires de Sousa, «Agent provocateur e meios enganosos de prova. Algumas reflexões», in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, org. por Manuel da Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Maria João Antunes, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, ob. cit., p. 1213, citando Jorge Figueiredo Dias, «La Protection des Droits de L´Home dans la Procedure Penale Portugaise», BMJ 291 (1979), p. 178.
[20] Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, p. 25.
[21] Ou seja, raciocínio não pode ser feito ao contrário, como o faz o recorrente, quando deduz a obrigatoriedade de o arguido se submeter à recolha de autógrafos do facto de a lei não prever qualquer situação em que o arguido se possa recusar a prestar autógrafos.
[22] Dispõe o artigo 125 (legalidade da prova) do CPP:
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
[23] Manuel Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 127.
[24] Em recurso interposto perante o Tribunal Constitucional, no qual se sustentava que o artigo 6 nº 1 do DL nº 124/90 de 14/4 era inconstitucional por violar os arts. 1, 13, 26 e 32 da CRP (invocava-se, entre outras considerações, que o acto de “soprar no balão” atentava contra a dignidade humana), aquele Tribunal, por Ac. nº 319/95, negou provimento ao recurso, argumentando, além do mais, que «o exame para pesquisa de álcool (…), destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob influência de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as de outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal».
[25] É que afirmar que alguém “pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente” a submeter-se a exame não significa que a decisão proferida possa ser executada com utilização da força, ainda que de forma proporcionada e justificada (se é isso, porém, o que se pretende afirmar, então impõe-se que o legislador seja transparente e afirme isso claramente em norma pertinente sobre essa matéria). Sempre se pode, por isso, defender que não há norma expressa a prever a execução de decisão de autoridade judiciária competente através do uso da força física (nem cremos que se possa pressupor que sendo o acto praticado “contra vontade” do visado isso significa que, se necessário, também pode ser usada força física). E, todos sabemos que, em caso de conflito de direitos fundamentais, estes não têm carácter absoluto, razão pela qual, no juízo de ponderação que o juiz é chamado a fazer (onde ressalta a tensão dialéctica entre determinados interesses e valores em conflito), tem de usar de critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18 nº 2 da CRP), introduzindo limites aos direitos fundamentais que estejam em conflito, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição ou «concordância prática» dos bens em colisão. Também noutras áreas, por exemplo, em matéria cível, v.g. em acções de investigação de paternidade, tem-se colocado a questão de saber se há obrigatoriedade ou não da submissão a perícia para prova do facto biológico da fecundação, havendo jurisprudência (entre outros Ac. do STJ de 23/10/2007, proferido no processo nº 07ª2736, relatado por Mário Cruz, consultado em www.dgsi.pt) defendendo que “ninguém é obrigado a submeter-se a exames para recolha de sangue, mas o que não pode é ignorar que tal recusa, quando desacompanhada de uma justificação plausível, passará a ser valorada livremente pelo Tribunal, designadamente depois de advertido que assim acontecerá se a tal não quisesse submeter-se.”
[26] Pedro Verdelho, «Técnica no novo CPP: exames perícias e prova digital», in Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 9 (especial), p. 154.
[27] Ver, também, argumentação do Ac. do TC nº 155/007, DR II Série de 10/4/2007.
[28] O que sempre poderia levar a questionar se haveria ou não um eventual “abuso de poder” institucional do Estado (se o uso da força física para executar decisão de autoridade judiciária competente era compatível com a CRP, v.g. com a salvaguarda da “dignidade humana”, da integridade pessoal, da liberdade de acção e da reserva da intimidade do visado, quer na sua dimensão positiva, quer na sua dimensão negativa) e se não seria necessário proteger, de forma acrescida, os cidadãos contra os riscos daí decorrentes. De notar que, por exemplo, a Lei nº 5/2008, de 12/2 (aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal), no art. 10 (modo de recolha) estabelece que a “recolha de amostras em pessoas é realizada através de método não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro equivalente, no estrito cumprimento dos princípios e regime do Código de Processo Penal” – cf., no mesmo sentido, também art. 8 da Deliberação nº 3191/2008, de 3/12 (regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN). Ou seja, estabeleceu-se que o modo de recolha era por método não invasivo, optando-se por não estabelecer qualquer censura quando o visado resiste (por qualquer modo) à recolha da amostra. Claro que sempre se poderá dizer que mesmo que resista, será fácil contrariar essa oposição e obter a recolha de amostra, não se justificando, por isso, estabelecer qualquer sanção para essa atitude do visado (ou seja, nessa particular situação não fará sentido a cominação do crime de desobediência uma vez que é manifesto que o legislador não quis punir a “desobediência” a decisão judicial que impuser um acto coercivo desta natureza).
[29] Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 1213.
[30] Por exemplo, no citado Ac. do TC nº 155/007, faz-se uma interpretação mais restritiva do referido direito à não auto-incriminação quando se esclarece que, aquele Tribunal, o entende como referindo-se “ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supracitado [refere-se ao ac. proferido no caso Saunders v. Reino Unido], o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo (…) da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado.” Estando, nessa decisão em causa a referida recolha de saliva, compreende-se que se tivesse dito que a mesma “não constitui nenhuma declaração”. Mas, claro, essa situação é diferente da “recolha de autógrafos”, uma vez que esta já se poderá considerar como uma forma de “declaração por escrito” do arguido que a ela se opõe, independentemente de também ser uma “diligência probatória”.
[31] Neste sentido, Ac. do TC nº 304/2004, defendendo que o art. 133 nº 2 CPP, ao permitir que o co-arguido tome a decisão de consentir ou não na prestação de declarações como testemunha, torna o impedimento (feito para o proteger, tendo em vista a não auto-incriminação) relativo e disponível. Daí conclui que a ofensa do art. 133 nº2 CPP (por falta da advertência) só pode operar relativamente ao arguido testemunha, na parte em que o seu depoimento funcione como prova da sua auto-incriminação. Ver, contudo, a posição contrário de Medina Seiça, Conhecimento probatório do co-arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 124, defendendo que a violação ou omissão do esclarecimento e advertência do art. 133 nº 2 CPP não pode constituir simples irregularidade, mas antes conduzir à proibição de valoração da prova feita com esse desvio.
[32] Ver sobre esta matéria, Vânia Costa Ramos, “Corpus Juris 2000 – imposição ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare”, in RMP nº 108 (Out/Dez 20006), pp. 125 a 149 e nº 109 (Jan/Mar 2007), pp. 57 a 96.
[33] Corpus Juris, portant dispositions pénales pour la protection des intérêts financiers de l`Union européene, dir. de Mireille Delmas-Marty, ed. Economica, 1997, pp. 131 a 139.
[34] Vânia Costa Ramos, ob. cit., in RMP nº 109, p. 87.
[35] Ver jurisprudência citada por Vânia Costa Ramos, ob. cit., in RMP nº 108, pp. 142 a 149.
[36] Ver, também, do TEDH: Caso P.G. e J.H. c. Reino Unido, ac. de 25/9/2001, a propósito de recolhas de amostras de voz, no âmbito de escutas telefónicas; Caso X e Y c. Holanda, ac. de 26/3/1985, sobre a necessidade de proteger as pessoas de ingerências arbitrárias dos poderes públicos, o que implica também a existência de legislação penal nacional que assegure os direitos das pessoas, nomeadamente, relativos ao respeito da sua vida privada; Caso Costello-Roberts c. Reino Unido, ac. de 25/3/1993, sobre a noção de vida privada (englobando a integridade física e moral da pessoa), em caso de castigo corporal aplicado a criança (dias depois de infracções menores por ela cometidas, em colégio privado), sem prévio consentimento da mãe, considerando-se não ter havido violação da CEDH. Em voto de vencido sustentou-se que o carácter oficial e formal da sanção infligida, sem o consentimento apropriado da mãe, foi degradante e contendia com o artigo 3 da Convenção.
[37] Vânia Costa Ramos, ob. cit., in RMP nº 108, pp. 148 e 149.
[38] Vânia Costa Ramos, ob. cit., in RMP nº 109, p. 77, recorda que, de acordo com a jurisprudência do TEDH, «a entrega dos documentos não pode ser forçada, pelo menos sob ameaça de sanção penal, sob pena de “o grau de coerção” revelado nos procedimentos destruir “a própria essência do privilégio conta a autoincriminação” – acórdãos Murray, e Heaney and McGuiness, referindo-se ao caso Funke. (…) O “grau de coerção” a que se refere o TEDH será inadmissível sempre que a obrigação seja sancionada e executável, assuma a sanção carácter penal ou não.» A nível da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a mesma Autora (ob. cit., p. 85) assinala que “sobre a infracção das regras da concorrência estabelece que a prorrogativa contra a autoincriminação não é absoluta e pode ser limitada, especialmente quando se trate de infracções à concorrência.”
[39] Embora, claro, pudesse perguntar ao arguido (informando-o do fim a que se destinavam) se consentia na prestação de autógrafos e, em caso afirmativo, recolhê-los.
[40] Ver citado Ac. do TC nº 155/007.
[41] Em Itália, o Tribunal Constitucional, por sentença nº 238 de 9/7/1996 (estava em causa a decisão judicial de impor coactivamente a recolha de sangue do recorrente, que a recusara, a fim de ser realizada perícia médico-legal no âmbito de investigação criminal, com vista a identificar o material sanguíneo retirado de uma estátua), declarou a ilegitimidade constitucional do artigo 224, 2 do CPP Italiano, na parte em que consente ao juiz, no âmbito da realização de perícias, dispor de medidas que incidam sobre a liberdade pessoal do suspeito, do arguido ou de terceiro, fora dos casos e modos especificamente previstos na lei. É que essa disposição legal era demasiadamente genérica, não estabelecendo limites às providências coactivas que podiam ser impostas pelo juiz, tendo o Tribunal Constitucional entendido, atento o princípio da legalidade, que quando está em causa a restrição de direitos fundamentais terá de ser a própria lei a tipificar os casos e modos concretos em que podem ocorrer as ditas restrições, não podendo o juiz precisar o que não está delimitado na lei.
[42] Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 1213.
[43] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, p. 22. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª ed. Revista e actualizada, Lisboa: Verbo, 2000, p. 52, salienta que “a pedra angular do processo penal num Estado de Direito democrático é a tutela efectiva dos direitos individuais e gerais, ou seja, a tutela dos direitos fundamentais da liberdade, igualdade, dignidade e segurança, direitos que hão-de considerar-se na perspectiva individual e colectiva, para o que se impõe uma visão harmónica que combine e concilie as três missões básicas do processo: jurídica, enquanto instrumento para a realização do direito objectivo; política, como garantia do arguido; social, enquanto contribui para a pacífica convivência social”.