Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
330/16.0T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARVALHO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
REQUERIMENTO
FASE DE JULGAMENTO
PRINCIPIOS PROCESSUAIS
Nº do Documento: RP20190625330/16.0T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º901. FLS.42-46)
Área Temática: .
Sumário: Quando apenas na fase de julgamento o juiz se apercebe que deve ser provocada a intervenção de alguém que não foi demandado, deve ser reconhecida a possibilidade de mesmo nessa fase do processo poder convidar o autor a requerer essa intervenção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 330/16.0T8PVZ-A.P1
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

B…, residente na Rua …, …, …. - …, Matosinhos, instaurou acção com processo comum contra “C…, Unipessoal, Lda.”, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €150.000,00, acrescida de juros.
Alegou, em síntese, que em 2014 comprou o veículo automóvel de matrícula .. - .. - SQ, que era propriedade do Réu; em 19-07-2014 sofreu um despiste com aquele automóvel, tendo embatido em rails de protecção da via; devido ao acidente sofreu diversas lesões; os airbags do veículo não funcionaram; se estivessem activos o acidente não teria as consequências que teve, nomeadamente não teria sofrido a amputação da perna esquerda; ignorava que o sistema dos airbags estava inactivo e se soubesse não teria comprado o automóvel.
A Ré contestou, negando que tenha vendido ao Autor o automóvel em causa e alegando, no essencial, que o veículo tinha sido por si vendido a D…, em 14-06-2014, a qual, juntamente com E… e F… se dedica ao negócio de automóveis usados; mas aquela D… não procedeu ao registo do automóvel em seu nome. Foram aquelas três pessoas que venderam ao Autor o veículo referido na p.i.
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Prosseguiram os autos para julgamento. Após ter sido iniciado o julgamento, foi proferido, em 25-05-2018, o seguinte despacho (fls. 75, vº):
“Em face da posição da R. e bem assim da prova que tem vindo a ser produzida, verifica-se que um dos pontos em discussão é saber quem vendeu o veículo automóvel em causa de matrícula .. – .. -SQ ao A., se a R., se, como esta defende, D…, se F…, dono do stand que o tinha em exposição, se E…, segundo a R. e o dito F…, já ouvido em julgamento, envolvido no negócio, pelo que, sendo discutível quem é titular da relação material controvertida, o recurso à intervenção principal provocada, ao abrigo dos arts. 316.º, n.º 2, 39.º e 6.º do CPC [e não do CC como por lapso se escreveu no despacho], se nos afigura conveniente. Assim, e antes do mais, notifique as partes para, no prazo máximo de 10 dias, se pronunciarem sobre a predita questão, e, oportunamente, abra conclusão de imediato, por forma a permitir, se for o caso, a desmarcação da continuação do julgamento em curso.”
A Ré não se pronunciou quanto à intervenção principal referida no despacho.
Em 8.06.2018 o Autor requereu a intervenção principal provocada dos ora Recorrentes.
Em 13.07.2018 foi proferido novo despacho (fls. 79, vº/80), do qual se transcrevem alguns segmentos:
“(…)
“Retomando o caso dos autos, verifica-se que foi já na fase de julgamento que as dúvidas sobre o sujeito passivo da relação controvertida se adensaram e alargaram a um maior número de pessoas, que, assim, carecem de estar no processo para a realização plena dos seus fins, mais concretamente a apreciação definitiva e global da respectiva causa de pedir e do direito correspondente.
“Nessa medida, afigura-se-nos que se justifica um desvio à apontada norma legal que, no caso da intervenção de terceiros para dedução subsidiário do pedido, faz coincidir o limite temporal final do respectivo requerimento com ao termo da fase dos articulados, permitindo-se, antes, a possibilidade, ainda que despoletada pelo Tribunal ao abrigo do art. 6.º, n.º 2 do CPC, de o A. requerer a intervenção principal provocada de outros presumíveis sujeitos passivos da relação material controvertida.”
Concluía pela admissibilidade da intervenção de terceiros, “sem prejuízo, salvo o devido respeito, de a mesma ter de ser formalizada através de novo articulado donde conste a factualidade para demandar cada um dos ids. terceiros e o pedido subsidiariamente dirigido contra cada um deles. Pelo exposto, notifique o A. para juntar novo articulado nos termos sobreditos dirigido contra cada um dos chamados D…, F… e E…, identificando-os de forma completa.”

O Autor apresentou novo requerimento para intervenção principal de D…, F… e E….

Em 4.10.2018, foi proferido o seguinte despacho (fls. 161):
Na sequência dos despachos de 25/05/2018 e de 13/07/2018 (fls. 150 e 156/157), admito a requerida intervenção principal provocada de D…, F… e E…, não demandados inicialmente e contra quem o pedido passa a ser também dirigido no âmbito do art. 316.º, n.º 2, 2.ª parte do CPC.
Cite os chamados (art. 319.º, n.º 1 do CPC).”
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F…, D… e E… interpuseram recurso daquele despacho, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:
1. Porque os presentes autos encontram-se já na fase de audiência de julgamento, tendo-se iniciado a produção de prova testemunhal em 08.05.2018;
2. Porque o, sempre douto, despacho em apreço, admitindo a intervenção principal provocada dos Recorrentes, tem subjacente um entendimento errado e processualmente inadmissível;
3. Porque não se verifica que é da posição da R. e bem assim da prova que tem vindo a ser produzida, que um dos pontos em discussão é saber quem vendeu o veículo automóvel em causa de matrícula .. - .. - SQ ao A., se a R., se, como esta defende, D…, se F…, dono do stand que o tinha em exposição, se E…
4. Porque a questão da celebração do contrato de compra e venda do veículo de matrícula .. - .. - SQ constitui, precisamente e por ser facto controvertido, o 1º tema da prova elencado no Despacho saneador ínsito na acta de audiência prévia de 23-11-2016
5. Porque o Autor, em sede de petição inicial, alegou que o contrato de compra e venda foi por si celebrado com a Ré (C…), logo esta mesma Ré, em sede de contestação, veio, clara e inequivocamente não só negar a sua intervenção em tal contrato, como identificou a pessoa a quem efectivamente tinha anteriormente vendido a mesma viatura, fornecendo os respectivos documentos - aliás não impugnados - reiterando que já em anterior acção o Autor tinha sido informado de tal realidade documentada;
6. Porque não foi, nem é, da prova que tem vindo a ser produzida nos autos, que se verifica que um dos pontos em discussão é saber quem vendeu o veículo automóvel em causa de matrícula .. - .. - SQ ao A;
7. Porque o facto em discussão – saber quem vendeu o veículo – decorre logo dos articulados, o que, aliás, constitui o cerne da posição processual da Ré e que logo identificou a pessoa a quem tinha vendido a viatura;
8. Porque era sobre o Autor que incidia o ónus de, face à posição da Ré e documentos por esta juntos, requerer a intervenção dos ora Recorrentes no momento processual adequado, ou seja após lhe ter sido notificado o articulado de contestação com os respectivos documentos;
9. Porque se o Autor entendeu formular e manter o pedido apenas contra a Ré, tal apenas resulta de vontade e esclarecida decisão própria e que ao Tribunal não compete, nem é legítimo, corrigir;
10. Porque a lei processual, mesmo no ponto de vista do princípio da adequação formal, não permite que o Juiz se substitua à parte na identificação de contra quem é o pedido deduzido e, especialmente, sem que este demonstre uma dúvida fundamentada quanto a tal conspecto e muito menos, poderá autorizar a alteração substantiva das partes quando, como é o caso, o autor nenhuma dúvida legítima tem a tal respeito, o que, in casu, se evidencia e demonstra à saciedade pela anterior intervenção nos autos identificados no artº 9º da contestação formulada nos autos;
11. Porque ante o teor das contestações formuladas tanto nos presentes autos, como nos que os precederam, cumpria ao Autor o ónus de, perante a factualidade invocada, ter atempadamente deduzido o competente incidente de intervenção principal provocada, nos termos do disposto no artº 316º do CPC;
12. Porque nos termos do nº 1 do artº 316ª do CPC, o legislador impôs a imperatividade do momento até o qual pode o incidente ser deduzido;
13. Porque foi o próprio legislador quem fixou um regime imperativo quanto à oportunidade e tempestividade para dedução do incidente até como corolário do princípio da estabilidade da instância ínsito no artº 260º do CPC, prevendo o mesmo diploma processual que a instância apenas se pode modificar, no que ao caso concerne, em virtude de incidente da intervenção de terceiros;
14. Porque a realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República;
15. Porque a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objectivo e subjectivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo;
16. Porque o disposto no artº 6º do CPC, enquanto poder / dever, tem como limite a fronteira do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, ou seja a identificação contra quem pretendem dirigir o pedido e requer as diligências, actos e incidentes processuais que por si entendam efectuar, ónus este que o Juiz não pode suprir, substituindo-se à parte;
17. Porque, atenta a fase processual dos autos, com julgamento e produção de prova em curso, sempre os ora recorrentes ficam em posição processual desvantajosa, como se teria de proceder à anulação de todo o processado posterior ao último articulado, o que não sucedeu no presente caso;
18. Porque é extemporânea a dedução do incidente de intervenção principal provocada dos ora recorrentes;
19. Porque a decisão em apreço viola por erro de interpretação e de aplicação do disposto nos artºs 6º e 316º do CPC pelo que, com o sempre douto e esclarecido suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser provido e, em consequência revogado o despacho que admitiu a intervenção principal provocada dos ora Recorrentes nos presentes autos como é de JUSTIÇA.
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra alegações.
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Os factos
Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os acima enunciados.
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O direito
Questão a solucionar: se é admissível a intervenção principal provocada, a que alude o nº 2 do artigo 316º do CPC, na fase de julgamento.
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O pedido formulado pelo Autor emerge de deficiências verificados num veículo automóvel, as quais terão sido a causa dos danos sofridos, ou, pelo menos, do agravamento desses danos. Na p.i. o Autor alegou que o veículo foi comprado à Ré, facto que esta impugnou. Depois de ter sido iniciado o julgamento e na sequência de alguma prova produzida, foi proferido o despacho no qual, após se considerar discutível quem é o titular da relação material controvertida, foi entendido que se afigurava conveniente o recurso à intervenção principal provocada, ao abrigo do disposto nos artigos 316º, nº 2, 39º e 6º do CPC – diploma a que pertencerão as normas adiante referidas sem diferente menção de origem.
Como a Ré não aceita que tenha vendido o veículo ao Autor, alegando que os vendedores foram as pessoas que acabaram por ser chamadas, existe dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida – a relação de compra e venda – verificando-se por isso a situação prevista no artigo 39º.
Caso o veículo tenha sido vendido pelas pessoas indicadas pela Ré, a intervenção destas do lado passivo permitirá que seja proferida uma sentença de mérito.
Todavia, a alínea b) do nº 1 do artigo 318º estatui que o chamamento para intervenção previsto no nº 2 do artigo 316º só pode ser requerido até ao termo da fase dos articulados. E a intervenção admitida nos autos ocorreu na fase de julgamento.
Os despachos de 25-05-2018 e de 13-07-2018 – para os quais remete o despacho recorrido – invocam o disposto no artigo 6º, norma que consagra o dever de gestão processual. O segundo dos apontados despachos alude ao nº 2 daquele artigo, que dispõe: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
Para o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, o dever de condução do processo que recai sobre o juiz atribui a este “o poder de modificar a tramitação processual ou os actos processuais.” Acrescenta que para obter a simplificação e a agilização processual “o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (art. 547.º). Portanto, o juiz pode alterar a tramitação legal da causa – tanto prescindindo da realização de certos actos impostos pela lei, como impondo a prática de actos não previstos na lei – e pode ainda modificar o conteúdo e a forma dos actos.” Quanto aos limites da adequação, escreve que tem que estar assegurada a possibilidade de as partes alegarem as suas razões de facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos, bem como a oportunidade de o tribunal se pronunciar tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito e, quanto a esta última, quer numa perspectiva processual, quer numa óptica substantiva. “Respeitado este standard mínimo, toda a tramitação determinada pelo juiz está em condições de ser válida” (Apontamento sobre o princípio da gestão processual no novo Código de Processo Civil, Cadernos de Direito Privado, nº 43, pág. 11/12 e 14).
Aludem os apelantes à violação de alguns princípios estruturantes do processo civil, como o princípio do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz (conclusão 14ª).
O princípio do dispositivo não reduz o juiz, no processo civil contemporâneo, ao papel de árbitro. Escreve o Prof. Lebre de Freitas que esta conceção está hoje ultrapassada por uma outra que passa pela atribuição de mais poderes ao julgador e pela exigência da cooperação entre o tribunal e as partes, como meios preferenciais para alcançar a verdade e, com base nela, realizar o direito (Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª ed., 2017, pág. 158).
Ao Réu foi concedida a possibilidade de se pronunciar sobre a intervenção provocada. Os chamados contestaram indicando prova e interpuseram o presente recurso, tendo por isso sido respeitado o contraditório.
As partes foram tratadas em pé de igualdade, a todas tendo sido concedidas as mesmas possibilidades de intervirem no processo, de se pronunciarem sobre os factos e a tramitação processual, de oferecerem prova, de estarem presentes nas diligências marcadas.
A prolação de despachos a convidar o Autor a requerer a intervenção principal provocada de pretensos vendedores da viatura causadora dos danos cuja reparação é peticionada, não traduz violação do dever de imparcialidade do juiz; antes decorre da interpretação que o julgador fez do dever de gestão processual, no seguimento de alguma prova produzida e no sentido de permitir que seja proferida uma decisão de mérito – decisão que tanto pode ser a procedência como a improcedência da acção.
Como escreveu o Conselheiro Lopes do Rego, “o exercício destes poderes de direcção, agilização e adequação da tramitação do processo pelo juiz deve ser orientado para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou substância sobre a forma, evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeças a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais” (Os Princípios Orientadores da Reforma do Processo Civil em Curso: o Modelo de Acção Declarativa, in Julgar, nº 16, pág. 103).
No caso, o juiz não se substituiu à parte; convidou a parte – o Autor – a requerer a intervenção provocada, conforme o permitido pelo nº 2 do artigo 6º. O Autor não se encontrava obrigado a requerer a intervenção principal provocada.
Quando apenas na fase de julgamento o juiz se apercebe que deve ser provocada a intervenção de alguém que não foi demandado, deve ser reconhecida a possibilidade de mesmo nessa fase processual poder convidar o Autor a requerer essa intervenção. A não se entender assim, nos incidentes de intervenção de terceiros os deveres de gestão processual apenas operam até às fases processuais previstas no artigo 318º. Essa interpretação não cumpre o objectivo da lei que é permitir que o juiz use os poderes necessários para que seja proferida uma decisão de mérito.
Constatando-se uma situação de indefinição relativamente a quem vendeu ao Autor o veículo causador dos danos, que pode ser ultrapassada com a intervenção principal provocada, deve ser admitida essa intervenção, requerida na sequência de convite formulado pelo juiz sob invocação dos deveres de gestão processual.
Alegam os apelantes que atenta a fase processual dos autos “ficam em posição processual desvantajosa” (conclusão 17ª). A fase processual em que os autos se encontram não pode obstar a que exerçam os mesmos direitos que teriam exercido se a intervenção tivesse sido requerida e admitida numa fase anterior à do julgamento, pelo que não se encontram em posição processual desvantajosa.
Sustentam ainda os apelantes que estando o julgamento em curso, teria que se proceder à anulação de todo o processado posterior ao último articulado, “o que não sucedeu no presente caso” (conclusão 17ª). Na presente apelação apenas temos que apreciar se é admissível a intervenção principal provocada admitida no despacho recorrido. Considerando a resposta afirmativa, está fora do âmbito do recurso a apreciação da tramitação processual subsequente a qual terá que ser adaptada pelo juiz do processo, tendo em conta os direitos dos chamados e as garantias de um processo equitativo.
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Decisão
Pelos fundamentos expostos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes

Porto, 25.06.2019
José Carvalho
Rodrigues Pires
Márcia Portela