Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
39/13.6TBRSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: TRANSPORTE RODOVIÁRIO
CMR
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP2015030239/13.6TBRSD.P1
Data do Acordão: 03/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: 1. Uma decisão judicial que convida as partes a, querendo, pronunciar-se, para pretensamente evitar a prolação de uma decisão-supresa, tem que identificar minimamente a matéria que é passível de integrar essa “surpresa”, sob pena de grosseira violação do princípio do contraditório.
2. O despacho de aperfeiçoamento não é um instrumento processual para trazer ao processo factos inteiramente novos, mas apenas para permitir que os factos alegados pelas partes sejam expurgados de insuficiências e ou imprecisões ou concretizados, sempre no suposto de que sejam juridicamente relevantes à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito.
3. A primeira parte do nº 1, do artigo 32º da CMR não colide com o Direito da União Europeia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 39/13.6TBRSD.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 39/13.6TBRSD.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Uma decisão judicial que convida as partes a, querendo, pronunciar-se, para pretensamente evitar a prolação de uma decisão-supresa, tem que identificar minimamente a matéria que é passível de integrar essa “surpresa”, sob pena de grosseira violação do princípio do contraditório.
2. O despacho de aperfeiçoamento não é um instrumento processual para trazer ao processo factos inteiramente novos, mas apenas para permitir que os factos alegados pelas partes sejam expurgados de insuficiências e ou imprecisões ou concretizados, sempre no suposto de que sejam juridicamente relevantes à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito.
3. A primeira parte do nº 1, do artigo 32º da CMR não colide com o Direito da União Europeia.
***
Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
A 27 de Fevereiro de 2013, no Tribunal Judicial da Comarca de Resende, B…, Lda. instaurou acção declarativa, sob forma sumária, contra C…, Lda. e a Companhia de Seguros D…, SA pedindo que as rés sejam solidariamente condenadas a pagar-lhe a quantia de € 5.231,03, acrescida de juros legais, a contar da citação, ou caso assim se não entenda, condenar-se a ré seguradora a pagar essas quantias à autora.
Para fundamentar as suas pretensões, a autora alegou, em síntese, o seguinte:
- em meados de Fevereiro de 2010, comprou na Alemanha, para revenda, um veículo usado, de marca BMW, modelo …, em bom estado de conservação e funcionamento, tendo contratado com a primeira ré o transporte daquele veículo para o seu estabelecimento, sito em Resende;
- no dia 05 de Março de 2010, a primeira ré carregou o veículo no seu veículo pesado articulado de transporte de mercadorias, de marca DAF, de matrícula ..-GE-.., cujo reboque tinha a matrícula L-……;
- pelas 20 horas desse dia 23 de Fevereiro[1], quando o referido veículo circulava na auto-estrada A35, em França, em direcção a Estrasburgo, o reboque desprendeu-se e bateu nos “rails” da referida auto-estrada, sofrendo o veículo da autora, em consequência dessa colisão, danos cuja reparação importou no montante global de € 4.252,87, acrescido de IVA no montante de € 978,16;
- a primeira ré entregou o veículo BMW à autora, informando-a que o custo da reparação deveria ser pago pela segunda ré;
- na altura do acidente, a primeira ré tinha a sua responsabilidade por danos verificados nos bens transportados transferida para a segunda ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ………./..;
- a autora comunicou à segunda ré o sinistro, a fim de haver dela o montante da reparação dos danos sofridos, não tendo a segunda ré efectuado qualquer pagamento.
Efectuada a citação da ré seguradora, esta contestou invocando a prescrição do direito exercido pela autora, ex vi artigo 498º, nº 1, do Código Civil, alegando ainda, em todo o caso, que o reboque de matrícula L-…… não é um dos veículos seguros pela apólice nº ………./.., que a segurada lhe negou todos os elementos, informações e documentação que tinha em sua posse, que não foi apresentado o CMR, o que impossibilita a conclusão de que foi celebrado um contrato de transporte entre a autora e a primeira ré, apontando os elementos juntos aos autos para a ocorrência de um acidente de viação, com a intervenção de pelo menos dois veículos.
A ré seguradora termina pugnando pela sua absolvição do pedido, com base na prescrição do direito exercido pela autora, ou pela absolvição da instância das rés com fundamento em ilegitimidade activa da autora, ou pela absolvição do pedido por verificação de causas de exclusão da garantia do seguro ou, finalmente, pela sua absolvição do pedido.
Sem que a primeira ré ainda se mostrasse citada, a autora respondeu às excepções invocadas pelo ré seguradora, requerendo a alteração da redacção do artigo 3º da petição inicial, alegando que não se verifica a excepção de prescrição invocada pela seguradora, que além do mais reconheceu a sua responsabilidade, reiterando, no mais, o que afirmou na petição inicial e oferecendo prova documental, prontamente impugnada pela ré seguradora.
A primeira ré, citada na pessoa do seu gerente, não contestou.
Realizou-se audiência prévia na qual, estando presente o Ilustre Mandatário da autora, a pretexto das questões decidendas serem apenas de direito, se ordenou a notificação das partes para os efeitos do artigo 3º do Código de Processo Civil, sem curar de identificar as questões de direito cuja decisão poderia vir a surpreender as partes.
A autora veio pronunciar-se no sentido do processo não estar em condições de ser decidido no saneador, desde logo porque é controvertida a data em que tomou conhecimento do sinistro e dos danos no seu veículo, a existência de eventual reconhecimento do seu direito por parte da seguradora e de um venire contra factum proprium também desta entidade.
Seguidamente fixou-se o valor da causa no montante de € 5.231,00, deferiu-se a rectificação do artigo 3º da petição inicial, proferiu-se despacho saneador tabelar e apreciou-se a excepção peremptória de prescrição arguida pela ré seguradora, julgando-se a mesma procedente, absolvendo-se a ré seguradora do pedido e julgou-se a acção parcialmente procedente por provada, condenando-se a primeira ré a pagar à autora a quantia de € 4.252,87, acrescida de juros à taxa de juro comercial, desde a citação até integral e efectivo pagamento e ainda a quantia de IVA que se vier a apurar em incidente de liquidação, a incidir sobre a quantia de € 4.252,87, à taxa legal em vigor à data da facturação, mediante a apresentação da factura e do recibo de pagamento.
A 19 de Março de 2014, inconformada com a decisão que antecede, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1.ª
Ao decidir a improcedência desta acção no despacho saneador, com base em prescrição invocada pela Recorrida, o Tribunal violou o disposto no art.º 591.º, 1 e 4 e 195.º do NCPC pelo que a sentença é nula. Na verdade, essa excepção deveria ser objecto de discussão, em audiência prévia gravada, no caso de o Tribunal entender que era com base nela que deveria decidir, mas dessa intenção dando conta aí ás partes, para estas a poderem sustentar – quem a invocou – ou rebater – quem a não invocou -, e para não haver, como houve, decisão surpresa.
2.ª
A sentença também é nula, agora por violação do disposto nos art.ºs 591.º, 1, c), 3 e 4 e 195.º do NCPC, na medida em que, tendo o Tribunal considerado a insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto, por parte da Recorrente, para afastar a excepção invocada pela Recorrida, deveria promover a efectivação da Audiência Prévia para que a Recorrente suprisse essa insuficiência, ou notificá-la para exercer esse direito.
Sem prescindir:
3.ª
A sentença fundou-se no disposto no art.º 32.º da Convenção CMR, no que dispõe quanto à prescrição.
4.ª
Essa lei só se aplica aos casos de transporte rodoviário de mercadorias, em que o Estado donde são expedidas e o Estado de destino não pertencem ao mesmo espaço económico.
5.ª
Essa lei tem assim por fim a regulação de práticas e procedimentos aduaneiros, bem como a regulação de direitos conexos ou acessórios, do expedidor, destinatário e transportador.
6.ª
O transporte rodoviário de mercadorias dentro do Espaço da União Europeia é regulado pelas normas jurídicas da União, nomeadamente os art.ºs 26.º, 1 e 2 e 28.º, 1 do Tratado Sobre Funcionamento da União Europeia, e as disposições da da Directiva 98/76/CE, de 1.10.1998, alterado pela Directiva 1.10.1998, ambas do Conselho, transpostas para a Ordem Interna pelo Dec.-Lei n.º 38/99, de 6.2.
7.ª
E por isso, como é o caso dos autos, a Convenção CMR não se aplica às relações ou situações de transporte rodoviário que ocorram entre pessoas domiciliadas no mesmo espaço, e em casos que ocorram em qualquer ponto desse espaço.
8.ª
A situação dos autos configura um contrato de transporte rodoviário, que foi imperfeitamente cumprido pela demandada “C…”, que assim responde pelo dano causado à Recorrente nos termos do art.º 799.º, 1 do C.C.
9.ª
Como a responsabilidade é contratual e não extracontratual, a prescrição do direito da recorrente só prescreve ao fim do decurso do prazo de 20 anos (art.º 309.º do CC).
10.ª
Como a “C…” transferiu aquela responsabilidade para a Recorrida, esta responde nos mesmos termos.
11.ª
Por isso o Tribunal não podia ter julgado prescrito o direito da Recorrente.
12.ª
E nunca poderia ter assim julgado no saneador, em virtude do que foi alegado quanto às manobras da recorrida, com vista a alcançar a prescrição mesmo que o Tribunal tivesse de proceder conforme se alegou na conclusão 2.ª.
13.ª
Ao decidir assim, na perspectiva contraditada na conclusão 12.ª, o Tribunal violou o disposto no art.º 595.º, 1, a) do NCPC.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Neste Tribunal da Relação, volvidos cinco meses sobre a abertura de conclusão, ordenou-se que os autos fossem aos vistos e, colhidos estes e aberta conclusão a 07 de Novembro de 2014, permaneceram os autos sem qualquer movimentação até que, a 26 de Janeiro de 2015, foram de novo redistribuídos ao presente relator.
Com o acordo dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos integrantes do novo colectivo, dispensaram-se os vistos, atenta a natureza estritamente jurídica das questões decidendas.
Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade da decisão recorrida por violação do disposto do disposto nos artigos 591º, nºs 1, alínea b) e 4 e 195º, ambos do Código de Processo Civil;
2.2 Da nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea c) e nºs 3 e 4 e no artigo 195º, ambos do Código de Processo Civil;
2.3 Da inaplicabilidade ao caso dos autos do artigo 32º da Convenção CMR.
3. Fundamentos de facto não especificados na decisão recorrida que lhe serviram de base e que dela se retiram
3.1
B…, Lda. celebrou um contrato de transporte de mercadorias (um veículo BMW), internacional (desde a Alemanha até Portugal), em veículo comercial (veículo pesado para transporte de mercadorias com reboque) e teve conhecimento a 05 de Março de 2010 de um acidente ocorrido durante o transporte e que danificou o veículo transportado.
4. Fundamentos de direito
4.1 Da nulidade da decisão recorrida por violação do disposto do disposto nos artigos 591º, nºs 1, alínea b) e 4 e 195º, ambos do Código de Processo Civil
A recorrente suscita a nulidade da decisão recorrida por infracção do disposto nos artigos 591º, nºs 1, alínea b) e 4 e 195º, ambos do Código de Processo Civil. Esta patologia resultaria do Sr. Juiz a quo ter conhecido da prescrição do direito exercido pela autora sem curar de facultar às partes a discussão dessa excepção em sede de audiência prévia.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 5º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil aprovado em anexo à citada lei é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes.
No caso dos autos, a 01 de Setembro de 2013 estava terminada a fase dos articulados, pelo que deveria ter sido aplicado o disposto no nº 4, do artigo 5º da Lei nº 41/2013, dúvidas não havendo que a partir de então é o novo Código de Processo Civil aplicável aos presentes autos.
No caso dos autos houve alguma “errância” na determinação da lei adjectiva a eles aplicável, porquanto, por um lado, na decisão de 10 de Outubro de 2013, se convocou audiência prévia, com as finalidades previstas no artigo 591º do Código de Processo Civil, aplicação reiterada no despacho de 07 de Novembro de 2013, enquanto na decisão recorrida se afirmou que as normas aí referidas do Código de Processo Civil se referiam à versão anterior à entrada em vigor da Lei nº 41/2013.
Nos termos do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, a audiência prévia, além do mais, destina-se a facultar às partes a discussão e facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, sendo essa audiência gravada, nos termos previstos no nº 4 do mesmo artigo e do artigo 155º do mesmo diploma legal, este com as necessárias adaptações.
No caso dos autos, na audiência prévia que teve lugar a 11 de Dezembro de 2013 e a que apenas faltou a ré seguradora e respectiva mandatária, uma vez que a ré seguradora não se encontrava representada por mandatário, inviabilizando qualquer tentativa de conciliação e dado que, na perspectiva do Sr. juiz a quo, as questões a decidir eram apenas de direito, ordenou-se a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem, ao abrigo do disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil, a fim de evitar uma decisão-surpresa.
Não obstante o laconismo do despacho que se acaba de referir, o Ilustre Mandatário da autora, presente no acto, nada disse, e anuindo ao mesmo, em requerimento entrado a 17 de Dezembro de 2013, veio sustentar que os autos não continham ainda todos os elementos para ser proferida decisão no saneador, já que não havia nos autos qualquer documento que comprovasse que a autora teve conhecimento do sinistro antes de 05 de Março de 2013, alegou na resposta à contestação matéria passível de integrar um reconhecimento interruptivo do prazo prescricional, invocando até uma situação de venire contra factum proprium por parte da seguradora, tudo matérias controvertidas, cujo apuramento apenas poderia ser feito em julgamento.
Sendo para nós apodíctico que uma decisão judicial que convida as partes a, querendo, pronunciar-se, para pretensamente evitar a prolação de uma decisão-supresa, tem que identificar minimamente a matéria que é passível de integrar essa “surpresa”[2], sob pena de grosseira violação do princípio do contraditório, também é certo que logo no dia 11 de Dezembro de 2013, a autora teve conhecimento desse procedimento substancialmente violador do princípio do contraditório e, em vez de contra o mesmo diligentemente se insurgir, arguindo a nulidade de tal decisão, antes se conformou com a mesma, tomando, “às escuras”, a posição que consta do requerimento entrado em juízo a 17 de Dezembro de 2013. Daí que, na nossa perspectiva, a arguição ora efectuada em via de recurso é, para além do mais[3], intempestiva (veja-se o artigo 199º, nº 1, do Código de Processo Civil), tendo até havido uma renúncia tácita à sua arguição com a apresentação do requerimento de 17 de Dezembro de 2013 (artigo 197º, nº 2, do Código de Processo Civil), se não mesmo até uma aceitação da decisão violadora do contraditório.
A terminar importa ainda vincar que a patologia de que a recorrente se queixa não constitui uma nulidade da decisão recorrida, pois que os fundamentos de invalidade de despachos e de sentenças vêm taxativamente previstos no nº 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil (veja-se o artigo 613º, nº 3, do Código de Processo Civil, do qual resulta a aplicação das causas de nulidade da sentença aos despachos), aí não se enquadrando a situação denunciada pela recorrente.
Essa patologia, a existir, só poderia ser meramente consequencial, isto é, decorrente da prática ou omissão de um acto violador da lei adjectiva e incurso em nulidade processual. Como é sabido, o meio próprio de reacção contra a prática de nulidades processuais atípicas é a reclamação para o órgão que praticou ou omitiu o acto contrário à lei e não o recurso. Só assim não será quando o vício esteja explícita ou implicitamente coberto por uma decisão judicial[4]. Daí que seja corrente a afirmação de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”[5].
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que esta arguida nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório está sanada quer pelo decurso do prazo para a sua arguição, quer pela aceitação tácita da decisão violadora do mesmo princípio, improcedendo esta questão suscitada pela recorrente.
4.2 Da nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea c) e nºs 3 e 4 e no artigo 195º, ambos do Código de Processo Civil
A recorrente suscita a nulidade da decisão recorrida a pretexto do tribunal a quo ter considerado existir insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto e, não obstante isso, se ter abstido de promover a efectivação de audiência prévia para suprimento dessa insuficiência ou de notificar a recorrente para esse efeito, assim violando o disposto nos nºs 1, alínea c), 3 e 4, todos do artigo 591º e o artigo 195º, ambos os artigos do Código de Processo Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a audiência prévia, além do mais, a discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate.
De acordo com o nº 3 do mesmo artigo, a falta das partes ou dos seus mandatários não constitui motivo de adiamento.
Remetendo para o que antes se escreveu, a patologia ora acusada pela recorrente não integra fundamento de nulidade da decisão recorrida, só podendo essa invalidade ser consequencial, no sentido de resultar de anterior nulidade processual cometida.
Por outro lado, analisando a decisão sob censura, não resulta da mesma que hajam sido apontadas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada nos articulados.
Na verdade, na decisão recorrida, apenas se apontou a omissão de alegação de factos que qualifiquem a conduta da ré transportadora como dolosa, referindo-se que a autora se limitou a alegar que a ré seguradora a “andava a entreter” para conseguir a prescrição, não invocando nenhum facto concreto, nenhuma reclamação por si efectuada à transportadora ou à seguradora, afirmando-se que o documento nº 2 junto com a petição inicial, a folhas 11, é uma mera reclamação da transportadora à ré seguradora, não da autora a qualquer uma das rés, o que podia e devia ter feito em ordem a suspender o prazo prescricional.
No quadro normativo em que a decisão recorrida foi proferida, a factualidade articulada pelas partes era suficiente e não carecia de quaisquer esclarecimentos ou concretizações, tanto mais que não obstante a autora afirmar ter concluído que a ré seguradora a “andava a entreter” para “conseguir” a prescrição, trata-se de uma conclusão que a autora firma no conteúdo dos documentos que ofereceu com a resposta à contestação, dos quais não resulta o estabelecimento de qualquer contacto directo entre si e a ré seguradora. Por isso, esta matéria conclusiva, porque inconsequente, não carecia de qualquer concretização.
Importa não perder de vista que o despacho de aperfeiçoamento não é um instrumento processual para trazer ao processo factos inteiramente novos, mas apenas para permitir que os factos alegados pelas partes sejam expurgados de insuficiências e ou imprecisões ou concretizados, sempre no suposto de que sejam juridicamente relevantes à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito.
Os factos essenciais à constituição da causa de pedir ou integradores das excepções invocadas hão-de ser sempre alegados pelas partes, nos termos previstos no nº 1, do artigo 5º, nº 1, do actual Código de Processo Civil (artigo 264º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção que vigorava aquando da propositura da acção), sob pena de ineptidão da petição inicial, devendo o aperfeiçoamento mover-se sempre com respeito das regras relativas à conformação do objecto do processo (veja-se o artigo 590º, nº 6, do Código de Processo Civil, na redacção que actualmente vigora e que corresponde ao anterior artigo 508º, nº 5, do Código de Processo Civil, na redacção que vigorava antes da vigência do código aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho).
Assim, por tudo quanto precede, não sendo caso de aperfeiçoamento dos articulados oferecidos pela recorrente, nem tão-pouco se tendo o tribunal a quo prevalecido de uma putativa insuficiência ou deficiência das aludidas peças processuais, é patente que nem sequer se colocou a questão da eventual deficiência dos articulados e da necessidade do seu aperfeiçoamento, razão pela qual não procede esta questão suscitada pela recorrente.
4.3 Da inaplicabilidade ao caso dos autos do artigo 32º da Convenção CMR
A recorrente sustenta que a Convenção CMR não é aplicável quando o transporte internacional terrestre de mercadorias se processe entre países integrados na União Europeia, regendo-se esse transporte pelas disposições da União e dos Estados que a compõem. Por isso, ao caso dos autos, não seria aplicável o prazo prescricional previsto no artigo 32º da aludida convenção, mas sim o prazo ordinário prescricional de vinte anos, por estar em causa responsabilidade contratual.
Cumpre apreciar e decidir.
A 19 de Maio de 1956, em Genebra, sob a égide da ONU, foi assinada a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, conhecida abreviadamente como CMR, modificada pelo Protocolo de Genebra de 05 de Julho de 1978, convenção a que Portugal aderiu com o decreto-lei nº 46235 de 18 de Março de 1965, tal como aderiu ao citado protocolo pelo decreto nº 28/88, de 06 de Setembro.
Nos termos do artigo 1º, nº 1, da CMR, a convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar de carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes.
Nas disposições finais da CMR logo se previu que ficava patente à assinatura ou adesão dos países membros da Comissão Económica para a Europa e dos países admitidos na Comissão a título consultivo (veja-se o artigo 42º, nº 1, da CMR).
Na perspectiva da recorrente, a CMR, no seu capítulo III, contém previsões legais que colidem com o estabelecimento de um mercado interno ao nível da União Europeia, sem fronteiras internas e no qual a livre circulação de mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de acordo com as disposições dos Tratados, citando para abonar o seu entendimento os artigos 26º, 28º e 29º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (abreviadamente TFUE).
Os artigos 90º a 100º do TFUE disciplinam a matéria da política comum dos transportes, ressaltando de tais previsões a preocupação do legislador comunitário na implementação de regras que garantam a igualdade dos operadores de transportes na prestação desses serviços, independentemente do Estado-membro em que venham a desenvolver essa actividade ou da nacionalidade dos respectivos operadores. Porém, essa política comum dos transportes não é incompatível com a cobrança de encargos ou taxas que, para além dos preços dos transportes, forem cobrados por um transportador na passagem das fronteiras, desde que não ultrapassem um nível razoável e tendo em conta os custos reais efectivamente ocasionados por essa passagem (veja-se o artigo 97º do TFUE).
Analisando o capítulo III da CMR, constata-se que aí são estabelecidas certas exigências formais que visam assegurar a certeza jurídica nas relações jurídicas por ela abrangidas. Essas exigências recaem igualmente sobre todos os sujeitos do contrato internacional de transporte de mercadorias a que seja aplicável a CMR, sem qualquer discriminação em função da nacionalidade dos sujeitos ou do Estado em que seja celebrado o contrato.
O estabelecimento de certas regras formais por si só não colide com o direito comunitário, nem atenta contra o estabelecimento de um mercado único ao nível da União Europeia, sendo aliás numerosos os diplomas comunitários com específicas exigências de ordem formal, nomeadamente, no domínio do direito do consumo (veja-se, por exemplo, o artigo 10º, nº 1 da Directiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho).
As referências da CMR a direitos aduaneiros e a formalidades aduaneiras devem entender-se na medida em que forem efectivamente aplicáveis e não como uma imposição da existência desses direitos e formalidades.
O Tribunal de Justiça, no acórdão de 04 de Maio de 2010[6], em sede de reenvio prejudicial, já se pronunciou sobre a compatibilização do artigo 71º, nº 2, do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, com o artigo 31º, nº 2, da CMR[7], resultando evidente da argumentação aí desenvolvida que não há qualquer incompatibilidade da CMR com as regras próprias da União Europeia.
A posição sustentada pela recorrente, a ter assento legal, criaria uma situação no mínimo estranha para os transportadores nacionais em contratos de transportes internacionais de mercadorias no âmbito da União Europeia, pois que, por exemplo, em matéria de prescrição, criaria um regime muitíssimo mais gravoso do que o previsto a nível interno e que é de algum modo decalcado da CMR (veja-se o artigo 24º, nº 1, do decreto-lei nº 239/2003, de 04 de Outubro). A interpretação da recorrente, a vingar, é que seria gravemente atentatória das regras comunitárias em matéria de transportes, pois iria criar condições de exploração desiguais e mais gravosas para os transportadores nacionais a operar no âmbito da União Europeia, em confronto com aqueles que operassem apenas a nível interno ou apenas com países terceiros à União Europeia.
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que a primeira parte do nº 1, do artigo 32º da CMR não colide com o Direito da União Europeia, sendo esse normativo aplicável ao caso dos autos, não merecendo por isso censura a decisão do tribunal a quo que julgou extinto, por prescrição, o direito exercido pela ora recorrente.
As custas do recurso são da conta da recorrente, ex vi artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
5. Dispositivo
Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B…, Lda. e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida proferida a 03 de Fevereiro de 2014, no segmento impugnado.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 02 de Março de 2015
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
____________
[1] É evidente a incongruência desta alegação da autora com o que antes afirmou, sendo certo que os documentos oferecidos com a petição inicial apontam no sentido do sinistro ter ocorrido a 23 de Fevereiro de 2010.
[2] Se assim não for, a eventual pronúncia das partes é um verdadeiro exercício de adivinhação, incompatível com as exigências de um processo justo e leal.
[3] Com esta referência pretende-se aludir à questão polémica da propriedade do recurso para arguir a prática de uma nulidade processual.
[4] O Sr. Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, página 23, critica a corrente que admite a arguição de nulidade em via de recurso em casos de alegada decisão implícita por ser um critério rodeado de excessiva incerteza na definição dos exactos contornos da figura, optando antes por enquadrar tais casos na figura da nulidade da decisão por omissão de pronúncia, vício que, como é sabido, não é de conhecimento oficioso. O Sr. Professor Teixeira de Sousa, a propósito da sanção aplicável à decisão judicial que se prevalece da insuficiência dos articulados para proferir uma decisão desfavorável à parte responsável por essa insuficiência, sem que tenha previamente curado de tentar suprir essa carência, convidando as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, sustenta a nulidade dessa decisão por excesso de pronúncia (vejam-se no “blog” do IPPC as entradas a 19 de Janeiro de 2015 e a 09 de Abril de 2014 – o endereço do citado “blog” é o seguinte: “blogippc.blogspot.pt”).
[5] A este propósito veja-se o Comentário ao Código de Processo Civil do Sr. Professor José Alberto dos Reis, Volume 2º, Coimbra Editora 1945, página 507.
[6] Processo C-533/08, TNT Express Nederland BV contra AXA Versicherung AG (pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden).
[7] A pronúncia foi nos termos seguintes: “1) O artigo 71.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, num caso como o do processo principal, as regras de competência judiciária, de reconhecimento e de execução previstas numa convenção relativa a uma matéria especial, tal como a regra de litispendência enunciada no artigo 31.°, n.° 2, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, conforme alterada pelo protocolo assinado em Genebra, em 5 de Julho de 1978, e a regra relativa à executoriedade prevista no seu artigo 31.°, n.° 3, são aplicáveis desde que ofereçam um elevado nível de certeza jurídica, facilitem a boa administração da justiça e permitam reduzir ao mínimo o risco de processos concorrentes, e assegurem, em condições pelo menos tão favoráveis como as previstas no referido regulamento, a livre circulação das decisões em matéria civil e comercial e a confiança recíproca na administração da justiça no seio da União (favor executionis). 2) O Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o artigo 31.° da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada.