Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
279/14.0TAFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
AUTORIA
MANDATÁRIO JUDICIAL
MANDANTE
Nº do Documento: RP20170308279/14.0TAFLG.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 711, FLS.122-130)
Área Temática: .
Sumário: I - É imputável ao mandante a responsabilidade por uma denúncia caluniosa apresentada por mandatário judicial, agindo em nome e por conta daquele.
II - A eventual co-responsabilização do mandatário, pelo crime de denúncia caluniosa, dado o seu dever de aconselhamento técnico-jurídico, comportando “opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca” (art.º 100, n.º1, al. a) do EOA), não afasta a responsabilidade do seu mandante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 279/14.0TAFLG.P1
Secção Inst. Criminal – J2 – Inst. Central - Marco Canaveses, Comarca de Porto Este

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Secção Inst. Criminal – J2 – Inst. Central - Marco Canaveses, Comarca de Porto Este, processo supra referido, em que é arguido B…, acusado da prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º n.º 1 do CP, foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia com o seguinte teor:
“ (…)
3.2. Factos suficientemente indiciados.
1. No dia 05/08/2013, foi dirigida ao DIAP de Felgueiras, sito nesta cidade e instância local de Felgueiras, uma queixa-crime contra os ora assistentes C.. e D….
2. O arguido encontrava-se de relações sociais e familiares cortadas com os assistentes.
3. A denúncia apresentada, que correu termos pelo DIAP de Felgueiras, pelo inq. n.º 441/13.3TAFLG, tinha o seguinte conteúdo, que se transcreve, em síntese, no que interessa e é relevante:
“os arguidos remeteram para a sede da sociedade E…, Lda, duas cartas anónimas, uma delas dirigida ao seu legal representante (…), uma delas acompanhada de um cheque (…), pertencente à sociedade anónima F…, S.A., da qual são accionistas e legais representantes os arguidos. (…). Nas referidas missivas são feitas várias insinuações sobre a proveniência dos rendimentos do assistente. (…) Os arguidos agiram de forma deliberada, com pleno conhecimento da ilicitude do seu comportamento, agindo, assim dolosamente e com intuito de ofender gravemente a honra, consideração, o bom nome e reputação do assistente.”
4. No fim do inquérito, o M.P. consignou não existirem indícios suficientes da verificação do crime.
5. Contudo, ainda assim, foi deduzida acusação particular pelo crime de difamação.
6. Os assistentes e aí arguidos, notificados da acusação particular, requereram a abertura da instrução, tendo a final vindo a ser proferido despacho de não pronúncia.
7. Quer na queixa quer na acusação particular sempre foi fundamentada a convicção de que os assistentes haviam sido os autores dos factos aí denunciados, no facto de “(…) o texto eventualmente escrito pelo punho da D….”.
8. Todavia, conforme melhor consta da decisão instrutória, “o escrito (…) está escrito em computador e foi impresso por uma impressora, logo não está manuscrito para que pudesse ser comparada a sua escrita com a assinatura da arguida constante no cheque junto aos autos. Donde, perante tal depoimento, cremos que tal declaração do assistente roça a denúncia caluniosa, já que o mesmo não podia deixar de saber que estava a imputar um facto falso à arguida em causa, qual seja o de ter redigido pelo seu punho o escrito de fls. (…)”.
9. Não se conformando com tal decisão instrutória, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação, tendo a final sido mantida a decisão recorrida.
10. Na queixa-crime, na acusação particular e no recurso interposto, é afirmado terem sido os assistentes os autores materiais dos factos.
3.3. Factos não suficientemente indiciados.
11. Foi o arguido quem dirigiu ao DIAP de Felgueiras, a queixa-crime referida em 1.
12. Foi o arguido quem decidiu deduzir acusação particular referida em 5.
13. Foi o arguido quem interpôs recurso para o Tribunal da Relação.
14. Foi o arguido quem assinou e subscreveu, o referido em 11, 12 e 13.
15. O arguido sabia que os assistentes nada tinham a ver com os factos denunciados e neles não comparticiparam a qualquer título, nem os praticaram por intermédio de terceiros ou os mandaram cometer, encontrando-se consciente da falsidade das imputações.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com a intenção pré-ordenada de denunciar os assistentes, pela prática de factos ilícitos com relevância criminal, não obstante saber que tal imputação era falsa e não correspondia à realidade. 17. Agiu ainda bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
3.4. Motivação.
A factualidade dada como suficientemente indiciada resulta de uma análise das peças processuais que fazem parte do processo de inquérito 441/13.3TAFLG.G1 (queixa – fls. 64 a 68 -; acusação particular – fls. 97 a 92, requerimento de abertura da instrução – fls. 93 a 101; despacho de não pronúncia – fls. 191 a 210; e acórdão do Tribula da Relação de Guimarães – fls. 121 a 122).
Dito isto, vejamos os factos dados como não suficientemente indiciados.
Diz-se na acusação que o arguido dirigiu ao DIAP de Felgueiras a queixa-crime.
Com todo o respeito não existem indícios de ter sido o arguido, no sentido naturalístico do termo, a pessoa que enviou a queixa, porquanto não sendo a mesma por ele subscrita, já que o foi apenas pela mandatária (Dr.ª G…), tudo indicia ter sido a respectiva causídica, ou alguém desconhecido por sua ordem, quem procedeu ao envio da queixa.
Tal como foi a referida causídica quem a redigiu – aliás utilizando papel timbrado.
E o que se diz relativamente à queixa, vale exactamente nos mesmos termos para a acusação particular e para a interposição do recurso, já que as referidas peças processuais são apenas assinadas pela supra referida mandatária, o que se mostra documentado nos autos quanto à acusação particular e quanto ao recurso pese embora se não mostre junto aos autos fisicamente tal peça jurídica o normal é a mesma apenas ser subscrita por advogado, já que é obrigatória a assistência.
O que se acaba de dizer é categórico quer no que diz respeito ao envio quer no que diz respeito aos dizeres. Embora não se reconheça que o Advogado goza no exercício da sua profissão de prorrogativas destinadas ao exercício livre do mandato, não podendo ser sancionado pela prática de actos conformes ao estatuto da respectiva profissão, o certo é que a Il. Advogada não foi ouvida no processo.
Não foi, mas podia e devia. Pelo menos devia ter sido tentada a sua inquirição, certamente na qualidade de testemunha, cabendo-lhe então nessa qualidade responder ou suscitar ou não questões ligadas ao segredo profissional, mas que, se invocado, poderia ser ultrapassado mediante o recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 135.º do CPP.
E esta constatação não colide flagrantemente com uma outra e que é a de que de acordo com as regras próprias da deontologia profissional o advogado escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade.
Esta regra embora tendencialmente verdadeira não é absoluta.
E assim, sem mais, não pode ter-se por assente (mesmo que indiciariamente) que o teor da queixa corresponde ao que fora transmitido à advogada subscritora pelo ora arguido, então queixoso (e o que vale para a queixa vale para a acusação particular e para o requerimento de recurso – aliás peças processuais que encerram um conteúdo técnico-jurídico).
Na verdade, como se referiu, o subscritor de cada uma das referidas peças não foi o arguido.
É que aquela verdade, a ser quase absoluta, e não é, apenas podia valer para a queixa e já não para a acusação particular (o facto de o MP ter afirmado a ausência de indícios suficientes teria de ser um elemento de interrupção na crença na verdade do contado pelo ora arguido) e muito menos para o recurso (a própria decisão instrutória já falava em “denúncia caluniosa” – cfr. fls. 203 – mas mesmo assim a Il. mandatária interpôs recurso).
E basta olhar para o teor da queixa e da acusação particular para se constatar ser esta uma cópia daquela.
Quando se sabe que no que diz respeito à participação nos dizeres insertos nas peças processuais e às relações entre os advogados subscritores e os mandantes – a saber com recurso ao que resulta do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23/05/2012, proc. 1289/10.2T3AVR.C1, www.dgsi.pt/jtrp (e que o STJ acolheu no acórdão de 18/06/2014, proc. 144/11.3TRPRT.S1) – é possível configurar três situações distintas:
Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer;
Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido;
Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.
Se, na primeira hipótese, se poderá configurar um exemplo de comparticipação criminosa e na terceira um caso em que apenas se admite a responsabilidade exclusiva do cliente, já na segunda estamos perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.
Ora, no caso dos autos não se entende a razão para o MP ter afastado, sem mais, a responsabilidade individual do advogado (rectius a Il. advogada subscritora), ou seja a segunda hipótese supra considerada.
O MP até poderia afastar essa hipótese, mas para isso, como também supra se disse, teria de ter ouvido a Il. Advogada subscritora, tanto mais que a aposição da respectiva assinatura é seguramente um princípio de indício da imputação dos termos e dos dizeres constantes do texto.
Ou seja, teria de ser feito tal caminho. Como não foi, não pode ser imputado ao arguido que o que consta da queixa, da acusação particular e do recurso corresponde aquilo que ele transmitiu à referida mandatária.
Como se diz no acórdão do STJ acima citado, a responsabilidade do advogado estará sempre presente, em princípio, como autor do escrito, é inequívoco, e está de acordo com o decidido no acórdão do TRP de 30/4/2003, proc. 0340929, www.dgsi.pt/jtrp ”Se, numa peça processual, subscrita por advogado, se imputam ao assistente factos desonrosos, mas se ignora se tais imputações foram transmitidas ao mandatário ou se foi este que, por sua iniciativa, as lançou na peça, o mandante não pode ser por elas criminalmente responsabilizado”
No caso dos autos, o arguido não prestou declarações nem em sede de inquérito nem em sede de instrução, no exercício de um direito constitucional garantido e concretizado infra constitucionalmente, deixando assim intocada a dúvida não esclarecida pelo MP, nos termos supra afirmados, o que se mostra determinante.
E não pode colher-se no teor do seu depoimento no âmbito do processo 441/13.3TAFLG, porquanto prestado aí na qualidade de testemunha (fls. 83/84), um indício de que o teor da queixa corresponde ao transmitido à mandatária subscritora da mesma, sendo essa transposição inadmissível e atentatória aliás dos direitos que a qualidade de arguido lhe confere.
Como tal, deu o Tribunal como não suficientemente indiciada a factualidade referida em 11 a 17.
3.5. O crime imputado.
3.5.1. Dispõe o artigo 365.º do Código Penal que:
“1. Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
(…)”.
Entende-se que o bem jurídico protegido é a honra e a liberdade da pessoa visada e, reflexamente, a realização da justiça, consistindo o elemento objectivo na denúncia ou no lançamento de suspeita da prática de crime, contra-ordenação ou infracção disciplinar contra determinada pessoa, perante autoridade ou publicamente.
Ao nível do tipo subjectivo apenas o dolo directo pode ser considerado, porquanto se exige a consciência da falsidade da imputação exigindo-se ainda a intenção de que se instaure contra o visado procedimento, havendo assim um elemento subjectivo adicional o que importa um dolo qualificado.
Exige-se assim que no momento em que o agente actua este conheça a falsidade dos factos que faz constar da denúncia, ficando assim desde logo excluído o dolo eventual (quando o agente age admitindo a possibilidade da falsidade dos factos – artigo 14.º/3 do Código Penal).
Na verdade, a denúncia caluniosa inclui quer a afirmação de que o visado cometeu um crime que o denunciante sabe que não foi cometido, quer a afirmação de que o visado cometeu um crime que o denunciante sabe que foi cometido por outra pessoa, quer ainda a transmissão da afirmação (de que o visado cometeu um crime) feita por um terceiro que o denunciante sabe ser falsa – Comentário do Código Penal, Paulo Pinto Albuquerque, anotação 9 ao artigo 365.º.
No caso dos autos, não custa admitir, como se afirma, ter sido o arguido quem transmitiu à Il. mandatária Dr.ª G… o teor dos documentos recebidos nas duas cartas e manifestou o desejo de procedimento criminal.
Só que não basta essa realidade.
Na verdade, não estando suficientemente indiciado ter sido o arguido o autor dos dizeres tal como constantes da queixa, ou seja da sua transmissão nos exactos termos que dela constam, não pode afirmar-se a autoria e como tal impõe-se a sua não pronúncia.4. Decisão:
4.1. De não pronúncia.
Assim, tendo em conta o acima exposto e atento o disposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal, decido:
Não pronunciar o arguido:
B… prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365.º/1 do Código Penal, como lhe imputa o MP e ordeno o arquivamento dos autos.”
*
*
Deste Despacho recorreram os assistentes C… e D…, formulando as seguintes conclusões:
“1. A decisão instrutória e como dela decorre, para fundamentar a "factualidade dada como suficientemente indiciada" socorreu-se da analise das diversas peças processuais que fazem parte do inquérito n° 441/13.3TAFLG-C1, nomeadamente a queixa, acusação particular, requerimento da abertura da instrução, despacho de não pronúncia e acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães.
2. No âmbito da instrução requerida no âmbito dos presentes autos, não foram levadas a cabo quaisquer diligências, inquirição de testemunhas ou interrogatório do arguido,
3. Quedando-se a instrução pela análise dos documentos processuais assinalados.
4. Não obstante a faculdade concedida ao Juiz de Instrução de conformidade ao estatuído nos artigos 289°, n° 1 e 290°, n° 1, ambos do Código de Processo Penal, não foram determinados quaisquer actos instrutórios.
5. Com base no identificado inquérito - que serviu de fundamento à decisão recorrida - dever-se-ia ter considerado o depoimento do arguido na sua qualidade de queixoso e assistente onde, para além do mais afirmou que (i) declara que confirma na integra o teor do Auto de Denúncia com o NUIPC em epígrafe que lhe foi lido no presente ato", (ii) (...) que continua a desejar procedimento criminal contra os acusados, ou outros que venham a apurar- se estar na origem de tais factos”
6. De igual forma, e com recurso ao requerimento de instrução no inquérito n° 441/13.3TAFLG dever-se-ia ter tido em consideração para além de outros (iii) a impossibilidade de assinatura no verso do cheque em causa da então arguida D… e sua irmã, (iv) a circunstância referida de que o cheque em causa tinha sido enviado em 05/12/2012, e (v) o tipo de formatação do envelope que o capiou, absolutamente diferente dos juntos pelo aqui arguido".
7. O recurso às regras de experiência comum e a remissão feita na decisão instrutória para as peças processuais em causa determinariam decisão em sentido oposto à proferida no sentido da pronúncia do arguido pelo crime de que vinha acusado.
8. A conclusão de que o arguido não terá sido o subscritor da queixa apresentada contra os aqui assistentes/recorrentes, do requerimento para julgamento, dedução de acusação particular e pedido de indemnização civil e recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, outrossim a sua mandatária judicial, só colhe no entendimento de que o mesmo não terá sido o autor, a elaborar sob o ponto de vista técnico jurídico tais peças.
9. A afirmação contida na decisão recorrenda de que “não pode ser imputado ao arguido que o que consta da queixa, da acusação particular e do recurso corresponde aquilo que ele transmitiu à referida mandatária, é absolutamente contrariado pelas declarações deste já referidas,
10. Constituindo isso sim, uma opção eivada de um subjectivismo absolutamente desgarrado da realidade que subjaz do acervo documental dos autos, e que esteve na base da fundamentação da decisão instrutório como na mesma se afirma.
11. De acordo com as mais elementares regras de experiência e usualidade em questões similares, a probabilidade de tais peças terem sido elaboradas e subscritas pela mandatária judicial do arguido não exclui a sua responsabilidade quando, como é afirmado na decisão instrutória " o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade".
12. Se eventualmente subsistissem quaisquer dúvidas quanto ao relato dos factos que o arguido sabia não serem verdadeiros e da sua transmissão à sua mandatária com vista a que esta elaborasse sob o ponto de vista técnico as adequadas peças processuais, as declarações prestadas pelo arguido no sentido da "confirmação na integra" do teor da denúncia, sempre as dissipariam.
13. A decisão instrutória recorrida, que determinou a não pronúncia do arguido pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365°, n° 1 do Código Penal, não tendo efectuado um exame crítico das provas, violou e fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 127°, 283, n°s 1 e 2, e 308°, todos do Código de Processo Penal.
Termos Em Que,
Da modéstia de quanto fica e do muito de Doutamente será suprido por V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado, e, em consequência revogar-se a decisão de não pronuncia, e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática de um crime de denúncia caluniosa, como é de JUSTIÇA.”
*
Em resposta, o MºPº em 1ª Instância defendeu a improcedência do recurso, concluindo pela seguinte forma:
“1 – Não há nos autos prova segura de ter sido o aqui arguido o autor dos dizeres que fizeram parte da queixa que deu origem ao processo nº441/13.3TAFLG.G1 e onde ele era o ofendido, ou seja, que a denúncia apresentada pela ilustre Advogada em sua representação correspondeu ao conteúdo transmitido pelo aqui arguido, o que desde logo afasta a prática do crime de denúncia caluniosa;
2 – Nestes termos, aqui se defende a manutenção do douto despacho recorrido, nos seus precisos termos, não tendo sido violadas quaisquer normas legais”.
*
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, pela procedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“(…)
Pretendem os assistentes/recorrentes que seja revogada a decisão impugnada e substituída por outra que pronuncie o arguido B…, pelo crime de denúncia caluniosa que lhe vem imputado na acusação pública contra ele deduzida.
2.1 - Examinados os fundamentos do despacho recorrido, cremos, salvo o devido respeito, que os mesmos não podem, por si, sustentar a decisão de não pronúncia.
Vejamos:
Entende o Mmo Juiz a quo que não foi recolhida prova indiciária bastante da autoria da queixa que deu origem ao inquérito criminal n° 441/13.3TAFLG, uma vez que a mesma foi subscrita pela advogada Dra. G… e não se apurou se o respetivo conteúdo é ou não da lavra da própria advogada, o que geraria a dúvida quanto à responsabilidade do arguido relativamente à apresentação da queixa, naqueles termos.
Como os autos documentam, a referida queixa deu entrada nos serviços do Ministério Público de Felgueiras, no dia 6 de agosto de 2013, tendo sido subscrita pela Dra. G…, em representação do arguido, regularmente assegurada por procuração que este passou a seu favor, no dia 31 de julho de 2013 (cír. fls. 64 e 300)
Trata-se, portanto, de queixa apresentada por advogado, em representação do queixoso (aqui arguido), mediante mandato forense, tratando-se de queixa inquestionavelmente válida, à luz do disposto no artigo 49°, n° 3, do C. P. Penal.
As regras deontológicas a que estão sujeitos os advogados no exercício da advocacia impõem-lhes deveres de integridade, constituindo obrigações profissionais "a honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade" (cfr. artigo 88°, do EOA), e a defesa dos direitos, liberdades e garantias, devendo pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas (cf r. artigo 90°, do EOA). Na relação com os tribunais, o advogado está sujeito aos deveres de lealdade e de correção (artigos 108° e 110°, do EOA).
Se cumprir as regras deontológicas que assim lhe são impostas, o advogado não deixará de transpor para as peças processuais que elabora os factos que lhe forem transmitidos pelo seu constituinte. Os princípios da boa-fé e da lealdade entre os intervenientes processuais impõe que, na apreciação da intervenção processual de um advogado, se parta dessa premissa, sob pena de se gerar uma quebra de confiança suscetível de bloquear, até, o acesso aos tribunais. Nenhum sistema de justiça pode funcionar se se desconfia, à partida - sem que exista qualquer dado objetivo que possa suscitar essa desconfiança - de que o advogado atua no processo invocando deliberadamente falsidades, com intenções ocultas e sem escrúpulos.
Ora, no caso em apreço, não há nos autos nenhum elemento que permita levantar qualquer suspeita, por mais longínqua que seja, de que a advogada teve qualquer participação deturpadora do que lhe foi transmitido pelo seu constituinte no preenchimento do conteúdo da aludida queixa, pelo que, salvo o devido respeito, não passa de um juízo apriorístico e meramente especulativo dizer-se que o daquele documento pode ser da sua autoria, pelo simples facto de ter sido por ela assinado, sendo certo que o fez na qualidade da mandatária forense.
E sendo assim, na lógica do nosso raciocínio, não poderemos deixar de considerar que é de imputar, em termos indiciários, ao arguido B…, a autoria da queixa em causa.
É certo que o arguido, quando ouvido na qualidade de arguido, no exercício do seu direito ao silêncio, nada disse quanto aos factos em investigação. Não pode, portanto, esse silêncio ser valorado como elemento indiciário de que foi ele o autor dos factos. Porém, não pode, também, o silêncio ser valorado como elemento indiciário de que não foi ele o autor dos factos. O silêncio traduz-se, a final, num vazio, que o arguido poderia teria preenchido, quer no decurso do inquérito, quando foi constituído arguido, quer na instrução, quando desistiu de prestar declarações, esclarecendo verbalmente a sua intervenção nos factos ou a falta dela.
Não deixou, no entanto, de, espontaneamente e por escrito, admitir expressamente a autoria da referida queixa, seja através do requerimento por ele próprio subscrito, junto no decurso do inquérito e que constitui fls. 109/110, seja no requerimento de abertura de instrução - subscrito por advogado - quando escreveu: "12. No caso dos autos, no âmbito do processo 441/13.3TAFLG que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, o arguido participou criminalmente contra a assistente... " (cfr. fls. 234).
Tudo visto e analisado à luz das regras da lógica, da normalidade e da experiência comum, cremos poder concluir, com segurança, que há indícios suficientes de que o arguido B… foi o autor da queixa que deu origem ao inquérito criminal n° 441/13.3TAFLG.
2.2 - Por outro lado, parece-nos que, com a apresentação da referida queixa, o arguido preencheu os elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa que lhe é imputado na acusação pública contra ele deduzida.
Com efeito, sendo suficientemente seguro que, na referida queixa-crime, apresentada nos serviços do Ministério Público de Felgueiras, foram imputados aos, ora, assistentes factos desonrosos, é, também, de considerar indiciariamente provado que o autor da queixa o fez ciente da falsidade daquelas imputações e que quis que contra aqueles fosse instaurado procedimento criminal.
É, de resto, este o raciocínio que subjaz ao despacho impugnado, quando apenas põe em causa a prova indiciária da autoria da queixa, e não também a prova indiciária da falsidade do conteúdo essencial daquela e da vontade e intenção do denunciante ver instaurado procedimento criminal contra os ali denunciados.
Não se questionando, obviamente, que, nos termos do disposto no artigo 283°, n° 2 do C. P. Penal, para o qual remete o n° 2 do artigo 308° do mesmo diploma, o despacho de pronúncia depende da formulação de um juízo sobre a suficiência dos indícios: é necessário que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança - cabe dizer que é esse juízo de probabilidade de condenação que, no caso presente, ainda vislumbramos com base na prova indiciária que se mostra recolhida.
Se é certo que a condenação só pode basear-se num juízo de certeza, a verdade, também, é que a acusação e a pronúncia pressupõem tão somente um juízo de probabilidade qualificada: podem ainda persistir motivos para não crer, desde que tenham um valor inferior aos motivos para crer.
E, no caso concreto, afigura-se-nos que a investigação levada a cabo no inquérito conseguiu recolher e carrear para os autos prova que permite ainda, objectivamente, formular esse juízo de probabilidade qualificada, no sentido da condenação do arguido B….
2.3 - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que, na procedência do recurso, deverá ser revogado o despacho impugnado e ordenada a sua substituição por outro que pronuncie o arguido B… pelos factos e pelo crime que lhe são imputados na acusação pública deduzida a fls. 172/174.”
*
*
Colhidos os vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que os recorrentes C… e D… pretendem a revogação do Despacho de não pronúncia, e a sua substituição por outro que pronuncie o arguido pela prática dos factos e crime de denúncia caluniosa, imputados na acusação pública.
*
Em síntese, verifica-se o seguinte:
- Pelo MºPº foi proferida acusação contra B…, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365, n.º 1 do CP;
- Pelo arguido foi requerida a abertura de Instrução. Efectuada esta foi proferida Decisão de não pronúncia;
- Nessa Decisão, são considerados suficientemente indiciados os seguintes factos:
“1. No dia 05/08/2013, foi dirigida ao DIAP de Felgueiras, sito nesta cidade e instância local de Felgueiras, uma queixa-crime contra os ora assistentes C… e D….
2. O arguido encontrava-se de relações sociais e familiares cortadas com os assistentes.
3. A denúncia apresentada, que correu termos pelo DIAP de Felgueiras, pelo inq. n.º 441/13.3TAFLG, tinha o seguinte conteúdo, que se transcreve, em síntese, no que interessa e é relevante:
“os arguidos remeteram para a sede da sociedade E…, Lda, duas cartas anónimas, uma delas dirigida ao seu legal representante (…), uma delas acompanhada de um cheque (…), pertencente à sociedade anónima F…, S.A., da qual são accionistas e legais representantes os arguidos. (…). Nas referidas missivas são feitas várias insinuações sobre a proveniência dos rendimentos do assistente. (…) Os arguidos agiram de forma deliberada, com pleno conhecimento da ilicitude do seu comportamento, agindo, assim dolosamente e com intuito de ofender gravemente a honra, consideração, o bom nome e reputação do assistente.”
4. No fim do inquérito, o M.P. consignou não existirem indícios suficientes da verificação do crime.
5. Contudo, ainda assim, foi deduzida acusação particular pelo crime de difamação.
6. Os assistentes e aí arguidos, notificados da acusação particular, requereram a abertura da instrução, tendo a final vindo a ser proferido despacho de não pronúncia.
7. Quer na queixa quer na acusação particular sempre foi fundamentada a convicção de que os assistentes haviam sido os autores dos factos aí denunciados, no facto de “(…) o texto eventualmente escrito pelo punho da D….”.
8. Todavia, conforme melhor consta da decisão instrutória, “o escrito (…) está escrito em computador e foi impresso por uma impressora, logo não está manuscrito para que pudesse ser comparada a sua escrita com a assinatura da arguida constante no cheque junto aos autos. Donde, perante tal depoimento, cremos que tal declaração do assistente roça a denúncia caluniosa, já que o mesmo não podia deixar de saber que estava a imputar um facto falso à arguida em causa, qual seja o de ter redigido pelo seu punho o escrito de fls. (…)”.
9. Não se conformando com tal decisão instrutória, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação, tendo a final sido mantida a decisão recorrida.
10. Na queixa-crime, na acusação particular e no recurso interposto, é afirmado terem sido os assistentes os autores materiais dos factos”.
- Não foi considerado suficientemente indiciado que tenha sido o arguido quem dirigiu ao DIAP de Felgueiras a queixa-crime, que tenha decidido deduzir acusação particular e que tenha interposto recurso para o Tribunal da Relação;
- Também não foi considerado suficientemente provado que “o arguido sabia que os assistentes nada tinham a ver com os factos denunciados e neles não comparticiparam a qualquer título, nem os praticaram por intermédio de terceiros ou os mandaram cometer, encontrando-se consciente da falsidade das imputações”, e que tenha agido “de forma livre, voluntária e conscientemente, com a intenção pré-ordenada de denunciar os assistentes, pela prática de factos ilícitos com relevância criminal, não obstante saber que tal imputação era falsa e não correspondia à realidade”, “sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.
*
Na fundamentação desta Decisão, é considerado não “ter sido o arguido, no sentido naturalístico do termo, a pessoa que enviou a queixa, porquanto não sendo a mesma por ele subscrita, já que o foi apenas pela mandatária (Dr.ª G…), tudo indicia ter sido a respectiva causídica, ou alguém desconhecido por sua ordem, quem procedeu ao envio da queixa”.
E isso “vale exactamente nos mesmos termos para a acusação particular e para a interposição do recurso, já que as referidas peças processuais são apenas assinadas pela supra referida mandatária”.
Acrescenta-se que “não custa admitir, como se afirma, ter sido o arguido quem transmitiu à Il. mandatária Dr.ª G… o teor dos documentos recebidos nas duas cartas e manifestou o desejo de procedimento criminal. Só que não basta essa realidade”, acabando-se por concluir não estar “suficientemente indiciado ter sido o arguido o autor dos dizeres tal como constantes da queixa, ou seja da sua transmissão nos exactos termos que dela constam”.
*
Insurgem-se os recorrentes, alegando que «a conclusão de que o arguido não terá sido o subscritor da queixa apresentada contra os aqui assistentes/recorrentes, do requerimento para julgamento, dedução de acusação particular e pedido de indemnização civil e recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, outrossim a sua mandatária judicial, só colhe no entendimento de que o mesmo não terá sido o autor, a elaborar sob o ponto de vista técnico jurídico tais peças».
Acrescenta-se que «a probabilidade de tais peças terem sido elaboradas e subscritas pela mandatária judicial do arguido não exclui a sua responsabilidade quando, como é afirmado na decisão instrutória " o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade"».
*
Têm toda a razão.
Basicamente, a decisão comporta um desconhecimento do que constitui um mandato judicial, entendendo-se que a mandatária praticou os actos judiciais em causa em nome próprio e que deveria ser ela a responsabilizada («não se entende a razão para o MP ter afastado, sem mais, a responsabilidade individual do advogado (rectius a Il. advogada subscritora»).
Procurando, pois, esclarecer esse equívoco comece-se por referir que o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra – artigo 1157º C.C.
O judicial constitui uma forma especial de mandato em que o advogado (ou solicitador) se obriga a praticar actos jurídicos próprios da sua profissão, em nome e por conta do mandante, regendo-se pelo regime geral do Código Civil (art.º 1157 e ss.) pelas normas especiais constantes do Estatuto da Ordem dos Advogados (art.º 97 e ss.), e quanto à prática de actos judiciais, pelas normas do Código de Processo Civil (art.º 40 e ss.).
Sem prejuízo da sua autonomia técnica, o advogado age segundo as instruções do mandante, em sua representação, em nome e por conta do mesmo, sendo por isso o mandato judicial (ou mais latamente o forense) obrigatoriamente acompanhado da outorga desses poderes de representação.
Ora, actuar em nome de outrem, em sua representação, significa que os actos jurídicos praticados em nome do representado produzem os seus efeitos na esfera jurídica deste, que fica titular dos direitos e obrigações dos mesmos decorrentes.
Pode-se, assim dizer que o mandatário judicial se coloca no lugar do representado, actuando como se fosse este a agir, prosseguindo os seus interesses.
No caso, a queixa apresentada (que até o poderia ter sido em nome próprio pelo queixoso, visto que não faz parte do elenco de actos em que é obrigatório a representação por advogado), e os actos judiciais subsequentes, foram praticados em nome e por conta do arguido, sendo-lhe imputável a sua responsabilidade.
A menos que demonstre que o mandatário agiu contra as suas instruções, e não segundo as mesmas como se presume que o terá feito.
Tal como bem afirma a Sra. Procuradora Geral-Adjunta, “não há nos autos nenhum elemento que permita levantar qualquer suspeita, por mais longínqua que seja, de que a advogada teve qualquer participação deturpadora do que lhe foi transmitido pelo seu constituinte no preenchimento do conteúdo da aludida queixa, pelo que, salvo o devido respeito, não passa de um juízo apriorístico e meramente especulativo dizer-se que o daquele documento pode ser da sua autoria, pelo simples facto de ter sido por ela assinado, sendo certo que o fez na qualidade da mandatária forense”.
Assim, tendo-se considerado suficientemente indiciados os factos objectivos integrantes do crime de denúncia caluniosa, nomeadamente, que na queixa-crime em referência são imputados aos assistentes (aqui recorrentes) factos desonrosos falsos, tem nenhum cabimento legal afastar o dolo específico e genérico próprio do crime em causa, com o argumento de que esse e os outros actos judiciais subsequentes, não são da autoria do mandante, mas da sua mandatária.
Esse dolo específico e genérico é, pois, deduzível dos factos materiais indiciados. Sendo de também considerar indiciariamente provado que o autor da queixa estava ciente da falsidade daquelas imputações e que quis que contra os aqui assistentes/recorrentes fosse instaurado procedimento criminal.
Acrescente-se que a eventual co-responsabilização da mandatária, dado o seu dever de aconselhamento técnico-jurídico, comportando “opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca” (art.º 100, n.º1, al. a) do EOA), não afastaria a responsabilidade do seu mandante, aqui arguido.
Em conclusão, o recurso merece provimento.
*
Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a Decisão recorrida, e determinando-se a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pela prática dos factos e crime de denúncia caluniosa, imputados na acusação pública.
*
Sem custas.
*
Porto, 08/03/2017
José Piedade
Airisa Caldinho