Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
246/14.4T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE BURLA
CHEQUE
ARTIFÍCIO FRAUDULENTO
PATRIMÓNIO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RP20170712246/14.4T9VFR.P1
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 40/2017, FLS.94-107)
Área Temática: .
Sumário: I - A conduta do arguido, obtendo através do artifício fraudulento – que consistiu em fazer crer que emitira uma ordem de transferência bancária, do montante da dívida - a devolução do cheque que havia emitido para pagamento de salários e havia entregue à ofendida, causou a esta um prejuízo patrimonial, pois que ficou destituída, não apenas de um meio de pagamento e título executivo, como, de um crédito de que era legítima detentora, traduz a ocorrência de uma diminuição do seu património imediato.
II - E, assim sendo, uma vez que se julgou como não provado que o arguido actuou perfeitamente, ciente de que as aludidas condutas eram proibidas e punidas por lei, com base no facto de se ter considerado que não existia crime de burla, por ausência de prejuízo patrimonial, existe erro notório na apreciação da prova, a impor a alteração deste segmento da matéria de facto, que deve passar para o elenco dos factos provados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 246/14.4T9VFR.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C.S. nº 246/14.4T9VFR do Tribunal da Comarca de Aveiro - Santa Maria da Feira - Juízo Local Criminal – J2 foram julgados os arguidos
B…, e
C…, Ld.ª pessoa coletiva n.º ………..

D… deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido B…, em representação da sociedade arguida, no pagamento da quantia global de €1.842 (mil oitocentos e quarenta e dois euros), sendo a quantia de €567 (quinhentos e sessenta e sete euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora contados desde a data do vencimento do cheque até efetivo e integral pagamento, e a quantia de €1.250 (mil duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros legais desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
Por decisão de fls. 208, foi declarado extinto o procedimento criminal e a instância cível relativamente à sociedade arguida, prosseguindo os autos para apreciação da responsabilidade do arguido B….

Após julgamento por sentença de 13/2/2017 foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julga-se a acusação e pedido de indemnização civil totalmente improcedentes e, em consequência, decide-se:
❖ Parte Criminal
a) Absolver o arguido B… da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. a), do DL n.° 454/91, de 28/12, que lhe vinha imputado;
b) Absolver o arguido B… da prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.°, n.° 1 do CP, que lhe vinha imputado;
c) Declarar que não são devidas custas criminais;
*
❖ Parte Civil
d) Absolver o demandado B… do pedido de indemnização civil deduzido;
e) Declarar que não são devidas custas cíveis.

Recorre o MºPº o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões
1. Nos autos foi o arguido B… absolvido da prática, em autoria material de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1 do Código Penal.
2. A decisão recorrida enferma de erro na aplicação do direito, violando o disposto no artigo 217º, n.º1 do Código Penal, ao considerar não integrar como elemento típico do crime, o prejuízo patrimonial sofrido por D... com a entrega ao arguido, através de E…, do cheque n.º ………, que aquele preencheu e lhe entregou para pagamento da quantia de €567,80 da qual era devedor.
3. Como defendido pelo Tribunal recorrido, o crime de burla mostra-se preenchido com o acto de disposição que implique a diminuição do activo patrimonial da vítima.
4. Ora, o cheque titulava um crédito da ofendida, assumindo-se, por isso, como um activo na esfera patrimonial desta, pelo que, a sua devolução acarretou-lhe uma diminuição desse activo, decorrendo de tal acto que o conjunto de valores patrimoniais da mesma foi diminuído mercê da renúncia à cobrança de tal valor através daquele título.
5. Tal é suficiente para se afirmar pela efectiva verificação do prejuízo patrimonial nesse momento e, em consequência, da verificação de todos os elementos típicos do crime de burla, pois que quanto aos demais elementos típicos os mesmos mostram-se verificados, tal como assim também concluiu o Tribunal recorrido.
6. Verificados que se mostram todos os elementos do tipo objectivo do crime, deverá dar-se como demonstrado todos os seus elementos subjectivos, nomeadamente que o arguido actuou perfeitamente ciente que a aludida conduta era proibida e punida por lei.
7. Pelo que, deve por isso, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1 do Código Penal.

O arguido não respondeu
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):
“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A) Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:
1. A sociedade «C…, Ld.a» era uma sociedade por quotas, com sede na Praça …, …, em São João da Madeira, matriculada sob o n.° ………, com início de atividade em 05/02/2013.
2. Desde a sua constituição e até ao dia 10/11/2014 que o arguido B… foi sócio e gerente, de direito e de facto, da sociedade arguida, assumindo as funções de direção e organização da empresa, dando ordens e instruções e controlando toda a atividade, chamando a si a iniciativa e a responsabilidade por todas as decisões a que dava execução, permanecendo com tais funções desde esse dia e até ao encerramento da atividade da sociedade.
3. D… trabalhou nas instalações da sociedade arguida durante o mês de julho de 2014 e até dia não apurado do mês de agosto de 2014, mas anterior ao dia 13 de agosto, por conta e sob a direção e instruções do arguido B…, data em, que rescindiu o contrato de trabalho.
4. No dia 13 de agosto de 2014, como meio de pagamento da retribuição que era devida a D…, o arguido B… preencheu e assinou pelo seu punho o cheque n.° ………, datado de 15 de agosto de 2014, sacado da sua conta número ……….., sedeada na F…, em numerário e por extenso com o valor de €567,80 (quinhentos e sessenta e sete euros e oitenta cêntimos) e à ordem de D…, entregando-o de seguida.
5. Na posse do cheque, D… entregou-o a E…, seu marido, para depósito na conta do casal, o que este fez no dia 20 de agosto de 2014, na agência da F…, em …, Santa Mara da Feira, tendo o cheque sido devolvido, na mesma data, por falta de provisão.
6. Em face da devolução do cheque, D… e o seu marido E… encetaram contactos com o arguido a fim lhe pagar aquela quantia.
7. Na sequência desses contactos, no dia 08 de setembro de 2014, E… deslocou-se às instalações da sociedade em causa, local onde o arguido exigiu a devolução do original do cheque que entregou a D…, comprometendo-se a efetuar uma transferência bancária de igual valor, assim decidindo pôr em execução um novo plano de modo a fazer crer que iria pagar aquela quantia, apoderando-se do original do cheque que entregara.
8. Assim determinado, na presença de E…, nesse dia, através da Internet, o arguido entrou no site do G… e acedeu à conta da sociedade «C…, Ld.a», com o n.° …. …. …., e simulou a realização de uma transferência bancária a favor de D…, com os seguintes dados: Conta G… - C… LDA
Conta origem: …. …. ….
NIB destino: …. …. ………. ..
Nome titular da conta destino: D…
Referência: Pagamento por Conta
Montante: 567,80EUR;
Data da operação: 2014-09-08
9. Após a inserção de tais dados e sem que validasse a transferência bancária, por saber que a conta não dispunha de saldo para a concretizar, o arguido imprimiu em documento os dados que introduziu no sistema bancário.
10. De seguida, entregou esse documento a E…, fazendo-o crer que a operação havia sido concretizada, conseguindo, por essa via, fazê-lo entregar o original do cheque que detinha.
11. Ao não receber o montante titulado pelo cheque, D… teve um prejuízo patrimonial no valor correspondente ao ali inscrito, por ter prestado trabalho por conta da sociedade «C…, Ld.a» sem receber o respetivo pagamento, acrescidos dos encargos na sua devolução.
12. Ao preencher e assinar o supra mencionado cheque e ao entregá-lo para pagamento a D…, o arguido sabia que o seu pagamento iria ser recusado pelos serviços da compensação e que seria devolvido com a menção de falta de provisão, por não dispor em conta dos fundos suficientes para pagamento do referido cheque.
13. Ao entregar aquele cheque como meio de pagamento a D… nas condições descritas, quis e conseguiu o arguido causar-lhe um prejuízo patrimonial, pelo menos no montante ali titulado.
14. E, ao simular a realização daquela transferência bancária, sabia o arguido que a conta da sociedade «C…, Ld.a» não dispunha de saldo que permitisse concluir aquela transferência com sucesso, o que não o demoveu de realizar a operação com o claro e único propósito de entregar um documento a E… que o fizesse acreditar que a transferência havia sido feita, assim logrando criar naquele o convencimento da regularidade da operação, levando-o a entregar o cheque que detinha consigo.
15. O arguido quis e conseguiu obter um benefício que sabia não ter direito, furtando-se ao pagamento a D… do tempo de trabalho que a mesma exerceu naquela sociedade, apoderando-se desse valor, que assim usou em proveito próprio e no da sociedade «C…, Ld.a».
16. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, por si e em nome, representação e no interesse da sociedade «C…, Ld.a».
17. Até à presente data, D… não recebeu a quantia de €567,80 (quinhentos e sessenta e sete euros e oitenta cêntimos).
18. Tendo suportado a quantia de €25 (vinte e cinco euros), a título de encargos com a devolução do cheque.
*
19. O arguido é divorciado.
20. Tem uma filha com 16 anos de idade, que reside com a progenitora.
21. O arguido reside com a mãe e a avó, em casa daquela.
22.Era empresário.
23. Entretanto, foi motorista numa empresa, durante três meses, auferindo a quantia mensal de €636 (seiscentos e trinta e seis euros), acrescida de subsídio de alimentação.
24. Encontra-se desempregado há sete meses, não auferindo qualquer subsídio.
25. Beneficia da ajuda da mãe e da avó.
26. Encontra-se obrigado ao pagamento da quantia de €236 (duzentos e trinta e seis euros), a título de pensão de alimentos devida à sua filha menor, que não tem pago.
27. Não suporta encargos com empréstimos.
28. Não tem passado criminal.
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B) Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente, os seguintes:
a) Que D… tenha trabalhado para a referida sociedade até ao dia 13 de agosto de 2014, data em que rescindiu o contrato de trabalho;
b) Que o cheque tenha sido preenchido e entregue no dia 15 de agosto de 2014;
c) Na posse do cheque, D… apresentou-o a pagamento na agência da F…, em …, Santa Mara da Feira, o que fez no dia 20 de agosto de 2014;
d) O arguido atuou perfeitamente ciente que as aludidas condutas eram proibidas e punidas por lei;
e) Em virtude do comportamento do arguido, a demandante sentiu-se humilhada, vexada, perturbada, desanimada, diminuída na sua auto estima e revoltada.
*
III. MOTIVAÇÃO
Tendo o arguido exercido o direito ao silêncio quanto aos factos imputados, o Tribunal fundou a sua convicção, concreta e globalmente, no confronto, apreciação e análise crítica, das declarações da demandante, dos depoimentos das testemunhas inquiridas e dos documentos constantes dos autos, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Assim, os elementos caracterizadores da sociedade «C…, Ld.a» e respetiva gerência de direito no período temporal referido resultaram da certidão permanente de fls. 55 ss.
A gerência de facto da referida sociedade nos termos descritos resultaram das declarações da demandante D…, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas H…, I… e J…, todas ex-trabalhadoras da sociedade, sob as ordens e orientações do arguido, esta última até à data em que a mesma encerrou a sua atividade, tendo todas sido colegas de trabalho de D….
A demandante D…, de forma que se nos afigurou sincera, imparcial e coerente, referiu-se ao período em que trabalhou para a sociedade, às circunstâncias da emissão e entrega do cheque em causa nos autos para pagamento da retribuição devida pelo seu trabalho, às circunstâncias do depósito do referido cheque e, bem assim, ao sucedido após a devolução do mesmo por falta de provisão, descrevendo, de modo concreto, circunstanciado e convincente todo o comportamento do arguido, bem como as respetivas consequências, evidenciando relatar os factos ocorridos, quer os mesmos se reconduzissem ou não à versão da acusação, sem qualquer pretensão de empolamento do sucedido.
Por isso, as suas declarações mereceram a credibilidade do Tribunal.
Tais declarações foram corroboradas pelo depoimento da testemunha E…, seu marido, que se referiu ao depósito do cheque, por si efetuado, à devolução do mesmo por falta de provisão, à sua deslocação às instalações da sociedade para receber a quantia em dívida, na sequência dos contactos estabelecidos com o arguido, à transferência que o mesmo, supostamente, efetuou na sua presença, cujo "comprovativo" lhe entregou mediante a devolução do original do cheque e, bem assim, ao facto de a quantia supostamente transferida nunca ter dado entrada na conta de destino.
As declarações da demandante e da testemunha E… obtiveram, ainda, sustentação nos documentos constantes dos autos, a saber:
- Declaração de fls. 6, datada de 13 de agosto de 2014, efetuada na data da entrega do cheque, como referido pela demandante D…;
- Cópia do cheque de fls. 6 e 49, da qual se alcança o respetivo número, a conta sacada, a respetiva titularidade, a data de emissão, o montante e o nome do beneficiário;
- Comprovativo do depósito do cheque de fls. 7;
- Extrato bancário de fls. 26 ss, da conta cujo 1.° titular é o marido da demandante e do qual se constata o depósito do cheque, a sua devolução na mesma data e a inexistência de qualquer movimento a crédito correspondente à transferência supostamente efetuada em 08/09/2014;
- Extrato bancário de fls. 48 da conta titulada pelo arguido e do qual se constata a devolução do cheque;
- Fotocópia da notificação enviada pelo banco ao arguido na sequência da devolução do cheque de fls. 69;
- Documento de fls. 8, suposto comprovativo da transferência alegadamente efetuada pela Internet, em 08/09/2014, de quantia equivalente à titulada pelo cheque devolvido, da conta titulada pela sociedade (cfr. informação bancária de fls. 85) para a conta da demandante;
- Extrato bancário de fls. 89 ss da conta titulada pela sociedade, designadamente extrato relativo ao mês de setembro de 2014 (fls. 93), do qual se constata a inexistência de qualquer movimento a débito correspondente à transferência supostamente efetuada em 08/09/2014.
Dos depoimentos das testemunhas H…, I… e J… resultou que, em agosto de 2014, o arguido reuniu com os funcionários da empresa, na qual lhes comunicou que, em virtude de dificuldades económicas, não podia pagar os salários e que os pagaria mais tarde. A D… colocou à consideração a possibilidade de o seu salário ser pago em primeiro lugar, em face da sua débil situação económica, tendo os colegas de trabalho aceitado que assim fosse. Quanto ao sucedido posteriormente, estas testemunhas não têm conhecimento direto, tendo as testemunhas H… e I… referido que a D… lhes transmitiu não ter chegado a receber o dinheiro.
Os aspetos subjetivos que se assentaram resultaram dos factos objetivos apurados, em conjugação com as regras da experiência comum. Com efeito, o arguido, como titular da conta, não podia deixar de saber que a mesma não dispunha de fundos suficientes para proceder ao pagamento do cheque que emitiu (cfr. extrato bancário de fls. 48), dessa forma causando um prejuízo patrimonial à beneficiária do cheque, e, enquanto gerente da sociedade, também não podia deixar de saber que, na data da suposta transferência, a conta não dispunha de saldo suficiente para a concretizar (fls. 90 e 93). E isso, aliado ao facto de a transferência nunca se ter realizado, leva-nos a concluir pelo propósito que presidiu à sua atuação. Finalmente, não resultam dúvidas de que o arguido atuou de forma livre (porque não coagido), voluntária (porque quis) e consciente (com capacidade para avaliar a (i)licitude dos seus atos e de se determinar de acordo essa avaliação).
As condições pessoais, familiares e económicas, resultaram das declarações do arguido, não contrariadas por outra prova.
A ausência de passado criminal resultou do certificado de registo criminal junto aos autos.
Levou-se tal matéria (condições pessoais e passado criminal) à matéria assente apenas com vista a salvaguardar o entendimento (que não é o nosso) segundo o qual correspondendo a factos apurados deverão constar da sentença independentemente da decisão a proferir.
Quanto à matéria vertida nas alíneas a), b) e c) dos factos não provados, provou-se o constante dos pontos 3, 4 e 5, respetivamente, em conformidade com o supra explanado.
A resposta negativa à matéria referida em d) resulta da interpretação das disposições legais nos termos infra constantes da fundamentação de direito. O vertido na alínea e) quedou não provado por ausência de prova.
Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante ou conclusiva.”
*
São as seguintes as questões a apreciar:
- Modificação da matéria de facto
- Se se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de burla
- e em caso positivo a determinação da pena
*
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
De tais vícios nenhum deles é suscitado e vista a decisão não os vislumbramos

Vejamos as questões recursivas.
Para absolver o arguido do crime de burla, único questionado pelo recorrente, a decisão recorrida, dando por verificados os elementos típicos de tal crime exclui a existência de prejuízo patrimonial, expressando-se do seguinte modo:
Dispõe o art. 217, n.° 1 do CP que «[q]uem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
São os seguintes os elementos constitutivos do tipo de burla:
■ A conduta astuciosa do agente;
■ O erro ou engano da vítima sobre factos, provocado pela conduta astuciosa do agente;
■ O ato de disposição patrimonial realizado pela vítima em consequência do erro ou do engano em que foi induzida;
■ O prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro em consequência do ato de disposição patrimonial realizado;
■ A intenção de obtenção de um enriquecimento ilegítimo, próprio ou alheio;
■ O dolo, em qualquer das suas modalidades, no sentido de conhecimento e vontade relativamente aos elementos do tipo objetivo (arts. 13.° e 14.°, ambos do CP).
O bem jurídico protegido pela incriminação da burla é o património globalmente considerado.
A astúcia engloba os estratagemas, os ardis, os meios de iludir, mas pode corporizar-se em simples mentiras, não se exigindo a prática de atos materiais configuradores de uma mise en scène (Ac. do STJ de 24/04/2008, proferido no processo n.° 06P3057, pelo relator Souto de Moura, in www.dgsi.pt).
«É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e atuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar atos em prejuízo do seu património ou de terceiro» (Ac. do STJ de 20/03/2003, proferido no processo n.° 03P241, pelo relator Simas Santos, in www.dgsi.pt).
O erro ou engano deve incidir sobre factos e traduz-se numa falsa representação da realidade.
O crime de burla é um crime de dano, uma vez que a ocorrência de um efetivo prejuízo no património da vítima ou de terceiro é elemento do tipo.
O prejuízo patrimonial consiste numa diminuição do ativo ou num aumento do passivo patrimonial de uma pessoa, comparando o conjunto dos valores patrimoniais dessa pessoa antes e depois da prática do facto.
Deve ser a conduta astuciosa do burlão que conduz o burlado ao erro ou engano e, em consequência desse erro ou engano, o burlado levará a cabo uma conduta da qual resulta prejuízo patrimonial para si ou para terceiro.
O burlado, em consequência do erro ou engano, deve realizar uma disposição patrimonial, isto é, a entrega de uma coisa ou a prestação de um serviço, que pode consistir num fazer (realizar um pagamento) como num omitir (renunciar a um crédito); decisivo é que o prejuízo se cause pelo ato de disposição realizado pelo próprio sujeito passivo voluntariamente, ainda que com uma vontade viciada.
Nas palavras de ALMEIDA COSTA, «a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
A consumação do crime exige um «duplo nexo de imputação objetiva»: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património e entre estes atos e a verificação do prejuízo patrimonial (ALMEIDA COSTA, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, p. 293).
No caso concreto, resulta da factualidade assente que E…, marido de D…, entregou ao arguido o original do cheque que detinha e que tinha sido entregue pelo arguido àquela para pagamento da retribuição que lhe era devida. Fê-lo porque o arguido o fez acreditar que o mesmo, na sua presença e através da Internet, havia efetuado uma transferência bancária no valor correspondente ao titulado pelo cheque, a favor de D…, entregando-lhe o documento da suposta transferência realizada.
Assim, a conduta do arguido, usando de astúcia (na presença de E…, entrou no site da internet do G…, acedeu à conta da sociedade «C…, Ld.a», com o n.° …. …. …., e simulou a realização de uma transferência bancária a favor de D…, no valor correspondente ao titulado pelo cheque, imprimiu o documento com os referidos dados e entregou-o) causou um engano a E… (que pensava que o arguido tinha, efetivamente, realizado a transferência), levando-o, desse modo, a entregar o original do cheque que detinha consigo.
Portanto, existiu uma conduta astuciosa do arguido que motivou um engano de E…. Em consequência desse engano, E… praticou um ato, que consistiu na entrega do original do cheque. Contudo, não foi o ato de entrega do original do cheque por parte de E… que causou o prejuízo patrimonial de E…. O prejuízo patrimonial é prévio ao ato de E…, porquanto existia desde a devolução do cheque para pagamento do trabalho prestado por E…. Ou seja, a atuação do arguido sobre E… apenas impediu a recuperação de um prejuízo patrimonial já verificado através da instauração de uma ação executiva, tendo o cheque como título executivo (sem impedir a recuperação de tal prejuízo por outros meios judiciais), mas não foi causa desse mesmo prejuízo patrimonial.”

- Como anota o Mº Pº há uma verdadeira contradição nos seus termos, entre os factos e o direito que cita.
Vejamos.
Se para nós, como escrevemos no rec nº529.11.5TABGC.P1, é verdade que:
“É comummente aceite, senão a existência de um triplo nexo causal (a astúcia seja causa do erro ou engano; do erro ou engano resulte o acto da vitima, e esse acto seja causa do prejuízo patrimonial) - F. Palma e Rui Pereira, O crime de burla no Cód Penal de 1982 e 1985, in Revista de FDL, XXXV, 2, pág. 323 e ss, pelo menos dum duplo nexo causal traduzido em que ” … o processo fraudulento deve ser causa de um erro e este deve ser causa de uma entrega indevida “ Prof. Beleza dos Santos, RLJ ano 76, pág. 326 ( e há ainda quem defenda um quadruplo nexo causal, de que dá noticia Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, II, Coimbra ed. 1999, pág. 294).
Daqui pareceria que terá de existir sempre um processo fraudulento, traduzido numa acção enganatória com artifício que induz o enganado a aceitar a disposição patrimonial, uma “ mise en scéne “ ou encenação “manoeuvre frauduleuse” ao jeito francês (e do nosso Código penal de 1886) cfr. Sousa Brito, Dto Penal II, ob. cit. pág. 122 e ss).
Na fase actual da Doutrina e Jurisprudência, e em face do actual Código Penal (em que não existe uma forma vinculada de cometimento do ilícito) “a mis en scéne” não deve revestir carácter exclusivo, como se apenas desse modo se devesse caracterizar a acção enganatória do agente, por ser redutora da imaginação do enganador e da realidade social mas também porque “ …. O agente pode proceder com a maior astúcia aproveitando habilmente condições em que, por inspirar confiança, por escolher o momento em que uma verificação é menos provável ou menos cautelosa, a sua mentira á facilmente acreditada, mesmo por pessoas acauteladas e não tem necessidade de lhe acrescentar qualquer facto material” Sousa Brito, ob. loc. cit. pág. 126;
Assim a acção enganatória no crime de burla traduzida no erro ou engano “astuciosamente” provocado preenche-se com a “ mentira qualificada” (e não apenas com manobras fraudulentas ou mise en scéne que não reveste elemento típico de carácter exclusivo no crime de burla), em que o enganador tem “o domínio do erro” que causa a acção do enganado, pois que “ a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com as escolhas dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. (…) e longe de envolver de forma inevitável a adopção de processos rebuscados, aquela sagacidade comporta uma regra de “ economia de esforços”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função disposição das características da situação e da vítima” – Almeida Costa, Comentário cit. pág. 298. Assim a “astúcia” traduz-se na habilidade para enganar ou para aproveitar as circunstâncias preexistentes, para defraudar, e ocorre de igual modo, no dizer do STJ Ac. 19/5/94 in CJ STJ II, 216, “ criando a aparência de realidades que não existem (dizendo ou fazendo crer que existe o que não existe) a criação, ou falsando directamente a realidade (manifestando expressamente uma mentira “ o que é particularmente evidente no caso das “ acções concludentes”, no âmbito da quais afigura-se-nos que a simples mentira releva na medida em que o agente enganador tenha o domínio do erro e este erro seja penalmente relevante o que acontecerá se ofender os princípios da boa fé, que deve presidir às relações humanas e aos parâmetros ético sociais vigentes. “ Ao reflectir uma deslealdade tida por inadmissível no comercio jurídico, o domínio do erro que viole os ditames da boa fé consubstancia, desde que preenchidos os demais pressupostos do delito, o desvalor característico do ilícito da burla , integrando nessa medida, a expressão acabada do conteúdo da previsão do artº 217º.” Almeida Costa, Comentário, ob. cit. pág. 300;
Sendo que, como expressa Carlos Alegre, Crimes contra o património, pág. 108 ss “ pode haver astúcia numa simples mentira” e pode “ ir até ao aspecto mais simples de um abuso da sua boa fé”. E se assim é ao nível da conduta (acção) do agente, o que importa para o preenchimento dos elementos típicos do crime é a existência do nexo causal entre o acto do arguido e a disposição patrimonial do ofendido, ou seja a entrega do bem pelo ofendido (disposição patrimonial) seja consequência adequada e real do engano que lhe foi causado pelo arguido, donde o acto de enganar (astucioso) tem de ser anterior à entrega, (ou um seguido ao outro) pois primeiro tem de existir o convencimento (feito por acção do arguido) do ofendido a fazer a posterior disposição patrimonial, devendo uma (a acção enganosa do arguido) ser causa da outra (entrega/ disposição patrimonial pelo ofendido), pois como expressa Sousa Brito, Dto Penal II, AAFDL, pág. 149 “ Assim como o meio enganatório tem que causar o erro ou engano, que é o resultado do emprego daquele meio, também o erro tem que causar a disposição patrimonial” ou seja o erro é o motivo da disposição, daí a necessidade de naturalisticamente a acção de enganar ser anterior ou contemporânea (mas naturalisticamente antes) da disposição patrimonial.
Assim para o crime de burla a astúcia relevante é apenas a que provoca os actos da vítima (de disposição/ entrega) e não a posterior a esses actos.
Como expressa o STJ Ac. 12/3/92 proc. 42115 in Simas Santos et alli, Jurisprudência Penal, 1995, pág. 313 “ 2- o engano provocado astuciosamente é o primeiro momento do crime. O segundo momento consiste na prática de actos que causem prejuízo, tendo de existir uma relação entre os meios empregues e o erro ou engano e entre este e os actos que vão directamente defraudar o património do burlado ou de terceiro.” e ainda “ a actividade enganosa que provoca o erro ou engano sobre os factos têm de preceder o enriquecimento ilegítimo e de certa maneira provocá-lo (…) é essencial que o empobrecimento da vitima resulte do engano produzido pelo agente… ”- ac. STJ 24/6/93 proc 44287 Simas Santos et alli, Jurisp Penal cit. pág. 612, e por isso anterior à disposição patrimonial”
Tendo presente estes dados que se verificam no caso como os factos provados demonstram, atentemos, no segmento que está em causa e que se traduz em averiguar qual o sentido do conceito insito na norma incriminadora traduzido no “ prejuízo patrimonial”.
E para tal deve partir-se do bem jurídico protegido, como elemento informador do tipo de ilícito, que se traduz “no património globalmente considerado” (A.M. Almeida e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 275) e como crime de dano consuma-se com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do ofendido (o sujeito passivo ou terceiro), e como crime de resultado de igual modo se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera da disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vitima, e como crime de resultado cortado basta que ao nível do tipo objectivo se observe o empobrecimento da vitima (apud A.M. Almeida e Costa ob. cit., págs. 276 (277).
Mas apesar disso e exigindo-se no tipo a ocorrência de um prejuízo patrimonial efectivo importa para a sua compreensão averiguar do que isso seja no que se debatem diversas concepções do que seja o património jurídico penal, (concepções jurídicas, económica e económico jurídica e jurídico criminal – cf. A. M. Almeida Costa, cit.) sendo certo que se assume como relevante ou ponto de partida um conceito de património económico jurídico, temperado ou não conforme casuisticamente ponderado com o conceito jurídico-penal de património que tende a abarcar como seu conteúdo as “posições merecedoras de tutela à luz da particular teologia do direito criminal” in A.M. Almeida Costa, ob. cit. pág. 282, perspectivando desse modo adoptar na análise um conceito objectivo individual de dano, que leva a concluir “ pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do económico por referencia à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta”, harmonizando-se assim ambos os conceitos ( económico jurídico e o conceito jurídico criminal) - idem págs. 283/284, sendo aquele o dominante, e em face do qual o património se reconduz “ ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica…” idem, pág. 279.
Diz-se no Ac RP 11/1/2017 www.dgsi.pt seguindo esta linha de pensamento:
“…, o valor jurídico fundamentalmente protegido pela incriminação é o património do ofendido globalmente considerado e entendido, numa perspectiva jurídico-criminal, ou seja, onde caiba, não só, a soma de todos os valores económicos e juridicamente protegidos, mas que os mesmos mereçam a censura penal e por isso estejam abrangidos pela necessária incriminação.
Na verdade, ao lado das outras duas possibilidades de definição do valor património para efeitos de concretização do mesmo como bem jurídico fundador de uma norma penal, concretamente, as concepções meramente conjunto de direitos ou obrigações patrimoniais e a segunda, assumindo aquele pela mera massa de correspondentes valores que fossem economicamente computáveis, crê-se que a noção jurídico-criminal de património é a que melhor se adapta ao figurino legal.
Desta forma e na esteira dos ensinamentos colhidos no Comentário Conimbricense do C. Penal, Tomo II, pág. 275 e segs, importa ter em conta que a noção de património, tal como ela foi desenvolvida pelo pensamento civilístico, ainda que servindo necessariamente de referência para a hermenêutica penal, em caso algum a limita, pela necessidade de prever, em termos criminais, situações cujo tratamento meramente civil seria diverso.
Daí, a premência de ter uma noção de património para efeitos de subsunção legal ao tipo previsto no Artº 217 do C. Penal suficientemente ampla, isto é, uma concepção que assuma, em definitivo, essas duas vertentes do conceito: a definição civilística dos direitos subjectivos de carácter patrimonial, e a óptica penal, pela qual, o que importa é penalizar todo o comportamento de onde resulte uma diminuição de todo e qualquer direito, valor, bem, expectativa ou prestação patrimonial do ofendido.
Para além deste bem jurídico fundamental que preside à base da tutela penal, outros existem, ainda que subsidiariamente, ou, dito de outro forma, adjuvantemente, no sentido da cristalização da norma.
Com efeito, ao lado do património, a burla protege também os valores da lealdade, transparência e boa-fé das transacções, por um lado e por outro, a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correcta nas suas disposições de carácter patrimonial.
Dito de outra forma, em cada crime de burla, para além da ratio subjacente ao património, existe uma clara violação da confiança e da boa fé de alguém, que na relação com o agente actuou de forma leal e transparente julgando estar a actuar de forma correcta de acordo com o cenário factico que lhe foi induzido; por outro lado, ou, se se quiser, analisando a mesma realidade objectiva que é o erro do burlado mas agora sob o foco subjectivista, em cada um de nós existe o direito à livre disponibilidade do nosso acervo patrimonial, necessariamente assumida após aquilo que julgamos ser uma correcta apreciação dos factos, assente numa vera informação dos mesmos.”
Daí que como expressa Almeida e Costa ob. cit. pág. 285 se integram no conceito de património jurídica e penalmente relevante as “ pretensões juridicamente fundadas de obter ou assegurar um aumento patrimonial no caso de se observar um facto futuro…” ou ainda “As expectativas fácticas de obtenção de vantagens económicas … [que] assentem na verificação de uma situação objectiva que, de harmonia com as regras da experiencia, permita antecipar, como provável, um efectivo aumento patrimonial” e de facto e com valor económico para os mais exigentes.
Germano Marques da Silva, expende “ o prejuízo patrimonial consiste na frustração do direito do portador do cheque de receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito em razão da obrigação subjacente e para cujo pagamento o cheque serviu” e continua o mesmo autor: “Para efeitos de tutela penal, o cheque é considerado apenas como meio de pagamento. Efectuado o pagamento por meio de cheque, o credor tem o direito de receber o valor desse cheque, não simplesmente porque é dele portador, mas porque tinha a posição de credor na relação jurídica que subjaz ao cheque e que este se destinou a satisfazer “- ob. cit. pág. 59, apud Ac RP 340/5/2001 www.dgsi.pt, direito esse de que o lesado foi pela conduta do arguido privado, veja-se que o próprio cheque podia ser transaccionado através do endosso.
Ora vistos estes ensinamentos em confronto com os factos provados, não deixa lugar a dúvida que a conduta do arguido, obtendo, através do artificio fraudulento - (fazendo crer que emitira uma ordem de transferência bancária do montante da divida) - a devolução do cheque que havia emitido para pagamento de salários e havia entregue à ofendida causou a esta prejuízo patrimonial, pois ficou destituída não apenas de um meio de pagamento e titulo executivo como de um crédito de que era legitima detentora, ocorrendo diminuição do seu património, pois deste fazem parte não apenas os bens mas também os créditos, que o cheque além de ser um bem (documento juridicamente relevante) titula um crédito e a lesada ficou sem ele e sem o poder usar directamente, constituindo meio de pagamento que prescinde da relação material subjacente pelo que em si mesmo corporiza um valor patrimonial imediato.
Tendo presente como expressa o MºPº a sua motivação “A natureza do cheque como título literal, formal, autónomo e abstracto, pressupõe e gera uma série de relações jurídicas, cruzadas, que na medida do respectivo conteúdo se projectam no complexo de direitos e deveres dos sujeitos cambiários: a obrigação de Banco de pagar pela disponibilidade da provisão do sacador; a sujeição deste à retirada, pelas forças da sua provisão, do montante inscrito no cheque; a responsabilização do sacador perante o tomador no caso de inexistência de provisão; e o direito do tomador a apresentar o título a pagamento e a receber do Banco o respectivo montante” o desapossamento de um cheque como crédito (de natureza patrimonial) que incorpora constitui uma diminuição do património do seu detentor, pelo que o desapossamento de tal titulo de credito preenche o conceito legal de “prejuízo patrimonial” do artº 217º 1 CP, e consequentemente se mostra preenchido o tipo de crime imputado.

Chegados a esta conclusão outra averiguação se impõe:
E prende-se com o segmento não provado do seguinte teor:
“d) O arguido atuou perfeitamente ciente que as aludidas condutas eram proibidas e punidas por lei.” evidenciando-se da economia da sentença que tal foi o resultado foi derivado do facto de se considerar que não existia o crime de burla por ausência de prejuízo patrimonial.
Desde já convirá dizer que se assim não for se evidencia erro notório na apreciação da prova, pois que traduzindo-se na consciência da ilicitude nada é probatoriamente aventado no sentido de excluir essa consciência, a qual se presume (presunção natural) de acordo com as regras da experiencia por serem inerentes ao conhecimento do homem médio e não estar em causa uma acção/ conduta axiológicamente neutra.
Ac. RP 29/4/2009 www.dgsi.pt “I - Ter consciência da ilicitude é um estado de espírito que terá de resultar e resulta, segundo as fórmulas de normalidade, da compreensão de toda a acção criminosa, objectivada em outros factos de onde a mesma se retira, com a naturalidade que ela representa”
Ac RP 26/4/2017 www.dgsi.pt “II - A demonstração positiva da consciência da ilicitude só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento será essencial para que se possa dizer que o agente sabia que pratica um crime.”
Para Teresa Beleza, in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, pág. 71) “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência
Para já não falar que tal facto encontra guarida na fundamentação para o dar como provado, pois ali se diz: “Os aspetos subjetivos que se assentaram resultaram dos factos objetivos apurados, em conjugação com as regras da experiência comum. Com efeito, o arguido, como titular da conta, não podia deixar de saber que a mesma não dispunha de fundos suficientes para proceder ao pagamento do cheque que emitiu (cfr. extrato bancário de fls. 48), dessa forma causando um prejuízo patrimonial à beneficiária do cheque, e, enquanto gerente da sociedade, também não podia deixar de saber que, na data da suposta transferência, a conta não dispunha de saldo suficiente para a concretizar (fls. 90 e 93). E isso, aliado ao facto de a transferência nunca se ter realizado, leva-nos a concluir pelo propósito que presidiu à sua atuação. Finalmente, não resultam dúvidas de que o arguido atuou de forma livre (porque não coagido), voluntária (porque quis) e consciente (com capacidade para avaliar a (i)licitude dos seus atos e de se determinar de acordo essa avaliação).”
Assim e em face dos demais factos provados, verifica-se que ocorre erro notório na apreciação da prova quanto a esta matéria e impor a alteração da matéria de facto provada nela inserindo aquele facto não provado, pois conforme acórdão do STJ de 27/10/2010 “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
*
Devendo o arguido ser condenado pelo crime de burla, outras questões se suscitam traduzindo-se uma na escolha e medida da pena a aplicar pelo tribunal de recurso, em face da doutrina emergente do AFJ nº 4/2016 (DR. n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22) com o seguinte teor: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal” e dado que o processo e os factos provados contem todos os elementos fácticos necessários para o efeito, o que o tribunal a quo já fez ponderando essa eventualidade como expressamente previu, e outra na ponderação sobre o pedido de indemnização civil, em face do que dispõe o artº 403º3 CPP.
Só que quanto a este pedido de indemnização civil a demandada / lesada D… veio reclamar o pagamento contra a sociedade arguida representada pelo arguido, e tendo por decisão de fls. 208, já transitada sido declarado extinto o procedimento criminal e a instância cível relativamente à sociedade arguida, está prejudicada a apreciação dessa questão, que assim deixou de fazer parte do objecto do projecto sendo que a própria demandada (a sociedade) deixou de ser sujeito processual.
Subsiste assim apenas apreciar a questão penal e ora relativa à pena.

Assim quanto à pena.
O crime de burla em apreço é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, pelo que em face do principio da preferência pela pena não detentiva importa ponderar da sua aplicação (artº 70ºCP), sendo que no caso não se nos afigura que a pena de multa seja suficiente para realizar as finalidades da punição, traduzidas na protecção do bem jurídico e na ressocialização do arguido, pois que estamos perante um empresário que se dedicava a uma actividade económica e deixou de solver os seus compromissos para com os trabalhadores e os enganou duplamente, nada solvendo até ao presente, o que denota não apenas insensibilidade perante os valores da ordem jurídica e nomeadamente para quem trabalhou para si e nada lhe pagou, como pela causa subjacente se mostram acentuadas as exigências de prevenção geral, quer numa perspectiva global do país quer em concreto onde os factos ocorram – São João da Madeira Pesqueira – como zona de localização de empresas, pelo que se optará pela pena de prisão.
Ora na concretização da pena a aplicar ao arguido deve atender-se nos termos do artº71º CP, à respectiva culpa, - suporte axiológico de toda a pena, ou de outro modo “A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) Sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa” - Prof. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185, sendo que o princípio da culpa é a “consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa”- Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84, - e às exigências de prevenção quer geral quer especial, e que (e assim Figueiredo Dias, ob.cit., págs. 227 e sgt.s) as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer, ou na mesma perspectiva como se expressa o STJ Ac. 17/4/2008 in www.dgsi.pt/jstj: “A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.”
Assim tendo em conta os factos apurados na sentença recorrida e mormente a actuação dolosa e intensa do arguido e tendo em conta as exigências de prevenção em face dos critérios do artº 71º CP, e em especial o modo como agiu e as suas consequências para a lesada que se viu sem o produto do seu labor, e a confiança que no arguido tinha depositado, bem como o elevado grau de violação deveres do arguido como empregador, que se aproveita do trabalho alheio, revelando uma personalidade antijurídica e sem se importar com o bem do próximo, e ponderando também a ausência de antecedentes criminais à data, e o seu modo e condições de vida e situação económica apuradas e supra elencadas, afigura-se-nos justo e adequada a pena de um ano e três meses de prisão.
Em face dessa pena importa aquilatar da possibilidade de aplicação de uma pena de substituição.
E dentro da panóplia das legalmente admissíveis, apenas se nos afigura adequada, a fim de evitar o cumprimento da pena de prisão - sendo que a multa não se mostra adequada em face da actual situação económico-financeira do arguido, nem as demais satisfazem as finalidades da punição tendo em conta as exigências de prevenção - que não seja a pena suspensa, e ainda assim, face ao caracter empresarial donde emergem os factos, apenas se for submetida ao regime de prova com específicos deveres de caracter económico face à idade do arguido (45 anos) em plena força de vida e entre esses deveres a impor deverá constar o de trabalhar, até porque nada impede que o faça) e afectar parte desses rendimentos do trabalho para pagar a divida à lesada.
Só nestas circunstancias e em face da ausência de antecedentes criminais e da idade do arguido, é que nos levam a emitir um juízo de prognose favorável à reinserção social do arguido, fundamentador da suspensão da pena, e onde esta não seja vista como acto de impunidade.

Procede assim o recurso
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
- Modificar a matéria de facto aditando aos factos provados o seguinte “O arguido atuou perfeitamente ciente que as aludidas condutas eram proibidas e punidas por lei” e elimina a al.d) dos factos não provados;
- Julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº e em consequência revogando a sentença recorrida, como autor material de um crime de burla p.p. pelo artº 217º nº 1 CP e ponderando o disposto nos artºs 40º, 70º e 71º CP condena o arguido B…, na pena de um ano e três meses de prisão.
Atento o disposto nos artºs 50º, 51º, 52, 53º e 54º CP, suspende a pena de prisão ora aplicada pelo mesmo período (um ano e três meses), com submissão ao regime de prova, de cujo plano de reinserção social constará com caracter obrigatório, a prática de uma actividade laboral (por conta própria ou alheia) pelo arguido e a sua procura activa e a afectação preferencial de uma terça parte de tais rendimentos, sob controle do IRS, ao pagamento da quantia de €567 (quinhentos e sessenta e sete euros) à lesada D…, capital esse que pelo menos deve estar satisfeito no final do período da suspensão.
Sem custas o recurso, mas custas na 1ª instância pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC a que acrescem os encargos devidos;
Comunique de imediato com cópia à DGSRS e com vista à elaboração do Plano de Reinserção Social
Boletim CRC
Notifique
Deposite
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Porto, 12/7/2017
José Carreto
Paula Guerreiro