Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
462/13.6TALSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME
FALSO TESTEMUNHO
DEPOIMENTO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP20170531462/13.6TALSD.P1
Data do Acordão: 05/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º30/2017, FLS.239-244)
Área Temática: .
Sumário: I - Pratica o crime de falso depoimento o agente que presta declarações contraditórias em fases diferentes do processo, mesmo que não se prove em qual dessas ocasiões ele faltou à verdade (sendo certo que numa delas indubitavelmente faltou).
II - Tal tese não implica violação dos princípios (constitucionalmente consagrados) da legalidade e da presunção de inocência do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr462/13.6TALSD.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da sentença do Juiz 1 da Secção Criminal da Instância Local de Lousada do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que o condenou, pela prática de um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de seis euros.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
« A- Discorda-se dos pontos 2.1.2.,2.1.9,2.1.11 e 2.1.12 da fundamentação da sentença, porquanto é manifestamente insuficiente a prova produzida para que aquela matéria pudesse ser dada como provada.
B.- O Tribunal entendeu ser suficiente o depoimento de uma testemunha, no sentido de ter sido efetuada a advertência das consequências penais de um eventual depoimento falso ao arguido, considerando que "o facto deste militar não se recordar da situação concreta em nada retira credibilidade ao seu depoimento"
C.- Acrescentou ainda sobre este ponto a Douta sentença que "Na verdade, a testemunha demonstrou claramente a certeza de que efectuou a advertência em causa, por ser esta a prática habitual".
D.- A credibilidade do depoimento advém precisamente do facto do militar ter admitido que apenas viu o arguido uma vez, que não tem outro motivo para se recordar do seu depoimento e que tem a convicção de que efetuou a advertência, porque "era sempre feita".
E.- Ou seja, a testemunha não se recorda concretamente do facto e fez apelo a regras de comportamento e a lugares comuns ("as pessoas têm direitos" ou “as pessoas têm de ser alertadas") para suprir a falta de memória sobre o incidente, produzindo algo pior do que um depoimento indireto: Um depoimento por silogismo!
F.- Ora tal é manifestamente insuficiente para que se dê como provado que foi efetuada a advertência das consequências criminais da prestação de falso depoimento!
G.- A circunstância da advertência se encontrar num plano gráfico que antecede a prestação do depoimento, inserido num listagem que culmina com um quadradinho onde se insere uma cruzinha, em nada esclarece a dúvida, pois teoricamente a cruzinha poderia ter sido colocada mesmo antes de ter sido feita a advertência (e ela ter sido mesmo feita) ou depois (e ela não ter sido efetuada)!
H.- O artigo 127.º do Código do Processo Penal (CPP) é inconstitucional na interpretação de que para prova de que foi efetuada uma advertência das consequências penais da falsidade de depoimento basta que o agente responsável, não se recordando do caso em concreto, afirme que aquela foi efetuada porque o era sempre, estando a mesma documentada numa listagem a verificar através de cruzes, que antecede a prestação do depoimento, por violação dos princípios da presunção da inocência de e do "in dubio pro reo" ínsitos no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que expressamente se invoca.
I.- O ponto 2.1.9 não poderia ter sido dado como provado visto que pressupõe que em ambos os momentos o arguido sabia que prestava depoimentos contraditórios o que desde logo é uma impossibilidade num deles:
Quando presta o primeiro depoimento não há nenhum para contradizer e não poderia adivinhar que meses mais tarde iria prestar outro em sentido divergente e por maioria de razão, o ponto 2.1.11., por se referir a ambos os depoimentos e o ponto 2.1.12. ao não os discriminar não poderiam ter sido dados como provado.
J.- Em função da alteração factual ora propugnada, e tendo em conta que a advertência atrás glosada, constituía um facto importante da Acusação, que motivou o adiamento da audiência para a audição de testemunha não arrolada pela Acusação e a defesa acérrima que o Tribunal pretendeu fazer daquele facto, implica que mesmo no domínio da tese que sustenta a condenação, esta teria de ser drasticamente (e não apenas sensivelmente) atenuada.
K.- Aliás tendo em conta o bem jurídica tutelado é muito mais grave faltar à verdade depois de efetuada a advertência das suas consequências penais, do que não se provando que tal aviso fora feito!
L.- Questiona-se a tese sindicada na Douta sentença, que é maioritária, mas não unânime, segundo a qual, basta a contraditoriedade de depoimentos, ainda que não se saiba qual deles é desconforme à verdade, para a verificação do tipo de crime em causa.
M.- Remetendo para as considerações e justificações que os arestos infra citados emprestam à discussão, bem como a respetiva doutrina e jurisprudência, atrevemo-nos a concluir que à luz dos princípios da legalidade e presunção da inocência não se pode condenar alguém por um facto alternativo (ou foi num momento ou foi noutro) sem certeza de quando foi cometida a infração e com a certeza que num desses momentos alternativos nenhuma infração foi verificada!
N.- O artigo 360°/1 do Código Penal é assim inconstitucional, quando interpretado no sentido de que basta a contraditoriedade entre dois depoimentos no âmbito do mesmo processo para que se verifique o respetivo o ilicito aí tipificado, por violação dos princípios da legalidade (art.º 29° da CRP) e da presunção da inocência (art.º 32° da CRP), o que se invoca.
SEM PRESCINDIR
0.- A considerar válida a tese sufragada na sentença, sustentamos que a contraditoriedade deverá ocorrer num plano de plena igualdade de pressupostos, i.e., de que em ambos os momentos o arguido tenha sido advertido das consequências criminais pela eventual prestação de falso depoimento, o que não é o caso.
P.- o artigo 360°/1 do Código Penal é também inconstitucional, quando interpretado no sentido de que basta a contraditoriedade entre dois depoimento e no âmbito do mesmo processo para que se verifique o respetivo o ilícito ai tipificado, quando apenas num desses momentos o arguido tenha sido advertido das consequências criminais pela eventual prestação de falso depoimento por violação dos princípios da legalidade (art.º 29° da CRP), da presunção da inocência (art.º 32° da CRP) e ainda da Confiança nas Instituições e Estado de Direito democráticos (art.º 2° da CRP), o que subsidiariamente e por cautela se invoca.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o Tribunal a quo não deveria ter baseado a sua decisão, no que se refere ao facto de o arguido ter sido advertido de que estava obrigado a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, pelo agente da G.N.R. que o inquiriu, por este ter declarado não se recordar do caso em concreto, sendo que era essa a prática habitual;
- saber se o artigo 127.º do Código de Processo Penal na interpretação que permite atribuir relevo probatório a tal depoimento, é inconstitucional por violação dos princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo, ínsitos no artigo 32.º da Constituição;
- saber se os factos descritos nos pontos 2.1.9, 2.1.11 e 2.1.12 do elenco dos factos provados da sentença recorrida não deveriam ter sido considerados provados;
- saber se o arguido não poderá ser condenado pela prática do crime de falso depoimento, por não se ter apurado em qual dos dois depoimentos contraditórios que prestou faltou à verdade;
- saber o artigo 360.°, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que permite a condenação do arguido nessa situação de prestação de depoimentos contraditórios sem se saber em qual deles faltou à verdade, é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade (art.º 29° da Constituição) e da presunção da inocência (art.º 32° do mesmo diploma);
- caso seja aceite tal tese, saber se deverá considerar-se que os dois depoimentos em causa deverão situar-se num plano de plena igualdade (o que não será o caso nos presentes autos), ou seja, que em ambos o arguido tenha sido advertido das consequências criminais da prestação de falso depoimento;
- saber se o artigo 360.°, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que permite a condenação do arguido nessa situação de prestação de depoimentos contraditórios sem se saber em qual deles faltou à verdade e quando apenas num desses momentos o arguido tenha sido advertido das consequências criminais pela eventual prestação de falso depoimento, é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade (art.º 29.° da Constituição), da presunção da inocência do arguido (art.º 32.° do mesmo diploma) e da confiança nas instituições e Estado de Direito democráticos (art.º 2.° do mesmo diploma);
- saber se, por não poder considerar-se provada a realização da advertência acima mencionada, deverá ser reduzida a pena em que o arguido e recorrente foi condenado.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(...)
2- Fundamentação
2.1.- De relevante para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
2.1.1. – No dia 31 de Março de 2010, às 14.00 horas, no Posto da GNR de …, o arguido foi inquirido como testemunha, no âmbito do Inquérito n.º 32/09.3GCFLG.
2.1.2. - O ora arguido foi advertido pelo inquiridor de que estava obrigado a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
2.1.3. - O aqui arguido referiu que foi consumidor de heroína durante 14 anos, sendo que desde 22 de junho de 2009 começou a fazer tratamento no CAT, em …, e que a partir dessa data deixou de consumir produtos estupefacientes. Que conhece o arguido C… há cerca de 20 anos por residir em Lousada. Referiu que teve conhecimento no início de Janeiro de 2009, que o C… se dedicava à venda de produtos estupefacientes, através de outros consumidores, como o D… "D1…", E… "E1…", "F…". Que a partir dessa data quase diariamente entregava dinheiro a um dos consumidores atrás mencionados para que fossem comprar droga ao C…. Que entregava o dinheiro aos outros consumidores para comprar droga, em virtude do declarante se encontrar zangado com o arguido. Por norma adquiria em média meia grama de heroína por o valor de 20 euros. Esta situação manteve-se até ao dia 22 de Junho de 2009, data em que o declarante foi cumprir 66 dias de prisão, sendo que após ter cumprido a pena de prisão não mais voltou a consumir droga. Por várias vezes verificou que o arguido para ir vender droga aos outros consumidores se deslocava num Ford … de cor cinzenta. Salienta que os locais onde o C… vendia a droga eram junto à Petisqueira “G…" mais propriamente por debaixo do túnel, e ao longo da rua. Recorda que para encomendar a droga os consumidores ligavam para o telemóvel do arguido, cujo número desconhece.
2.1.4. - Este depoimento contraria o que posteriormente o arguido prestou, igualmente na qualidade de testemunha, em sede de audiência de julgamento, no dia 12.12.13, no Processo Comum Coletivo n.º 32/09.3GCFLG.
2.1.5. - Tendo sido, na audiência de julgamento, advertido de que estava obrigado a responder com verdade, prestou juramento legal.
2.1.6. - No depoimento prestado pelo arguido em sede de audiência de julgamento, referiu que nunca comprou heroína ao C…, diretamente ou por interposta pessoa e que não sabia que o C… vendia heroína.
2.1.7. - Face às contradições entre os dois depoimentos prestados pelo arguido, foi o mesmo advertido de que estava obrigado a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
2.1.8. - Apesar de ter sido advertido e de lhe ter sido dada a oportunidade de se retratar, o arguido manteve o depoimento prestado em sede de julgamento.
2.1.9. - O arguido sabia que prestava depoimentos contraditórios quanto à mesma realidade da qual tinha conhecimento pessoal.
2.1.10. - Sabia que lhe era vedado mentir em qualquer dos atos em causa.
2.1.11. - Ao prestar tais depoimentos contraditórios agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de alterar a versão dos factos, apesar de os mesmos serem do seu conhecimento direto e pessoal, obstando assim à realização e administração da justiça.
2.1.12. - O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para atuar de acordo com essa avaliação.
*
2.1.13. – O arguido encontrou recentemente trabalho numa fábrica de tecelagem, onde se encontra à experiência e desconhecendo ainda quanto vai auferir mensalmente a título de salário.
2.1.14. – Vive em união de facto, encontrando-se a sua companheira de baixa e auferindo €300 mensais.
2.1.15. – Vive, com a companheira e um filho desta, de 18 anos de idade e estudante, em casa arrendada pela qual paga €200 mensais a título de renda.
2.1.16. – Tem três filhos, todos menores, os quais se encontram aos cuidados das avós, contribuindo para as despesas destes sem quantia fixa, de acordo com as suas possibilidades.
2.1.17. – O arguido tem o 6º ano de escolaridade.
2.1.18. – Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
***
2.2. Matéria de facto não provada
Nada mais com relevância para os autos resultou provado, nomeadamente que:
2.2.1. – Em sede de audiência de discussão e julgamento o arguido sabia que prestava depoimento que não correspondia à verdade.
*
2.3- Fundamentação da matéria de facto
O tribunal fundou a sua convicção na ponderação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, assumindo primordial importância a análise dos documentos e certidões juntas.
O arguido remeteu-se ao silêncio no que se refere aos factos de que vinha acusado, de acordo com prerrogativa legal.
Assim, foi devidamente analisado e ponderado o teor da certidão junta aos autos referente ao processo 32/09.3GCFLG, da qual consta o auto de inquirição de testemunha (fls. 4) resultando do mesmo que o ora arguido foi devidamente advertido dos seus deveres enquanto testemunha e das consequências penais do seu incumprimento, constando de seguida a sua assinatura. Foi igualmente determinante a análise da certidão da ata de discussão e julgamento (fls. 5-6) e transcrição das declarações aí prestadas pelo mesmo (fls. 15-23), da qual resulta inequívoca a advertência efectuada ao arguido aquando do seu depoimento nessa sede e prestação de juramento legal.
Relevante foi igualmente o depoimento sério, isento e credível de H…, militar da GNR perante o qual foram, prestadas as declarações do arguido em sede de inquérito o qual confirmou, na íntegra, o teor de fls. 4, frente e verso, nomeadamente a advertência que foi efectuada por si ao arguido aquando da prestação do depoimento, bem como o teor das suas declarações. Mais assegurou que o ora arguido prestou perante si as declarações que entendeu, sem qualquer tipo de interferência de quem quer que fosse. Importa salientar que o facto de este militar não se recordar da situação concreta em nada retira credibilidade ao seu depoimento. Na verdade, a testemunha demonstrou claramente a certeza de que efectuou a advertência em causa, por ser esta a prática habitual. Diga-se que, na hipótese (que não a do caso concreto) de ter suscitado dúvidas da efetuação da advertência, mesmo assim não restariam dúvidas ao tribunal da consciência do arguido da sua obrigação de dizer a verdade numa inquirição prestada em sede de inquérito perante órgão de polícia criminal, por tal fazer parte da consciência comum de qualquer cidadão.
Deste modo, não restam dúvidas ao tribunal sobre a contrariedade das declarações prestadas pelo arguido nos dois momentos em causa, sobre uma mesma realidade da qual tinha conhecimento pessoal e direto. A dúvida reside tão só e apenas em qual dos momentos prestou o arguido depoimento falso.
Porque tal é relevante a nível do enquadramento jurídico do crime em apreço, a esse propósito imperou o princípio do in dubio pro reu que vigora no sistema jurídico penal português.
(...)
O depoimento do arguido foi essencial no fixar da matéria relativa às suas condições pessoais, económicas e familiares, sendo o CRC determinante nos factos atinentes à falta de conhecimento de antecedentes criminais do arguido.
*
3- Enquadramento Jurídico
3.1. Do crime de falsidade de depoimento ou declaração
Cumpre agora subsumir os factos ao direito, analisando a conduta da arguida à luz das disposições legais aplicáveis, por forma a determinar se lhe deverá ser imputada a prática do crime de que veio acusada.
O crime de falsidade de testemunho está tipificado no art.º 360.º do Código Penal. O n.º 1 deste normativo dispõe da seguinte forma:
«Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias
Estas condutas vêem a sua punição agravada, nos termos do n.º 3 do art.º 360º, quando sejam concretizadas depois de o agente ter prestado juramento e sido advertido das consequências penais a que se expunha caso não cumprisse a sua função processual com verdade.
O bem jurídico tutelado por este tipo de crime «(...) é essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão (...).» (in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Tomo III, p. 460, Coimbra Editora, 1999, comentário de MEDINA SEIÇA).
Trata-se, portanto, de um crime de perigo abstracto, em que um dos elementos típicos do ilícito é a própria declaração falsa, tenha tido ou não influência na decisão; o que se visa é proteger a realização da justiça, valor este que ficará sempre enfraquecido ou fragilizado, quer o falso testemunho produza ou não um efeito na decisão a proferir.
Só no caso de esse efeito assumir uma das formas previstas no art.º 361º, é que essa circunstância ganhará importância, mas, ainda assim, como circunstância agravante e não como elemento do tipo, pois este preenche-se com o “simples” facto de uma pessoa que estava obrigada a actuar com verdade, devido à posição processual que ocupava, agir de forma contrária a esse dever, ou seja, prestando depoimento, apresentando relatório, dando informações ou fazendo traduções falsos.
No seguimento do que acabámos de dizer, é importante destacar também que as condutas descritas no art.º 360º, n.º 1, do Código Penal, consubstanciam um crime de mera actividade, «(...) pois o comportamento ilícito esgota-se precisamente na efectivação da conduta proibida: a prestação do depoimento falso, etc., não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável.» (op. cit., p. 462).
O primeiro dos elementos típicos deste crime é a falsidade da declaração ou, dito de uma forma singela, evidente e auto-explicativa, sem considerações de ordem ontológica, a declaração em causa tem que se tratar de uma declaração que não corresponda à verdade.
Por outro lado, este crime impõe a verificação de um elemento típico objectivo, que é o da especial qualidade que o seu agente tem de assumir. O agente deste crime tem que se encontrar numa específica posição processual; só poderá ser autor deste crime quem for testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, tal como estas funções processuais são delineadas pela lei processual.
Os depoimentos, relatórios, informações ou traduções falsos só serão considerados, para os efeitos punitivos do art.º 360º, se a pessoa que os prestar estiver obrigada a obedecer a um dever de verdade, que resulta da lei processual e que delimita a sua responsabilidade criminal.
No caso da testemunha, que nos interessa directamente neste caso, «(...) [esta] tem o dever de declarar apenas factos de que possua conhecimento directo (cf. art.º 128º, n.º 1, do CPP), i.é, factos que tenham sido objecto das suas percepções, acontecimentos ou circunstâncias concretos (...). Deste modo, o dever de verdade só é violado quando a testemunha declara falsamente sobre esses factos ou declara falsamente ter conhecimento directo desses factos.» (op. cit., p. 466 e 467).
Por este motivo, «(...) uma declaração falsa só é tipicamente relevante quando for processualmente valorável.» (op. cit., p. 472), ou seja, só quando forem cumpridos todos os requisitos processuais relativos à obtenção do correspondente meio de prova, é que a sua falsidade será relevante para os efeitos do art.º 360º do Código Penal.
Finalmente, para verificação deste ilícito típico, é necessário que o agente actue com dolo, sob qualquer das suas modalidades. A actuação com dolo implica que o agente tenha, antes de mais, consciência de que o teor do seu depoimento é objectivamente falso e que esteja ciente de que prestou uma declaração falsa quando tinha a obrigação concreta de depor com verdade.
Transpondo para o caso dos autos, dúvidas não restam que o arguido num dos momentos em que prestou depoimento faltou à verdade. Com efeito o arguido foi sempre devidamente advertido de que era obrigado a responder com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado depoimentos contrários. Não se desconhecendo jurisprudência em sentido contrário (vide a título meramente exemplificativo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.03.2015, relator JOSÉ PIEDADE, processo 749/13.8TAPFR.P1) seguimos o entendimento da jurisprudência no sentido de que «Pratica o crime de falsidade de depoimento o agente que presta declarações contraditórias em fases diferentes do processo, mesmo que não se prove em qual dessas ocasiões ele faltou à verdade (sendo que numa delas indubitavelmente faltou) – Neste sentido vide porque muito claro, elucidativo e recente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.09.2015, relator PEDRO VAZ PATO, processo 650/11.0TAVCD.P1, in www.dgsi.pt.
Assim, face ao supra exposto, resulta provado que o arguido prestou depoimentos contraditórios, que sabia que prestava depoimentos contraditórios quanto à mesma realidade da qual tinha conhecimento pessoal e que lhe era vedado mentir em qualquer dos atos em causa. Mais sabemos que ao prestar tais depoimentos contraditórios agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de alterar a versão dos factos, apesar de os mesmos serem do seu conhecimento direto e pessoal, obstando assim à realização e administração da justiça, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e tendo a liberdade necessária para atuar de acordo com essa avaliação.
Encontram-se assim plenamente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual o arguido vinha acusado, sem a agravação do seu nº3, já que não resultou provado que o arguido tenha mentido em sede de audiência de discussão e julgamento, após ter prestado juramento legal.
(...)»
IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que o Tribunal a quo não deveria ter baseado a sua decisão, no que se refere ao facto de ele, arguido, ter sido advertido de que estava obrigado a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, pelo agente da G.N.R. que o inquiriu, por este ter declarado não se recordar do caso em concreto, sendo que era a realização desse advertência era a sua prática habitual. Alega também o arguido e recorrente que o artigo 127.º do Código de Processo Penal na interpretação que permite atribuir relevo probatório a tal depoimento, é inconstitucional por violação dos princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo, ínsitos no artigo 32.º da Constituição.
Vejamos.
É perfeitamente compreensível que a testemunha em causa não se recorde do caso em concreto, dado o tempo decorrido desde a inquirição e o elevado número de inquirições por ela efetuadas. Estranho seria que dissesse o contrário. Essa sua sinceridade só dá crédito ao seu depoimento.
E não merece reparo que se considere feita tal advertência, não só por ser essa a prática habitual da testemunha (e não há o mínimo indício de que não tenha sido seguida essa prática habitual), mas também porque estamos perante um facto atestado por documento autêntico, com toda a força e solenidade a ele inerentes (no plano jurídico e no plano fáctico), documento onde é assinalada (com uma cruz) a realização da advertência em causa. Não há a menor suspeita de que tenha sido falsamente indicada a menção dessa realização, com o que tal representaria de violação grave dos deveres funcionais da testemunha.
De salientar que uma situação semelhante (e é normal que assim seja em casos como este) se verificou no processo a que é relativo o acórdão desta Relação citado na sentença recorrida e que, por coincidência, também foi relatado pelo subscritor destas linhas.
Não estamos perante alguma violação dos princípios (constitucionalmente consagrados) da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo. Precisamente porque não se suscita a menor dúvida (dúvida razoável, segundo a fórmula tradicional) a respeito da prova do facto em questão.
Também deve salientar-se (como se salienta na sentença recorrida e no referido acórdão desta Relação nela citado) que até poderia não ter sido feita a advertência e, mesmo assim, o arguido estar perfeitamente consciente de que estava obrigado a dizer a verdade numa inquirição prestada em inquérito perante órgão de polícia criminal. Isso faz parte da consciência comum de qualquer cidadão.
Uma vez que o arguido foi condenado pela prática do crime p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal (e não esse crime agravado nos termos do n.º 3 desse artigo), a ocorrência dessa advertência em causa não é elemento do tipo de crime, poderá operar apenas como circunstância agravante de ordem geral.
Vem o arguido alegar, por outro lado, que a pena em que foi condenado deverá ser reduzida, por não poder consider-se provada a realização dessa advertência. Já vimos que não é assim. O conhecimento desta questão fica, assim prejudicado.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso quanto a estes aspetos.
IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar, por outro lado, que o facto referido no ponto 2.1.9 do elenco dos factos provados da sentença recorrida não poderia ter sido considerado provado. Esse facto pressupõe que em ambos os depoimentos em causa o arguido sabia que prestava depoimentos contraditórios, o que é uma impossibilidade num deles: quando presta o primeiro depoimento não há nenhum para contradizer e não poderia adivinhar que meses mais tarde iria prestar outro em sentido divergente Por maioria de razão, não poderão considerar-se provados o facto descrito no ponto 2.1.11., por se referir a ambos os depoimentos, e o facto descrito no ponto 2.1.12., por não os discriminar.
Vejamos.
Não estamos perante factos que não devam considerar-se provados.
Devemos, antes, interpretar corretamente as expressões usadas nos referidos pontos do elenco de factos provados da sentença recorrida.
Devemos consider a conduta do arguido numa perspetiva global e não fracionada em momentos distintos (é esse perspetiva que leva à sua condenação, como veremos). Por isso, a consciência da prestação de depoimentos contraditórios não tem que ser reportada ao momento em que presta o primeiro desses depoimentos, mas é vista nessa perspetiva global. E a consciência de que faltava à verdade reporta-se necessariamente a um desses depoimentos (precisamente porque são contraditórios), mesmo que não se saiba qual deles.
È esse o sentido em que devem ser interpretados (claramente) os factos descritos nos pontos 2.1.9 a 2.1.12 do elenco de factos provados da sentença recorrida.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.
IV 3. -
Vem o arguido e recorrente alegar que não poderá ser condenado pela prática do crime de falso depoimento, por não se ter apurado em qual dos dois depoimentos contraditórios que prestou faltou à verdade. Alega que o artigo 360.°, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que permite a condenação do arguido nessa situação de prestação de depoimentos contraditórios sem se saber em qual deles faltou à verdade, é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade (art.º 29° da Constituição) e da presunção da inocência (art.º 32° do mesmo diploma).
Vejamos.
Reiteramos aqui o que afirmámos no acórdão (citado na sentença recorrida) desta Relação de 9 de setembro de 2015, proc. n.º 650/11.0TAVCD.P1:
«A atuação do agente não deve ser vista de uma forma fracionada, em tantos momentos quantos aqueles em que ele foi chamado a depor, mas unitariamente e em toda a sua amplitude. Nesta perspetiva, não é necessário provar em qual dos momentos ele faltou à verdade, basta provar que o tenha feito nalgum deles (ver, neste sentido, Nuno Brandão, «Inverdades e Consequências: Considerações em Favor de uma Concepção Subjectiva da Falsidade do Testemunho», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20, nº 3, julho-setembro de 2010, pgs. 477 a 504, que adere à tese do acórdão desta Relação que anota, de 30 de janeiro de 2008, relatado por José Carreto).»
Como se salienta nesses dois acórdãos e nesse estudo, esta tese não implica alguma violação dos princípios (constitucionalmente consagrados) da legalidade e in dubio pro reo.
Não se verifica violação do princípio da legalidade porque a situação cabe, indubitavelmente, na previsão do artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal. Verifica-se a prestação de um depoimento falso nos termos dessa previsão.
Não se verifica violação do princípio in dubio pro reo porque a prática de um falso depoimento não suscita quaisquer dúvidas, o que suscita dúvidas é em qual de dois desses depoimentos se verifica tal falsidade. O que o princípio in dubio pro reo reclama, neste caso, não é a absolvição do arguido (uma impunidade da prática incontroversa de um crime, impunidade que nenhum princípio justifica). Reclamará apenas (e nesse sentido aponta também Nuno Brandão, in op. cit., pg. 504) que, num caso como o presente, em que só em relação a um dos depoimentos se verifica a agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, não opere esta agravação (e assim sucedeu no caso em apreço, como no caso em apreço no referido acórdão desta Relação de 9 de setembro de 2015).
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso quanto a estes aspetos.
IV 4. -
Vem o arguido e recorrente alegar, por último, que não poderá ser condenado numa situação (como a que se verifica nos presentes autos) de prestação de depoimentos contraditórios sem se saber em qual deles faltou à verdade e quando apenas num desses momentos foi advertido das consequências criminais pela eventual prestação de falso depoimento (ou seja, os dois depoimentos devem situar-se num plano de plena igualdade). Alega que o artigo 360.°, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que permite a sua condenação nesta situação é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade (art.º 29.° da Constituição), da presunção da inocência do arguido (art.º 32.° do mesmo diploma) e da confiança nas instituições e Estado de Direito democráticos (art.º 2.° do mesmo diploma).
Não vislumbramos em que posssa ser sustentada esta tese (e a motivação do recurso nada adianta a este respeito).
Pelas razões já acima indicadas, a tese seguida pela sentença recorrida não implica alguma violação dos princípios da legalidade e da presunção de inocência do arguido. E o que este último princípio reclama é, precisamente, que, num caso como o presente, em que só em relação a um dos depoimentos se verifica a agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, não opere esta agravação.
Também não conseguimos vislumbrar em que é que a tese seguida na sentença recorrida viola o invocado princípio da confiança nas instituições e Estado de Direito democráticos. Pelo contrário, será a prestação de depoimentos falsos, e a sua impunidade, que pode afetar tal confiança
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso.

O arguido deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e Tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Condenam o arguido e recorrente em 3 (três) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique

Porto, 31/5/2017
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo