Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3513/10.2TAMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BUSCA
APREENSÃO DE BENS
Nº do Documento: RP201301233513/10.2TAMTS-A.P1
Data do Acordão: 01/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os meios de obtenção da prova só podem ser autorizados se, após juízo de ponderação dos direitos conflituantes feito à luz do princípio da concordância prática, se concluir que o sacrifício dos direitos lesados é necessário, adequado e proporcional à salvaguarda do direito do direito a preservar.
II – O art.º 4º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, reconhece à vitima de violência doméstica o direito de retirar da residência de família todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade.
III – Se o arguido retém e sonega bens à ofendida, sobre a qual mantinha uma prática de violência psicológica, que é objecto do processo, deve ser ordenada a busca para efeitos de apreensão desses bens.
IV – A medida tem de ser considerada como meio necessário, adequado e proporcional à salvaguarda dos direitos da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 3513/10.2TAMTS-A.P1

Relator: Melo Lima

Acordam em Conferência na 1ªSecção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. Nos autos de Instrução nº 3513/10.2TAMTS-A, pendentes pelo Tribunal de Instrução Criminal do Porto (3ºJuízo), requerida pelo arguido B… - por não se conformar com a acusação deduzida pelo Ministério Público e acompanhada pela Assistente C…, que lhe imputava a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°, nos 1, al. b) e 2, do C. Penal, negando a prática dos factos ou, de todo o modo, invocando insuficiência de indícios quanto à prática dos factos acusados - o Exmo. Juiz de Instrução Criminal designou Debate Instrutório, no decurso do qual,
1.1 À RECLAMAÇÃO (oral e escrita) apresentada pelo Arguido relativamente ao despacho de indeferimento das diligências de instrução por si requeridas, ditou para Ata, decisão do seguinte teor:
«Indefere-se aliás douta reclamação apresentada, porquanto se entende que as diligências requeridas pelo arguido ultrapassam a natureza indiciária exigida para a prova nesta fase do processo, conforme resulta, nomeadamente, do artigo 301º nº3 do CPP.[1]
Considera-se também não assistir razão ao requerente quando invoca a nulidade prevista no artº 120 nº2 al. b), 2ª Parte do CPP, uma vez que a realização da instrução não pressupõe todas as diligências para a descoberta da verdade, mas apenas as diligências necessárias à comprovação da suficiência de indícios, só podendo constituir nulidade a omissão posterior – entenda-se posterior à instrução – das diligências que possam reportar-se essenciais para a descoberta da verdade.»
1.2 Depois de o Exmo. Juiz
Ter feito “uma exposição sumária sobre os atos de instrução a que se procedeu e sobre as questões de prova relevantes para a decisão instrutória a que se procedeu e sobre as questões de prova relevantes para a decisão instrutória que apresentem, em sua opinião, carácter controverso — art° 302°, n° 1, do C.P. Penal, nomeadamente a questão dos objectos apreendidos e outros não apreendidos, alegadamente pertencentes à assistente e que o legislador parece ter relacionado com o crime de violência doméstica, nos termos do art. 21° da Lei 112/2009, situação dos objectos que também foi referida pela denunciante nas suas declarações a fis. 90, provavelmente na sequência da comunicação que lhe foi feita dos seus direitos como vítima, a fls. 34, e situação que também foi referida pelo arguido a fls. 207, último parágrafo”, e ter concedido ao Ministério Público e aos advogados presentes para se pronunciarem sobre a necessidade e conveniência de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério público, nos termos e para os efeitos do art. 303°, n°.1 do CPP;
Ter dito ao defensor do arguido e às demais pessoas presentes considerar que “o disposto nos arts. 1°, 2°, 3°, 14° e 21° da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, para uma protecção integral dos direitos da vítima exige necessariamente que a questão da retenção de bens da vitima, pelo arguido, seja devidamente ponderada no processo e levada à decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia, tanto mais que foi uma matéria de facto suscitada no inquérito e que deveria ter sido ponderada quando da formulação da acusação, nos termos do art. 283°, n°.3, ai. b) do CPP”, “admitindo-se a possibilidade dessa ponderação não ter sido feita, embora não esteja demonstrado o contrário, e ter sido a questão da restituição dos objectos suscitada pela assistente antes da instrução e questionada a legalidade dessa medida pelo arguido, só podendo o tribunal proferir uma decisão sobre essa matéria se a mesma for incluída no objecto da instrução”,
Comunicou ao arguido e ao seu defensor a possibilidade de lhe serem imputados os seguintes factos:

«i. Por via da actuação do arguido, a assistente abandonou a casa de morada de família com a filha menor no dia 6 de Agosto de 2011, deixando na mesma morada, sita na Rua …, …, …, vários pertences pessoais, nomeadamente roupas, utensílios de cozinha, máquinas, secador a outros objectos, prendas que foram oferecidas à depoente, nomeadamente os constantes da relação de fls. 351 a 352, parte dos quais foram encontrados na residência do arguido, designadamente os constantes do auto de busca e apreensão de fls. 393 a 397, com referência, na parte aplicável, aos objectos listados a fis. 398 a 401.
ii. Por diversas vezes, a assistente tinha tentado acordar com o arguido a entrega desses bens, mas este sempre se negou, proibindo a assistente de ir lá a casa buscá-los. O arguido chegou a dizer que os levava, mas nunca mostrou disponibilidade para os entregar. Com essa recusa da entrega dos bens, o arguido pretendeu menosprezar os direitos e a integridade moral da assistente, pretendendo dessa forma causar-lhe transtornos e incómodos desnecessários, bem sabendo que dessa forma a prejudicava na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde, e causando-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens.
Elementos de prova que sustentam esta imputação:
- as declarações da assistente e o auto de busca e apreensão supra referido e termo de entrega de fis. 402 a 404.»
«Concede-se ainda ao arguido, o prazo de 8 dias, para apresentar a sua defesa, incluindo meios de prova, sobre esta matéria

2. Inconformado com esta decisão dela interpõe recurso o arguido assim concluindo a respetiva motivação:
A. O Arguido é acusado de um crime de violência psicológica, nos termos da acusação pública, tendo requerido a abertura de instrução.
B. Com recurso às declarações da Assistente prestadas em sede de inquérito, e nunca, qualquer que seja a justificação ou expediente processual, prestadas em sede de instrução, nem constam, ao que se sabe da acusação da assistente - o meio próprio para aditar factos novos que não alteram substancialmente o objecto do processo -, o Tribunal a quo ordena busca domiciliária e apreensão de bens que alegadamente são da Assistente e alegadamente se encontram na residência onde os pais e irmã e sobrinho do arguido habitam por alegadamente estarem relacionados com o crime imputado ao Arguido — o único que se conhece é o que consta da acusação pública.
C. Da acusação pública, que fixa o objecto do processo, não resulta qualquer matéria de que os bens podem estar relacionados com o crime imputado, recorrendo o Tribunal, então, às declarações da Assistente nunca prestadas em instrução mas sim em inquérito para justificar o meio de obtenção de prova — justificação que o Tribunal se socorre em sede de debate instrutório e não como ponderação fundamentada anterior à ordem de busca e apreensão.
D. Declarações da Assistente que o Tribunal não pode conhecer e, ainda que pudesse, das mesmas não resulta qualquer indício que a alegada não entrega dos bens tem como fundamento alguma violência psicológica relacionada com o crime imputado.
E. Para além de constituírem factos posteriores aos delimitados na acusação, ou seja, esta fixa o termo no final de Julho de 2010, quando a Assistente sai de casa — e que tinha tanto medo do Arguido que vai de férias um mês sem qualquer justificação e quando regressa, em vez de regular as responsabilidades parentais apresenta queixa contra o Arguido - tendo a alegada omissão de entrega dos bens sido posterior, constituindo portanto, a ter qualquer relevância penal, facto autónomo, que, só por si, imporia alteração substancial dos factos.
F. O Tribunal fundamenta a busca domiciliária e apreensão quanto a factos, novos, em nada relacionados com o crime pelo qual o arguido é acusado, não investigados, mas que alegadamente resultam das declarações da Assistente em inquérito, sendo que o Tribunal justifica a inclusão dos factos com tais declarações e com a busca que deu causa, ponderando se o Ministério Público os atendeu ou não em sede de inquérito.
G. Que culmina com a conclusão que os factos de inquérito, não levados à acusação — nem sendo, ao que se sabe incluídos na acusação da Assistente — constituem factos a incluir no objecto do processo, sem contraditório, justificam, para o Tribunal, meios de obtenção de prova. Por tudo isto,
H. A busca domiciliária e consequentemente a apreensão são ilegais e nulas, por não se relacionarem com o crime imputado ao arguido, não foram investigados, por não terem qualquer fundamento factual no objecto do processo, alias, constituindo factos autónomos extravasando a delimitação da acusação pública.
Para além disso,
I. O Tribunal a quo, retira, no âmbito do despacho de que se recorre a fls. 423, das declarações da assistente prestadas em sede de inquérito e da busca domiciliária e apreensão (estas ilegais e nulas como referido) que a assistente deixou bens pessoais na residência onde o casal habitava e que o arguido se recusou entregar, “(...) pretendendo dessa forma causar-lhe transtornos e incómodos desnecessários, bem sabendo que desse forma a prejudicava na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde, e causando-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens”.
J. Ora das declarações da Assistente - que o Tribunal a quo não pode conhecer nem a matéria integra o objecto do processo para além de o extravasar temporal e espacialmente - de todo resulta qualquer elemento subjectivo imputado ao arguido, sendo que se percebe que o Tribunal teria que encontrar subterfúgio para tentar ‘ligar” os bens pessoais que manter apreender a questões psicológicas que de alguma forma pudesse relacionar com o crime de violência doméstica ao nível dos alegados maus tratos psicológicos!
K. Os factos descritos no despacho importam factos novos que alteram substancialmente o objecto do processo, sendo autónomos — posteriores à delimitação temporal do crime imputado - e dando origem a um crime novo e diverso do que o arguido é acusado.
L. Ou mesmo considerando algum elemento de conexão sempre imporia uma agravação da ilicitude e culpa do arguido para além da imputação de uma continuação do alegado crime de violência doméstica, para além do fixado na acusação, sendo, neste aspecto distinto o fundamento da alegada violência psicológica em relação ao fundamento que da acusação resulta e da própria unidade ontológica desta.
M. Sendo, portanto, nulo o despacho que os admite, por deles não poder ter conhecimento, como o arguido expressamente arguiu, de factos novos que alteram substancialmente o objecto do processo.
N. Para além dos mesmos resultarem de declarações da Assistente — cujo conhecimento do Tribunal não pode ter, nem que não alterassem o objecto do processo, sob pena de se sufragar que factos de inquérito, não investigados, poderem alterar o objecto do processo — e de meios de obtenção de prova nulos.
O. Sendo, portanto nula a integração de factos novos no objecto do processo, quer o alterem substancialmente ou não.
P. Para além de se verificar absoluta omissão e fundamentação quanto ao, presumível, indeferimento da reclamação da busca domiciliária e apreensão, bem como, na mesma esteira, absoluta omissão de justificação dos factos novos não alteraram substancialmente o objecto do processo, sendo, também por isto, nulo o despacho de que se recorre, por falta de fundamentação.
Por fim,
Q. O Tribunal a quo omitiu diligências de instrução essenciais à descoberta da verdade material, o que torna insuficiente a instrução.
R. Sendo todas as diligências omitidas, relacionadas com factos — expressamente e discriminadamente — descritos no requerimento de abertura de instrução do Arguido, e não praticados em sede de inquérito.
O Arguido é acusado de violência psicológica junto da ex-companheira durante anos, tendo, para a respectiva avaliação sido ordenada perícia à personalidade do Arguido, não se pode admitir que não é relevante à descoberta da verdade material a mesma avaliação à propagandeada vítima. Que não é relevante avaliar a razão por que tendo saído de casa já depois do arguido o ter feito a mesma vai de férias um mês com a filha, faltando a reuniões com advogados para regular as responsabilidades parentais e, regressando, o que faz é apresentar queixa contra o Arguido. Assim,
S. É nula, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade material, requeridas em sede de requerimento de abertura de instrução, por culminarem na insuficiência da instrução.
T. Foram violados os seguintes dispositivos legais, entre outros que resultem aplicáveis: art. 1., n.° 1 alínea f), 120.°, n.° 2 alínea d), 124.°, 125.°, 126.°, 177.°, 178.°, 284.°, 286.°, 289.°, 303.°, todos do Código de Processo Penal, art. 34.° da Constituição da República Portuguesa e art. 21.° da Lei 112/2009 de 16 de Setembro.
Remata as conclusões, com os seguintes PEDIDOS:
Sejam declaradas ilegais e nulas a busca domiciliária e respectiva apreensão ordenadas, bem como violadoras dos princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, bem como da reserva da vida privada do Arguido e respectivo direito de propriedade dos bens apreendidos, cuja devolução se Requer.
Seja declarado que as provas resultantes dos meios de obtenção de prova ilegais são nulas e, portanto, não podem ser conhecidas, nem como podem ser conhecidas declarações da Assistente em inquérito e todas as que não tenham sido prestadas directamente decorrentes da instrução, sendo nulo o conhecimento, pelo que os factos novos a integrar o objecto do processo conforme despacho de que se recorre não podem ser conhecidos pelo Tribunal, ainda que não alterassem substancialmente o objecto do processo.
Os factos novos que o Tribunal quer conhecer — para além de não o poder conforme alegado -alteram substancialmente o objecto do processo pelo que, não tendo a concordância do Arguido ainda que pudesse recorrer-se nesta fase ao caso julgado de consenso, não podem integrar o objecto do processo, sendo nulo.
Atenta a omissão da prática de actos essenciais à descoberta da verdade material, Requer-se seja declarada nula, por insuficiência da instrução.(sic)
3. Responderam, no Tribunal recorrido:
3.1 O Exmo. Procurador da República, rematando a Resposta com as seguintes CONCLUSÕES:
A - Questão prévia
3.1.1 A instrução só comporta, obrigatoriamente, o debate instrutório e, no que concerne a diligências instrutórias, só é imposto o interrogatório do arguido, se este o solicitar, e por uma vez.
3.1.2 A realização de quaisquer diligências de instrução está subordinada à livre apreciação do juiz, que pode rejeitar, fundamentada e prudencialmente, todas e quaisquer diligências que entender não interessarem aos fins da instrução e contribuírem para o seu protelamento.
3.1.3 Tratando-se de decisão que ordena actos dependentes da livre resolução do tribunal, o despacho judicial que indefere a realização de diligências instrutórias não é passível de recurso — art. 400.° n.° 1 al. b), do CPP,
3.1.4 Na medida em que a irrecorribilidade de tal despacho está, de resto, prevista no n.° 2 do art. 291.0 do CPP, que dispõe que de tal despacho apenas cabe reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir.
3.1.5 Pelo que, também ao abrigo do art. 400.° n.° 1 al. g), do CPP, o despacho em questão não é recorrível.
B- Do objecto do recurso
3.1.6 O juiz de instrução tem o poder/dever de rejeitar a realização de diligências requeridas se estas, confrontadas com o manancial probatório e os indícios já existentes, permitem concluir quer da sua finalidade meramente dilatória, em contradição com as finalidades da instrução, quer da sua irrelevância quanto à finalidade da averiguação do mero juízo indiciário sobre a responsabilidade imputada ao arguido na acusação.
3.1.7 A insuficiência de instrução, como nulidade recortada na al. d) do n.° 2 do art. 120.°,do CPP, só pode reportar-se à omissão de diligências impostas pela lei. Na instrução só assume carácter obrigatório o interrogatório do arguido, a realizar apenas por uma vez se por ele requerido, bem como o debate instrutório.
3.1.8 Por isso, a rejeição de diligências não impostas por lei, não configura a nulidade a que se refere o art. 120.° n.° 2 ai. d) do CPP.
3.1.9 As buscas são meios de obtenção de prova — Título III, Capítulo 1, do CPP — que, conforme dispõem os n.° s 2 e 3 do art. 174.°, realizam-se em locais reservados ou não livremente acessíveis ao público, quando neles (locais) existam indícios de que se encontram objectos relacionados com a prática de um facto qualificado como crime e que são passíveis de servirem meio de prova no processo em curso (...)“.
3.1.10 A busca domiciliária, como diligência probatória, pode e põe em causa, de modo grave, os direitos, liberdades e garantias fundamentais da pessoa humana individual, protegidos peta Constituição e pelo próprio direito penal, como o direito à intimidade da vida privada (art. 26° 1 da CRP, 192° CP e 80º C. Civil), à não intromissão na privada (art. 32.° n.° 8 da CRP, 192.° e 193 do C. Penal) e à não intromissão em lugares reservados ou não livremente acessíveis ao público (art. 32.° n.°2 e 191º do C.P.P.
3.1.11 Pelo que a sua realização está subordinada aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, pelo que tal meio de obtenção de prova só é permitido se se mostrar necessário para a prova do crime em investigação, isto é, se tal crime faz parte ou é objecto do processo.
3.1.12 Na acecão tradicional e corrente, instrumentos do crime são os “objectos (coisas) utilizados como meio (s) de realizar o crime, v. g.: a impressora na qual se imprime a moeda falsa — Prof. F. Dias (Direito Penal Português, 4s Consequências Jurídicas do Crime, p. 617 ss]
3.1.13 Mas tudo depende da natureza do crime em concreto.
Na verdade, a função do art. 152.° do Código Penal — crime imputado ao recorrente pela acusação pública deduzida a fis. 248/252 — é prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. “(...) As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.) (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, 1, p. 329 e 337)
Como enunciou o Ac. da RP de 28.09.2011° (Proc. n.° 170/10.OGAVLC.) “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima”
O crime de violência doméstica p. p. no art. 1 52.° do C. Penal, quer pressuponha uma repetição ou reiteração de condutas — na versão anterior à introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 04/09 (A titulo exemplificativo, os Acs. da RP de 02.07.2008; de 3 1.01.2001.) - quer praticadas de uma só vez e quando assuma especial gravidade ou especial violência (Acs. daRP de 09.12.1998 e de 31.01.2001; do STJ de 05.04.2006.), quer já não exija a reiteração de condutas — na versão da Lei n.° 59/2007, visa igualmente proteger a saúde — bem jurídico complexo que abrange também a saúde física. (Comentário, p. 332.)
Pode dizer-se, em sintonia com os Ac. R P. de 03. 11. 199 934 (CJ, V, 223); de 26. 05.2010 (CJ, III, 216) e da RC de 05.201036 (CJ. IV. 41) que neste ilícito tutela-se uma vertente específica da individualidade física ou psíquica, mais precisamente aquela dimensão intransigente da dignidade humana que cada um tem o direito de preservar e de ver acautelado, de quem se situa, no âmbito das relações familiares ou análogas ou então de coabitação referenciadas no tipo legal, numa posição de vulnerabilidade.
3.1.14 Desta forma, o que prevalece è que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretende exercer em relação à vitima, derivada da maior vulnerabilidade desta, razão pela qual na Declaração das Nações Unidas respeitante á eliminação da violência contra a mulher (art. l da Resolução 48/104, de 20.12.1993), considera-se como acto de “violência “todo aquele que possa ter como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, assim como as ameaças de tais actos, a coacção, a privação arbitrária da liberdade, tanto aquela que se produza na vida pública como na vida privada: os maus tratos psíquicos serão todo o constrangimento, seja realizado de modo directo ou expresso, seja de modo indirecto ou implícito, temporalmente concentrado ou distribuído que, de modo ostensivo, atemorize ou desestabilize a vítima com vista a afectar a sua integridade psicológica, em suma, todo o seu modo de vida.
3.1.15 Contrariando as soluções mais correntes, afigura-se-nos que a retenção e recusa de entrega pelo sujeito activo do crime, o arguido, dos bens essenciais á satisfação das necessidades diárias da assistente alimentares, de vestuário, estéticas, de saúde, de poupança, etc — colocando-a numa situação previsível, de inferência lógica à generalidade dos cidadãos, captável de acordo com as regras da experiência comum, de menosprezo pelos seus direitos e integridade moral, causando-lhe transtornos e incómodos desnecessários, prejudicando-a na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde e causar-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens, corno muito bem se diz no despacho ora recorrido, o de fls. 422/424, é ainda uma consequência jurídica do crime, no sentido de que ainda o realizam, conservam-no, perpetuam-no, na vertente dos maus tratos, senão físicos, pelo menos psíquicos,
3.1.16 Pois que a estrutura do crime de violência doméstica não se queda pela produção de palavrões, de ofensas à integridade física, de ameaças, antes estende-se a um conjunto de situações que arbitrariamente persistem e pretendem acentuar o estado de humilhação da vítima — designadamente através da privação dos bens pessoais — colocando-a numa posição de inferioridade económica, reduzindo-a a um infinito de sofrimento material, a um estado de infâmia semelhante à atroz evolução de um pesadelo: tornando-a indefesa, falida, economicamente dependente, sem esperança, impossibilitada ou diminuída no direito à felicidade, à demolição do passado, a arquitectar um novo modo de vida, em suma, numa criatura privada de possíveis, semelhante a uma desmobilizado pobre e servil, apta a encontrar e ingressar numa comunidade de oprimidos.
3.1.17 Pelo que, na esteira do douto despacho recorrido, também consideramos que a recusa de entrega dos bens pertença da assistente tem urna relação directa, expressa, com a implícita intenção do arguido em acentuar e prolongar a humilhação da assistente, em subsistir no desprezo pela sua condição humana, em inferiorizá-la económica e psiquicamente, determinado- a a um sofrimento material inútil e desnecessário, privando-a da dignidade inerente a qualquer ser humano em aceder à satisfação de necessidades essenciais e diárias, mormente em utilizar bens e objectos que lhe pertencem e que deles carece!
3.1.18 Daí, de resto, a preocupação do legislador, ao consagrar no art. 21.0 n° 4 da Lei n.° 112/2009, de 16/09, tenha consagrado que “Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade, os quais devem constar de lista disponibilizada no âmbito do processo sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial”.
3.1.19 Nestes termos, concordamos com o despacho recorrido no atinente à necessidade e legalidade da busca no domicílio do arguido, diligência probatória que está relacionada com o crime que lhe foi imputado e constitui averiguação autónoma de factos objecto do processo e meio de prova do crime, integrando um acto de instrução dependente da livre resolução do juiz e adequada e necessária para a perseguição/punição do agente, razão pela qual não se configura qualquer ataque aos art, 26° 1 e 32.° n.° 8 da CRP, 191.°, 192° e 193.°, todos do CP, 80° do C. Civil e 174.°, 177.°, 178,°, 288.° n.° 4 e 289.° n.° 1, todos do CPP.
3.1.20 De acordo com o art. 10 al.f), do CPP — versão da Lei n.° 48/07, de 29/08, constitui “Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
3.1.21 Grosso modo, poderemos afirmar, na senda da norma legal citada, que a alteração é não substancial quando os novos factos não importem a imputação de crime diverso nem a agravação das sanções aplicáveis, ou seja, verifica-se uma alteração não substancial quando: os novos factos pertencem ao mesmo facto histórico unitário, ao mesmo pedaço de vida, composto por todas as acções do agente de conteúdo semelhante e proximidade espácio-temporal; quando apenas se alteram determinadas circunstâncias do crime, desde que estas não constituam elementos do tipo nem determinem o surgimento de um outro facto histórico; o bem jurídico protegido pelo crime imputado abrange aquele que resulta dos novos factos; os crimes imputados não se provam ou se provam outros de menor gravidade, abrangidos por aqueles.
3.1.22 Sendo certo que — por todos, o Ac. Da RE de 27.06.2006, proc, N.° 732/06-1 e copiosa doutrina nele citada — o objecto do processo penal é o objecto da acusação, que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória)[2], a verdade é que pode não ser total a identidade entre o objecto da acusação pública ou do assistente e o da pronúncia, podendo esta divergir relativamente àquelas quanto a factos que não impliquem uma alteração substancial, pelo que o juiz pode não só alargar ou ampliar a pronúncia a outros factos indiciados, a factos que não estejam descritos naquela (s) acusação (ões), mas também proceder à supressão de factos constantes daquelas peças, caso os considere não indiciados, desde que tal alteração não seja substancial (Germano M. Silva, op. cit, l8O-81; Ac. da RC de 15.09.199, CJ, XX1V, IV, 57), devendo comunicar tal alteração (não substancial) — ao arguido, através do seu defensor art. 303.° n.° 1, do CPP.
3.1.23 Assim, o aditamento dos seguintes factos “ (...) a assistente deixou bens pessoais na residência onde o casal habitava e que o arguido se recusou entregar, “(...) pretendendo dessa forma causar-lhe transtornos e incómodos desnecessários, bem sabendo que desse forma a prejudicava na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde, e causando-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens”, factos estes resultantes da instrução — busca domiciliária e do debate instrutório, não se traduz normativamente no preenchimento de uma previsão legal autónoma que determina a qualificação de uma conduta criminosa diversa, nem qualquer circunstância qualificativa do crime imputado, em termos de consubstanciar uma alteração quer na valoração social, quer na imagem social do acontecimento, pelo que, quanto a nós, não existe alteração substancial dos factos descritos na acusação, mas tão só, uma alteração não substancial, nos termos acima expendidos: os novos factos pertencem ao mesmo facto histórico unitário, ao mesmo pedaço de vida, composto por todas as acções do agente de conteúdo semelhante e proximidade espácio-temporal, não determinam o surgimento de um outro facto histórico e o bem jurídico protegido pelo crime imputado abrange aquele que resulta dos novos factos.
3.1.24 Não estamos, por conseguinte, face a uma alteração substancial de factos, pelo que, tendo sido cumprida a norma do n.° 1 do art. 303.° do CPP, inexiste qualquer censura a assacar ao despacho recorrido.
3.1.25 Pelo que não tendo este vulnerado as normas dos art. 1.0 n.° 1 alínea f), 120.°, n.° 2 alínea d), 124.°, 125.°, 126.°, 177.°, 178°, 284.°, 286.°, 289.°, 303.°, todos do Código de Processo Penal, art. 34.° da Constituição da Republica e art. 21.° da Lei n.° 112/2009 de 16/09, deve ser confirmado e mantido, assim se negando, nesta parte, provimento ao recurso.
3.2 A Assistente C…, pronunciando-se no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer a sufragar a Resposta dada na instância recorrida pelo MºPº
5. Observada a notificação a que alude o artº 417º/2 do CPP; colhidos os Vistos, realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação objetiva do recurso:
Reconduz-se às questões suscitadas, em jeito de síntese, no intróito do Recurso sob apreciação:
i. Omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade material: nulidade do artº120º nº2 al. d) CPP? [Questão prévia: admissibilidade de recurso?]
ii. Busca domiciliária e apreensão de bens: Meio de prova ilegal e nulo?
iii. A inclusão de factos novos no objeto do processo: violação do princípio da vinculação temática ou do acusatório?

2. Conhecendo.

2.1 Omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade material: nulidade do artº120º nº2 al. d) CPP?

Em questão, a apreciação conjugada do Requerimento de Abertura de Instrução [RAI] e das decisões, quer liminar quer em conhecimento da reclamação deduzida, que sobre a pretensão de produção de prova formulada naquele RAI, incidiram.

O RAI, concluiu-o o recorrente com a seguinte formulação:

«Para dedução de despacho de não pronúncia e por se considerarem essenciais
à descoberta da verdade material e por constituírem diligências probatórias, essenciais à defesa do Arguido, e omitidas em sede de inquérito e que põe em crise o despacho de acusação Requer-se a V. Exa. a produção de prova infra para a matéria alegada supra.
Provo Pericial:
Da mesma forma, Requer a V. Exa. se Digne ordenar, para os factos articulados supra, a avaliação da personalidade da Assistente.
Requer a V. Exo. se Digne admitir a prova documental adiante junta num total de 33 páginas.
Prova testemunhal:
Requer ainda a V. Exa. se Digne ordenar o depoimento das testemunhas infra arroladas, a notificar, por serem essenciais à descoberta da verdade material e esclarecimento dos factos em apreço, quanto à invocada razão de ciência, e para a matéria articulada supra em que se indicam as respectivas testemunhas:
1. D…, com domicílio profissional na 1.ª secção dos serviços do Ministério Público de Matosinhos, sito na Rua …, Matosinhos;
2. E…, residente na Rua …, …, …;
3. F…, residente na Rua …, n.° .., . Esq. Frente, Braga.
4. G…, residente na Rua …, …, …, …..-…, Rio de Janeiro - RJ, Brasil.
5. H…, residente na Rua …, n.° …, …. ….
6. I…, residente na Rua …, …, ..°, …. Porto.
7. J…, residente na Rua …, …, Hab. .., …. Porto.
8. K…, com domicílio na Rua …, …, ….-… Póvoa de Varzim.
Para inquirição da testemunha identificada em 4. Requer-se a V. Exa. se Digne ordenar que seja a testemunha inquirida por autoridade brasileira, através de respectiva carta rogatória à competente entidade judicial, devendo a testemunha ser inquirida quanto aos factos a que está indicada, nomeadamente os factos descritos nos arts. 38.°, 40.°, 41º, 42.°, 43º, 44.° e 45º
Requer ainda a V. Exa. se Digne ordenar que seja emitida certidão da participação criminal da Ofendida, bem como de todas declarações por esta prestadas a fls... e fls..., bem como da acusação pública, para efeitos de apresentação de queixa—crime por denúncia caluniosa.

No despacho liminar proferido pelo Exmo. JIC, foi admitido o RAI e logo decidido
«Nos termos do artº291º nº1 do CPP, indeferem-se as diligências instrutórias requeridas pelo arguido por não se nos afigurarem necessárias para a realização das finalidades da instrução»
Inconformado, o Recorrente reclamou.
Sobre a reclamação incidiu a decisão já acima lembrada, nos seguintes termos:
«Indefere-se aliás douta reclamação apresentada, porquanto se entende que as diligências requeridas pelo arguido ultrapassam a natureza indiciária exigida para a prova nesta fase do processo, conforme resulta, nomeadamente, do artigo 301º nº3 do CPP.
Considera-se também não assistir razão ao requerente quando invoca a nulidade prevista no artº 120 nº2 al. b), 2ª Parte do CPP, uma vez que a realização da instrução não pressupõe todas as diligências para a descoberta da verdade, mas apenas as diligências necessárias à comprovação da suficiência de indícios, só podendo constituir nulidade a omissão posterior – entenda-se posterior à instrução – das diligências que possam reportar-se essenciais para a descoberta da verdade.»
Com o presente recurso pretende o Recorrente ver reconhecida a existência de uma omissão de diligências de instrução essenciais à descoberta da verdade material, que torna insuficiente a instrução.

Nesta parte, diz o Exmo. Procurador da República – e di-lo bem – não é admissível recurso.
Seguramente, porque não o desconhecia, o recorrente, escudando-se numa pretensa nulidade – Artigo 120º/2 al. d) do CPP – pretende subverter a proibição do recurso ínsita no artigo 291º/ 1 e 2 do diploma sob referência: «(1) O juiz indefere os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis. (2) Do despacho previsto no número anterior cabe apenas reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir». [3]

Normativo, aliás, que o Tribunal Constitucional vem julgando não ferido de inconstitucionalidade, por razões que se entende pertinente lembrar.
Se «É certo que a Constituição garante a todos o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que “o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa” (artigo 32º, nº 1)», «Destas normas, …., não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 235), a verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal, «se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido». [Do Ac.TC 371/00 [4] [5]]
Considerando-se, ainda:
«a instrução, ….. não deixa de ser uma fase preparatória na estrutura do processo, podendo nela o juiz praticar ou ordenar oficiosamente actos que considere úteis (o mesmo nº 1 do artigo 291º). A instrução é, assim, uma fase processual que não visa propriamente um complemento dessa instrução, antes visa a comprovação pelo juiz do acto acusatório, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Integra, além dos actos que o juiz considera úteis e pertinentes, uma fase obrigatória - o debate instrutório - com a finalidade especifica de apurar se, do decurso do inquérito e da instrução 'resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido ao julgamento' (artigo 298º). Esse debate está pensado pelo legislador em termos de permitir, sob o signo dos princípios dispositivo e do contraditório, e também inquisitório, uma ampla produção de prova, com a prática de todos os actos de instrução - e até novos actos de instrução - que permitam apurar os tais indícios de facto e elementos de direito, estando sempre presente o 'interesse para a descoberta da verdade' (nº 1 do artigo 299º). E não resulta do Código a proibição de se realizarem, no decurso do debate, os actos de instrução que foram requeridos na fase facultativa e o juiz indeferiu por despacho.» ACTC nº 459/00
À sobreposse: como diz Pinto de Albuquerque, “O propósito do legislador foi precisamente o de limitar ao juiz de instrução a decisão sobre as diligências instrutórias. Destarte, a lei permite que o juiz indefira a realização de todas as diligências probatórias e a junção de toda a prova do requerente da instrução limitando-se a instrução ao debate instrutório. Não haverá, então, a nulidade insanável da falta de instrução, porque ela teve lugar, nem a nulidade sanável da insuficiência da instrução, na medida em que os atos processuais referidos não são obrigatórios”. [6]
2.2 Busca domiciliária e apreensão de bens e sua conformidade normativa, jusprocessual e jusconstitucional.

«Os tribunais estão sujeitos à lei (CRP, Artº 206º), devendo, por isso, considerar a lei como a primeira mediação metódica do «justo» constitucional».
Um tal princípio reitor da ação jurisdicional, não invalida, porém, que a Constituição deva prevalecer como norma superior – dizer, prevalência da vinculação pela constituição (princípio da constitucionalidade) em desfavor da vinculação pela lei (princípio da legalidade) -, nem invalida, antes obriga, o reconhecimento aos tribunais do direito de acesso direto à Constituição – sobretudo às normas constitucionais consagradoras de direitos, liberdades e garantias -, a fim de «fiscalizarem» (….) a conformidade da lei com as normas e princípios da constituição. [7]
Diz-se normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias.
Sejam, por exemplo, o direito «inviolável» à integridade física e moral da pessoa (Artº 25º/1 CRP) ou o direito à reserva da intimidade da vida privada (Artº 26º/1 CRP), este a incluir, como se entende, a reserva do domicílio.
Assim, porém, sem que a simples referência a tais direitos possa fazer olvidar que, conquanto “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias sejam diretamente aplicáveis e vinculem as entidades públicas e privadas”, pode a lei, nos casos previstos na constituição e no justo limite do “necessário” à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, restringir os mesmos direitos, liberdades e garantias. (Artº 18º nºs 1 e 2 da CRP)
De per se, este segmento jusfundamental logo obriga à consideração da ocorrência de colisões ou conflitos de direitos. Assim, quando a esfera de proteção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional.
Como resolver o problema no caso concreto?
Sem necessidade de especiais lucubrações exegéticas, acolhe-se, aqui, o princípio da concordância prática como critério de solução.
Dizer, então: sem prejuízo da preservação do núcleo essencial de cada um dos direitos, liberdade ou garantias em causa, a partir da ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, o princípio da concordância prática executar-se-á através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito, vale dizer, (i) exigir-se-á que o sacrifício de cada um dos valores seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros, (ii) exigir-se-á, outrossim, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que a escolha entre as diversas maneiras de resolver a questão concreta se faça em termos de comprimir o menos possível cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação (segundo a intensidade e a extensão com que a sua compressão no caso afeta a proteção que lhes é constitucionalmente concedida). [8]
Princípio da proporcionalidade.
O princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo, decorrente do princípio do Estado de direito democrático ou, de todo o modo, conexionado com os direitos fundamentais, constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública – seja esta, como ao caso importa, a autoridade judicial – no sentido de saber da sua conformidade aos subprincípios da “necessidade”, da “adequação”, da “proporcionalidade” (sentido estrito), saber da adequação do meio à prossecução do escopo por ela visado.
Uma tal enformação axiológico-fundamental obriga a que uma qualquer medida jurisdicional não incorra numa discricionariedade irrazoável, antes deva assumir e tornar clara a assunção dos princípios subconstitutivos daquele princípio constitucional da proibição do excesso, como sejam: (i) o princípio da conformidade ou adequação de meios; (ii) o princípio da exigibilidade ou da necessidade; (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido restrito.
De modo prático,
Pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação medida> fim. Pergunta-se: a medida adoptada é apropriada, adequa-se à prossecução do fim ou fins a ela subjacentes? A exigência de conformidade pressupõe, então, a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção.
Pelo princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio da “justa medida” cuida-se saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. Ou dizer, saber se, no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são “desmedidas” (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
Finalmente, o princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. [9]

Na subsunção destes princípios normativos ao caso concreto a medida tomada - busca domiciliária com apreensão de bens - parecerá conforme ao princípio da proporcionalidade (sentido amplo) ou da proibição do excesso?
Flui do processado que a ofendida C…, já depois de se ter referido aos objetos de sua pertença nas declarações de fls.90, formulou requerimento nos seguintes termos:

«A ofendida abandonou a residência que partilhava com o arguido aí tendo deixado parte dos seus pertences pessoais, designadamente roupas, utensílios de cozinha, secador, prendas e outros objectos. Por várias vezes solicitou ao arguido a entrega desses bens, mas este recusa-se a faze-lo, nem permite que a ofendida entre nessa habitação para os recolher. Os bens em causa fazem falta à ofendida, que os pretende reaver. Assim, A ofendida insiste que seja determinado ao arguido que para entregar esses bens, facultando a presença e entrada na habitação da ofendida ara melhor identificação dos bens a entregar, acompanhada por autoridade policial.»

Deflui do mesmo processado que, subsequentemente ao convite judicial àquela requerente para indicar quais os bens que lhe pertenciam e que se encontravam ainda na morada do arguido, foi proferida, em 05.06.2012, decisão judicial do seguinte teor:
«Em face dos elementos já recolhidos nos autos, há indícios que na residência, garagem e anexos utilizados por B…, sitos em: - Rua …, …, …, se podem encontrar objectos relacionados com o crime de violência doméstica, designadamente os bens relacionados na lista de fis. 351 e 352. Assim, nos termos dos artigos 269.°, n.° 1, ai. c), 174.°, n.° 2, e 177.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, autorizo que se proceda a uma busca à referida residência, incluindo anexos e garagens, para apreensão dos objectos constantes da lista anexa (fis. 351, frente e verso, e 352) que ali se encontrem, com recurso, se necessário absolutamente necessário, ao arrombamento de portas que possam obstruir ou impedir a realização daquele fim, dispensando a minha presença por me encontrar ocupado noutro serviço judicial. Os bens a apreender, constantes da referida lista, devem ser entregues à ofendida, C…, a qual deve ser notificada para assistir à diligência e é desde já nomeada fiel depositária dos bens a apreender, os quais lhe devem ser entregues até ulterior decisão judicial, nomeadamente para os efeitos previsto no artigo 21.°, n.° 4, da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro. Nos termos do artigo 176.° do Código de Processo Penal, quem tiver a disponibilidade do lugar a buscar pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga. Prazo: 30 dias. Passe os necessários mandados de busca, a cumprir pela autoridade policial competente, acompanhados de cópias autenticadas deste despacho e da relação de bens de fis. 351 e 352. Notifique o Ministério Público.»

O cumprimento da busca com a entrega dos bens concretizou-se em 27.06.2012.
Sobreveio, então, o requerimento deduzido pelo arguido, ora recorrente, na pretensão de ver revogada a apreensão, incidindo sobre ele a seguinte decisão judicial:

«O arguido B… veio requerer a revogação da apreensão, alegando que a mesma não obedeceu aos requisitos legais. A apreensão foi ordenada por autoridade judiciária competente, ao abrigo do disposto no artigo 21.°, 11.04, da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro e nos termos dos artigos 269.°, n.° 1, ai. e), 174.°, n.° 2, e 177.°, n.° 1, do Código de Processo Penal. A busca foi antecedida de entrega de cópia do respectivo mandado de busca, e mesmo que se admita que não tenha sido entregue cópia do despacho que autorizou a busca, essa falha constitui mera irregularidade, que deve considerar-se sanada pela notificação do nosso despacho de fis. 422 a 424, que foi acompanhada da cópia em causa. O requerente não alega ser proprietário dos bens a restituir, e apesar de notificado nos termos do último parágrafo do nosso despacho de fls. 377, não especificou, no prazo que lhe foi concedido, quais os bens que não pertencem à assistente. Nas declarações que prestou, a fis. 519, apenas soube dizer que a máquina de lavar e aspirar, apreendida nos autos, pertence ao seu pai. Acresce que da informação de serviço dos agentes da PSP que realizaram a busca e apreensão, resulta terem sido apenas apresentadas dúvidas ou questões relativas à propriedade do item n.° relacionado a fis. 398, ou seja, relativamente à mesma máquina de lavar e aspirar carpetes com os respectivos acessórios. A existir fundamento para o levantamento da apreensão, o requerimento devia ser apresentado pelo titular do direito de propriedade, e não pelo arguido. Nestes termos se indefere ao aliás doutamente requerido, por falta de fundamento legal e por ilegitimidade do requerente. Notifique. Para a inquirição das testemunhas
L…, M… e E…, identificados a fis. 456 (pontos 1, 3 e 4), neste tribunal, designo o próximo dia 7 de Novembro às 14:30 horas Notifique.»

No apelo quer aos despachos deixados referidos quer à exposição inicial produzida pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal no Debate Instrutório, resulta que o suporte legal da decisão de apreensão dos bens, centrou-o o Exmo. Juiz nos artigos 1º, 2º, 3º, 4º e 21º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro.
Tendo em vista uma melhor compreensão da fundamentação normativa emprestada à decisão, será pertinente ter presentes os seguintes segmentos dos artigos invocados:
«A presente lei estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas.» (Artº1)
«Para efeitos de aplicação da presente lei, considera -se: a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal;» (Artº 2º)
«A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
……………………………………
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz;
c) Criar medidas de protecção com a finalidade de prevenir, evitar e punir a violência doméstica;
………………………………………………………
h) Assegurar uma protecção policial e jurisdicional célere e eficaz às vítimas de violência doméstica; (Artº 3º)
«4 — Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade, os quais devem constar de lista disponibilizada no âmbito do processo sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial.» (Artº 21º)

Linearmente, compreende-se que subjacente à decisão tomada esteve a compreensão de que com a retenção e sonegação dos bens à ofendida, o recorrente mantinha uma prática de violência psicológica sobre a vítima, exatamente a fattispecie por que era acusado nos autos.
Pegando na lei ordinária – que, repete-se, o tribunal deve ler qual “primeira mediação metódica do «justo» constitucional” – o tribunal viu nela suporte jusnormativo bastante para adoção da medida cautelar de busca com apreensão. Sem que deixasse de tomar os cuidados no sentido da preservação da menor ofensa possível à privacidade domiciliária: «Nos termos do artigo 176.° do Código de Processo Penal, quem tiver a disponibilidade do lugar a buscar pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga».

Prefigurando-se como objectivo da medida a tomar evitar a continuação da prática delituosa, seguramente a ordenada apreensão dos bens da vítima afigura-se como constituindo meio adequado a consegui-lo.
Igual juízo de conformidade valerá a respeito do princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio da “justa medida” na consideração de que, por aquela mesma razão, o meio utilizado – dizer, apreensão dos bens - é proporcionado ao fim visado.

A leitura dos factos não divergirá no que à concreção do princípio da exigibilidade, necessidade ou da menor ingerência possível diz respeito.
Se, como se deixa referido, a tónica deste princípio coincide com a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão, no caso concreto, não se vê, em face da sonegação pessoal à entrega por parte do arguido, outra medida menos gravosa que, sem prejuízo da celeridade pretendida pelo legislador, pudesse ser tomada.

Em conclusão: a mediada tomada, obedeceu, nos seus fundamentos, aos pressupostos normativos decorrentes da lei 112/2009; na sua execução, foram respeitados os ditames jusprocessuais; à luz da ponderação dos valores constitucionalmente protegidos, o sacrífico mostrou-se necessário, adequado, proporcionado.

2.3 Inadmissibilidade do conhecimento de factos novos pelo Juiz de Instrução Criminal.

A argumentação do recorrente, se bem se interpreta, reconduz-se, no essencial, à violação do princípio da acusação ou da vinculação temática, sob dupla consideração: (i) inclusão, sem contraditório, de factos novos que alteram substancialmente o objeto do processo; (ii) modo ilegal de aquisição processual daqueles.
[«Da acusação pública, que fixa o objecto do processo, não resulta qualquer matéria de que os bens podem estar relacionados com o crime imputado, recorrendo o Tribunal, então, às declarações da Assistente nunca prestadas em instrução mas sim em inquérito para justificar o meio de obtenção de prova…»
«Para além de constituírem factos posteriores aos delimitados na acusação, ou seja, esta fixa o termo no final de Julho de 2010, quando a Assistente sai de casa — (………) - tendo a alegada omissão de entrega dos bens sido posterior, constituindo portanto, a ter qualquer relevância penal, facto autónomo, que, só por si, imporia alteração substancial dos factos.»
«Com recurso às declarações da Assistente prestadas em sede de inquérito, e nunca, qualquer que seja a justificação ou expediente processual, prestadas em sede de instrução, nem constam, ao que se sabe da acusação da assistente - o meio próprio para aditar factos novos que não alteram substancialmente o objecto do processo…»
● «Declarações da Assistente que o Tribunal não pode conhecer….»
Quid iuris?

De acordo com a Constituição da República, o princípio estruturante do processo penal é o princípio acusatório – o processo penal tem estrutura acusatória [Artigo 32º/1 CRP].
Este princípio reitor da vinculação temática ou da acusação reconduz-se, no essencial, à ideia de que a acusação ou a pronúncia definem e fixam, perante o tribunal, o objecto do processo.
Gomes Canotilho e Vital Moreira - que delimitam o respectivo conteúdo normativo à ideia de que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento», - não hesitam em considerá-lo «um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e «uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial» [10]
Assumindo-o, o legislador ordinário a ele se referiu, expressis verbis, no Preâmbulo do C.P.Penal aprovado pelo DL 78/87:
“Por apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandato constitucional, o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo – e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento..»

A este “temperamento” se há-de voltar, oportunamente, visto o relevante significado decorrente da mens legislatoris assim deixada expressa.

Figueiredo Dias, que tem o princípio da acusação como “a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido - … - que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência”, ensina, em termos práticos:
«deve… firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória…) e a extensão do caso julgado (actividade decisória…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.» [11]
Com uma tal estrutura acusatória quer-se significar, segundo ensinamento do mesmo mestre de Coimbra, que “a imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o MP ou um juiz de instrução).”[12]

Todavia, importa lembrá-lo, o mesmo mestre de Coimbra não deixava de referir o princípio acusatório como um ponto de partida.
Considerava ele que com o princípio da acusação não se resolviam todos os problemas relativos a temas como os do objeto do processo, dos poderes de cognição do juiz e do caso julgado.
Perguntava mesmo:
«São decisivos os limites da acusação – mas como devem eles ser determinados? Por uma interpretação literal dos termos acusatórios? Por uma sua interpretação subjetiva? Ou objetiva? E não suportará o princípio da acusação ainda uma certa integração (ou até correção) dos termos da acusação? Se sim, em que medida e até que ponto? E o que é que está em última análise inculcado nos próprios termos acusatórios: uma série de factos naturalísticos, uma certa realidade normativa, uma relação histórica da vida, um caso jurídico concreto?» [13]

Axiologicamente conexionado com este princípio do acusatório ou da vinculação temática (ne procedat iudex ex officio), aquele outro do processo equitativo, do processo justo, do processo devido (due process), qual exigência do Estado de Direito [14] [15] [16], a impor, nomeadamente, que a verdade só possa ser procurada de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas - ofendido incluído, obviamente. [17]
Diz-se, a este propósito, que o processo penal tem por fim “a realização da justiça no caso, por meios processualmente admissíveis e por forma a assegurar a paz jurídica dos cidadãos” [18]
É na atenção à filosofia subjacente à lei penal adjectiva nos pontos em que, quais princípios reitores, assume, de uma parte, a estrutura basicamente acusatória do processo penal e, de outra, na decorrência desta mesma estrutura acusatória, confere uma específica relevância ao inquérito, que este, “convertido na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação”, é realizado “sob a titularidade e a direcção do Ministério Público a quem, exactamente por lhe ser deferida tal titularidade bem como a competência exclusiva para a promoção processual, é atribuído não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica magistratura sujeita ao estrito dever de objectividade”. [19]
Porém, como é de todos sabido, ao inquérito pode sobrevir a instrução,
Instrução que, nos termos do artigo 286º/1 do CPP, visará a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Dizer, visará a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito.
Dizer, porém, ainda: conquanto a instrução não seja em face da lei um novo inquérito mas um mecanismo de comprovação, é-o sem prejuízo do suplemento de investigação autónoma que o juiz de instrução pode levar a cabo. [20]
De sorte que se a finalidade da instrução é a prolação de uma comprovação judicial seja da decisão de dedução de acusação, seja da decisão de arquivamento do processo, naturalmente ela deverá conduzir à prolação de um “despacho de pronúncia ou de não pronúncia” [307º/1 CPP]
Prolação de um despacho relativamente ao qual a lei penal adjetiva consente que o juiz prolator, “oficiosamente ou a requerimento”, altere os factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução, se de uma alteração não substancial se tratar e, de todo o modo, uma vez observado o audiatur et altera pars: comunicação da alteração ao defensor, interrogação do arguido sobre a mesma alteração, sempre que possível, e concessão, a requerimento, de um prazo para preparação de defesa. [Artª 303º/1CPP]
Eis, aqui, se bem se ajuíza, quer a demonstração prática do referenciado “temperamento” da maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, quer a resposta prática à questão deixada formulada sobre saber se não suportará o princípio da acusação ainda uma certa integração (ou até correção) dos termos da acusação.
Manifestamente, nas sucessivas alterações do quadro jusprocessual penal, a estrutura acusatória do processo criminal adotada nos idos de 87, tem sofrido significativa inovação, nomeadamente com a Lei 48/2007 de 29/8.
Na sua essencialidade o princípio da vinculação temática procura preservar o princípio da imparcialidade – a garantia de que o juiz de julgamento não esteja implicado na definição do objeto do processo é conatural à imparcialidade do próprio tribunal [21] - na ideia de que investiga quem não julga, julga quem não investiga, ou dizer , quem acusa não julga, quem julga não acusa.
Porém, vem-se tornando manifesto que o princípio acusatório não é incompatível com momentos ou fases inspiradas no inquisitório, desde que justificadas pela procura da verdade e sempre submetidas ao dever de lealdade para com o arguido.
Vale dizer: se ainda se pode dizer que o princípio do acusatório implica que é pela acusação que se define e fixa o objeto do processo – o objeto do julgamento – tal afirmação não impõe uma total e completa imutabilidade do objeto definido pela acusação, na exata medida em que são admissíveis alterações não substanciais assim o arguido, preservado do efeito surpresa, seja advertido das mesmas e lhe seja conferida oportunidade de defesa (dwe process).
É o que decorre na norma ínsita no artº 358º/1 da lei penal adjetiva.
Assim, igualmente, da norma ínsita no artº 303º/1 do mesmo diploma legal.
Aqui, com melhor compreensão.
Desde logo, na medida em que “A fase da instrução é um sucedâneo do inquérito, tendo como objetivo sindicar os resultados deste, mas não é uma antecipação do julgamento, porque o crivo para a prolação da decisão instrutória é ainda o da existência de indícios suficientes da prática do facto criminoso para além da presunção da inocência”.
Acrescidamente, na consideração de que as alterações introduzidas pela Lei 48/2007, invertendo o sentido da ideologia do CPP, vão no sentido de aproximar a instrução do inquérito - aproximação na justa medida em que acrescentam ao inquérito uma discussão pública, contraditória e vinculada tematicamente da matéria de facto e de direito, com confronto da prova da acusação e da defesa diante de um juiz [assim, o debate instrutório (Artº 302º CPP)].
Por isso que se “é certo que os fundamentos da pronúncia são ainda os mesmos da acusação - a existência de indícios suficientes -, já o modo como se alcançam um e outro juízo é totalmente diverso visto, de uma parte a natureza secreta do inquérito, não contraditório e sem vinculação temática e, de outra, a discussão pública, contraditória e vinculada tematicamente da matéria de facto e de direito que a instrução comporta. [22]
Vinculação temática sem prejuízo, repete-se do aperfeiçoamento fáctico, com vista à prolação da decisão mais conforme à verdade material dos factos, que a alteração não substancial admissível nos sobrecitados termos, pode comportar: «O regime do objecto do processo deve ser interpretado de modo substancial em articulação com as garantias da defesa, é certo, mas também em equilíbrio com os demais princípios do Processo Penal, tais como os do jura novit curia, da verdade material e o imperativo da correcta aplicação do Direito.» [23]

Vale, de todo o modo, que, na fase do debate instrutório, quem põe a debate a alteração não substancial dos factos não é quem vai julgar é, apenas, quem vai definir o objeto do julgamento, se uma pronúncia vier a ser proferida.
Ora importa, com referência ao caso concreto, ressalvar, desde já, a plena observância do contraditório.
Na verdade, dá-nos conta que, no Debate Instrutório, o Exmo. Juiz
“concedeu ao Ministério Público e aos advogados presentes para se pronunciarem sobre a necessidade e conveniência de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério público, nos termos e para os efeitos do art. 303°, n°.1 do CPP”,
decidindo, ainda:
«Tendo o arguido manifestado a sua intenção de prestar declarações sobre os factos, antes mesmo desta alteração substancial dos factos, e atendendo ao adiantado da hora, 11 horas e 45 minutos, interrompe-se aqui o debate instrutório, designando-se para o interrogatório do arguido, seguido de tomada de declarações à assistente, neste tribunal, o próximo dia 17 de Setembro, às 10 horas e 30 minutos, seguido da continuação do debate instrutório, se for caso disso. Concede-se ainda ao arguido, o prazo de 8 dias, para apresentar a sua defesa, incluindo meios de prova, sobre esta matéria
*
Definido, sem contraposição constitucional [24], que o Juiz de Instrução Criminal pode proceder á alteração não substancial dos factos descritos na acusação, importará considerar agora as subsequentes questões suscitadas pelo recorrente seja quando considera que as alterações correspondem a uma alteração substancial, seja quando considera que elas, de todo o modo, não resultam dos actos de instrução.

Numa formulação de síntese dir-se-ia que os princípios estruturantes, com fundamento constitucional, do acusatório (à luz do entendimento que vem de ser exposto) quanto do contraditório, enformam-se e são emanação do princípio básico da garantia da defesa, no quadro de um processo penal justo e equitativo, do processo devido (due process).
É no desiderato da salvaguarda de tais princípios que no artigo 303º/1 do CPP se dispõe: «1. Se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário».
Já o nº3 do mesmo normativo dispõe:
«3. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância»
Importa, então, distinguir o que deva ser considerado alteração substancial dos factos e o que deva ser considerado alteração não substancial dos factos.
A primeira define-a o Código de Processo Penal. A segunda, conclui-se por dedução a contrario.
Dispõe o artigo 1º alínea f) do CPP: Para efeitos do disposto no presente Código considera-se f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Dizer: “A alteração substancial dos factos pressupõe, …, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Diferentemente, consubstanciará alteração não substancial dos factos “uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal”, [25] dizer, ainda, “quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido [26]

Com referência ao caso concreto: alteração substancial, como defende o Recorrente? Alteração não substancial, como entendeu o Tribunal recorrido?
Os factos em causa, posto que já deixados referidos, são os seguintes:
«i. Por via da actuação do arguido, a assistente abandonou a casa de morada de família com a filha menor no dia 6 de Agosto de 2011, deixando na mesma morada, sita na Rua …, …, …, vários pertences pessoais, nomeadamente roupas, utensílios de cozinha, máquinas, secador a outros objectos, prendas que foram oferecidas à depoente, nomeadamente os constantes da relação de fls. 351 a 352, parte dos quais foram encontrados na residência do arguido, designadamente os constantes do auto de busca e apreensão de fls. 393 a 397, com referência, na parte aplicável, aos objectos listados a fis. 398 a 401.
ii. Por diversas vezes, a assistente tinha tentado acordar com o arguido a entrega desses bens, mas este sempre se negou, proibindo a assistente de ir lá a casa buscá-los. O arguido chegou a dizer que os levava, mas nunca mostrou disponibilidade para os entregar. Com essa recusa da entrega dos bens, o arguido pretendeu menosprezar os direitos e a integridade moral da assistente, pretendendo dessa forma causar-lhe transtornos e incómodos desnecessários, bem sabendo que dessa forma a prejudicava na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde, e causando-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens»

Para formulação de um juízo fundamentado importa cotejar estes factos “novos” com o libelo acusatório.
Imputa-se neste ao recorrente a autoria material de um crime de violência doméstica pº e pº pelo artigo 152º nºs 1 al.b) e 2 do Código Penal, por via da prática da seguinte factualidade:
«O arguido e a ofendida, C… viveram em condições análogas às dos cônjuges, no actual endereço do arguido, nesta comarca, desde o Outubro de 2005 até Agosto de 2010 e desta relação existe uma filha de 3 anos de idade.
O arguido começou a maltratar psicologicamente de forma reiterada a ofendida, dizendo-lhe, na presença de amigos e familiares, “ tu não vales nada, és uma burra, não prestas para nada, parto-te os dentes todos, se não for eu são os meus amigos, tu sabes que eu tenho amigos muito maus”, conduta que tem vindo a agravar-se ao longo dos anos.
A partir do ano de 2006, em datas não concretamente apuradas, o arguido passou a, simultaneamente, agredir psicológica e fisicamente a ofendida, nomeadamente, apertando-lhe o pescoço com as duas mãos e dizendo-lhe que a matava, deitar a ofendida no chão e imobilizá-la, pondo- se sobre ela, impedindo-a de se defender.
A partir do mês de Outubro de 2007 o arguido passou a exercer pressão psicológica sobre a ofendida dizendo-lhe que ficava sem a filha, que se fosse necessário fugiria com a filha de ambos e a ofendida nunca mais a Via, conduta que o arguido manteve até ao dia da separação. Na presença de amigos e familiares o arguido humilhava a ofendida dizendo-lhe, em voz alta e para que todos ouvissem, que ela “Não prestava e que só estava com ela por causa da filha de ambos”.
No ano de 2007, no mês de Março, em dia não concretamente apurado, a ofendida foi para casa dos pais, de madrugada, devido ao facto do arguido a ter agredido fisicamente, local onde permaneceu durante dez dias.
No dia 30 de Julho de 2010, cerca das 06.30 horas, na, então, habitação dos dois e supra mencionada, o arguido deitou-se junto da ofendida e pretendeu obrigá-la a com ele manter relações sexuais, dizendo-lhe tu és minha mulher, vives comigo, tens que fazer o que eu quero, segundo a lei eu tenho direito a tocar-te sempre que quiser. Como a ofendida se recusou a com ele manter relações sexuais, o arguido sentou-se sobre ela.
No decurso desta cena, a filha de ambos começou a chorar, a ofendida foi tentar adormecê-la e o arguido seguindo a ofendida até ao quarto da filha ia dizendo-lhe “agora vou parar de gravar”, pegou no telefone e disse-lhe ”se eu tiver que tomar medidas drásticas, e sabes que eu sou maluco, sabes que eu as vou tomar, olha que eu sou maluco o suficiente para a minha filha crescer sem mãe e sem avós, a partir de hoje os teus familiares têm de começar a olhar para trás, têm que olhar para as costas pois coisas estranhas podem acontecer. Olha bem para os meus olhos, tu sabes que eu faço as coisas pela calada, se queres evitar medidas drásticas, até para a tua filha, anda deitar-te na cama, senão tu sabes o que eu faço, já me conheces, estejas onde estiveres tu és a responsável”.
No dia 31 de Julho de 2010, cerca das 4.30 horas, a ofendida foi acordada pelo arguido que lhe exigiu que o masturbasse, o que aquela fez com medo que o arguido a maltratasse fisicamente.
O ambiente familiar causado pela actuação do arguido era de permanente terror, provocando na ofendida receio de novas ameaças e violentações físicas e psíquicas, nomeadamente a nível sexual; perturbação e ansiedade, agravadas pelo modo arbitrário do arguido decidir insultá-la, ameaça-la e ofendê-la física e psiquicamente e pela consequente imprevisibilidade do momento em que tais comportamentos surgiam num quadro de violência permanente praticada pelo arguido na pessoa da ofendida.
Ao agir da forma descrita, o arguido fê-lo, sempre, deliberada, consciente e livremente, sendo sua intenção vexar, humilhar, perturbar o bem estar físico e psíquico da ofendida e de criar nesta a convicção de que, quando bem entendesse, a molestaria física e psicologicamente, o que conseguiu e, de que, atentaria contra a sua vida e integridade física, bem como quanto aos seus familiares, quando muito bem o entendesse; bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.»

Perante esta descrição fáctica inserta na acusação – intencionalmente a negrito e sublinhada nos excertos mais relevantes para um melhor enfoque à luz da questão sub iudicio - poderá dizer-se que os factos que o Exmo. Juiz pretende ver acrescentados transformam o quadro da acusação em outro diverso e manifestamente diferente?!
Est modus in rebus!
Seguramente, sem necessidade de quaisquer outras considerações, os factos aditados não vão além de (mais) uma concretização da atividade já imputada – assim no que especificamente concerne às agressões do foro psíquico [“violência psicológica junto da ex-companheira durante anos”, diz o Recorrente – Supra I, 2, al.R)] [27], que não representam circunstância agravativa com repercussão no limite máximo da pena aplicável nem, de todo o modo, implicam a imputação de crime diverso, o que, aliás, nunca o recorrente concretizou.
*
Objeta o recorrente a legalidade de uma tal alteração fáctica por, como diz, a mesma decorrer do inquérito e não de atos da instrução.
Impõe-se, desde logo, a ressalva de que neste momento não é a existência ou a inexistência de suficiência indiciária que está em causa, juízo que na verdade ainda não foi formulado, tanto que não foi proferida decisão de pronúncia ou de não pronúncia. O recurso é do despacho que altera a matéria de facto. Se haverá pronúncia ou não é, aqui e agora, thema extemporâneo.
Retomando a questão suscitada pelo recorrente, importará tomar em consideração, em primeiro lugar, o percurso fáctico-processual pertinente ao respetivo conhecimento.
Neste propósito, bastará relembrar o que fica já acima referenciado no conhecimento da questão da conformidade legal da busca com apreensão.
Importará lembrar, ainda, que foi no decurso do debate instrutório que o Exmo. Juiz suscitou, ex officio, a questão da alteração não substancial dos factos.
Questão que justificou do seguinte modo:
“O disposto nos arts. 1°, 2°, 3°, 14° e 21° da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, para uma protecção integral dos direitos da vítima exige necessariamente que a questão da retenção de bens da vitima, pelo arguido, seja devidamente ponderada no processo e levada à decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia, tanto mais que foi uma matéria de facto suscitada no inquérito e que deveria ter sido ponderada quando da formulação da acusação, nos termos do art. 283°, n°.3, ai. b) do CPP”, “admitindo-se a possibilidade dessa ponderação não ter sido feita, embora não esteja demonstrado o contrário, e ter sido a questão da restituição dos objectos suscitada pela assistente antes da instrução e questionada a legalidade dessa medida pelo arguido, só podendo o tribunal proferir uma decisão sobre essa matéria se a mesma for incluída no objecto da instrução”

Ora, sem prejuízo de reconhecer que o Exmo. Juiz não deixa de se fundamentar diretamente em diligências produzidas em sede de inquérito, importará dizer que, se de uma parte, nada obsta que com vista à formulação do juízo de indiciação delas se deva socorrer – é, mesmo, imperativo óbvio que o faça -, será ilegitimamente redutor reconduzir a razão de ser da posição assumida, no debate instrutório, da comunicação da alteração não substancial dos factos, visto que, no mínimo, ela resulta – objetiva e subjectivamente (aqui, com particular apelo às presunções naturais) da conjugação dos elementos recolhidos em diligências de prova realizadas quer em sede de inquérito quer já em sede instrução.
Citando Figueiredo Dias, perguntou-se atrás, a propósito do princípio da acusação: «não suportará o princípio da acusação ainda uma certa integração (ou até correção) dos termos da acusação?»
No sentido afirmativo, responde hoje – se o exercício hermenêutico é correto - a norma ínsita no artigo 303º/1 da lei penal adjetiva.
******
III DECISÃO

Termos em que: na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Da responsabilidade do recorrente, a taxa de justiça de 4UC

Porto, 23 de Janeiro de 2013
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
____________________
[1] No despacho em que declarou aberta a Instrução requerida pelo arguido B…, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal decidiu: «Nos termos do artº291º nº1 do CPP, indeferem-se as diligências instrutórias requeridas pelo arguido por não se nos afigurarem necessárias para a realização das finalidades da instrução»
[2] É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal, nele se consubstanciando os princípios da identidade (o objecto do processo deve manter-se, em princípio, o mesmo desde a acusação até ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (o objecto do processo deve ser conhecido e julgado pelo tribunal na sua totalidade, é indivisível) e da consumpção (o objecto do processo deve considerar-se irrepetivelmente decidido na sua totalidade).
[3] COMENTÁRIO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL à luz da CRP e da CEDH – 2ª Ed., Universidade Católica, Lx 2008, pág.760
[4] Tem voto de vencido de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, de que se transcreve o seguinte excerto: «O texto do Código de Processo Penal que hoje vigora (resultante da referida Lei nº 59/98) mantém a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação pública (nº 1 do artigo 310º), mas passa a determinar do mesmo passo a irrecorribilidade dos despachos que indeferem diligências probatórias na fase de instrução (nº 1 do artigo 291º). Acentua-se, pois, a lesão do princípio da presunção de inocência e o direito, dele decorrente, a não se ser submetido a julgamento sem se apurar a suficiência de indícios. Com efeito, está afastada a reacção contra uma errada decisão judicial, quer pela via do recurso do despacho de pronúncia quer, ao menos, pela via do recurso de despachos de indeferimento de diligências probatórias requeridas. Pelas razões expostas, entendi ser de julgar inconstitucional o nº 1 do artigo 291º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/98, na parte em que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias».
[5] Ainda no sentido aqui sufragado, o Ac.TC 375/00: «(…..) é aqui relevante o princípio constitucional da celeridade do processo (artigo 20º, nº 4, da Constituição), o qual exige que se evite que o andamento do processo seja protelado «por constantes envios do processo à segunda instância para apreciação de decisões interlocutórias» (Ac. cit., ibidem, pag. 401).»
[6] Atos processuais legalmente obrigatórios – sem concreção in casu -, seriam: (i) A falta de interrogatório a requerimento do arguido; (ii) A falta de notificação do despacho de abertura da instrução ao MºPº, ao arguido, ao defensor e ao representante do assistente; (iii) A falta de notificação do MºP, arguido, defensor, assistente e o seu advogado para os atos de instrução; (iv) A não sujeição à contraditoriedade na produção de prova durante a instrução; (v) A omissão da faculdade de o arguido ou o seu defensor se pronunciarem sobre a produção de prova em último lugar; (vi) A falta de notificação do representante do assistente para o debate instrutório; (vii) A falta de debate instrutório ou a prolação de um despacho instrutório por juiz que não presidiu ao debate instrutório e se absteve de realizar novo debate instrutório” ALBUQUERQUE, PAULO PINTO, ob. cit. Pág. 307
[7] CANOTILHO, J.J.GOMES; DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – 3ªEd., Almedina pág.421
[8] Seguiram-se de perto os ensinamentos de ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE; OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA DE 1976, Almedina, Coimbra, 1987, págs.220 a 223
[9] Seguiram-se, de perto, os ensinamentos de CANOTILHO, J.J. GOMES, ob. cit. Pags. 261 a 265
[10] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205
[11] Direito Processual Penal, I Vol., Coimbra Editora, Lda. 1974, pg.145
[12] Direito Processual Penal, Vol.1º, Coimbra Editora, 1974, págs. 136-137
[13] Ob. cit. Pág.146
[14] Com consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Mais recentemente, com igual consagração na CARTA dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigo 47º “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. (2007/C 303/01)
[15] Due process, enquanto ‘processo justo’, ‘processo devido’, tanto na dimensão da garantia do direito de defesa quanto da garantia do direito de protecção do particular perante a violação dos seus direitos.
[16] “O princípio do Estado de direito é, fundamentalmente, um princípio constitutivo, de natureza material, procedimental e formal (…) que visa dar resposta ao problema do conteúdo, extensão e modo de proceder da actividade do estado”.“ Do princípio do Estado de direito deduz-se,…, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direitoGOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 3ªEd.,pags.239 e 268
[17] Silva, Germano Marques, Curso de Processo Penal - I, Editorial Verbo, 2ªEd., 1994, pág. 24
[18] Exposição do DL 78/87 de 17/2 – II, 5.
[19] Exposição do DL 78/87 de 17/2. Vide, ainda: Artigos 1º e 3º do EMP (Lei 60/98 de 27.8) e artigo 5 da LOTJ (Lei 3/99 de 13.1)
De acordo com a Lei Fundamental da República, o Ministério Público é um órgão autónomo de administração da justiça de estrutura hierarquizada. Artigo 219º/4 C.R.P..
[20] Rodrigues, Anabela Miranda, O Inquérito no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág.78
[21] ALBUQUERQUE, PAULO PINTO, ob. cit. Pág. 46
[22] No sentido exposto, seguido de perto: ALBUQUERQUE, PAULO PINTO, ob. cit. Pág. 753
[23] Ac.TC 544/06
[24] Vide, a título de exemplo e mutatis mutandis: Ac.TC 544/06
[25] Ac. STJ de 21.03.2007, Proc. JSTJ000 (Relator: Henriques Gaspar)
[26] Ac. STJ 20.12.2006, Proc. 06P3059 (Relator: Oliveira Mendes)
[27] Pertinentemente, diz o Exmo. Procurador da República no articulado da Resposta: os maus tratos psíquicos serão todo o constrangimento, seja realizado de modo directo ou expresso, seja de modo indirecto ou implícito, temporalmente concentrado ou distribuído que, de modo ostensivo, atemorize ou desestabilize a vítima com vista a afectar a sua integridade psicológica, em suma, todo o seu modo de vida.