Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0011196
Nº Convencional: JTRP00031565
Relator: MARQUES SALGUEIRO
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
BURLA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
FRAUDE
Nº do Documento: RP200106060011196
Data do Acordão: 06/06/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T I CR PORTO 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 40/00
Data Dec. Recorrida: 06/06/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: DL 454/91 DE 1991/12/28 ART11 N1 B N3 NA REDACÇÃO DO DL 316/97 DE 1997/11/19.
CP95 ART217 N1.
Sumário: No corrente e normal uso do cheque como meio de pagamento não se reúnem os condimentos necessários para a sua subsunção no tipo legal do crime de burla, e tanto assim é que o legislador criou um tipo legal autónomo - o do crime de emissão de cheque sem provisão, que também abarca o não pagamento por virtude de ordem posterior do emitente do cheque ao banco.
Na emissão do cheque que não vem a ser pago não se surpreende o especial artifício enganoso, a "mentira qualificada" que ludibria a cautela e precaução normais com que, na transacção de mercadorias, o homem comum agiria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto:

Findo o inquérito que teve lugar mediante participação criminal de JOSÉ..... contra FRANCISCO....., MARIA..... e SANDRA....., todos melhor identificados nos autos, por factos que o queixoso entendeu subsumíveis no tipo legal do crime de burla, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito, nos termos do artº 277º, nº 1, do C.P.Penal, por considerar que a conduta que se indiciava integrava o crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artº 11º do Dec.-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, conduta que, porém, referida a cheques ditos pós-datados, havia sido descriminalizada pelo Dec.-Lei nº 216/97, de 19 de Novembro, deixando de ser punível.
Notificado deste despacho, o queixoso, com vista à pronúncia dos arguidos pela prática do crime de burla, p. e p. pelo artº 217º do C.Penal, veio requerer a abertura da instrução e, do mesmo passo, a sua constituição como assistente, qualidade em que veio a ser admitido.
E, realizada a instrução, veio a ser proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos, fundada na carência de prova indiciária do crime de burla imputado e no acolhimento das razões em que assentara o despacho de arquivamento do inquérito pelo Mº Pº.
Inconformado com esta decisão, recorre o assistente, rematando a sua motivação com as conclusões seguintes:
1. O Tribunal a quo proferiu despacho de não pronúncia porque considerou que os factos participados não consubstanciam a prática de um crime de burla, sendo apenas susceptíveis de integrar o crime de cheque sem provisão.
2. Porém, esse ilícito penal - cheque sem provisão - não ocorreu, porquanto estávamos perante a figura de cheques pré-datados.
3. Entende o assistente que a conduta dos arguidos, a saber:
- Entrega dos cheques constantes dos autos ao assistente, fazendo-lhe crer que esses títulos se encontravam validamente em circulação;
- Terem consciência de que a única forma do assistente vender e entregar a mercadoria transaccionada seria contra a entrega dos mencionados cheques;
- Que, ao comunicarem a instituição bancária o falso extravio e furto dos cheques, provocariam ao assistente um prejuízo patrimonial, o que veio a ocorrer e um enriquecimento ilegítimo para os próprios,
consubstancia a prática, em concurso real, dos crimes de burla, p. p. no artº 217º do C.Penal e falsificação de documentos, p. p. no artº 256°, n° 1, al. b), e 3, do C.Penal.
4. Os factos participados estão suficientemente corroborados pela declaração prestada pelo ora recorrente, existindo, pois, indícios suficientes da prática de tais crimes, pelo que os arguidos deviam ter sido pronunciados em conformidade.
Responderam o Mº Pº e os arguidos, argumentando no sentido do não provimento do recurso.
Nomeadamente considera o primeiro que os arguidos não podem ser pronunciados pelo crime de falsificação, já que, não sendo tal crime referido no requerimento de abertura da instrução, seria nula a decisão instrutória que por ele pronunciasse os arguidos, pois constituiria alteração substancial dos factos descritos nesse requerimento (artº 309º do C.P.Penal); e, quanto ao crime de burla, entende que inexiste nexo causal entre a conduta posterior dos arguidos - a comunicação ao banco do furto e extravio dos cheques - e a conduta do assistente geradora de prejuízos para este, a entrega dos bens aos arguidos.
O Exmº Juiz ordenou a subida dos autos.
Já nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, revendo-se na resposta do Mº Pº na 1ª instância, também se pronuncia pelo não provimento do recurso.
Notificados o assistente e os arguidos, nada responderam.
Assim, cumpridos os vistos, cabe decidir.
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Sumariamente, são os seguintes os factos participados pelo assistente:
No seu estabelecimento comercial, o denunciante vendeu à arguida Maria..... 1 jogo de sofás e 1 móvel de sala, tendo-se acordado que o seu pagamento seria feito por “cheques pré-datados”.
E, assim, foram-lhe entregues 12 cheques, assim discriminados:
- 6, perfazendo o total de 190.000$00 (sendo 5 de 30.000$00 cada e 1 de 40.000$00), preenchidos e assinados pelo arguido Francisco, com a data de 10/3/99, o primeiro, e com a do dia correspondente de cada um dos meses seguintes, os demais;
- 5, de 30.000$00 cada, no total de 150.000$00, preenchidos e assinados pela arguida Sandra, com datas, também mensalmente intervaladas, com início em 10/10/98;
- 1 outro cheque, no montante de 480.000$00, preenchido e assinado também pela arguida Sandra, datado de 5/1/98, “entregue como garantia total pela dívida em causa”.
Acreditando na boa fé dos arguidos e que os cheques se encontravam validamente em circulação, o queixoso recebeu-os como meio de pagamento, mas não vieram a ser pagos, tendo sido devolvidos com a menção de cheques revogados por motivo de furto.
Sabiam os arguidos que, ao efectuarem a denúncia por furto, após terem dado os cheques para pagamento, iriam impedir a sua cobrança, assim tendo enganado e causado prejuízo ao denunciante.
Numa primeira abordagem da questão, logo ocorre que a conduta dos arguidos - obstando ao pagamento dos cheques mediante a comunicação à entidade bancária do seu furto ou extravio - seria enquadrável na previsão da al. b) do nº 1 do artº 11º do Dec.Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção conferida pelo Dec.Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, entrado em vigor em 1/1/98.
Mas, também logo ocorre que, tratando-se de cheques emitidos com data posterior à da sua entrega ao tomador - ditos “pré-datados”, como logo o denunciante refere - aquela conduta se encontrava excluída da aplicação desse nº 1, por força do nº 3 do mesmo artº 11º.
Foi nessa perspectiva que, findo o inquérito, o Mº Pº enquadrou os factos e determinou o seu arquivamento.
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Mas, na queixa que apresentou e também no requerimento de abertura da instrução, sustentou o assistente o enquadramento desses factos como crime de burla, posição que reafirma no recurso, mas aqui aditando ainda o crime de falsificação de documento, em concurso real com o de burla.
Importa, pois, analisar a questão também por esse prisma.
E adianta-se já que, logo à partida, deve ser excluída a pretensão do recorrente, apenas deduzida já em sede de recurso, de ver pronunciados os arguidos pelo crime de falsificação de documento.
Como bem se repara na resposta do Mº Pº, o assistente requereu a abertura da instrução, imputando aos arguidos apenas a prática do crime de burla; não considerou aí também o referido crime de falsificação.
Pois bem.
Tal como a acusação do Mº Pº, também o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente há-de conter, além do mais, a narração dos factos imputados ao arguido e, bem assim, a indicação das disposições legais aplicáveis (artº 287º, nº 2, e 283º, nº 3, al. b) e c), do C.P.Penal)
E, conforme o nº 1 do artº 309º deste mesmo diploma, “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos ... no requerimento para a abertura da instrução”.
Constitui alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artº 1º, nº 1, al. f), do citado Código).
Ora, como é sabido, sanando divergências de entendimento, o STJ, pelo Ass. nº 2/93, de 27 de Janeiro, D.R., de 10/3/93, fixou jurisprudência, estabelecendo que, “para os fins dos artº 1º, al. f), 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nº 1 e 2, e 379º, al. b), C.P. Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”.
No entanto, em recurso para o Tribunal Constitucional, interposto no processo onde tal Assento foi tirado, aquela decisão do Supremo Tribunal foi havida como inconstitucional e, assim, revogada (Ac. nº 279/95, de 31/5/95, D.R., II série, de 28/7/95). E, reafirmado esse entendimento em ulteriores acórdãos (Ac. nº 16/97, de 14/1/97, D.R., II série, de 28/2/97, e também o Ac. nº 58/97), este tribunal, pelo Ac. nº 445/97, de 25/6/97, D.R., I-A, de 5/8/97, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, “a norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nº 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993..., no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa”.
Seria precisamente isso que ocorreria se, como se pretende no recurso, a decisão instrutória pronunciasse os arguidos pelo crime de falsificação de documentos: para tanto, teria de fazer uma qualificação que não constava do requerimento para abertura da instrução, em claro agravamento da condição dos arguidos.
Assim, logo por esta razão, o recurso não pode proceder nessa parte.
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Resta a pretensão de pronúncia dos arguidos pelo crime de burla.
Na definição do tipo legal em causa, dispõe o nº 1 do artº 217º do C.Penal que “quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido ...”.
Assim, são elementos constitutivos do tipo legal em questão: a) A intenção do agente de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; b) Com esse objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre factos; c) Por esse modo determine o ofendido à prática de actos que causem a este ou a outra pessoa prejuízos patrimoniais.
Reportando-se à conduta típica e nexo de imputação que caracterizam a burla, escreve-se no Comentário Conimbricense do Código Penal, II, 292, que a burla constitui “um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmo ao tempo da infracção”.
E prossegue, dizendo que, “por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios”.
Mas não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele “consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais”.
Deste modo, “tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial”.
Mas, por sobre tudo isto, importa ainda notar que se exige que o erro ou engano em que caiu o burlado tenha sido astuciosamente provocado pelo agente, que este tenha usado um meio engenhoso para enganar ou induzir em erro a sua vítima. Nessa linha, dir-se-á que importa que o comportamento do agente seja convincente e hábil quanto baste para iludir o cuidado que, nesse domínio de actividade, é exigível e normalmente existente em cada um.
Feitas estas considerações, estamos em condições de concluir que, no caso vertente, se não desenha o pretendido crime de burla.
Mesmo na versão do denunciante - e os arguidos contrapõem outra versão, procurando, melhor ou pior, justificar a ordem de não pagamento dos cheques -, apenas nos deparamos com uma normal compra e venda de bens, na qual, para pagamento suavizado, se utilizou a vulgarizada emissão de vários cheques pós-datados.
Não se duvida que, ao contratar, o queixoso estaria convicto de que os cheques obteriam boa cobrança; ou, pelo menos, esperaria que tal viesse a suceder, sendo óbvio que não abriria mão dos bens se soubesse que os cheques não lograriam pagamento.
E, quanto aos arguidos, também é evidente que a mera emissão dos cheques tinha implícita a mensagem para o vendedor de que o seu pagamento seria certo.
Mas, como é da experiência de todos, ao aceitar o pagamento através de cheque, o vendedor também conhece bem o risco de que os cheques não venham a ser pagos; risco esse que, como todos sabemos, nem é assim tão reduzido, sendo bem conhecida a relutância de muitos comerciantes para com tal meio de pagamento quando logo no acto abrem mão da mercadoria.
Donde que, na emissão de um cheque que, afinal, não logra ser pago, se não surpreende o especial artifício enganoso, a “mentira qualificada” que ludibria a cautela e precaução normais com que, naquela concreta actividade, o homem comum agiria. Como se disse, ao aceitar o pagamento mediante cheque, o vendedor, ainda que convicto do seu pagamento, assume também o risco, maior ou menor, de não vir a obter o seu pagamento, não se podendo, pois, dizer que foi a atitude do emitente do cheque - porventura, com reserva mental quanto ao seu ulterior pagamento - que enganou o vendedor e o levou a, abrindo mão da mercadoria, sofrer o prejuízo.
E, porque é assim, porque no corrente e normal uso do cheque como meio de pagamento se não reúnem os condimentos necessários para a sua subsunção no tipo legal do crime de burla, houve por bem o legislador criar um tipo legal autónomo - o do crime de emissão de cheque sem provisão, que também abarca o não pagamento por virtude de ordem posterior do emitente do cheque ao banco - no qual essa vertente do engano do tomador se esbate decididamente.
No caso dos autos, a conduta dos arguidos reduziu-se, afinal e apenas, à de um vulgar e normal emitente de cheque que, na oportunidade devida, não logrou pagamento.
Por isso, falhando os sobreditos elementos integrantes do tipo legal de crime de burla, não podiam os arguidos ser pronunciados por tal crime, como pretende o assistente.
Assim, o recurso não merece provimento.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso do assistente José....., confirmando-se o despacho de não pronúncia dos arguidos Francisco....., Maria..... e Sandra......
Custas pelo recorrente, com 5 Ucs de taxa de justiça.
Porto, 06 de Junho de 2001
José Henriques Marques Salgueiro
António Joaquim da Costa Mortágua
Francisco Augusto Soares de Matos Manso