Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
433/19.9T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PLANO DE PAGAMENTOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES
VIOLAÇÃO
NÃO NEGLIGENCIÁVEL
Nº do Documento: RP20190910433/19.9T8AMT.P1
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º905, FLS.216-221)
Área Temática: .
Sumário: Não estando demonstrado o que sucederia, quanto aos pagamentos, em caso de insolvência do devedor, um plano de pagamentos que preveja o pagamento da totalidade dos créditos privilegiados e de apenas 10% do capital dos créditos comuns constitui uma desigualdade de tratamento injustificada que desvirtua o sentido finalístico da negociação e do acordo que presidem ao processo especial de acordo de pagamento e deve por isso determinar a não homologação do plano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 433/19.9T8AMT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
Os devedores B…, NIF ……….., e mulher C…, NIF ………, residentes na Rua …, n.º …, …. - … …, concelho de Amarante, instauraram o presente processo especial para acordo de pagamento, nos termos do disposto no artigo 222-A e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 222-C, n.º 4 do citado diploma legal, por despacho proferido em 22.03.2019.

O Administrador Provisório juntou lista provisória de créditos que foi publicada em 23.04.2019.

Não foram deduzidas impugnações à lista de créditos reconhecidos pelo que a mesma se tornou definitiva, nos termos previstos no artigo 222.º-D, n.º 3 e 4, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.

Não houve prorrogação do prazo normal de conclusão das negociações.
Concluídas as negociações, foi publicitado, em 07.05.2019, o anúncio de aprovação do Acordo de Pagamento a que se refere no artigo 222.º-F, n.º 2, e durante o período de votações foram recepcionados, pelo Administrador Judicial Provisório, os votos dos credores que entenderam exercer esse direito de voto, representativos de 99,88% do total dos créditos reconhecidos, sendo que dos credores votantes, 59,12% votaram a favor do plano de revitalização e 40,88% votaram contra, tendo-se abstido de votar os restantes créditos relacionados. - cfr. documentação junta com o requerimento referência 5506020, atinente à contagem de votos.

Na sequência do pedido de não homologação do Plano, por parte do credor “D…, S.A.”, a quem foi reconhecido um crédito de natureza comum, e por ter sido invocada omissão no Plano Final apresentado, de qualquer referência ao único crédito reconhecido, com a natureza de garantido, por hipoteca, do credor “E…, que sucedeu ao credor originário F…, foram os devedores convidados a pronunciar-se, os quais vieram invocar erro manifesto no plano apresentado já que se propunham pagar este crédito com natureza garantida nos precisos termos em que o mesmo fora contratualizado, vindo juntar Plano corrigido.

Notificados os credores deste Plano corrigido, os credores “D…, S.A.” e “E…” vieram manter o seu voto desfavorável e o primeiro manteve ainda o seu pedido de não homologação do Plano, alegando que o mesmo é omisso quanto à parte dos rendimentos mensais dos devedores que passará a ser canalizada para o pagamento do crédito garantido, além de se verificar também tratamento desigual entre os créditos, prevendo-se o perdão de 90% do capital em dívida, quanto aos credores comuns e perdão da totalidade dos juros de mora vencidos e vincendos e despesas decorrentes da mora ou incumprimento, perdões de todos os juros vencidos e vincendos, e bem ainda períodos de carência de 3 anos e prazos de pagamento de 80 meses, enquanto o crédito de natureza garantida será pago integralmente, seja quanto ao capital seja quanto aos juros e nos mesmos termos contratualizados.

O credor Autoridade Tributária também votou desfavoravelmente o plano e igualmente solicitou que, caso seja homologado não tenha eficácia contra si, uma vez que no mesmo se prevê uma moratória no pagamento dos créditos tributários, a qual viola norma de carácter imperativo e que não pode ser derrogada.

Foi proferida decisão que rejeitou a homologação por sentença o acordo de pagamento apresentado pelos Devedores B… e mulher C….

Os devedores, B… E ESPOSA, vieram interpor recurso, concluindo:
A) – o Administrador Judicial Provisório não devia ter considerado o voto do credor “E… E1…”.
B) Dado tal crédito, na proposta do Plano de Pagamento, não ter sofrido qualquer alteração ao contratualizado entre as partes.
C) O Tribunal deve ater-se apenas as situações de violação grave não negligenciável.
D) A proposta do plano de pagamento apresentada pelos Apelantes não ofende normas imperativas.
E) A não homologação do Plano coloca os credores, numa situação muito pior, dado que, a insolvência dos Apelantes, leva a que os credores comuns não sejam ressarcidos de nenhum valor.
F) O Tribunal “a quo”, violou os Artigos 212º, 215º e 216º do CIRE.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se o douto despacho e substituindo-o por outro que homologue o acordo de pagamento apresentados em 4 de Junho de 2019.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se deve ou não ser rejeitado o plano de pagamento.
II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra e ainda o seguinte;
1. Plano apresentado:
“CREDITOS GARANTIDOS
A) Autoridade Tributária
i. Pagamento da totalidade da dívida e juros vencidos e vincendos.
ii. Pagamento em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente acordo de credores.
B) Centro Distrital do Instituto da Segurança Social
i. Pagamento da totalidade da dívida e juros vencidos e vincendos.
C) E…
i. Pagamento integral nas condições actuais, devendo o pagamento ocorrer nos termos contratualizados.
CREDITOS COMUNS
i. Perdão da totalidade dos juros de mora e outras despesas decorrentes da mora ou incumprimento.
ii. Perdão de todos os juros vencidos e vincendos;
iii. Estabelecimento de um período de carência de pagamento de capital e juros de 3 anos com início no mês seguinte ao do transito em julgado da decisão que vier a homologar o presente acordo de credores;
iv. Perdão de 90% do capital em dívida;
v. Pagamento de 10% do capital em divida em 80 prestações mensais, iguais, postecipadas e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte ao término da carência estabelecida acima e as seguintes em igual dia dos meses seguintes.
VI - O pagamento das prestações deverá ocorrer nos 30 dias seguintes ao respectivo vencimento.
2. Os credores votaram da seguinte forma:
Votos Favoráveis - 210.136,29€ ---- 59,12% - 59,05%
Votos Desfavoráveis - 140.312,76€ - 40,88% - 40,88%
Abstenções - 424,11€ - - 0,12%
Total credores votantes, não se considerando as abstenções -355.449,05€ - 99,88%
Total de Créditos relacionados - 355.873,16€
3. O credor E… E1… tem um crédito no montante de 109.969,00 correspondente a uma percentagem de 30,901%
4. os credores “D…, S.A.” e “E…” votaram desfavoravelmente.
III – Fundamentação de direito
Alegam os recorrentes que foi aceite o voto do credor “E… E1…”, mas tal voto não devia ser considerado, dado que, nos termos do artigo 212º nº 2 do CIRE, não têm direito de voto os credores cujos créditos não tenham sido modificados pelo dispositivo do Plano.
Atentemos.
Dispõe o n.º 3 do artigo 222º-F do CIRE que “… considera-se aprovado o acordo de pagamento que:
a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou
b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.”
No n.º 2 do artigo 212º do mesmo Código procede-se a uma delimitação pela negativa do direito de voto, estipulando-se que “não conferem direito de voto: a) Os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano”.
O objectivo é evitar que credores, cujos créditos não são afectados pelo plano, determinem a sorte dos créditos dos demais, levando à aprovação de medidas que, deixando os seu absolutamente incólumes, afectam, em maior ou menor medida, o património dos outros credores.
Não sendo afectados pelo plano, estes credores não têm um interesse real no resultado do plano, devendo os credores que vêem os seus créditos modificados pelo mesmo serem os únicos a decidir se este deve ser aprovado ou não.
No caso, o credor “E… E1…” não foi afectado pelo plano pois manteve o seu crédito em toda a sua integralidade pelo que, em bom rigor de lei, não tem direito a voto.
Mas o certo é que este credor votou desfavoravelmente pelo que não influenciou na prática a aprovação do plano e isso retira os efeitos consequenciais a esta irregularidade.
Com efeito, aplicando-se os princípios orientadores da nulidade processual não se trata de uma violação não negligenciável porque o acto ou não influiu no exame e decisão da causa, na situação, na aprovação do plano.
Mais argumentam os recorrentes que o Tribunal deve ater-se apenas às situações de violação grave não negligenciável e que a proposta do plano de pagamento não ofende normas imperativas. Que a não homologação do plano coloca os credores numa situação muito pior dado que a insolvência leva a que os credores comuns não sejam ressarcidos de nenhum valor.
Vejamos.
De acordo com o disposto no artigo 215.º do CIRE intitulado “ Não homologação oficiosa”:
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.”
O artigo seguinte, 216º, nº 1 rege para a “Não homologação a solicitação dos interessados”:
1 - O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar. (…)
Na decisão recorrida recusou-se a homologação do Plano com a seguinte motivação:
Com efeito é gritante a diferenciação verificada quanto aos créditos da Autoridade Tributária, da Segurança Social e do credor hipotecário, “E… E1…”, que verão os seus créditos pagos por 100% do capital, com juros vencidos e vincendos, e sem um período de carência de 3 anos.
Cremos que, tendo em conta tal circunstancialismo, pode dizer-se que objectivamente existe uma situação de desigualdade entre credores a qual não se mostra justificada no plano aprovado, e que traduz uma violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis ao Processo Especial Para Acordo de Pagamento, neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17.05.2016, relatado pelo exmo. Sr. Desembargador Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt.”
Estabelece o artigo 194.º do CIRE que o plano de insolvência deve obedecer ao princípio da igualdade, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas (nº1), sendo que o tratamento menos favorável a credores em idêntica situação apenas é admitido com o consentimento do credor afectado (nº2).
Na situação estamos perante um processo especial para acordo de pagamento previsto no artigo 222-A do CIRE, o qual permite ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.
É inquestionável que o princípio da igualdade se traduz no tratamento de forma igual ao que é igual e de forma diferente ao que é diferente.
Nesta base importa notar que o artigo 47º do CIRE classifica os créditos em “garantidos” e “privilegiados”, subordinados” e “comuns” para lhes dar um tratamento distinto consistente numa ordem ou preferência de pagamento: dá-se, em primeiro lugar, pagamento aos créditos garantidos e privilegiados, em segundo lugar aos créditos comuns e, finalmente, aos créditos subordinados (artigos 174º a 177º).
Assim sendo, o que se proíbe são as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
E um fundamento objectivo de diferenciação dos credores, porque se baseia num critério legal, é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados ou garantidos.
Pela assertividade nesta matéria transcreve-se o seguinte passo do Ac. desta Relação do Porto de 08-07-2015, processo nº 261/14.8TYVNG.P1 , em www.dgsi.pt:
Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, isto é, segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artigo 173.º e 604.º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artigos 174.º, nº 1 e 175.º, nº 1). Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.
O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artigos 175.º, nº 1 e 176.º e 604.º, nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.”
No caso os créditos da Autoridade Tributária, da Segurança Social e da E… são satisfeitos na totalidade de capital e juros, sem período de carência. Já em relação aos créditos dos credores comuns há um perdão de 90% do capital, um perdão de todos os juros e outras despesas, sendo que o pagamento dos 10% do capital em divida será em 80 prestações mensais, iguais, postecipadas e sucessivas, com um período de carência de três anos.
Não se desconhece que quanto aos credores Autoridade Tributária e Segurança Social há normas incontornáveis e que que a credora E… dispõe de garantia.
E que quando na sentença de graduação de créditos se graduam, em primeiro lugar, crédito garantidos ou privilegiados, relegando-se para pagamento com o remanescente (se o houver) os créditos comuns, muitas vezes acontece que apenas os primeiros recebem os seus créditos ou parte deles.
Mas a verdade é que essa circunstância não está evidenciada nos autos e, no quadro em que laboramos, não pode deixar de se observar uma tremenda desproporção no tratamento das classes de credores em causa. Uma desproporção tal que desvirtua o sentido finalístico dos termos” negociação” e “acordo” que são condição da formulação do plano de insolvência.
Existe assim uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano que justifica a recusa de homologação do mesmo, tal como se fez na decisão recorrida.
Pelo exposto delibera-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante

Porto, 10 de Setembro de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Carvalho