Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22799/18.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO DECORRENTE DA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RP2019110722799/18.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O lesado num acidente de viação está obrigado a actuar de acordo com o dever de boa fé.
II - O atraso na encomenda de peças para reparação, efectuada pela oficina escolhida pelo lesado acarreta a diminuição do dano causado pela privação do veículo.
III - O valor diário dessa indemnização não depende apenas do valor do veículo mas do uso e necessidade concreta do lesado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 22.799/18.8T8PRT.P1
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Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
Sumário:
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I. RELATÓRIO
O Autor B… pretende a condenação das Rés: C…, S.A. e D… Companhia de Seguros, S.A no pagamento da quantia de 6.450, que corresponde aos prejuízos que sofreu na sequência do abalroamento do seu motociclo pelo veículo automóvel segurado na 2ª Ré, sendo a 1ª Ré demandada na qualidade de seguradora do motociclo do Autor.
Na contestação foram invocadas excepções (ineptidão petição e ilegitimidade) julgadas improcedentes pelo despacho saneador transitado.
Após instrução procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente condenando a ré condenando-se a Ré D… – Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor B… as seguintes quantias: i) €2.150 (dois mil, cento e cinquenta euros); e ii) €500 (quinhentos euros), num total de €2.650 (dois mil, seiscentos e cinquenta euros), quantia acrescida de juros de mora à taxa de 4%, contados desde a citação e até integral pagamento.
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Foi interposto recurso pela apelante, o qual apresenta as seguintes conclusões.
A. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Tribunal a quo quando condena a Ré nos termos em que o fez.
B. A aplicação do direito aos factos padece de um manifesto lapso que a Ré, com o presente recurso, pretende ver alterado.
C. Da factualidade dada como provada nos presentes autos, nomeadamente no que diz respeito aos pontos 13.º, 37.º, 38.º e 39.º dos FACTOS PROVADOS, resulta que os dias previstos para a reparação do veículo propriedade do Recorrido eram 3 (três).
D. O Recorrido concordou/aceitou que o período de reparação fosse este uma vez que a oficina por si escolhida, juntamente com o representante da primeira Ré, acordaram que este seria o período necessário para que se procedesse à reparação do veículo.
E. Se a reparação não se efectuou no período acertado/combinado entre as partes, a Recorrente não tem qualquer tipo de responsabilidade em tal facto, seja porque não existiam peças seja porque as mesmas se atrasaram a chegar à oficina reparadora.
F. Tal atraso na reparação do veículo propriedade do Recorrido apenas poderá ser assacado ao mesmo e à oficina que garantiu que a reparação se efectuava naquele período de tempo.
G. O período de reparação acordado foi de 3 (três) dias, período este aceite quer pela ora Recorrente quer pelo Recorrido.
H. A oficina que elaborou a estimativa de reparação (e que calculou como aceitáveis para a reparação a realizar os 3 (três) dias) foi escolhida pelo Recorrido.
I. Nos restantes dias peticionados, nunca o Recorrido teria direito a qualquer tipo de indemnização, nos termos do disposto no n.º 6 do art.º 42.º do Dec.- Lei n.º 291/2007 (que tem por epígrafe “Veículo de substituição”).
J. Nunca o Recorrido teria direito a um valor superior a 3 (três) dias de indemnização pelo período de paralisação.
K. O valor encontrado pelo Tribunal (€50,00 diários) é manifestamente excessivo.
L. Os valores arbitrados pelos Tribunais Superiores (nomeadamente pelo Tribunal da Relação do Porto) são inferiores em cerca de metade do valor arbitrado pelo Tribunal a quo.
M. Para efeitos de cálculo da indemnização, com recurso à equidade, o valor diário de € 30,00 é o adequado, por contraposição aos €50,00 arbitrados pelo Tribunal a quo.
N. Tendo o veículo do Recorrido ficado “paralisado” desde 28.09.2017 até 09.10.2017 (data em que o veículo deveria ter sido apresentado reparado pela oficina uma vez que a peritagem ficou concluída a 06.10.2019 e, por conseguinte, acrescido dos 3 (três) dias de reparação acordado com a oficina escolhida pelo autor, o veículo deveria estar reparado em 09.10.2017) a Recorrente apenas teria que pagar ao autor, a título de privação do uso, uma quantia nunca superior a €360,00.
O. Por último, o valor arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais, é desajustado em face da factualidade dos autos.
P. Uma verba na ordem dos €250,00 seria ajustada em face da factualidade dada como provada.
Q. A douta sentença violou, assim, por erro de interpretação e aplicação o disposto no n.º 6 do art.º 42.º do Dec.- Lei n.º 291/2007 bem como o disposto nos art.ºs 483.º e seguintes do Código Civil.
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Foram apresentadas contra-alegações, nos seguintes termos:
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II. QUESTÕES A RESOLVER
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações diz respeito apenas à questão de saber se:
a) Como questão prévia, o recurso da apelante deve ser rejeitado
b) O montante diário da paralisação deve ser alterado e/ou deve ser limitado a 3 dias
c) Apurar, por fim, se o valor dos danos não patrimoniais deve ser reduzido para 250 euros.
III. Questão prévia
Pretende o apelado que o recurso deve ser rejeitado porque “inexiste a especificação dos concretos meios probatórios que a Recorrente pretende ver alterados e as suas razões jurídicas”. E tem toda a razão, a apelante não indica qualquer meio de prova para por em causa os factos provados, porque não pretende alterar a matéria de facto, mas apenas extrair da mesma outras conclusões jurídicas. Logo, não estamos aqui perante o ónus do art. 640º, do CPC.
No restante é certo que as conclusões devem ser não uma reprodução, nem um resumo, mas a síntese inteligente dos argumentos fundamentais. Neste prisma de facto as conclusões da apelante são deficientes por excessivas.
O art 639º, nº1, do CPC sempre foi claro ao dispor que “1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Mas, se isso bastasse para violar o disposto no art. 639º, do CPC quase não existiriam conclusões válidas, já que por exemplo, o apelado consegue efectuar o mesmo (reprodução não sintetizada das alegações), até numa maior dimensão.
Considera-se, pois, inexistir fundamento para rejeitar o recurso interposto.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. O Autor B… é engenheiro civil, licenciado pela Faculdade de Engenharia da Universidade E… desde 2007 (artigo 1º da petição inicial).
2. O Autor é o proprietário do motociclo de marca e modelo “BMW …”, com a matrícula .. - .. - FD (apenas FD, doravante, para evitar esforço ocular) (artigo 2º da petição inicial).
3. A Ré C…, S.A. (doravante 1ª Ré) é um grupo segurador, resultante da fusão da F…, G…, H… e I… (artigo 3º da petição inicial).
4. O Autor celebrou com a 1ª Ré contrato de seguro de responsabilidade civil do referido motociclo (artigo 4º da petição inicial).
5. A responsabilidade civil do veículo de marca e modelo “Seat …”, com a matrícula .. – FE - .. (doravante FE) foi transferida por J…, seu proprietário, para a Ré D… - Companhia de Seguros, S.A. (doravante 2ª Ré), que se dedica à atividade seguradora (resposta conjunta aos artigos 5º e 6º da petição inicial).
6. No dia 28SET2017, pelas 20h15, o motociclo FD foi abalroado pelo veículo FE, numa manobra de estacionamento deste último, na rua …, Porto e caiu ao chão (resposta conjunta aos artigos 7º e 9º da petição inicial).
7. O motociclo FD encontrava-se estacionado em frente ao Instituto K…, onde o Autor se encontrava a frequentar um curso de aquisição de competências (artigo 8º da petição inicial).
8. Pela sua dimensão, peso e características, o motociclo FD ficou danificado e impossibilitado de circular (artigo 10º da petição inicial).
9. A Polícia de Segurança Pública lavrou auto de ocorrência e o motociclo FD foi transportado por reboque para a oficina L…, Unipessoal Lda., para peritagem e posterior reparação (artigo 12º da petição inicial).
10. O sinistro foi participado pelo Autor, no dia seguinte, ou seja, 29SET2017, às companhias de seguros de ambos os intervenientes, através do preenchimento unilateral da declaração amigável de acidente de viação, que se mostra junto aos autos a folhas 27 e 28 e cujo teor se dá aqui por reproduzido (artigo 13º da petição inicial).
11. A 2ª Ré informou o Autor que o sinistro reunia as necessárias condições para enquadramento na Convenção Complementar IDS (Indemnização Direta ao Segurado – doravante CIDS), e como tal, todo o procedimento ficaria a cargo da 1ª Ré (artigo 14º da petição inicial).
12. A 1ª Ré, seguradora do Autor, veio assumir todos os prejuízos resultantes do sinistro a 100% de responsabilidade atribuída ao interveniente seguro na 2ª Ré, por carta datada de 13NOV2017 e que se mostra junta a folhas 29 dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido (artigo 15º da petição inicial).
13. A 1ª Ré promoveu a respetiva peritagem ao motociclo, no local onde se encontrava depositado, tendo dado ordem de reparação pelo período de três dias úteis (artigo 16º da petição inicial).
14. O motociclo FD esteve impossibilitado de circular entre 28SET2017 e 10NOV2017 (artigo 17º da petição inicial).
15. O motociclo FD é do ano de 1995 e encontrava-se em bom estado de circulação (artigo 18º da petição inicial).
16. Na sequência do sinistro, foram danificadas várias peças que necessitaram de substituição, designadamente o espelho completo e pisca dianteiro do lado direito e o pisca traseiro do lado direito (artigo 19º da petição inicial).
17. Por se tratar de um modelo antigo, algumas peças do motociclo FD estão descontinuadas, pelo que foi necessário aguardar pedidos de encomenda no mercado de peças usadas, respetiva confirmação, envio e receção para que o motociclo pudesse ser reparado (artigo 20º da petição inicial).
18. Apesar das diversas solicitações do Autor, a 1ª Ré não disponibilizou um veículo de substituição equivalente (artigo 22º da petição inicial).
19. Até à presente data, a 1ª Ré apenas liquidou o valor da reparação do motociclo, que ascendeu a €1.699,93 (artigo 24º da petição inicial).
20. O Autor, à data do sinistro, desempenhava as funções de perito na zona metropolitana do Porto e, para tanto, era sócio único da firma M…, Unipessoal, Lda. subcontratada como prestadora de serviços de peritagem patrimonial pela N…, S. A., com quem mantinha um contrato de prestação de serviços (artigo 27º da petição inicial).
21. O Autor utilizava o motociclo FD, pois era um meio de transporte rápido e eficaz nas suas deslocações constantes nas artérias de maior fluxo de trânsito e horas de ponta na zona centro do Porto (artigo 29º da petição inicial).
22. Além do mais, o motociclo FD é um veículo que permite o rápido estacionamento, possui baixo consumo de combustível e dispensa o custo oneroso com aparcamentos (artigo 30º da petição inicial).
23. A paralisação do motociclo originou constrangimentos no exercício das suas funções, nomeadamente atrasos nas deslocações aos locais das ocorrências (artigo 32º da petição inicial).
24. O Autor tentou alugar um motociclo equivalente, mas a sua capacidade económica não lhe permitia suportar os custos (artigo 33º da petição inicial).
25. Razão pela qual o Autor se socorreu de veículo ligeiro da família, incorrendo em custos com aparcamento e com combustível, atrasos em filas de trânsito e procura de estacionamento adequado (artigo 34º da petição inicial).
26. O autocolante logótipo da marca BMW colado na carenagem do lado direito foi apenas retocado, pela impossibilidade de substituição, assim como a manete do travão da frente e a panela de escape, que permanece arranhada (artigo 38º da petição inicial).
27. O Autor equipou o motociclo com vários extras, nomeadamente, malas laterais e mala traseira (artigo 39º da petição inicial).
28. O Autor teve necessidade de se levantar muito mais cedo de manhã, pois as deslocações em horas de ponta foram dificultadas pelo uso de veículo ligeiro, o que lhe retirou descanso (artigo 42º da petição inicial).
29. De igual forma, o regresso a casa foi mais tardio, condicionado pelas filas de trânsito habituais no centro do Porto (artigo 43º da petição inicial).
30. E também chegava uma hora mais tarde a casa de sua mãe, cerca das 20 horas, para ir buscar o seu filho, hoje com 2 anos de idade (resposta explicativa ao artigo 44º da petição inicial).
31. O Autor viu-se privado de estar mais tempo com o seu filho e a sua família (artigo 45º da petição inicial).
32. O Autor vivenciou stress, pela alteração da rotina, planificação de horário e pela obrigação de conduzir um veículo ligeiro em horas de ponta, algo que não estava acostumado a fazer (artigo 46º da petição inicial).
33. O Autor tem predileção por veículos de duas rodas, com grande estima por este motociclo, e também deixou de efetuar as suas deslocações de lazer ao fim de semana, com o seu irmão gémeo, designadamente passeios até ao Furadouro, Ovar, em que utilizava o seu motociclo (resposta conjunta à primeira parte do artigo 47º e artigo 48º da petição inicial).
34. Sentiu-se triste e desgostoso por não poder utilizar o seu motociclo (segunda parte do artigo 47º da petição inicial).
35. Foi forçado a perder várias horas do seu tempo com deslocações a Advogado, companhias de seguros e oficina automóvel (artigo 49º da petição inicial).
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36. A 1ª Ré regularizou o acidente dos autos ao abrigo da CIDS, da qual, tanto a 1ª Ré como a 2ª Ré são aderentes (artigo 24º da contestação da 1ª Ré C…, S.A.).
37. A 1ª Ré ordenou a realização de uma averiguação aos factos participados, suas causas e consequências e ordenou a realização de uma peritagem aos danos sofridos pelo motociclo FD, que teve lugar no dia 6OUT2017, na oficina da confiança do Autor e por ele escolhida para proceder à reparação do FD, a sociedade “L…, Unipessoal, Lda.” (resposta conjunta aos artigos 35º e 36º da contestação da 1ª Ré).
38. Mercê de tal avaliação de danos, que foi efetuada de comum acordo com o gerente da sobredita oficina, a 1ª Ré apurou que a reparação do veículo do autor carecia da aplicação de peças novas e de mão-de-obra com o custo total de €1.699,93, já com IVA (resposta parcial ao artigo 37º da contestação da 1ª Ré).
39. No dia 13OUT2017, na sequência do resultado da averiguação levada a cabo ao sinistro dos autos, a 1ª Ré remeteu correspondência ao Autor e à oficina por ele designada, que a receberam, dando-lhes indicação de que devia ser ordenada a reparação do motociclo FD e que o custo dessa reparação era da sua responsabilidade, tudo nos termos das missivas de folhas 66 e 66 verso, cujo teor se dá aqui por reproduzido (artigo 39º da contestação da 1ª Ré).
40. O acidente ora em apreço não afetou quaisquer órgãos vitais do motociclo FD, tais como a suspensão, os travões, a direção, o motor, etc., tendo sido corretamente reparado de todos os danos sofridos com o mencionado sinistro (artigo 48º da contestação da 1ª Ré).
41. O Autor transferiu para a 1ª Ré a responsabilidade civil que lhe possa ser imputada, emergente da circulação do motociclo FD, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ............, que não inclui a cobertura de choque, colisão e capotamento (resposta conjunta aos artigos 17º e 24º da contestação da 1ª Ré).
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42. O veículo FE tinha transferido para a 2ª Ré a sua responsabilidade civil infortunística de circulação por contrato de seguro titulado pela apólice nº ……………, contrato esse que se encontrava em vigor à data de 28SET2017 (resposta conjunta aos artigos 1º, 2º e 3º da contestação da 2ª Ré D… – Companhia de Seguros, S.A.).
43. Depois de averiguada a forma como o sinistro ocorreu, a 2ª Ré aceitou a regularização do sinistro, ao abrigo da convenção CIDS AU……….. (artigo 6º da contestação da 2ª Ré).
44. O Autor aceitou que a regularização se processasse desta forma (artigo 8º da contestação da 2ª Ré).
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V. APRECIAÇÃO
1. A principal questão deste recurso preende-se com a imputação dos danos derivados da imobilização de um veículo para reparação após eclosão de um sinistro.
Colocada deste modo a solução da questão é simples e evidente. O art. 562º, do C.C., dispõe que "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação". A obrigação de indemnização visa assim, segundo Vaz Serra[1] "eliminar todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não”. O dano causado ao lesado estará portanto integralmente ressarcido quando este seja colocado num estado que tenha valor e natureza igual ao que existia antes do evento danoso.
Logo deveria a seguradora ter fornecido um veículo de substituição. Não o tendo feito terá, nos termos dos n.-1 e 2 do art. 566.° do mesmo Código, de pagar a quantia fixada em dinheiro tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.
Mas a questão que se coloca, no presente caso, é que a reparação deveria ter demorado 3 dias e demorou 43 dias, fundamentalmente porque, conforme resulta da matéria de facto, “Por se tratar de um modelo antigo, algumas peças do motociclo FD estão descontinuadas, pelo que foi necessário aguardar pedidos de encomenda no mercado de peças usadas, respetiva confirmação, envio e receção para que o motociclo pudesse ser reparado (artigo 20º da petição inicial)”.
Esta matéria está parcialmente regulada no art. 42º, do DL 291/2007, que dispõe:
“1 - Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores.
2 - No caso de perda total do veículo imobilizado, nos termos e condições do artigo anterior, a obrigação mencionada no número anterior cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização.
3 - A empresa de seguros responsáveis comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.
4 - O veículo de substituição deve estar coberto por um seguro de cobertura igual ao seguro existente para o veículo imobilizado, cujo custo fica a cargo da empresa de seguros responsável.
5 - O disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.
6 - Sempre que a reparação seja efectuada em oficina indicada pelo lesado, a empresa de seguros disponibiliza o veículo de substituição pelo período estritamente necessário à reparação, tal como indicado no relatório da peritagem”.
Á luz desta norma e tendo em conta os factos provados a seguradora só seria obrigada, a indemnizar o dano de privação de uso durante os 3 dias que constam da peritagem efectuada.
Mas o sentido literal deste número 6 deve, ser interpretado nos termos gerais, por forma a que o facto que deu causa à mora possa ou não ser imputável ao lesado. Ou seja, é necessário determinar caso a caso quem deu causa ao atraso na reparação do veículo.
Isto, porque, como salienta Laurinda Gemas[2], “Também aqui a lei carece de adequada interpretação, pois é indiscutível que ao lesado assiste o direito de efectuar a reparação em oficina por si escolhida, não podendo ficar prejudicado por uma estimativa demasiado “optimista” feita em sede de peritagem. Assim, embora a seguradora não esteja obrigada a disponibilizar veículo de substituição durante lapso de tempo superior ao estimado para a reparação do veículo sinistrado, não poderá deixar de arcar com a obrigação de indemnizar, quando o tempo estimado para a realização da reparação tenha sido ultrapassado sem que isso se deva a facto culposo do lesado ou da própria oficina que escolheu.”
Nos termos gerais é sobre a seguradora, lesante que impende o ónus de reparar o dano causado. Mas, o lesado está também obrigado a atuar com boa fé e diligência adequada, não devendo fazer exigências que não sejam razoáveis sob pena de se poder considerar que contribuiu para o agravamento dos danos que advieram da paralisação. Tudo isto sob pena de existir fundamento para uma eventual redução da indemnização nos termos do art. 570.º do CC.
Isto porque as relações obrigacionais tuteladas pelo direito impõem deveres de correcção reciprocas seja por parte da seguradora, seja por parte do lesado que está obrigado a um comportamento ajustado, sob o prisma de um cidadão médio, visando na medida do possível debelar o dano e não aumentá-lo.
Esta exigência é habitual na nossa jurisprudência.
Desde logo e em termos gerais o Ac do STJ de 14.1.2014 nº 511/11.2TBPVL.G1.S1 acentua que “As exigências da boa-fé são recíprocas: os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicam relações intersubjectivas de cooperação”.
Num caso semelhante o A Ac do TRP de 22 de Setembro de 2011, relator Amaral Ferreira (aqui adjunto): “O montante indemnizatório pela privação do uso do veículo deve ser reduzido quando haja concurso do lesado para o agravamento desse dano, mediante o protelamento da manutenção da situação, muito para além do razoável, por inércia ou outra causa não justificada” (nosso sublinhado).
Sendo que “O facto objetivo de o lesado pedir indemnização pela privação do uso de veículo sinistrado algum tempo depois do sinistro não é suficiente para se considerar que tal atuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso (art. 570.º do CC)”. (Ac. do STJ de 28 de Novembro de 2013, n.º 215-D/2000.P1.S1, relator Pereira da Silva.
Porque, como salienta o Ac. do STJ de 17 de Janeiro de 2013, n.º 169/1993.P1.S1, relator João Bernardo: “O dano da privação do uso é um dano evolutivo (aumenta até à entrega do veículo reparado ou de substituição) não legitimando, no entanto, a total inércia e passividade do lesado perante a recusa, pelo responsável, de reparação”.
In casu resulta da matéria de facto (que é a relevante e não as alegações das partes), que:
A 1ª Ré ordenou a realização de uma averiguação aos factos participados, suas causas e consequências e ordenou a realização de uma peritagem aos danos sofridos pelo motociclo FD, que teve lugar no dia 6OUT2017, na oficina da confiança do Autor e por ele escolhida para proceder à reparação do FD, a sociedade “L…, Unipessoal, Lda.” (resposta conjunta aos artigos 35º e 36º da contestação da 1ª Ré).
Mercê de tal avaliação de danos, que foi efetuada de comum acordo com o gerente da sobredita oficina, a 1ª Ré apurou que a reparação do veículo do autor carecia da aplicação de peças novas e de mão-de-obra com o custo total de €1.699,93, já com IVA (res18. Apesar das diversas solicitações do Autor,
Decorre dessa factualidade que o prazo de reparação (3 dias) terá sido aceite pela oficina escolhida pelo autor, apenas esse prazo dependeria e seria efectivo após aquisição das peças usadas necessárias.
Ora, parece evidente, à luz de normais deveres de boa fé, correcção e diligência, que 40 dias para a aquisição dessas peças ultrapassam o tempo exigível a “uma oficina média diligente.”
Tanto mais que note-se o veículo do autor era bastante usado (de 1995 logo terá hoje 24 anos); esse dano de privação durante 40 dias ultrapassa o valor da reparação efectuada (40x50= 2000 euros) e os dois juntos podem situar-se próximos do valor do veículo.
Ou seja, parece-nos seguro que o autor que dominou o processo de reparação (escolheu a oficina); algumas das peças não eram necessárias à circulação do veículo (cfr. o logotipo BMW); e a escolha, aquisição e envio de peças não justifica em termos de máximas da experiência, uma dilação tão excessiva.
Concluímos assim que a oficina escolhida pelo apelado, deu causa a uma dilação excessiva nessa reparação e por isso esse valor deve ser reduzido nos termos do art. 570º, do CC[3].
1.2 Mas qual o montante dessa redução?
Inexistindo factos alegados sobre essa matéria o tribunal terá de utilizar a equidade tendo como certo que, por um lado os 3 dias que constam da peritagem seriam insuficientes para a aquisição e envio de peças usadas no estrangeiro.
Assim considera-se suficiente, adequado e proporcional fixar esse valor em 21 dias (15 dias aquisição e tempo desde o sinistro + 3 dias envio peças + 3 dias reparação).
2. Do valor da indemnização pelo dano de privação do uso
Impugna ainda a apelante o valor que foi fixado na primeira instância nesta matéria (50 euros/dia) apontando que o mesmo deve ser de 30 euros.
Resulta dos factos provados, apenas, que o veículo em causa era um motociclo; mas que o autor usou e teve disponibilidade de usar veículos ligeiros, sendo ainda facto notório que na data em que ocorreu essa imobilização era Inverno e, como tal poderia ter ocorrido com mais probabilidade um tempo chuvoso.
Como é evidente o valor de uso de um veículo é variável e depende não apenas do veículo em si, mas também da efectiva utilização efectuada cuja privação constituiu o dano concreto que se visa indemnizar. Por isso é que, por exemplo, o recente Ac da RG de 4.4.2017 nº 474/13.0TBFAF.G1 considerou que “O montante diário de 10€ é adequado a ressarcir o dano de privação do veículo aos Autores que o usavam diariamente em passeio e para o trabalho”. Nesta medida será útil realçar que a utilização de veículos de duas rodas é menor durante o Inverno, pois, o seu uso não é confortável com chuva.
No presente caso, sabemos aliás que essa privação não era total, pois está provado que: “25. Razão pela qual o Autor se socorreu de veículo ligeiro da família, incorrendo em custos com aparcamento e com combustível, atrasos em filas de trânsito e procura de estacionamento adequado (artigo 34º da petição inicial)”.
Ou seja, estamos perante uma privação parcial.
Parece-nos, pois, que nessa circunstância tem inteira razão a apelante ao defender a redução da indemnização.
Pelo exposto considera-se suficiente e proporcional fixar a indemnização diária no valor de 30 euros o que perfaz o montante global de 630 euros a título de dano da provação de uso.
3. Do valor dos danos não patrimoniais
Pretende por fim a apelante a redução para metade do valor fixado a título de danos não patrimoniais. Com o devido respeito, nesta parte claramente, sem razão, pois, esta indemnização só peca por escassa.
Senão vejamos
É pacífico entre nós que os danos não patrimoniais, “como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética”, são prejuízos que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização (cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 561).
Acresce que o quantitativo da indemnização é fixado segundo critérios de equidade atendendo à extensão e gravidade dos danos, ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. (cfr. Prof. Antunes Varela, ob. cit, 629, e Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., 525).
Para além disso é consensual que indemnização a fixar procurará ser justa e equitativa, e não com um alcance meramente simbólico. Logo o valor de 500,00 euros já se situa no patamar mínimo, porque se os danos não patrimoniais só podem ser ressarcíeis se forem relevantes, então quantia mínima não deveria ser inferior ao salário mínimo nacional.
Depois, nesta matéria provou-se que 28. O Autor teve necessidade de se levantar muito mais cedo de manhã, pois as deslocações em horas de ponta foram dificultadas pelo uso de veículo ligeiro, o que lhe retirou descanso (artigo 42º da petição inicial). 29. De igual forma, o regresso a casa foi mais tardio, condicionado pelas filas de trânsito habituais no centro do Porto (artigo 43º da petição inicial). 30. E também chegava uma hora mais tarde a casa de sua mãe, cerca das 20 horas, para ir buscar o seu filho, hoje com 2 anos de idade (resposta explicativa ao artigo 44º da petição inicial). 31. O Autor viu-se privado de estar mais tempo com o seu filho e a sua família (artigo 45º da petição inicial).
Ou seja, estes danos, demonstram um valor ressarcível superior ao fixado, mas que este tribunal não pode alterar por não ter sido posto em causa. Por fim, note-se que o recente Ac do STJ de 5.7.2018 nº 176/13.7T2AVR.P1.S1 (Abrantes Geraldes) salienta que esse valor deve ser elevado, quando “a privação do uso do veículo ter provocado ao lesado forte perturbação da sua vida e o de, por causa do acidente, ter ocorrido perturbação no gozo de férias do lesado e sua família que se encontrava agendado, são merecedores da tutela do direito a título de danos não patrimoniais”.
Improcede, pois, a questão suscitada pela apelante.
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V. DECISÃO
Pelo exposto este tribunal julga o presente recurso parcialmente procedente por provado e, por via disso, revoga parcialmente a decisão recorrida condenando a apelante a indemnizar o apelado na quantia de 630,00 euros (seiscentos e trinta euros) a título de dano de privação de uso do veículo, mantendo-se em tudo o restante a decisão do tribunal recorrido.
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Custas da apelação a cargo da apelante e apelado na proporção do seu decaimento.
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Porto em 7.11.2018
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] in BMJ, 48, 8.
[2] A indemnização dos danos causados por acidentes de viação — Algumas questões controversas, revista Julgar, nº8, 2009, pág. 42 e segs. Sobre o dano da privação de uso, são ainda actuais as obras de Abrantes Geraldes, Indemnização do dano da privação do uso, Almedina, Coimbra, 2001 e JÚLIO GOMES, O dano da privação do uso, RDE 1986, ano 12, pp. 169 e segs .
[3] O Ac. do STJ de 03-05-2007, na revista n.º 1184/07 — 7.ª Secção (Processo: 07B1184)”tendo o autor recusado a proposta da ré (seguradora) de reparação do veículo automóvel, a manutenção deste ao longo do tempo, sob depósito remunerado, num estabelecimento oficinal de reparação de veículos, não tinha razão de ser, concluindo-se que entre o facto ilícito e culposo e o contrato de depósito do veículo automóvel e, consequentemente, o seu custo peticionado pelo autor, inexiste o nexo de causalidade adequada (art. 563.º do CC).