Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
383/18.6T8VGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: MANOBRADOR DE GRUA
ACTUAÇÃO NEGLIGENTE
RELAÇÃO DE COMISSÃO
EMPRESA DE TRABALHO TEMPORÁRIO
EMPRESA UTILIZADORA E TRABALHADOR
Nº do Documento: RP20210617383/18.6T8VGS.P1
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Age com negligência aquele que não procede com o cuidado e diligência a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz, mesmo que nem sequer chegue a representar as consequências possíveis da sua actuação, o que sucede com um manobrador de uma grua que, de modo inexplicado, a coloca em movimento sem se assegurar que tinha condições de segurança para o fazer e estas não estavam reunidas.
II - Estando um trabalhador a executar a sua prestação laboral numa obra ao abrigo de um contrato de cedência de utilização dessa força de trabalho celebrado entre a empresa de trabalho de trabalho temporário empregadora do trabalhador e a empreiteira geral da obra, para efeitos cíveis existe relação de comissão entre o trabalhador e, em simultâneo, a empresa de trabalho temporário e a empresa utilizadora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:383.18.6T8VGS.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B… - Companhia de Seguros, S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ……..., com sede em Lisboa, instaurou a presente acção judicial contra C…, S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ………, com sede no Porto, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 24.874,60€, acrescida de juros de mora vincendos desde a propositura da acção até integral pagamento.
Alegou para o efeito que celebrou contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho com a D.., Unipessoal, Lda., assumindo a cobertura dos danos causados aos trabalhadores desta, designadamente o trabalhador E…, ao qual depois pagou indemnização no valor correspondente ao pedido por danos decorrentes de acidente de trabalho de que este foi vítima no dia 20.11.2015, pelas 10h30m, numa obra sita em Vagos, adjudicada à ré, e que lhe determinou uma incapacidade parcial permanente de 10%, fixada no processo de acidente de trabalho respectivo. Tendo efectuado esse pagamento, encontra-se sub-rogada nos direitos do trabalhador sinistrado sobre o responsável pelo acidente, o qual foi causado pelo trabalhador da ré F….
A ré contestou, alegando, além do mais, que F… não era seu trabalhador, mas sim da G…, S.A., pelo que não é terceira para efeitos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 4, da Lei de Acidentes de Trabalho. Mais alegou que o acidente ocorreu por culpa do trabalhador sinistrado.
Foi requerida e admitida a intervenção principal da G…, S.A., a qual, citada, apresentou contestação alegando, em suma, que a actuação do trabalhador temporário F… foi determinada e ordenada pela ré.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. A Recorrente “B… – Companhia de Seguros, S.A.” intentou o presente recurso visando-se, desde logo, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 638.º do Código de Processo Civil, por entender que a resposta negativa ao ponto d) dos factos dados como não provados, bem como a redacção dada ao ponto 17) dos factos dados como provados, não tem suporte na prova documental e testemunhal produzida nos autos, impondo-se, por essa razão, a sua reanálise e alteração nos termos constantes do presente recurso.
II. A Recorrente interpõe ainda o presente recurso por não concordar com o teor da sentença recorrida, uma vez que a mesma, salvo o devido respeito, não consubstancia a rigorosa aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e a decisão proferida, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça uma correcta aplicação do direito.
III. Com interesse para a apreciação do presente recurso, foi dado como provada a seguinte matéria de facto: “17) Nesse momento, o operador F… accionou a grua, levantando a corrente que ainda se encontrava amarrada à cofragem, em virtude de esta ainda não ter sido solta por E…”.
IV. Por outro lado, com interesse para a apreciação do presente recurso, foi dada como não provada, a seguinte matéria de facto: “d) o referido em 17) tivesse ocorrido em virtude de F… ter actuado de forma descuidada, sem cuidar de verificar se E… já havia terminado a tarefa de soltar as correntes e descido da cofragem”.
V. Da análise da prova carreada para os autos, designadamente o depoimento das testemunhas E…, F…, H…, I… e J…, bem como documento junto aos autos em sede de Audiência de Julgamento, em 21 de Setembro de 2020 (referência Citius 112742573), intitulado “Incidente de Segurança Ocorrido no dia 20/11/2015, é manifesto que o Tribunal a quo julgou mal quando considerou não provado que o acidente tivesse ocorrido em virtude de F… ter actuado de forma descuidada, sem cuidar de verificar se E… já havia terminado a tarefa de soltar as correntes e descido da cofragem, bem como no facto provado n.º 17, não tivesse considerado que o operador F… accionou a grua sem aguardar por instruções para elevar a grua.
VI. Tal matéria de facto, que o tribunal a quo deu como não provada, deve ser considerada como provada, bem como deve ser aditado ao ponto n.º 17 que o gruista F… agiu sem aguardar por instruções.
VII. Conforme fundamentação da motivação da sentença recorrida, o Tribunal a quo, no que respeita ao relatório intitulado de Incidente de Segurança ocorrido no dia 20-11-2015, “trata-se de relatório elaborado com base nos depoimentos prestados por I…, K… e F…, tendo a testemunha J… concluído, com base nas diligências que efectuou, que o gruista elevou o painel sem dar tempo ao trabalhador para descer, e que agiu antecipadamente, sem que a tarefa do carpinteiro estivesse totalmente acabada”.
VIII. Tendo concluído o aludido relatório que, uma das acções a tomar seria “solicitada a substituição do gruista”, o que aliás, aconteceu imediatamente após a ocorrência do acidente.
IX. Tal documento apenas foi junto quase na fase final da produção de prova, por despacho judicial, tendo, atento o conteúdo, a Recorrida “C…, S.A.”, tentado desvalorizar o relatório e as conclusões nele vertidas.
X. O Senhor I… foi o único, para além do sinistrado e do gruista, quem assistiu ao acidente, e que afirmou que não foi dado sinal ao gruista para movimentar a grua.
XI. Ao longo do aludido relatório, elaborado logo após a ocorrência do acidente, apontou como causa uma “antecipação” do gruista e não do sinistrado!
XII. XIII. Concluiu o Tribunal a quo, a propósito do depoimento de J… e H… que “os depoimentos destas duas testemunhas não nos mereceram credibilidade, impedindo o Tribunal de formar uma convicção segura no sentido de que o acidente decorreu nos termos descritos pela testemunha F…, visto que, na ocasião, nenhuma delas aceitou como válida a tese por este narrada, no sentido de que recebeu ordens para movimentar a grua”
XIV. Pelo que deveria constar do ponto 17) que o gruista movimento a grua sem receber instruções nesse sentido.
XV. Foi transmitido ao gruista F… que o seu despedimento ocorreu porque o mesmo movimentou a grua sem ter recebido instruções nesse sentido!
XVI. Do depoimento do sinistrado E…, bem como de I… (testemunha que também assistiu ao acidente), resultou que não existiu qualquer sinalização para movimentar a grua, pelo que ter-se-á que concluir que o acidente se deveu à movimentação, sem que tivesse existido uma ordem nesse sentido, da grua, causando a queda do sinistrado E….
XVII. Pelo que deve constar da matéria de facto dada como provado n.º 17 o seguinte: “Nesse momento, o operador F…, sem ter recebido sinal ou ordem nesse sentido, accionou a grua, levantando a corrente que ainda se encontrava amarrada à cofragem, em virtude de esta ainda não ter sido solta por E…”.
XVIII. O tribunal considerou como não provado a versão do acidente relatada pelo gruista F…, ou seja, que tenha havido indicação para movimentar a grua, pelo que ter-se-á que concluir que a movimentação da grua e consequente acidente, se deveu ou a um descuido de F… que movimentou sem verificar se o podia fazer e sem ter recebido instruções nesse sentido ou a uma acção propositada do mesmo.
XIX. Não se produziu prova que o acidente tenha, de alguma forma, sido intencional por parte de F…, pelo que, tendo-se dado o mesmo, sem que tenha existido qualquer ordem, como resulta dos depoimentos das testemunhas, nem que tenha havido outras causas externas, então forçosamente se terá que concluir que tal se deveu a um descuido do gruista F….
XX. Pelo que, nesta medida, a matéria de facto dada como não provada d) deve constar da matéria de facto dada como provada.
XXI. Nos termos do disposto no artigo 483.º do Código Civil a obrigação de indemnizar depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a ocorrência de um facto, a ilicitude do mesmo, a culpa do agente, a ocorrência de danos e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos.
XXII. No caso em apreço, e atenta a alteração da matéria de facto requerida, é entendimento da Requerente que se encontram preenchidos os necessários pressupostos legais impostos para que se verifique a obrigação de indemnizar, de acordo com o supra referido preceito normativo.
XXIII. De acordo com a fundamentação da matéria de direito da sentença ora colocada em crise, foi entendimento do Tribunal a quo que se verificaram a ocorrência de um facto voluntário pelo funcionário da Chamada, que se encontrava ao serviço da Ré, a existência de danos, bem como o nexo de causalidade entre o acto e os danos.
XXIV. Porém, foi entendimento do Tribunal a quo que não ficou demonstrado que a conduta de F… tivesse sido ilícita e culposa.
XXV. Ora, antes de mais, atento o exposto em relação à alteração da matéria de facto, é entendimento da Recorrente que resultou provado a ilicitude e a culpa do gruista F…, encontrando-se assim cumpridos os pressupostos da responsabilidade civil do mesmo.
XXVI. Dispõe o artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil que “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.
XXVII. Não podem restar dúvidas da obrigação de indemnizar do gruista F…, bem como, que existe entre F… e a Ré “C…, S.A.” e a Chamada “G…, S.A.” uma relação de comissário/comitentes, dado que este era trabalhador da “G…”, e encontrava-se a desempenhar as funções de manobrador de grua de acordo com as ordens, instruções, comandos e fiscalização da Ré “C…”.
XXVIII. Sendo certo que nos termos do artigo 17.º da Lei de Acidentes de Trabalho, ambas são terceiros, por não possuírem qualquer vínculo, ligação ou relação com o sinistrado, a Recorrente ou a segurada da Recorrente.
Em conclusão,
XXIX. Resulta manifesto que o acidente em apreço ocorreu por única e exclusiva responsabilidade do gruista F…, devendo ser alterada a redacção do facto provado n.º 17 nos termos requeridos, bem como considerado provado o facto não provado da alínea d).
XXX. Bem como que se devem considerarem cumpridos todos os requisitos da responsabilidade de indemnizar das Rés, devendo, nessa medida, ser a sentença revogada, e substituída por outra que julgue procedente o pedido da Recorrente e condena as Recorridas no pedido.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser modificada;
ii) Se os factos provados permitem imputar ao trabalhador que manobrava a grua a culpa do acidente de trabalho;
iii) Na afirmativa, se o direito de sub-rogação da autora recai sobre a ré e/ou sobre a interveniente principal, atenta a circunstância de aquele trabalhador possuir um contrato de trabalho celebrado com esta empresa de trabalho temporário e desempenhar no local funções ao abrigo do contrato de cedência de trabalho temporário celebrado entre ambas as empresas no qual a ré é utilizadora do trabalho temporário.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1) A autora B… - Companhia de Seguros, S.A. é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora.
2) Através da apólice número ……………, do ramo Acidente de Trabalho, cuja vigência se iniciou em 01-04-2013, a sociedade D…, Unipessoal, Lda. transferiu para a autora, e esta aceitou, os riscos completos dos danos traumatológicos causados aos seus trabalhadores, indicados nas respectivas folhas de salários, contra o pagamento da quantia anual de 60.930,35€ (sessenta mil novecentos e trinta euros e trinta e cinco cêntimos).
3) A ré C…, S.A. dedica-se à actividade de construção civil.
4) Por acordo escrito datado de 14.09.2015, a sociedade L…, Lda. atribuiu à ré C…, S.A. a construção de um Centro Logístico, no …, …, Vagos, mediante o pagamento de um preço.
5) Por acordo datado de 23-10-2015, e mediante o pagamento de um preço, a ré delegou na sociedade M…, S.A., a execução «de todos os trabalhos de aplicação de betão e cofragem, incluindo todos os meios, nomeadamente em sapatas, vigas de fundação, muros de suporte, paredes, caixas, pilares, lajes maciças, lajes aligeiradas incluindo fornecimento de cocos, lajes de vigotas, vigas, escadas, caleiras, etc., incluindo limpeza de materiais sobrantes, deslocações de pessoal, equipamentos e todos os meios acessórios e necessários à boa execução destes trabalhos (…)»,
6) (…) a qual atribuiu à sociedade D…, Unipessoal, Lda. a «(...) execução de cofragem, incluindo plataformas de trabalho na Obra …, L…, Vagos», mediante o pagamento de um preço.
7) A chamada G…, S.A. é uma empresa de trabalho temporário, licenciada, cuja actividade principal se consiste na cedência temporária de trabalhadores para ocupação por utilizadores.
8) Em 20-11-2015 F… era trabalhador da chamada G…, SA., na qualidade de entidade de trabalho temporário,
9) (…) e encontrava-se a desempenhar funções de manobrador, na obra referida em 4), de acordo com as ordens, instruções, comandos e fiscalização da ré C…, S.A., na qualidade de entidade utilizadora, que utilizava o mesmo, por acordo celebrado entre ambas as rés, mediante o pagamento àquela de um preço.
10) No dia 20.11.2015, pelas 10h30m, E…, carpinteiro de segunda, por conta da sociedade D…, Unipessoal, Lda., encontrava-se, juntamente com outros trabalhadores, a levantar cofragens, na obra referida em 4), sob as instruções da referida sociedade, transmitidas através do seu superior hierárquico, bem como sob a orientação e controlo da sociedade M…, S.A..
11) Tais tarefas estavam a ser executada com o recurso a uma grua da marca “Liebherr”, certificada, da propriedade da sociedade N…, Lda., tomada de aluguer pela ré C…, S.A., para a execução da obra referida em 4),
12) (…) a qual era, à data, manobrada por F…, para levantar as cofragens, tendo E… que amarrar e libertar as correntes que seguravam as mesmas, conforme aquelas iam sendo levantadas e colocadas no local indicado.
13) Incumbia a E… colocar as correntes necessárias ao levantamento e colocação de cofragem de pilares no local da obra e, após, retirar essas mesmas correntes.
14) E… colocou as correntes na cofragem, tendo esta sido içada pela grua, com o recurso às duas correntes, e colocada no local final da obra.
15) Após, E… subiu, com recurso a uma escada, ao pilar da cofragem, estando munido de um arnês e cinto de segurança, sem utilizar aquele, ponto a ponto, ao longo da subida.
16) Aí chegado, retirou a primeira corrente, após o que iniciou a descida pelas escadas, sem utilizar o arnês de segurança, ponto a ponto, ao longo da descida.
17) Nesse momento, o operador F… accionou a grua, levantando a corrente que ainda se encontrava amarrada à cofragem, em virtude de esta ainda não ter sido solta por E….
18) Nessa sequência, a cofragem começou a rodar e, com ela, a escada onde se encontrava E…, inclinando-se em direcção às vigas e ferragens.
19) Face à iminência do impacto com as vigas, E… saltou para o solo, de uma altura de cerca de 3 (três) metros.
20) Em consequência de tal queda, E… sofreu uma fractura do calcâneo esquerdo, tendo ficado totalmente impossibilitado de trabalhar desde 20.11.2015 até 12.12.2016,
21) (…) a que se seguiu um período de incapacidade temporária parcial para o trabalho, fixada na percentagem de 30% (trinta por cento), desde o dia 12.12.2016 até 19.01.2017,
22) (…) data em que lhe foi concedida alta médica, com atribuição de uma incapacidade permanente parcial de 3% (três por cento).
23) Em Novembro de 2015 a sociedade “D…, Unipessoal, Lda.” comunicou à autora o referido em 10) e 14) a 19).
24) Em consequência do referido em 19) e 20), E… foi assistido no “Hospital …” e nos serviços clínicos da autora, necessitou de medicamentos e produtos farmacêuticos.
25) Ao abrigo da apólice referida em 2) e por força do evento acima descrito, a autora despendeu:
25.1) €803,56 (oitocentos e três euros e cinquenta e seis cêntimos), a título de despesas com ambulatório;
25.2) €199,01 (cento e noventa e nove euros e um cêntimo), a título de despesas com o Serviço Nacional de Saúde;
25.3) €35,74 (trinta e cinco euros e setenta e quatro cêntimos), a título de exames auxiliares de diagnóstico;
25.4) €161,70 (cento e sessenta e um euros e setenta cêntimos), a título de exames auxiliares de diagnóstico- RX;
25.5) €185,00 (cento e oitenta e cinco euros), a título de exames auxiliares de diagnóstico - TAC;
25.6) €4.780,84 (quatro mil setecentos e oitenta euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de despesas com intervenções cirúrgicas;
25.7) €5.589,58 (cinco mil quinhentos e oitenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta;
25.8) €173,85 (cento e setenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária parcial;
25.9) €50,36 (cinquenta euros e trinta e seis cêntimos), a título de despesas com medicamentos;
25.10) €1.950,00 (mil novecentos e cinquenta euros), a título de despesas com medicina física e reabilitação;
25.11) €798,57 (setecentos e noventa e oito euros e cinquenta e sete cêntimos) a título de subsídios;
25.12) €460,80 (quatrocentos e sessenta euros e oitenta cêntimos), a título de despesas com transportes colectivos; e
25.13) €681,69 (seiscentos e oitenta e um euros e sessenta e nove cêntimos), a título de despesas com transportes de táxi.
26) Os factos referidos em 10) e 14) a 19) deram origem ao processo de acidente de trabalho n.º 3637/16.2T8AVR, que correu termos pelo Juízo de Trabalho do Barreiro, J2, da Comarca de Lisboa, no qual a ora autora assumiu a qualidade de ré, tendo, em 28.05.2018 sido proferida sentença a declarar que E… ficou, em virtude do evento supra referido, ficou afectado de uma incapacidade permanente parcial de 10% (dez por cento), desde 19.01.2017 e, consequentemente, a condenar a aqui autora no pagamento:
26.1) do capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de €591,60 (quinhentos e noventa e um euros e sessenta cêntimos), reportada a 20.01.2017;
26.2) a quantia de €9,00 (nove euros), a título de despesas de transporte; e dos juros de mora.
27) A autora procedeu ao pagamento do montante de:
27.1) €8.442,13 (oito mil quatrocentos e quarenta e dois euros e treze cêntimos), a título de capital de remição;
27.2) €546,77 (quinhentos e quarenta e seis euros e setenta e sete cêntimos), a título de juros de mora;
27.3) e de €15,00 (quinze euros), a título de despesas com transportes.
28) Quando do referido em 10), F… encontrava-se habilitado com “Certificado de Aptidão Profissional”, emitido pelo “Instituto do Emprego e Formação Profissional”, para a realização de tarefas de manobrador da grua.
29) A ré promoveu junto dos trabalhadores em obra, incluindo os dos subempreiteiros, acções de formação sobre os aspectos relevantes para a protecção da sua segurança e saúde e a de terceiros.
30) A ré entregou a F… documentos relativos a segurança e saúde no trabalho, respeitantes aos riscos e perigos associados aos trabalhos com gruas.
31) A obra referida em 4) implicava a execução de muitas dezenas de pilares, de iguais características e dimensões, que era necessário betonar, após a realização da respectiva cofragem.
32) Quando do referido em 10), já haviam sido executadas dezenas de cofragens, muitas delas com intervenção de E… e de F….
33) A execução das cofragens implicava, entre outros:
33.1) A utilização de moldes recuperáveis, compostos por quatro painéis unidos entre si, dois a dois, por um dos lados, através de uma dobradiça e, pelo outro lado, com um sistema de fecho do conjunto, os quais possuíam plataformas de betonagem acopladas;
33.2) Efectuar, após aplicação na armadura, o fecho do molde em torno da mesma;
33.3) A colocação de correntes na parte superior dos pilares, em momento anterior à sua movimentação;
33.4) O conhecimento do sistema a utilizar por toda a equipa de trabalho;
33.5) O levantamento dos painéis da cofragem e sua colocação no pilar;
33.6) O escoramento dos painéis.
34) Competia a E… e aos demais trabalhadores da “D…,” e da “M…”, sob orientação e controlo desta, e sem qualquer intervenção da ré, a execução das tarefas referidas em 33), à excepção da movimentação da grua.

IV. O mérito do recurso:
A] impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente impugna a decisão proferida pelo tribunal a quo no tocante aos factos do ponto 17 do elenco de factos provados e do ponto d) do elenco de factos não provados.
Mostram-se cumpridos os requisitos específicos da impugnação desta decisão (artigo 640.º do Código de Processo Civil), razão pela qual cumpre conhecer da mesma.
Em relação ao ponto 17 a pretensão da recorrente é que se adite à redacção do facto a menção de que o accionamento da grua pelo operador F… ocorreu «sem [este] ter recebido sinal ou ordem nesse sentido». No que concerne ao facto julgado não provado, a pretensão a recorrente consiste em se julgar provado que o referido accionamento da grua ocorreu por o operador «ter actuado de forma descuidada, sem cuidar de verificar se E… já havia terminado a tarefa de soltar as correntes e descido da cofragem».
Ao ouvir a agravação da audiência só com enorme esforço se consegue compreender bem o que várias das testemunhas declararam em juízo por deficiência da gravação ao nível do volume do som e dos ruídos de fundo.
De todo o modo, são notórias as diferenças entre os depoimentos, o que se compreende face ao período de tempo decorrido entre os factos e a produção de prova em juízo e ao comprometimento das pessoas ouvidas com alguns dos factos em discussão.
É igualmente notório em alguns depoimentos que as testemunhas foram evoluindo nos depoimentos à medida que se apercebiam da importância e/ou relevo da pergunta, o que denuncia uma enorme falta de espontaneidade e um ajustamento da resposta à percepção que a testemunha formava sobre aquela importância e/ou relevo, sintoma de um trabalho de recuperação da memória que é em simultâneo um acto de reconstrução da factualidade memorizada e sinal da redução do valor probatório do depoimento.
Nesse contexto, afigura-se-nos que a decisão do tribunal não pode fundar-se essencialmente nos depoimentos por se tratar de um meio de prova frágil. Acresce que a sinceridade e credibilidade dos depoentes é, no caso, particularmente difícil de verificar e/ou afirmar, e não encontrarmos modo de justificar racionalmente que a testemunha A seja credível e a testemunha B não, ou que aquela seja mais credível que esta (tanto mais que não as observamos, embora tenhamos como certo que esses aspectos não são avaliáveis por mera observação).
Daí que a nosso ver a decisão se deve alicerçar nos meios de prova mais próximos do sinistro e de natureza documental uma vez que estes registam uma observação imutável.
Afiguram-se-nos essenciais as fotografias juntas pela ré com a contestação sob os nos 8 a 10, as quais foram retiradas pelo operador da grua, com o respectivo telemóvel, a partir do local onde se encontrava na grua para a manobrar.
Estas fotografias, para além de denunciarem que o trabalhador se encontrava naquele posto de trabalho com o respectivo telemóvel à disposição, revelam à saciedade que o operador podia perfeitamente ver o local onde os trabalhadores no solo executavam as suas tarefas e presenciar a respectiva movimentação.
Revelam igualmente que a subida do trabalhador no solo ao cimo da cofragem para desengatar as correntes da grua da cofragem era feita com uso de uma escada que era encostada à cofragem depois de esta ter sido escorada com estacas metálicas, actuação que o manobrador da grua observava.
Nestas condições parece pouco provável que o sinal para o operador da grua levantar o gancho da grua fosse dado pelo trabalhador quando este ainda se encontrava nas escadas no cimo da cofragem. O risco inerente à livre deslocação das correntes de ferro que serviam para ligar o gancho da grua à cofragem uma vez posta a grua em movimento, ainda que vertical, associada à instabilidade da escada, tornavam essa opção muito perigosa e desaconselhável, razão pela qual não se mostra suficiente demonstrada a afirmação do manobrador da máquina de que lhe foi dado sinal para içar o gancho da grua.
Aliás, este manobrador incorreu numa manifesta contradição no seu depoimento: por um lado, referiu que se tivesse visto o trabalhador se teria apercebido que ele não tinha soltado uma das correntes, por outro lado, referiu que iniciou a manobra depois de ter recebido indicações do trabalhador, o qual, é consensual, ainda se encontrava na escada e, portanto, se tivesse feito sinal ao manobrador tê-lo-ia feito antes de começar a descer as escada já que para descer as escadas necessitava das mãos para se segurar.
O manobrador da grua estava a realizar aquela tarefa, não estava a realizar qualquer outra; a grua estava a segurar aquela cofragem não outra; pelo que era só nela e no sinistrado que o manobrador tinha de estar concentrado e, afinal, segundo o seu próprio depoimento não estava.
Os outros meios de prova essenciais são os relatórios juntos aos autos, um pela autora com a petição inicial, o outro em 21.09.2020 já no decurso da audiência e por iniciativa do tribunal.
O primeiro vale essencialmente por conter o registo de declarações prestadas poucos dias depois do acidente pelo trabalhador sinistrado, pelo encarregado I… e pelo colega de trabalho do sinistrado O…, as quais se encontram escritas pelos próprios, não constituindo um mero relato do averiguador do sinistro.
Destes depoimentos retira-se que o sinistrado estava a descer a escada para depois libertar a outra corrente que ainda estava presa à cofragem e que a manobra do operador da grua foi feita intempestivamente e sem prévio sinal ou indicação das pessoas no solo.
O outro relatório menciona igualmente que o procedimento que o sinistrado estava a executar consistia em descer a escada depois de desengatar um dos cadeados para ir desencadear o outro cadeado que prendia a grua à cofragem. Pese embora também mencione que o manobrador da grua alegou de imediato que recebeu indicação «dos trabalhadores» para elevar o painel, o documento tem a virtualidade de mostrar que para a fiscalização da obra o procedimento descrito pelo sinistrado não foi anómalo ou estranho, ao invés do facto de a grua ter sido movimentada antes da libertação de ambas as correntes.
Estes meios de prova devem, na nossa leitura, prevalecer sobre o conjunto dos depoimentos, por serem contemporâneos dos factos e não terem sofrido a erosão do tempo e as respectivas consequências ao nível da memória das testemunhas. Dos mesmos retiramos prova suficiente de que o sinistrado estaria de facto a descer a escada para a posicionar noutro local e a subir de novo para ir soltar a outra corrente.
Este facto possui, aliás, verosimilhança intrínseca se tivermos presente que naquele caso a cofragem estava a ser movimentada em duas metades separadas (não por inteiro, com as quatro faces unidas formando um paralelepípedo, mas com apenas duas faces unidas, formando um L a que se juntariam depois já no local as outras duas faces unidas entre si) e que a grua apenas tinha colocado no destino uma dessas metades, a qual não podia ter a estabilidade do conjunto inteiro e, por isso, em condições de normalidade, para chegar ao ponto onde a segunda corrente estava ligada, o sinistrado não usaria a plataforma no topo da cofragem (a qual só seria usada depois de estar colocada por inteiro a cofragem e estar feita a respectiva estabilização para ser betonada) e necessitava de ter cuidado com o local onde encostava a escada móvel para subir e desengatar as correntes.
Pese embora subsistam algumas dúvidas, mas também por ser quase inevitável que as mesmas existam um caso como este, em que os diversos trabalhadores estão ocupados com outras tarefas e por isso, com excepção do colega de trabalho do sinistrado que não foi ouvido no processo como testemunha mas cuja versão é referida no primeiro relatório mencionado, não observaram directamente os gestos do sinistrado e do manobrador, entendemos que a prova produzida é suficiente para julgar provado o seguinte facto que substitui o facto do ponto 17 e incorpora parte do ponto d) objecto da impugnação da recorrente:
«17) Nesse momento, o operador F…, sem ter recebido sinal para o efeito e sem atentar que E… ainda não tinha soltado a totalidade das correntes que prendiam a cofragem à grua e descido para o solo, accionou a grua, levantando a corrente que permanecia por desprender.»

B] da matéria de direito:
A acção foi julgada improcedente em 1.ª instância essencialmente por se ter entendido que não estava demonstrada a ilicitude e culpa do manobrador da grua na produção do acidente de trabalho que vitimou o trabalhador segurado da autora.
A recorrente defende que em resultado da alteração da matéria de facto provada devem julgar-se verificados todos os pressupostos que permitem atribuir ao referido manobrador a culpa exclusiva do sinistro.
Salvo melhor opinião, a matéria de facto julgada provada em 1.ª instância já permitia concluir que o manobrador praticou um acto ilícito e culposo.
A ilicitude, aliás, não estava em causa, na medida em que a causação de uma ofensa à integridade física do trabalhador com a movimentação da grua não pode deixar de integrar a violação de um direito subjectivo e, portanto, integrar a previsão de ilicitude da primeira parte do artigo 483.º do Código Civil.
O que se podia portanto discutir era somente a culpa, isto é, o nexo de imputação do facto ao lesante (Artigo 483.º do Código Civil: «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar...).
A culpa, enquanto juízo de censura ético-jurídico dirigido à actuação do agente, decorre da violação dos deveres de cuidado pressupostos pela ordem jurídica, ou seja, da circunstância de o agente não adoptar a prudência do bom pai de família, não actuar conforme actuaria o bom pai de família nas concretas circunstâncias com que se depara, de modo que lhe fosse exigível que actuasse de outro modo.
Nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, página 514, «agir com culpa é actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito, o que se verifica quando ele podia e devia ter agido de outro modo. Por outras palavras, a culpa exprime um juízo de reprovação ou de censura normativa da conduta do agente baseado quer em inconsideração, imperícia ou negligência, que na inobservância de preceitos legais ou regulamentares».
A conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo. Esse outro modo que serve de referência conformadora é afinal o modo como agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias, o modo como actuaria, em iguais circunstâncias, um tipo médio, dotado de mediana inteligência, diligência e sagacidade, colocado na posição do autor do facto – art.º 487º, nº 2, do Código Civil –.
A culpa pode revestir duas modalidades: o dolo ou a negligência ou mera culpa. Age com dolo aquele que procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano, ou com intenção de ofender o direito de outrem (dolo directo), mas também aquele que não querendo directamente o facto ilícito, todavia o previu como uma consequência necessária, segura, da sua conduta (dolo necessário), ou prevendo-o apenas como um seu efeito possível, se conformou com a possibilidade da respectiva verificação (dolo eventual).
Age com negligência aquele que não procede com o cuidado e diligência a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz e que representa as consequências possíveis da sua actuação mas confia que elas não ocorrerão (negligência consciente) ou nem sequer chega a representar a possibilidade dessas consequências (negligência inconsciente). Pressuposto indeclinável da negligência é que o agente tenha capacidade para proceder com os cuidados que segundo as circunstâncias estariam indicados para afastar o perigo dessas consequências.
O que nos revelava já a matéria de facto?
• Estava a ser executado um trabalho de colocação de cofragens para betonagem no local de execução de pilares com uso da cofragem.
• O trabalho estava a ser executado pelo trabalhador E…, no solo, e com uma grua manobrada por F….
• E… tinha por missão ligar as correntes que seguravam a cofragem à grua e depois de o manobrador da grua levantar a cofragem e a deslocar para o destino, libertar as ditas correntes para desprender a cofragem da grua.
• E… colocou as correntes na cofragem, tendo esta sido içada pela grua, com o recurso às duas correntes, e colocada no local a que se destinava.
• Depois disso, E…, com recurso a uma escada, subiu ao pilar da cofragem e retirou a primeira corrente, após o que iniciou a descida pela escada quando ainda se encontrava por soltar a outra corrente a ligar a cofragem à grua.
• Nesse momento F… accionou a grua, levantando essa corrente e fazendo com que a cofragem começasse a rodar e, com ela, a escada onde se encontrava o sinistrado, o qual para evitar ser projectado contra as vigas e ferragens saltou para o chão, vindo a sofrer uma fractura ao embater no solo.
Perante estes factos, a nosso ver, já era possível imputar ao manobrador da grua a culpa exclusiva do sinistro, por ser evidente que este movimentou a grua antes de o poder fazer, antes de a grua estar totalmente liberta da cofragem de modo a não perturbar a respectiva posição e estabilidade.
Em condições normais, para se executar um determinado acto é necessário que o respectivo autor saiba ou tenha condições para saber que o pode executar em condições de segurança. O manobrador da grua sabia seguramente que não podia colocar a grua de novo em movimento enquanto esta não estivesse livre das correntes. No caso demonstrou-se que colocou a grua em movimento quando esta ainda estava presa à cofragem por uma das correntes, ou seja, quando não podia ser colocada em movimento sem gerar perigo para as pessoas que no solo estavam junto da cofragem a executar outros actos.
Para afastar a respectiva culpa o manobrador devia, então, apresentar uma justificação para ter realizado essa manobra nessas condições ou momento mas teria de a demonstrar, sob pena de se concluir que actuou de modo negligente, sem o cuidado que lhe era exigível. Para o efeito o manobrador podia sustentar que não lhe cabia a si decidir sobre a colocação da grua de novo em movimento e/ou verificar se estavam reunidas as condições para que tal ocorresse, que essa decisão era tomada por outrem e transmitida a ele, que essa indicação lhe foi transmitida e que executou o movimento da grua em obediência à indicação recebida. Não estando isso demonstrado, parece-nos que não podia deixar de se concluir pela responsabilidade exclusiva do manobrador da grua no acidente causado com esse movimento, a título de culpa, porque em princípio, repete-se, nada se provando em contrário, é sobre o agente que recai o ónus de verificar as condições de segurança inerentes à actuação que vai praticar.
Ainda que assim não fosse, a alteração da decisão sobre a matéria de facto provada elimina, a nosso ver, qualquer dúvida sobre a culpa exclusiva do manobrador da grua.
Segundo está agora julgado provado, o operador da grua, sem ter recebido sinal para o efeito e sem atentar que o trabalhador no solo ainda não tinha soltado a totalidade das correntes que prendiam a cofragem à grua e descido para o solo, accionou a grua, levantando a corrente que permanecia por desprender.
Está pois agora assente que a operação foi efectuada pelo manobrador da grua sem ordem de terceiro que devesse seguir e sem prévia fiscalização das condições de segurança para a sua execução, sendo certo que, como referido aquando da motivação da decisão sobre a matéria de facto, do ponto onde se encontrava o manobrador tinha a visão e o campo de observação que se detectam nas fotografias juntas com a contestação e tiradas nos instantes seguintes pelo próprio operador com utilização do seu telemóvel.
Concluímos pois que se encontram demonstrados todos os pressupostos para imputar ao manobrador da grua, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a responsabilidade pelas consequências danosas sofridas pelo trabalhador E…: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade. E, consequentemente, também os pressupostos do direito de sub-rogação da autora no direito do lesado contra o responsável pelo acidente, previsto no artigo 17.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
No caso, essa responsabilidade recai sobre o manobrador da grua ao abrigo do disposto no artigo 483.º do Código Civil, e sobre as entidades para as quais este prestava a sua força laboral, seguindo instruções e executando ordens, numa relação de comissão, ao abrigo do disposto no artigo 500.º do Código Civil.
Pese embora o manobrador da grua estivesse no desempenho da sua actividade laboral ao abrigo de contrato de trabalho celebrado com a empresa de trabalho temporário e aqui interveniente principal G…, SA., e se encontrasse a exercer as suas funções laborais no local, mediante um contrato de cedência de força laboral celebrado entre a empreiteira geral, a ré C…, S.A., e a referida entidade patronal do manobrador, entende-se que ambas estas empresas possuíam uma relação de comissão sobre o aludido trabalhador uma vez que a relação de comissão se basta com a existência de um vínculo que subordina uma pessoa às ordens, instruções e orientações de outrem em prol dos interesses e benefícios deste.
A comissão é, com efeito, uma relação entre duas pessoas que se traduz no exercício de determinadas tarefas por uma delas por conta e sob a direcção da outra, dispondo o comitente, no âmbito dessa relação, do poder de orientação, de direcção, de supervisão ou de determinação quanto ao modo e às circunstâncias em que o comissário exerce as tarefas. O comitente não apenas beneficia da actividade do comissário, como sobretudo encontra-se em condições de poder influenciar e controlar essa actividade.
Nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações Em Geral, Vol. I, página 599, a propósito da responsabilidade objectiva do comitente consagrada no artigo 500º do Código Civil, «a comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo
Nessa medida, a comissão pode traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, o que importa não é a extensão da relação, é o poder de dar instruções ou ordens, pois é este poder que justifica a responsabilização do comitente, independentemente de culpa própria, pelo risco da actividade do outro. Traduzindo-se a relação de comissão num vínculo de autoridade e de subordinação correspectivas, tanto pode o comissário ser um mandatário como um simples serviçal ou assalariado, ou qualquer encarregado, gratuita ou onerosamente, da prestação dum serviço ou comissão – necessário é que exista uma relação de subordinação ou dependência do comissário perante o comitente (quem dá ordens, instruções e fiscaliza o desempenho).
Tal constatação não é afastada pelo regime jurídico do trabalho temporário.
Este foi regulado entre nós pela primeira vez no Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro. Afirmava-se no preâmbulo deste diploma que «o contrato de trabalho temporário caracteriza-se por ser um “(…) contrato de trabalho «triangular» em que a posição contratual da empregadora, é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário (que contrata, remunera e exerce poder disciplinar) e o utilizador (que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra os seus quadros e exerce em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e de direcção próprios da entidade empregadora».
A relação tripolar do trabalho temporário caracterizava-se por caber à empresa de trabalho temporário a posição jurídica de empregador e as respectivas obrigações contratuais, nomeadamente remuneratórias, com encargos sociais e com a contratação do seguro de acidentes de trabalho, caber ao utilizador, por delegação da empresa de trabalho temporário, a direcção e organização do trabalho, e caber ao trabalhador temporário o acatamento das prescrições do utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho.
Presentemente, o regime jurídico do trabalho temporário consta dos artigos 172.º a 192.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, sem alterações significativas em relação ao regime pretérito.
A interpretação deste regime é feita no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2013, publicado no Diário da República n.º 45, Série I, de 05-03-2021, onde se escreveu o seguinte:
«O regime do trabalho temporário caracteriza-se pelo desdobramento do estatuto da entidade empregadora entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador, mantendo o trabalhador um vínculo com a empresa de trabalho de temporário, mas ficando a prestação de trabalho sujeita ao poder de direcção do utilizador, ou seja do destinatário da prestação de trabalho.
Como refere Maria Regina Gomes Redinha, «o engenho doutrinal forjou, pragmaticamente, a única saída conciliatória e, conferindo a titularidade do vínculo jurídico-laboral à ETT, admitiu a partilha do conteúdo do estatuto de empregador pela ETT e pelo utilizador», «sem cair na redutora simplificação que seria a consideração da ETT como mero empregador de jure e a empresa utilizadora como empregadora de facto, a solução passa por recortar o conjunto de posições activas e passivas que constituem a esfera do empregador de modo a atribuir à ETT a quase totalidade das obrigações patronais e ao utilizador a quase totalidade das respectivas prerrogativas»[..].
Na síntese de Guilherme Dray[..] «o trabalho temporário caracteriza-se, assim, por dois aspectos: por um lado, pela dissociação entre o empregador (ETT) e a pessoa individual ou colectiva que beneficia efectivamente da actividade do trabalhador temporário (utilizador); por outro lado, pela existência de duas relações jurídicas distintas: uma relação de trabalho (contrato de trabalho) entre a ETT e o trabalhador e uma relação obrigacional de direito comum (contrato de prestação de serviço) entre a ETT e o utilizador, circunstância que confere natureza especial ao regime de trabalho temporário».
Deste modo, embora a relação de trabalho se estabeleça entre o trabalhador temporário e a empresa de trabalho temporário, que é a verdadeira entidade empregadora, a conformação da prestação de trabalho vai ser assumida, não pela entidade empregadora como no contrato de trabalho geral, mas sim pela empresa utilizadora que recebe a prestação de trabalho do trabalhador cedido. Deste modo, apesar de a utilizadora receber e conformar a prestação de trabalho não tem o estatuto de entidade empregadora que continua a ser a empresa de trabalho temporário.
Resulta do disposto no n.º 2 do artigo 185.º do Código do Trabalho, que tem por epígrafe «condições de trabalho de trabalhador temporário», que «durante a cedência, o trabalhador está sujeito ao regime aplicável ao utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração do trabalho e suspensão do contrato de trabalho, segurança e saúde no trabalho e acesso a equipamentos sociais», estabelecendo, contudo, o n.º 4 do mesmo artigo, que «durante a execução do contrato, o exercício do poder disciplinar cabe à empresa de trabalho temporário».
O enquadramento da prestação de trabalho pelo utilizador justifica a sujeição do trabalhador às condições de trabalho deste, mas essa sujeição não põe em causa, conforme se disse já, o núcleo fundamental da subordinação jurídica do trabalhador à empresa de trabalho temporário.
No dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, «apesar da sua integração no seio da empresa utilizadora e da sujeição a ordens e instruções desta, em caso de incumprimento destas ordens ou instruções, o trabalhador temporário não pode ser sancionado disciplinarmente pelo utilizador, que apenas poderá requerer a sua substituição à empresa de trabalho temporário; e, de igual modo, o risco do não cumprimento do trabalhador temporário, junto da entidade utilizadora, corre por conta da empresa de trabalho temporário, que poderá ser chamada a responder pelos prejuízos causados por aquele trabalhador»[..].
Em face do exposto, não pode deixar de se reafirmar que a entidade empregadora do trabalhador em regime de trabalho temporário é a empresa de trabalho temporário, à qual se encontra vinculado pelo contrato de trabalho temporário, não existindo qualquer vínculo entre o trabalhador e a destinatária do seu trabalho, a empresa utilizadora. Mas a empresa utilizadora de trabalho temporário não é um terceiro na relação de trabalho estabelecida entre o trabalhador e a empresa de trabalho temporário que o cede ao utilizador. Conforme se referiu acima, o utilizador, como destinatário do trabalho prestado, tem o direito de enquadrar e de orientar a prestação, definindo os termos e as condições em que esse trabalho é prestado. Nesta parte, o utilizador exerce componentes do poder de direcção do trabalho que assiste em geral à entidade empregadora e é por força desta assunção de poderes que originariamente pertencem à empresa de trabalho temporário que se refere que o utilizador exerce esses poderes por delegação, neste caso, ope legis.
[…] Ou seja, se à entidade utilizadora é atribuído o poder de orientar e enquadrar a prestação do trabalho como destinatária da mesma, já a avaliação do incumprimento da normatividade que pode estar implícita nesta orientação é atribuída à empresa de trabalho temporário, essa sim, a entidade empregadora do trabalhador, titular do poder disciplinar sobre o mesmo. É este poder de enquadramento da prestação de trabalho que permite afirmar que a empresa utilizadora é uma representante da entidade empregadora do trabalhador.
De facto, exercendo a utilizadora o poder de conformação da prestação de trabalho no âmbito de uma relação de trabalho que tem num polo a entidade empregadora e no outro a empresa utilizadora, esta representa a entidade empregadora na conformação do trabalho prestado. A forma como essa conformação é feita projecta-se sobre a relação existente entre o trabalhador e a empresa de trabalho temporário, tudo se passando como se esse poder de conformação fosse assumido pela empresa de trabalho temporário.».
Sendo assim, ainda que o trabalho realizado pelo trabalhador causador do acidente de trabalho fosse executado no local segundo as ordens, instruções, comandos e fiscalização da ré C…, S.A., a empresa de trabalho temporário e entidade patronal conservava a titularidade de importantes obrigações relativamente à forma como a empresa utilizadora enquadrava o trabalhador, o poder de verificação das condições a que aquele está sujeito, o exercício do poder disciplinar, o poder de verificação da forma como o trabalho é orientado pela empresa utilizadora e do eventual incumprimento por parte do trabalhador das orientações que lhe foram definidas, bem como a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho. O acto ilícito e culposo do trabalhador consubstancia uma violação das obrigações funcionais a que está vinculado simultaneamente perante as entidades empregadora e utilizadora. Por isso a autora pode exercer o direito de sub-rogação nos direitos do sinistrado sobre ambas as empresas face à relação de comissão que ambas tinham com o terceiro responsável pelo sinistro.
Refira-se que a responsabilidade de ambas as empresas (de trabalho temporário e utilizadora do trabalho temporário) perante a autora é solidária perante a autora (artigo 507.º, n.º 1, do Código Civil), independentemente da relação que se estabelece entre elas e do modo como poderão ou não repercutir entre si essa responsabilidade (aspecto de que não se cuida na presente acção).
Procede assim o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida e, em seu lugar, condenam a ré C…, S.A., e a interveniente principal G…, S.A., solidariamente, a pagarem à autora a quantia de 24.874,60€ (vinte e quatro mil, oitocentos e setenta e quatro euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
As custas da acção e do recurso são da responsabilidade da ré e da interveniente principal, as quais vão condenadas a pagar à autora, a título de custas de parte, a taxa de justiça suportada por aquela e eventuais encargos.
*
Porto, 17 de Junho de 2021.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 625)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]