Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
613/08.2TBMDL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP20120529613/08.2TBMDL.P1
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2^SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A excepção de caso julgado, cuja finalidade é a de evitar a repetição de causas, tem como requisitos os que se mostram definidos no art. 498° do Cód. Civil (identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir).
II - A autoridade de caso julgado, que se apoia no disposto no art. 673° do Cód. do Proc. Civil, funciona, por seu turno, independentemente da verificação daquela tríplice identidade, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
III - Assim, se no processo subsequente não existe nada de novo a decidir relativamente ao que fora decidido no processo precedente, porque os objectos de ambos coincidem na íntegra, ocorre a excepção dilatória de caso julgado.
IV - Já se o objecto do processo anterior não abarca na sua totalidade o objecto do processo posterior e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo anterior, havendo, porém, uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objectos, ocorre a autoridade do caso julgado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 613/08.2 TBMDL.P1
Tribunal Judicial de Mirandela – 2º Juízo
Apelação
Recorrente: B…
Recorrido: “C…, Lda”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
A autora B…, residente na Rua …, nº .., .º, Mirandela, instaurou acção declarativa de condenação, na forma de processo ordinário (que viria a ser corrigida para forma de processo sumário) contra a ré “C…, Lda.”, com sede em …, Mirandela.
Alegou que a ré lhe vendeu materiais de construção, cujo preço pagou.
Porém, em 23.11.2004, a ré instaurou contra si uma acção executiva, apresentando como título executivo uma declaração de dívida, alegadamente assinada pela autora.
Sucede que a referida declaração de dívida não foi assinada por si, do que só teve conhecimento em 28.9.2007, pelo que não invocou a falsidade do título na oposição à execução.
A instauração da referida execução, com base em declaração de dívida não assinada por si, causou-lhe prejuízos de ordem não patrimonial, que computa em 30.000,00€.
Pretende assim que a ré seja condenada a pagar-lhe a referida quantia de 30.000,00€, bem como o que resultar em execução e liquidação da eventual sentença condenatória proferida no âmbito da execução nº 1290/04.5 TBMDL, que corre termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela.
A ré contestou, invocando, em primeiro lugar, as excepções de litispendência e de caso julgado, com o que pediu a sua absolvição da instância. Subsidiariamente invocou também a prescrição do direito invocado pela autora e, com este fundamento, pediu a sua absolvição do pedido.
Mais pediu a condenação da autora, como litigante de má fé, em multa e em indemnização a seu favor, a fixar em quantia não inferior a 1.750,00€.
Em resposta à contestação, a autora pediu a improcedência das excepções invocadas e a condenação da ré como litigante de má fé em multa e indemnização.
Por despacho constante de fls. 252 e segs. foi julgada parcialmente procedente a excepção de caso julgado invocada pela ré e esta absolvida da instância relativamente ao pedido de condenação no pagamento do que resultasse em execução e liquidação da sentença proferida na execução n º 1290/04.5TBMDL.
Mais se determinou o prosseguimento dos autos quanto ao primeiro dos pedidos formulados (pagamento da quantia de 30.000,00€ relativa a danos não patrimoniais) e, nessa perspectiva, seleccionou-se a matéria fáctica assente e organizou-se a base instrutória.
Tendo havido reclamação da base instrutória apresentada pela ré, o Mmº Juiz “a quo”, por força da autoridade do caso julgado, deferiu-a por despacho de fls. 311 e segs., eliminando os pontos 1 e 2 da base instrutória e aditando aos factos assentes um outro sob a letra J com a seguinte redacção:
“A declaração de dívida referida em B) foi assinada pela autora”
Perante esta alteração factual, mais decidiu ser já possível conhecer do mérito da causa relativamente ao primeiro dos pedidos formulados na petição inicial, sem necessidade de produção de prova.
Nessa linha, determinou a notificação das partes para se pronunciarem quanto a tal matéria, tendo a ré manifestado o mesmo entendimento, ao passo que a autora se remeteu ao silêncio.
Por despacho de fls. 328 e segs. foi então proferida decisão que julgou também improcedente o primeiro pedido formulado pela autora na petição inicial, absolvendo a ré do mesmo.
Foram ainda julgados improcedentes os pedidos de condenação da autora e da ré como litigantes de má fé.
Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª O presente recurso vem interposto da sentença que, findos os articulados e depois de seleccionar e fixar a matéria de facto assente e a respectiva base instrutória, julgou parcialmente improcedente o primeiro pedido formulado na petição inicial, sem submeter a causa a discussão e julgamento.
2ª Não pode a ora recorrente concordar com tal decisão, nem com os respectivos fundamentos de facto e de direito.
3ª O que deu causa à presente acção foi uma alegada declaração de dívida assinada pela ora recorrente que serviu de título executivo para que a ré “C…, Lda” instaurasse uma acção executiva contra a ora recorrente.
4ª No entanto, a ora recorrente na oposição que deduziu à referida acção executiva não invocou a falsidade da declaração.
5ª Só quando a ora recorrente soube que o título que tinha dado causa à execução era uma declaração de dívida alegadamente por si assinada, é que imediatamente arguiu a falsidade da assinatura aposta na referida declaração.
6ª A instauração da dita execução pela ré com base num título falso causou à ora recorrente inúmeros e avultados prejuízos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais, peticionados na presente acção, objecto de recurso.
7ª Resulta claramente da petição que não sendo a autora a assinar a referida declaração de dívida, esta só poderia ter sido feita pelos responsáveis da ré, como de resto resulta, quer da queixa crime, junta aos autos como doc. nº 2, quer da execução interposta com base naquela declaração.
8ª Além de resultar dos autos e dos documentos juntos que a ré “C…, Lda” foi a única e exclusiva beneficiada com a alegada falsidade daquela declaração.
9ª Sendo evidente que aquela declaração só tem eficácia entre as partes, só pode ser invocada como prova plena pelo declaratário (“C…, Lda”) contra a declarante (ora recorrente).
10ª Mesmo partindo do pressuposto que a assinatura da declaração era da autoria da ora recorrente, não pode signicar que aceite tudo o que dela conste, pois a eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas, que pode até ser afastada por prova testemunhal.
11ª O que só poderia ser demonstrado em audiência de discussão e julgamento.
12ª A ora recorrente requereu na presente acção um exame pericial à letra da referida declaração.
13ª É óbvio que o resultado do referido exame à letra é fundamental e essencial para a descoberta da verdade material e para o sucesso da presente acção.
14ª Porque, a provar-se a dita falsidade da assinatura constante da declaração significaria que aquela teria sido feita por um dos responsáveis da ré, porque foi esta a única a retirar o benefício da falsidade da declaração.
15ª Assim, não pode de maneira alguma a recorrente concordar com os fundamentos constantes na douta sentença, nomeadamente na página 7ª, 1º 2º e 3º parágrafos.
16ª Porque como supra dissémos e demonstrámos, foi a ré que deu aquela declaração como título executivo e com base nela penhorou bens à autora e daí retirou os consequentes benefícios.
17ª Ao decidir a sentença que não se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, porque a ora recorrente não imputa à ré a assinatura da referida declaração, o que não corresponde à verdade, conforme supra demonstramos e consta dos articulados, incorreu a sentença em violação do disposto no art. 483º e 376º ambos do CC, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
Pretende assim que se determine o prosseguimento da presente acção.
Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.
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Aos presentes autos, face à data da sua entrada em juízo, é aplicável o regime de recursos resultante do Dec. Lei nº 303/2007, de 24.8.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º – A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se, relativamente à pretensão formulada pela autora, a 1ª Instância decidiu acertadamente ao não considerar preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual [o que, neste caso, se prende com a análise da figura da força e autoridade do caso julgado].
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OS FACTOS
A matéria de facto relevante pera o conhecimento do presente recurso, que se considera assente, é a seguinte:
1. Em 23.11.2004, a aqui ré interpôs uma acção executiva contra a aqui autora, que corre termos sob o n º 1290/04.5TBMDL, no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela, apresentando como título executivo uma declaração de dívida, alegadamente assinada pela autora, em 22.3.2001, no valor de 4.827.742$00.
2. A autora recebeu a citação pessoal para os termos da referida execução com cópia do requerimento executivo e da declaração de dívida em 28.2.2005.
3. E ficou a saber que tinha o prazo de 20 dias para pagar ou para se opor à execução, e que, caso não se opusesse à execução naquele prazo e não pagasse ou caucionasse a quantia exequenda, se seguiriam penhoras dos seus bens para garantir o pagamento da quantia exequenda, acrescido de 10% das custas presumíveis da execução.
4. Ficou logo ciente que a execução movida pela aqui ré e a penhora dos seus bens a poderia abalar, fazer sofrer vergonha, angústia, desespero e uma depressão, assim como afectar a imagem da sua fábrica, onde produzia e comercializava cogumelos para vários locais do país, assim como a da marca que conseguira no mercado e que poderia fazê-la diminuir significativamente de produção e até fechar.
5. A autora deduziu oposição à execução, ali não invocando que a declaração de dívida não havia sido elaborada e assinada por si.
6. Em 10.1.2007, foram penhorados móveis à aqui autora para pagamento do valor da execução.
7. A autora desde 2002 que tem dívidas e que está em “incumprimento” das mesmas, tendo, desde então, sido contra ela instauradas três execuções pela D…, nos valores de 83.344,80€, 25.662,95€ e 8.479,56€, uma pela “E…, Lda.”, no valor de 4.798,64€ e uma pelos Serviços de Finanças de Mirandela, no valor de 23.296,19€.
8. Em cada uma daquelas execuções foram efectuadas penhoras sobre o prédio de habitação da autora, que datam de 18.4.2002, 27.6.2002, 9.1.2004, 14.6.2006 e 29.6.2007.
9. A declaração de dívida referida em 1. foi assinada pela autora.
10. A oposição à execução referida em 5., por sentença transitada em julgada, foi julgada improcedente.
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O DIREITO
A autora, através da interposição do presente recurso, vem pugnar pelo prosseguimento dos autos, insurgindo-se contra a decisão de julgar improcedente o pedido que havia formulado, em primeiro lugar, na sua petição inicial (pagamento da quantia de 30.000,00€ por danos não patrimoniais sofridos em virtude da ré ter instaurado contra si acção executiva com base numa declaração de dívida que não assinara).
Entende assim que o Mmº Juiz “a quo” não poderia ter concluído na sentença recorrida no sentido de não se mostrarem preenchidos, “in casu”, todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
A presente acção interliga-se com a execução que a aqui ré “C…, Lda” moveu contra a ora autora e que tem o nº 1290/04.5TBMDL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela, a qual se fundou numa declaração de dívida, alegadamente assinada pela autora, em 22.3.2001, no valor de 4.827.742$00.
A autora, aí executada, deduziu oposição à execução, mas apesar de ter sido citada pessoalmente com cópia do requerimento executivo e da própria declaração de dívida, não invocou nessa oposição que tal declaração de dívida não havia sido assinada por si.
A oposição do executado, prevista no art. 813º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil, visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva.[1]
Não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, como aqui ocorre, a oposição, para além dos fundamentos especificados no nº 1 do art. 814º, na parte em que sejam aplicáveis, pode fundar-se em quaisquer outros que possam ser invocados no processo de declaração – cfr. art. 816º do Cód. do Proc. Civil.
Como já se referiu, na sua oposição à execução, a aqui autora não alegou, em momento algum, que a declaração de dívida não tivesse sido assinada por si. Invocou antes a prescrição do crédito exequendo, nos termos do disposto no art. 317º, al. b) do Cód. Civil e também o pagamento da quantia exequenda corporizada no título executivo.
Essa oposição viria a ser julgada improcedente, por sentença já transitada em julgado.
Da factualidade incluída nessa sentença consta sob o nº 2, que corresponde à alínea B) da matéria de facto considerada como assente, o seguinte:
«Com data de 22 de Março de 2001, a opoente assinou de seu punho um documento escrito em que, para além do mais, declara “estar em débito nesta data com a empresa F… situada em ….
Capital.................................. 3.435.077$00
Juros desde Maio de 98............1.392.665$00
Total......................................4.827.742$00
(Quatro milhões, oitocentos e vinte e sete mil, setecentos e quarenta e dois escudos)
Referente a facturas de 97/98, mais declaro ter recebido recibos, para levantamento de dinheiro de um projecto G… situada em … Mirandela.»
Não em virtude da excepção dilatória do caso julgado, que não se verifica relativamente ao pedido aqui em apreciação, mas sim por força da autoridade do caso julgado, o Mmº Juiz “a quo”, por despacho de fls. 311 e segs. que deferiu reclamação apresentada pela ré quanto à base instrutória, consignou na factualidade assente nos presentes autos que a declaração de dívida foi assinada pela autora.
Importa salientar que a “força e autoridade do caso julgado” não se confunde com a “excepção dilatória do caso julgado”.
Com efeito, conforme escreve Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, 3ª ed., pág. 45) “a primeira destas noções refere-se à qualidade ou valor jurídico especial que compete às decisões judiciais a que diz respeito; a segunda constitui um meio de defesa do réu, baseado na força e autoridade do caso julgado (material) que compete a uma precedente decisão judicial. Enquanto que a autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a excepção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.”
Por seu turno, Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material” - BMJ nº 325, pág. 49 e segs.) distingue esses mesmos conceitos da seguinte forma: “Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado.” (cfr. pág. 171)
Mais adiante acrescenta: “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior.” (cfr. pág. 176)
“Quando vigora a autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva e à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente.” (cfr. pág. 179)
Hoje em dia esta distinção não suscita dúvidas.
A excepção de caso julgado, cuja finalidade é a de evitar a repetição de causas, tem como requisitos os que se mostram definidos no art. 498º do Cód. Civil (identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir).
A autoridade de caso julgado, por seu turno, funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
Isto é, se no processo subsequente não existe nada de novo a decidir relativamente ao que fora decidido no processo precedente, porque os objectos de ambos coincidem na íntegra, ocorre a excepção dilatória de caso julgado. Já se o objecto do processo anterior não abarca esgotantemente o objecto do processo posterior e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo anterior, existindo, porém, uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objectos, ocorre a autoridade do caso julgado.[2]
Prosseguindo, citar-se-à de novo Miguel Teixeira de Sousa (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, págs. 578/9) que escreve: “como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.”
E mais adiante acrescenta (in ob. e loc. cit.) que “o caso julgado também possui um valor enunciativo: essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.”
De tal modo que se deverá concluir que na expressão «precisos limites e termos em que julga», utilizada no art. 673º do Cód. do Proc. Civil[3] para definir o alcance do caso julgado, estão compreendidas todas as questões solucionadas na sentença e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.[4]
Regressando ao caso concreto, o que se constata é que no âmbito do proc. nº 1290/04.2 TBMDL-A foi dado como provado que a assinatura constante da declaração de dívida que serve de título executivo foi aposta pela aqui autora.
Sucede que este fundamento factual atinente à assinatura da declaração de dívida está directamente conexionado com o objecto da presente acção em que a autora (executada no processo anterior) alega não ter efectuado tal assinatura.
Com efeito, a autora faz assentar a sua pretensão nos presentes autos na alegação de que não assinou a declaração de dívida e que procedeu ao pagamento da quantia exequenda, donde resultaria não ser devedora da mesma, pedindo, nessa base, que lhe seja paga a quantia de 30.000,00€ por danos não patrimoniais sofridos.
Só que esta pretensão em tudo é contrariada pelos factos que foram dados como provados na oposição à execução (proc. nº 1290/04.2 TBMDL-A) e que conduziram à sua improcedência.
Verifica-se, pois, que, muito embora o objecto do processo anterior não englobe integralmente o objecto do processo posterior, existe entre os dois, de modo manifesto, uma relação de dependência.
Ou seja, os fundamentos de facto que determinaram o fracasso da oposição à execução condicionam decisivamente a apreciação da pretensão que foi deduzida pela autora nestes autos.
Não pode, por isso, vir agora discutir-se a questão da assinatura da declaração de dívida quando no anterior processo se deu como provado que a mesma havia sido aposta pela aqui autora.
A força e autoridade do caso julgado atinente à sentença proferida no proc. nº 1290/04.2 TBMDL-A, que abrange tanto a parte decisória como os fundamentos de facto e de direito que constituíram pressupostos da decisão, condiciona a apreciação da pretensão formulada pela autora nos presentes autos.
Neste sentido, não nos resta senão concluir que não poderá voltar a apreciar-se aqui a questão da assinatura aposta na declaração de dívida que serve de base à anterior execução.
Por esse motivo, na decisão recorrida o Mmº Juiz “a quo” julgou improcedente o pedido deduzido pela autora no sentido de ser-lhe paga a quantia de 30.000,00€ em virtude de danos não patrimoniais que alegadamente terá sofrido e que radicavam precisamente na alegação de que não teria assinado a declaração de dívida.
Para tal considerou não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, matéria em que rege o art. 483º, nº 1 do Cód. Civil, cuja redacção é a seguinte:
«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
São elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente – um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana -, pois só quanto a factos desta natureza têm cabimento a ideia de ilicitude, os requisitos da culpa e a obrigação de reparar o dano, nos termos em que a lei a impõe. Excluem-se assim do conceito de facto voluntário as causas de força maior e as circunstâncias fortuitas invencíveis, que não são passíveis de controlo por parte da vontade humana.
A ilicitude consiste na infracção de um dever jurídico, podendo traduzir-se na violação do direito de outrem, ou seja, na infracção de um direito subjectivo ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
A imputação do facto ao lesante significa que é necessário que o agente tenha agido com culpa. Para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal; é necessário ainda que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa. E agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
Requisito da existência da responsabilidade civil é ainda a verificação de um dano ou prejuízo a ressarcir. Isto é, para que haja obrigação de indemnizar é condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém.
Por último, além do facto e do dano, exige-se que entre estes dois elementos exista uma ligação: que o facto constitua causa do dano. Não há que ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão só os que ele tenha na realidade ocasionado, os que possam considerar-se pelo mesmo produzidos.[5]
O direito da autora a ser indemnizada obrigava ao necessário preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que acabaram de se enunciar.
Contudo, tal como se refere na decisão recorrida, da factualidade que terá de se considerar como assente em virtude da força e autoridade do caso julgado não consta matéria que se possa subsumir à existência de um facto ilícito e culposo e de um qualquer nexo de causalidade entre o mesmo e os danos invocados.
Aliás, a autora apoiou a pretensão formulada nos presentes autos no facto da aqui ré ter proposto uma acção executiva fundada numa declaração de dívida que não teria sido assinada por si, acontecendo que, por força da autoridade do caso julgado formado no proc. nº nº 1290/04.2 TBMDL-A, viria a ser dado como provado precisamente o contrário – que tal declaração de dívida foi assinada pela autora.
Por esse motivo, sempre a pretensão indemnizatória da autora estaria votada ao fracasso, de tal forma que o recurso de apelação por si interposto também não poderá deixar de improceder.
Com ele, visava a autora o prosseguimento dos autos e a consequente realização de um exame pericial à letra constante da declaração de dívida. Isto é, procurava que se discutisse nestes autos a questão da autoria da assinatura que fora aposta nessa declaração, que alegava não ser sua.
Só que, por tudo o que atrás se expôs, esta questão acha-se solucionada e todas as considerações que são feitas pela autora/recorrente nas suas alegações se encontram de antemão condenadas ao insucesso, por pressuporem em aberto a dita questão da assinatura aposta na declaração de dívida.
Antes de finalizar, embora “a latere”, não queremos deixar de registar a nossa surpresa perante a conduta processual da aqui autora, que tendo sido citada para os termos da execução, com cópia do requerimento executivo e da declaração de dívida, em 28.2.2005, vem depois a deduzir oposição, na qual, em momento algum, invoca que não tenha assinado a declaração de dívida.
Aceita, aliás, a veracidade dessa assinatura, que é, por isso, incluída na matéria fáctica assente na oposição à execução sob a alínea B).
Por conseguinte, confirmar-se-à a sentença recorrida.
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Sintetizando:
- A excepção de caso julgado, cuja finalidade é a de evitar a repetição de causas, tem como requisitos os que se mostram definidos no art. 498º do Cód. Civil (identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir).
- A autoridade de caso julgado, que se apoia no disposto no art. 673º do Cód. do Proc. Civil, funciona, por seu turno, independentemente da verificação daquela tríplice identidade, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
- Assim, se no processo subsequente não existe nada de novo a decidir relativamente ao que fora decidido no processo precedente, porque os objectos de ambos coincidem na íntegra, ocorre a excepção dilatória de caso julgado.
- Já se o objecto do processo anterior não abarca na sua totalidade o objecto do processo posterior e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo anterior, havendo, porém, uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objectos, ocorre a autoridade do caso julgado.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora B…, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da autora/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 29.5.2012
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
________________
[1] Cfr. Lebre de Freitas, “A Acção Executiva depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pág.171.
[2] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 13.1.2011, p. 2171/09.1 TBPVZ.P1, disponível in www.dgsi.pt; Ac. Rel. Guimarães de 5.2.2009, CJ, ano XXXIV, tomo I, pág. 301 e segs.; Ac. STJ de 26.1.1994, BMJ nº 433, 515.
[3] É a seguinte a redacção do art. 673º: «A sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.»
[4] Cfr. neste sentido, por ex., Ac. STJ de 22.4.2008, p. 08A778, in www.dgsi.pt., Ac. STJ de 30.4.1996, CJ STJ, Ano IV, Tomo II, págs. 48/50; Ac. STJ de 6.2.1996, BMJ nº 454, págs. 599/606; Ac. Rel. Coimbra de 22.1.1997, CJ, Ano XXII, Tomo I, págs. 22/25; Ac. Rel. Porto de 9.9.2008, p. 0820709, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Sobre os pressupostos da responsabilidade civil cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 471 e segs. e Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., págs. 557 e segs.