Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18093/21.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CITAÇÃO
DILAÇÃO A ACRESCER AO PRAZO LEGAL
EFEITOS
INIBIÇÃO DE PROPOR NOVA ACÇÃO PARA APRECIAÇÃO DA MESMA QUESTÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RP2022042118093/21.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O erro consistente na indicação ao réu, no ato de citação, de uma determinada dilação a acrescer ao prazo legal de oposição, não o pode prejudicar, beneficiando então dessa dilação, por respeito pelos princípios da segurança jurídica e da proteção a confiança, da transparência e da realidade processual (art.ºs 157º, nº 6 e 191º, nº 3, do Código de Processo Civil).
II - O legislador vai mais longe do que acontece com os pressupostos da litispendência quando, nos termos do art.º 564º, al. c), do Código de Processo Civil, inibe o réu de propor contra o autor ação destinada à apreciação da mesma questão jurídica objeto de outra ação, assim prevenindo também qualquer situação que, não fosse a pendência em simultâneo de duas ações, pudesse dar origem à violação da autoridade do caso julgado.
III - Se numa primeira ação, com citação da ré sociedade, a autora vem discutir o estatuto de um determinado veículo, alegando que o possui como proprietária por lhe ter sido doado pelo administrador da sociedade, entretanto falecido, pedindo o reconhecimento desse direito de propriedade, sem qualquer ónus, não pode a demandada, através do seu novo administrador, reservar para uma segunda ação a defesa de que a posse do veículo pela autora é ilegítima, por ser ilícita a doação, e que o mesmo lhe deve ser restituído (à ali ré).
IV - Interposta uma providência cautelar como preliminar de outra ação, contra a ali autora, e decidida com inversão do contencioso, na pendência daquela primeira ação, com pedido de apreensão e entrega da posse do mesmo veículo à Requerente (ali ré), com base na sua qualidade de locatária financeira, ocorre a exceção dilatória inominada prevista no art.º 564º, al. c), do Código de Processo Civil, devendo ser ordenado o levantamento da apreensão decretada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 18093/21.5T8PRT.P1 (apelação)
Comarca do Porto - Juízo Local Cível - J 2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
I..., S.A., com NIPC ..., com sede na Travessa ..., ... Vila Nova de Gaia, intentou, a 5.11.2021, nos termos do art.º 362º do Código de Processo Civil, Procedimento Cautelar não especificado, contra
AA, com o NIF ..., residente na Rua ..., ..., ..., Porto, e na Av. ..., ..., ..., ..., alegando essencialmente --- e no que mais pode relevar para a apreciação do presente recurso --- que, na qualidade de locatária, celebrou um contrato de locação financeira relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-VX, marca BMW, Modelo ..., que, no entanto, está a ser utilizado pela Requerida sem qualquer fundamento, arrogando-se ela o direito de não o entregar à Requerente por lhe ter sido oferecido pelo anterior administrador da I..., S.A., mais se recusando a assumir a posição de locatária no referido contrato de locação.
Esta situação está a causar prejuízo à Requerente, cujo escopo é o lucro e não a oferta de veículos a quem quer que seja, para mais um veículo relativamente ao qual está privada do uso, continua a pagar as respetivas rendas, vai perdendo valor no mercado (atualmente de cerca de €220.000,00) e pode ser perdido ou sonegado pela Requerida.
Solicitou, a Requerente, dispensa do contraditório e concluiu o seu articulado com o seguinte pedido:
«Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverá a presente providência cautelar ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência ser ordenada a:
(i) Apreensão imediata do veículo com a matrícula ..-..-VX, bem como
(ii) decretada a inversão do contencioso».

Dispensado o contraditório por despacho fundamentado, foram produzidas provas e decretada a providência em diligência que teve lugar no dia 22.11.2021 (cf. ata respetiva), com o seguinte dispositivo:
«São termos em que, ao abrigo das disposições legais supra referidas, nestes autos de procedimento cautelar comum, em que é requerente I..., S.A. e em que é requerida AA, julgo o procedimento cautelar procedente e, consequentemente, decido:
A- Ordenar a apreensão e entrega à requerente, do veículo automóvel, com a matrícula ..-..-VX, Marca BMW, Modelo ..., com o número de identificação de veículo ..., a efectuar pelo Exmo. Agente de Execução indicado pela requerente;
B- Ao abrigo do disposto no art. 369 nº 1 do Código de Processo Civil, decretar a inversão do contencioso, dispensando a requerente do ónus de interpor a acção principal.
*
Custas nesta fase pela requerente (art. 539 do Código de Processo Civil), fixando-se ao presente procedimento cautelar o valor oferecido no requerimento inicial.»
25.11.2021.
Em 29.11.2021, foi junto aos autos pela agente de execução nota de citação a Requerida, como tendo ocorrido no dia 25.11.2021, com informação de dilação de 5 dias.
No dia 15.12.2021, a Requerida fez dar entrada em Juízo do requerimento de oposição, em cujos termos invocou a incompetência territorial do tribunal.
Para além disso, alegou a omissão intencional, pela Requerente, da pendência de uma ação, instaurada no dia 30.9.2021, onde aquela foi citada no dia 13.10.2021 e onde se discute a questão da titularidade do veículo, o que impede a inversão do contencioso nestes autos.
Impugnou grande parte dos factos alegados pela Requerente e alegou que o veículo estava na sua posse por lhe ter sido oferecido pelo falecido administrador da Requerente, BB.
Passou depois a Requerida a negar a verificação dos pressupostos da providência cautelar arguida pela I..., S.A., designadamente a existência de perigo de sonegação do veículo.
*
O tribunal admitiu a oposição e a possibilidade de decidir a matéria em causa sem necessidade de produção de mais provas, e ordenou a notificação da Requerente para se pronunciar quanto à matéria de exceção invocada na oposição.
A Requerente exerceu o contraditório. Invocou a extemporaneidade da oposição, alegando essencialmente que, tendo sido a Requerida pessoalmente citada a 25.11.2021, por ter estado presente no ato de apreensão do veículo, e não havendo lugar a dilação, o prazo da oposição terminou no dia 6.12.2015, não podendo a oposição ser apresentada, mesmo com pagamento de multa, para além do dia 9.12.2021.
Entendeu que, tendo sido a oposição oferecida no dia 15.12.2021, é extemporânea, devendo ser desentranhada.
Passou depois a Requerente a responder às exceções invocadas na oposição, alegando, além do mais, que o que está em causa no procedimento cautelar é a restituição da posse do veículo em relação ao qual a Requerida é locatária, e não o reconhecimento de qualquer direito de propriedade, que a Requerente bem sabe não existir. Ao longo de toda a petição inicial não foi em momento algum colocado em causa a propriedade do bem, nem foi pedida ao tribunal a restituição da posse do bem com base num direito de propriedade, mas sim no direito de fruição, característico do contrato de locação celebrado entre a Requerente e a ....
Considera a Requerente que, tratando-se de questões materialmente diferentes, não poderá afirmar-se se existe qualquer litispendência quanto ao tema, devendo ser desconsiderado tudo o que vem alegado nos artigos 10º a 15º da oposição e mantida a decisão de inversão de contencioso.
Concluiu a Requerente pela inteira confirmação da decisão judicial que decretou a providência cautelar e declarou a inversão do contencioso.
Foi proferida decisão final fundamentada que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Ponderado todo o exposto, julgo procedente a excepção inominada de inibição de propositura de acção, ao abrigo do disposto no art. 564 al. c) do Código de Processo Civil e, consequentemente, julgo procedente a oposição, determinando o levantamento da apreensão do veículo automóvel e ordenando a sua devolução à requerida, AA.
*
Custas do procedimento cautelar pela requerente, I..., S.A.;
Valor do procedimento cautelar: o oferecido com o requerimento inicial.
(…)»
*
É desta decisão que apela agora a Requerente, apresentando alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«A. No que respeita à questão prévia, cumpre ressalvar que na pronúncia à oposição da Recorrida veio a Recorrente alegar a extemporaneidade da mesma, porquanto o prazo para apresentação havia terminado em 6.12.2021 e aquela apenas foi apresentada em 15.12.2015.
B. Ora, tendo em consideração que a oposição foi apresentada passados 9 dias do término do prazo, a Recorrente pugnou pela exceção da extemporaneidade, requerendo que a mesma não fosse tida em consideração pelo Tribunal.
C. Não obstante, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a exceção apresentada, o que gera a nulidade da sentença, conforme dispõe a al. d, do nº 1, do artigo 615º do CPC, que expressamente se requer.
D. Atente-se que a matéria da extemporaneidade da apresentação da oposição, submetida à apreciação do Tribunal a quo pela Requerente, trata-se de matéria relativamente à qual o Tribunal não poderá deixar de se pronunciar expressamente, pelo que a omissão de pronúncia será geradora de nulidade da decisão judicial, sendo de extrema relevância, já que sem a oposição nem tampouco teria sido proferida a decisão recorrida.
E. No âmbito dos presentes autos veio a Recorrente requerer ao Tribunal que fosse apreciada a apreensão imediata do veículo com a matrícula ..-..-VX.
F. A causa de pedir prendia-se com o facto de a Recorrente ter um contrato de locação financeira ativo, que se encontrava a ser cumprido, não tendo a posse do bem locado.
G. Ou seja, apesar da Recorrente ser locatária do mencionado veículo não se encontrava a usufruir do mesmo, quando, na verdade, tal é um direito que lhe assiste, nos termos do nº 2 do art. 10º do DL 149/95.
H. Ora, em face de não se encontrar a usufruir do veículo e tendo interpelado a Recorrida para a entrega imediata do veículo, tendo esta recusado a mesma, veio interpor a competente ação, que o Tribunal a quo julgou procedente, ordenando a apreensão imediata do veículo com a matrícula ..-..-VX, por ter considerado bastante a prova feita quanto à existência do contrato de locação financeira, bem como por ter considerado que existia um risco sério de ocorrência de prejuízos.
I. Cumpre esclarecer que os requisitos que levaram ao decretamento da providência mantém-se e que a existência do contrato de locação – que legitima a apresentação da presente ação – nunca foi colocada em causa, nem na presente ação, nem na ação de simples apreciação.
J. Sucede que, foi a Recorrente notificada da decisão da qual se recorre por ter sido considerada procedente a exceção inominada de propositura de ação, ao abrigo do art. 564º, al. c) do CPC.
K. Tal ocorreu porque o Tribunal considerou que na ação declarativa que corre termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, sob o número 7243/21.1T8VNG, se discute a mesma questão do procedimento cautelar.
L. Ora, a decisão tomada assentou essencialmente em dois argumentos: (1) no facto de existir ação declarativa onde se discute a propriedade do bem; e (2) a Recorrente já ter sido citada para a mencionada ação.
M. Com toda a certeza, o Tribunal a quo não logrou compreender os argumentos vertidos no procedimento cautelar e na ação declarativa interposta pela Recorrida, porquanto existe uma diferença evidente no que está em causa em cada uma das ações.
N. Para tal basta analisar os pedidos que são feitos em cada uma das ações para compreender que no procedimento cautelar está em causa um direito de uso e fruição decorrente de um contrato de locação financeira e na ação declarativa interposta pela Recorrida está em causa o reconhecimento de direito de propriedade sobre o veículo.
Logo, as questões de direito são manifestamente diferentes.
O. Atente-se que na presente ação requereu-se a apreensão imediata do veículo com a matrícula ..-..-VX em estrito cumprimento do contrato de locação financeira existente com a B... e na ação de simples apreciação veio a Recorrida requerer que seja declarada como única proprietária do veículo de Marca BMW .., de matrícula ..-..-VX, livre de quaisquer ónus.
P. Ora, não sendo a Recorrente a proprietária do veículo, considera-se que a referida ação nem devia ter sido intentada contra a mesma, tanto assim é que a Recorrida já requereu intervenção principal provocada da B....
Q. Ora, sucede que no âmbito do presente procedimento cautelar encontra-se em causa o direito da Recorrente ao uso e fruição do veículo ..., em virtude de contrato de locação celebrado entre a Recorrente e a entidade que figura como proprietária do veículo para efeitos de registo - B... – conforme se poderá verificar pelo Doc. 1 junto com a petição inicial.
R. Em face do exposto nunca poderá a Recorrente aceitar o levantamento da apreensão relativamente a um veículo em relação ao qual se encontra a pagar rendas relativas a um contrato de locação financeira, que se encontra em vigor, e não usufruir do bem, porquanto não só isto significaria uma tremenda ilegalidade, como desvirtuaria por completo a ratio dos contratos de locação financeira.
S. Atente-se que o contrato de locação financeira implica que uma das partes se obrigue, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo de um bem durante um determinado período, podendo o locatário exercer opção de compra quando o contrato terminar.
T. Sucede que, uma das caraterísticas do mencionado contrato é a concessão do gozo do bem, que se repercute na atribuição de direito ao locatário sobre a defesa da integridade do bem, onde se incluí a possibilidade de lançar mão de ações possessórias, mesmo contra o locador – cfr. dispõe o art. 10º, nº 2 do DL 149/95.
U. Dúvidas não restam que o regime da locação tem subjacente o gozo e fruição de determinado bem e que o locatário tem direito a usar e fruir do bem locado, defender a sua integridade e o seu gozo e usar as ações possessórias que entender (mesmo que sejam contra o locador), portanto parece evidente que a questão que se discute nesta ação prende-se tão só com o exercício dos direitos que a lei confere ao locatário.
V. Atente-se que as questões em causa na presente ação representam apenas o prosseguimento dos direitos do locatário, que, note-se, não foram colocados em causa pela Recorrida em sede de oposição, nem na canhestra ação de simples apreciação que apresentou.
W. Assim, basta a mera análise da documentação que foi junta com a petição inicial para que se possa verificar a existência de um contrato de locação e, portanto, pela total licitude da reclamação do uso e fruição do bem, mesmo através de ações possessórias.
X. Ora, uma vez que na ação de simples apreciação não está em causa o contrato de locação financeira, não se compreende o porquê de o Tribunal a quo ter considerado que que o objeto da ação é o mesmo.
Y. Note-se que a Recorrente nunca se apresentou como proprietária do veículo, nem reclama a sua propriedade, mas apenas o direito de gozo e fruição que decorre da legislação aplicável.
Z. Efetivamente, na oposição que foi apresentada pela Recorrida, no âmbito dos presentes autos, tentou-se ludibriar o Tribunal fazendo parecer que a questão em causa no procedimento cautelar é a mesma que está em discussão na ação por si proposta, não obstante tal não corresponde à realidade.
AA. Em conclusão, a apresentação do procedimento cautelar, mais não é do que uma demonstração do zelo da locatária – que é um direito/obrigação que lhe é atribuída pelos artigos 9º e 10º do DL 149/95 -, assim como defender a posse do bem, que não tinha, em virtude de facto ilícito praticado pela Recorrida.

Sem prescindir nem conceder,
BB. Ainda que se possa supor que a ação de simples apreciação proposta pela Recorrida pudesse ser procedente, no que seria uma verdadeira aberração jurídica, tal nunca afetaria o contrato de locação financeira celebrado pela Recorrente, porquanto o contrato de locação é um contrato de caráter meramente obrigacional, porquanto não é caraterística do contrato a transmissão de propriedade, logo ainda que possa ser considerado que a Recorrida é a proprietária do bem – o que consubstanciaria uma aberração jurídica -, tal declaração será inoponível ao contrato de locação.» (sic)
Terminou no sentido de que seja considerado que:
i a decisão proferida pelo Tribunal a quo está ferida de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
ii a exceção inominada da al. c) do art. 564º do CPC foi erradamente aplicada, porquanto as ações não apreciam a mesma questão de direito, devendo substituir-se a decisão recorrida por acórdão que decida nesta conformidade.
*
A Requerida respondeu em contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto da apelação está delimitado pelas conclusões da Requerente apelante, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de junho[1]).

As questões a decidir reportam apenas matéria de Direito, sendo elas:
1. Nulidade da decisão recorrida, por omissão e pronúncia;
2. Erro jurídico na ponderação e decisão, por não verificação da exceção prevista na al. c) do art.º 564º do Código de Processo Civil.
*
*
III.
O tribunal considerou relevantes os seguintes factos:[2]
- Em 30.09.2021, a aqui requerida, AA, intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra a aqui requerente, I..., S.A., que corre seus termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia (doc. junto com a oposição);
- Com os fundamentos aí aduzidos, nomeadamente alegando ter-lhe o veículo automóvel aqui em causa sido dado por anterior administrador da ali ré e aqui requerente, conclui a petição inicial formulando o seguinte pedido (mesmo doc.):
“Nestes termos e nos mais de direito, requer-se que seja declarada procedente a presente acção de simples apreciação, declarando-se a A. como única proprietária do veículo de Marca BMW .., de matrícula ..-..-VX, livre de quaisquer ónus.”;
- Se não antes, pelo menos no dia 07.10.2021, a aqui requerente I..., S.A., tomou conhecimento da pendência daquela acção, por ter sido citada para a mesma (doc. junto com a oposição, A/R de citação);
- O presente procedimento cautelar deu entrada em juízo no dia 05.11.2021.
*
IV
Conhecendo.
1. Nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. d), além do mais, que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Esta causa de nulidade refere-se a um vício que supõe que se silencie uma questão que o tribunal deva conhecer por força do precedente art.º 608°, nº 2, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Sem que esse dever implique o abordar, de forma detalhada, de todos os argumentos, considerações ou juízos de valor trazidos pelas partes, a nulidade só ocorre quando o juiz olvida a pronúncia sobre as “questões” submetidas ao seu escrutínio pelas partes, ou de que deva conhecer por dever de ofício.
A expressão “questões que devesse apreciar”, cuja omissão integra a dita nulidade, também não abarca as alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito.
São questões os temas, os problemas concretos a decidir, e não simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
Como defendia já Alberto dos Reis, são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão[3].
Acresce que, salvo a apreciação de questões por dever de ofício, o tribunal também não pode conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. É o que resulta da própria natureza dos recursos em processo civil, que são recursos de reponderação ou revisão, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.[4]
Este vício ocorre nas situações em que a decisão não se pronuncia (não aprecia, soluciona ou decide) sobre questões cujo conhecimento se lhe impõe, devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções que oficiosamente lhe cabe conhecer.[5] A questão a decidir está, pois, intimamente ligada ao pedido da providência em correlação com a respetiva causa de pedir[6].
Alega a recorrente que o tribunal não conheceu da questão da extemporaneidade da oposição da Requerida, suscitada pela Requerente no requerimento em que, quanto àquele articulado, lhe foi facultado o exercício do contraditório.
Tem razão. Naquele requerimento de 6.1.2022, a A. alegou que a oposição da Requerida fora apresentada fora de prazo.
O primeiro despacho que o tribunal lhe fez seguir foi a decisão recorrida, completamente omissa quanto a esta questão, sem dúvida, relevante para a apreciação das questões que ali foram suscitadas que não são do conhecimento oficioso.
A decisão é nula, por omissão de pronúncia sobre aquela questão da tempestividade da oposição. Não obstante, a Relação deve conhecer dela, por força da regra da substituição ao tribunal recorrido, ao abrigo do art.º 665º, nº 1.
Vejamos então se a oposição foi apresentada fora de prazo.
Para além dos factos que o tribunal a quo transpôs para o acervo da matéria provada, relevam outros factos, de índole processual, que chamaremos à colação.
É pacífico que a oposição da Requerida foi apresentada em Juízo no dia 15.12.2021 (ref.ª 40763780).
Alega a recorrente que o prazo para a sua apresentação havia terminado no dia 6.12.2021, porque a citação pessoal foi efetuada no ato em que o veículo foi apreendido, no dia 25.11.2021, por ter estado presente a mandatária da Requerida, que assinou o auto, assim se iniciando a contagem do prazo de oposição no dia 26.11.2021.
Na decisão cautelar, que decertou a apreensão do veículo, o tribunal determinou, na sua parte final:
«Notifique, sendo a requerida notificada após a efectivação da apreensão, nos termos e para os efeitos dos arts. 366 nº 6 e 372 nº 1 als. a) e b), ambos do Código de Processo Civil.»
Segundo aquele nº 6 do art.º 366º, “quando o requerido não for ouvido e a providência vier a ser decretada, só após a sua realização é notificado da decisão que a ordenou, aplicando-se à notificação o preceituado quanto à citação”.
A Requerida constituiu mandatários e juntou a respetiva procuração aos autos no dia 29.11.2021, data em que a Sr.ª agente de execução fez juntar também informação de que a Requerida foi pessoalmente notificada no dia 25.11.2021, “com dilação de 5 dias”, a data da apreensão do veículo e entrega do mesmo à Requerente.
Daquelas informações não consta o lugar onde a Requerida foi notificada da providência (nem o lugar onde o veículo foi apreendido), mas a Requerente identificou a Requerida como tendo duas residências, uma delas numa rua da cidade do Porto e a outra em ..., uma freguesia do Município de Cascais.
A ação foi instaurada e corre termos na Comarca do Porto.
Conforme o art.º 245º, nº 1, al.s b) e c), aplicável por força do referido nº 6 do art.º 366º, ao prazo de defesa do citando acresce uma dilação de 5 dias quando o réu tenha sido citado fora da área da comarca sede do tribunal onde pende a ação, contanto que se trate de áreas situadas no território continental.
Não foi invocada nulidade da citação.
Independentemente da notificação da Requerida ter ocorrido no Porto ou em ..., a Sr.ª agente de execução concedeu-lhe expressamente a dilação de 5 dias sobre o prazo de 10 dias de que aquela dispunha para deduzir a oposição (art.º 149º, nº 1). Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes (art.º 157º, nº 6), sendo que, se a irregularidade consistir em se ter indicado para defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares (art.º 191º, nº 3).
Trata-se de uma emanação do princípio da segurança jurídica e da proteção a confiança, da transparência e da realidade processual, que sempre se impunha respeitar neste caso concreto.
Ora, notificada a Requerida no dia 25 de novembro de 2021, o termo daquele prazo, com dilação, ocorreu no dia 10 de dezembro.
Todavia, a Requerida dispunha ainda da possibilidade legal de praticar o ato num dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa, ao abrigo do art.º 139º, nº 5, al.s a), b) e c). O terceiro destes três dias corresponde ao dia 15.12.2021, precisamente o dia em que a Requerida praticou o ato de oposição, com pagamento de multa.
A oposição é tempestiva.
*
2. Erro jurídico na ponderação e decisão da exceção dilatória prevista na al. c) do art.º 564º do Código de Processo Civil
Os procedimentos cautelares, como o próprio nome indica, destinam-se acautelar direitos ameaçados, através de providências conservatórias ou antecipatórias adequadas àquele fim. Podem ser requeridas preliminarmente ou como incidente na pendência da instauração da ação principal, da qual são dependência adjetiva e substantiva, e têm natureza urgente (art.ºs 362º, 363º 364º e 373º).
Porém, através da inversão do contencioso, dá-se a possibilidade de consolidar a decisão do procedimento como definitiva composição do litígio. O juiz, mediante requerimento, na decisão que decreta a providência, pode dispensar o requerente do ónus da propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio (art.º 364º, nº 1 e 369º, nº 1).
Assim decidiu o tribunal ao decretar a providência de apreensão do veículo e a sua entrega à Requerente, dispensando-a de instaurar a ação principal.
Não obstante, a oposição da Requerida reabriu a discussão do fundamento da providência e da inversão do contencioso e, além disso, desde logo a questão que agora somos chamados a decidir, da verificação da inibição da instauração da providência ao abrigo da al. c) do art.º 564º.
De acordo com aquele preceito legal, um dos efeitos adjetivos da citação é a inibição do réu propor contra o autor ação destinada à apreciação da mesma questão jurídica.
Quando o presente procedimento cautelar deu entrada em Juízo, no dia 5.11.2021, já a aqui Requerida tinha interposto contra a aqui Requerente, em 30.9.2021, uma ação declarativa comum onde esta última foi citada no dia 7.10.2021. Portanto, mesmo antes da instauração do procedimento cautelar, já a aqui Requerente tinha sido citada naquela ação declarativa que contra ela foi proposta pela Requerida AA.
Importa saber se neste procedimento e naquela ação está em causa a apreciação de uma mesma questão jurídica. Em caso de resposta afirmativa, não há dúvida de que a aqui Requerente estaria inibida de instaurar este procedimento, devendo ser levantada a apreensão do veículo, com extinção da presente instância, por não ser admissível a repetição da causa[7].
Assim entendeu o tribunal. Mas discorda a Requerente da decisão.
Se for a mesma, no fundo, a questão jurídica debatida nas duas ações, deve sobrestar-se no processamento da segunda causa, a fim de evitar que os dois tribunais venham, inutilmente, a repetir a mesma decisão nas duas ações; o mesmo é dizer, a proferir casos julgados contraditórios (art.º 625º, nº 1).
Da eventual violação da norma da al. c) do art.º 564º pode decorrer a existência de uma situação de litispendência, pela repetição de uma causa, justificativa da extinção da instância (art.ºs 576º, nºs 1 e 2 577º, al. i), 579º e 581º, nºs 1 e 2) na ação proposta em segundo lugar, aquela em que o réu foi citado posteriormente (art.º 582º, nºs 1 e 2).
Aproximemo-nos da causa de pedir e do pedido de cada uma das duas ações.
Na primeira ação (onde em primeiro lugar foi citada a ré), instaurada pela aqui Requerida AA, esta, demandando a aqui Requerente, alegou essencialmente que, por causa da relação de amizade que unia a ali A. e o administrador da R. e a colaboração que lhe dava no tratamento de assuntos pessoais e da sociedade, aceitou a oferta que ele lhe fez do veículo BMW ....
Tendo falecido aquele administrador da ré, BB, o novo administrador, CC, solicitou a entrega do veículo à autora (aqui Requerente), alegando que o mesmo pertence à I..., S.A., estando esta sociedade a suportar as prestações relativas ao seu pagamento.
Admitiu a autora que o veículo está ainda registado em nome da I..., S.A. porque ainda não tratou de alterar a respetiva titularidade no registo automóvel. No entanto, considera-se a sua proprietária desde a data em que lhe foi doado pelo anterior administrado da ré (21.5.2021), sendo que este, apesar da doação, se responsabilizou pelo pagamento da totalidade do preço do automóvel.
Mais alegou que havia confusão entre o património da I..., S.A. e o património pessoal do BB.
A autora requereu ali que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre aquele veículo Marca BMW .., de matrícula ..-..-VX, livre de ónus, possibilitando a exibição de um título que permita o registo daquele seu direito na Conservatória do Registo Automóvel e, bem assim, a devida comunicação às finanças contra o pagamento do imposto devido.
No presente procedimento, a Requerente (ali ré) alega que, na qualidade de locatária, celebrou um contrato de locação financeira relativamente ao mesmo veículo, que está a ser utilizado pela Requerida sem qualquer causa ou fundamento válido, arrogando-se ela o direito de não o entregar à Requerente por lhe ter sido oferecido pelo anterior administrador da I..., S.A., mais se recusando a assumir a posição de locatária no referido contrato de locação.
Diz a Requerente que o seu anterior administrador não podia ter oferecido o veículo à Requerida, por o mesmo não lhe pertencer, sendo de má fé a posse daquela. Ou seja, a causa de pedir da providência foi a falta de título que legitime a posse do veículo pela Requerida e a existência do contrato de locação e a qualidade de locatária da Requerente a justificar a sua restituição.
Nessa base, o pedido da providência cautelar foi a apreensão do veículo à Requerida e a sua entrega à Requerente.
Em síntese, na primeira ação (declarativa comum), a autora invoca e pretende que lhe seja reconhecida a qualidade de proprietária do veículo, com base numa doação também justificativa da sua posse legítima; na segunda ação (a providência cautelar), a Requerente (ali ré), justifica o seu direito ao mesmo veículo e à sua posse com base num contrato de locação, negando qualquer título que legitime a posse e a propriedade do veículo por parte da Requerida, designadamente a doação ou a sua licitude.
Há litispendência quando se repete uma causa estando a anterior ainda em curso (causas simultaneamente pendentes). A litispendência tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 580º, nºs 1 e 2).
Na base da litispendência e do caso julgado está o fenómeno da repetição de uma causa.
A identidade de sujeitos supõe que as partes sejam as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (cf. art.º 581º, nº 2). Não se trata aqui, portanto, de uma mera identidade física, nem se confunde com a posição processual.
Como refere Alberto dos Reis,[8] o que conta é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial. Por isso é que o facto de numa das ações figurar como autor quem na outra figura como réu, não compromete nem destrói a identidade dos litigantes; as partes são as mesmas, embora ocupem posições diversas em cada processo.
A identidade de sujeitos, numa e noutra ação, releva do ponto de vista qualitativo.
Na definição da identidade das partes, há que atender à qualidade jurídica em que autor e réu intervêm. As partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as mesmas assumam em ambos os processos. Ocorre identidade dos sujeitos quando os mesmos são portadores do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa.
A identidade de causas de pedir verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico (cf. artigo 581º, nº 4).
É pacífico que a teoria da substanciação[9] está desde há muito consagrada no nosso processo civil: a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objeto do processo[10]. Isso mesmo decorre dos art.ºs 186º, nº 2, al. a), 552º, nº 1, al. d) e 581º, nº 4. Sem distinção da natureza do direito, todas as ações se configurarão por ambos os elementos: pedido e causa de pedir concreta.
Assim, sendo a causa de pedir o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão e não a norma em que ele a estriba[11], deve entender-se que a identidade entre os objetos de uma e de outra ação não deve ser apreciada em abstrato. A doutrina mais recente tende a regressar à utilização do conceito de tatbstand, conjugado com a ideia de que o acontecimento da vida narrado pelo autor é suscetível de redução a um núcleo fático essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido.[12]
Miguel Teixeira de Sousa[13] refere que “o caso julgado[14]abrange todas as qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento”.
Já Alberto dos Reis defendia[15], citando Chiovenda, que a causa pretendi não é a norma de lei invocada pela parte, mas os elementos de facto que converteram em concreta a vontade legal, devendo atender-se aos factos que podem ter influência na formação da vontade concreta da lei (factos relevantes). E quando se muda o simples facto material ou motivo, mas para se deduzir dele o mesmo facto jurídico, não há diversidade de ação: a exceção de caso julgado (ou a litispendência) subsiste.
A identidade de pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender o mesmo efeito jurídico (cf. artigo 581º, nº 3). Tal não significa uma adequação integral de pretensões.
Referem, a propósito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa[16]:
«(…)
Assim, se a forma como o autor se expressou na petição inicial e o modo como tal se refletiu na sentença são importantes para a aferição da identidade do pedido que foi formulado e apreciado, não deixa de ser importante o que, numa perspetiva substancial, está contido explicitamente e, por vezes, até implicitamente nessas formulações, seguindo sempre um critério orientador segundo o qual, para além de ser dispensável a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos, deve vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória.
Na definição da identidade do pedido, há que atender ao objeto das ações e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem.
A segunda ação proposta não poderá exercer uma função limitativa da primeira, nem reportar-se a uma parte não individualizada do objeto do direito[17], assim como não poderá criar uma situação contraditória com a que primeiramente é definida (ex. pedido de declaração de existência de um direito já expressamente negado).
A identidade dos pedidos é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado.[18] Ocorrerá se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter. Ocorre quando em ambas as ações se pretenda ver reconhecida a mesma consequência jurídica ou, numa outra formulação, quando a segunda ação seja proposta para exercer o mesmo direito que se exerceu mediante a primeira. A identidade de pedidos não pode ser vista em termos literais e exclusivamente formais.
Como observámos já, a exceção dilatória da litispendência visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão, com base na mesma factualidade, seja objeto de duas ou mais ações que tenham as mesmas partes e, assim, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (nº 2 do cotado art.º 580º).
Com a consagração do efeito da litispendência obsta-se à inutilidade da repetição da decisão judicial, em processos diferentes, para a mesma ação, e salvaguarda-se também o prestígio da administração da justiça contra o risco de grave dano que podia resultar do tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial.[19]
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.1.2020[20], “a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem interpretado os requisitos da litispendência de uma forma flexível, atendendo mais à identidade jurídica dos sujeitos, titulares da relação substancial, e às questões jurídicas a discutir ou ao efeito jurídico a obter, em ambas as ações, do que a aspetos mais formais ligados à posição processual das partes ou ao tipo de ação ou forma de processo”.
A litispendência e o caso julgado tornam inadmissível uma segunda ação entre as mesmas partes, com o mesmo objeto.
Feita esta introdução, estamos em crer que não ocorre no caso uma verdadeira situação de litispendência, desde logo porque na ação declarativa comum nº 7243/21.1T8VNG foi deduzido pela aqui Requerida um pedido diferente do pedido da providência cautelar que contra ela foi aqui apresentado pela Requerente. Cada uma das partes, em cada ação, deduz um pedido incompatível com o pedido efetuado pela outra, maxime no que respeita à posse ou detenção do veículo: ambas se arvoram com direito à posse exclusiva do veículo, pretendendo a autora que também lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre o veículo, sem qualquer ónus.
Também a causa de pedir é diferente. A ali autora faz assentar a sua posse e o direito de propriedade que pretende que lhe seja reconhecido na doação que alega ter sido efetuada a seu favor por um administrador da Requerente; enquanto nesta providência a Requerente defende a restituição do veículo à sua posse com base no contrato de locação financeira e na sua qualidade de locatária, sendo ilícita a doação e abusiva a detenção da Requerida.
O legislador vai mais longe do que acontece com a litispendência, quando inibe o réu de propor contra o autor ação destinada à apreciação da mesma questão jurídica (art.º 564º, al. c)). Este conceito é mais abrangente e visa mesmo prevenir qualquer situação que, não fosse a pendência em simultâneo de duas ações, pudesse dar origem à violação da autoridade do caso julgado.
Como é sabido, a autoridade própria do caso julgado pode impor-se mesmo onde não há identidade objetiva.
Defende Teixeira de Sousa que a autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial, constituindo, assim, uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior: “quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado”. A autoridade do caso julgado realça a impossibilidade da discussão em nova ação de questão que se considera definitivamente resolvida naquela (art.ºs 580º, nº 2 e 621º).
Assim, a decisão de mérito produzida num determinado processo, confirmando ou constituindo uma situação jurídica, pode, em variados casos, ser vinculativa noutros processos onde se vise a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes. Para isso, releva a existência de uma relação entre o objeto de uma e o objeto da outra que implique a possibilidade de confirmação ou de divergência ou contradição da decisão anterior com a decisão a proferir na ação posterior, seja ela de identidade (ocorre nas situações de exceção de caso julgado), seja ela de prejudicialidade ou de concurso (casos de autoridade do caso julgado).
É ainda importante salientar a tendência jurisprudencial na defesa de que uma questão essencial num primeiro processo vincula a decisão do outro tribunal que julga a segunda ação. Com a autoridade do caso julgado, os tribunais ficam vinculados às decisões uns dos outros, quanto a questões essenciais. Se a decisão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da ação, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda ação julgá-la em contrário, mesmo que a causa de pedir seja diferente.[21]
As questões essenciais são as que respeitam aos factos judiciais, os factos concretos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável e foram tornados certos através da decisão que sobre eles recaiu após transitar em julgado e estando perante as mesmas partes.
Nesta perspetiva, só as questões essenciais poderão ter a autoridade de caso julgado, o que significa que só a terão as decisões sobre questões relativas à causa de pedir da ação transitada. Mas, mesmo que a sua causa de pedir seja diferente, aquela autoridade deve impor-se na segunda ação.
Quer na sua função positiva de autoridade, quer na função negativa que impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal[22], é a necessidade de certeza do direito e da segurança das relações jurídicas que se acautela.
Como ensina ainda Alberto dos Reis[23], “desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia. …A força e a autoridade derivam … da necessidade superior de certeza e segurança jurídica”. Vale este raciocínio também em sentido inverso: não pode uma sentença posterior reconhecer um direito que uma sentença anterior negou com trânsito em julgado.
A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas, pressupondo a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.
Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.2.2012[24], citando e traduzindo De la Oliva dos Santos, Andrés[25]: “Estas exigências necessitam de um vínculo que impeça: 1) que uma controvérsia se prolongue até ao infinito; 2) que se torne a instaurar uma segunda causa sobre uma matéria já decidida em via definitiva num órgão judicial; 3) que se produzam decisões e sentenças contraditórias ou se verifique uma injusta e irracional reiteração de sentença de conteúdo idêntico no confronto das mesmas partes”.
A propósito, o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 18.4.2013[26] é lapidar:
1. O princípio da eventualidade ou da preclusão consubstanciado no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, que implica que toda a defesa deva ser deduzida na contestação, radica em razões de lealdade na condução da lide e razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que os efeitos de uma sentença transitada em julgado sejam postergados, com base em novos argumentos que nessa acção poderiam ter sido invocados, e o não foram.
2. A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.
O que se constata, no caso, é que, embora diferentes as pretensões das partes, a apreciação do pedido da ação no proc. nº 7243/21.LT8VNG e a apreciação do pedido da providência cautelar dependem da análise do mesmo conjunto essencial de factos, deste resultando a procedência ou a improcedência de algum deles. Ou seja, em ambas as pretensões, o seu sucesso depende da verificação e compreensão de factos aptos a justificar a legitimidade da posse ou detenção do veículo pela Requerente ou pela Requerida. Em ambas as ações cumpre apreciar as vicissitudes de facto e de Direito por que passou o veículo desde que entrou na esfera jurídica da Requerente com base no contrato de locação financeira[27].
Isto significa que está em causa numa e noutra ação a mesma questão jurídica, consistente na discussão e decisão do destino do veículo ..., com a matrícula ..-..-VX: se deve manter-se na posse da Requerida, por ser proprietária dele ou por qualquer outra razão, ou se deve ser restituído à Requerente por ser a sua locatária legítima e não haver motivo que justifique a sua posse ou detenção pela Requerida.
A decisão sucessiva destas questões, em ações autónomas, não seria juridicamente aceitável, por força da autoridade do caso julgado. Decidida uma delas, com trânsito em julgado, a segunda sempre seria violadora da autoridade do caso julgado imposto pela primeira. Não vemos, por exemplo, como admitir numa segunda ação, interposta pela locatária Requerente, com discussão do seu direito à apreensão e restituição do veículo com base na sua condição de locatária e detenção abusiva pela Requerida se, na primeira ação, com as mesmas partes, por hipótese, for julgado procedente o pedido da aqui Requerida de reconhecimento do seu direito de propriedade e posse legítima do veículo, disso tendo sido convencido ali o réu, por decisão transitada em julgado.
Dado o seu objeto, é na primeira ação que cumpre ao réu defender o seu direito, sob pena de preclusão. De um ponto de vista substancial, os factos essenciais relativos aos interesses e às pretensões da Requerente e da Requerida não só são os mesmos (embora parcialmente divergentes segundo a versão de cada parte) como hão de conduzir necessariamente a uma única solução, favorável a uma das partes e desfavorável à outra. Não há na segunda ação um interesse autónomo ou uma relação substancial diferente daquela que subjaz à primeira ação. A decisão de uma e de outra depende da apreciação da mesma questão jurídica: o estatuto do veículo ...; o direito da Requerente ou o direito da Requerida que sobre ele recai.
O litígio tem que ser resolvido numa única ação.
Por conseguinte, a instauração da providência cautelar, decidida com inversão do contencioso, de apreensão e entrega do veículo à Requerente, perde todo o sentido face à pendência da ação no proc. 7243/21.1T8VNG, onde a aqui Requerente já havia sido citada; assim, por uma e outra estarem destinadas à apreciação da mesma questão jurídica.
É de confirmar a decisão recorrida que, tendo julgado procedente a exceção inominada de inibição de propositura de ação (art.º 564º, al. c)) --- razões estritamente processuais --- julgou procedente a oposição e determinou o levantamento da apreensão do veículo automóvel, ordenando a sua devolução à Requerida.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, por ter decaído no recurso, sem prejuízo da taxa de justiça paga pela sua interposição (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 21 de abril de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que forem citadas sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, pág.s 142 e 143.
[4] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, 1992, pág. 175.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, V. 2º, 4ª edição, pág. 737.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2ª edição,1985, pág. 282.
[8] Código de Processo Civil anotado, volume III, pág. 101.
[9] Por oposição à teoria da individualização.
[10] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 53.
[11] Vaz Serra, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.10.1975, RLJ, ano 109, pág. 313.
[12] Veja-se o disposto no art.º 5º, nº 1, quanto ao ónus de alegação das partes.
[13] Estudos Sobre o Novo CPC, pág. 576.
[14] Por identidade de critério, também a litispendência.
[15] Código de Processo Civil anotado, Vol. III, pág. 121.
[16] Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019, Vol. I, pág.s 661 e 662.
[17] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. II, Coimbra Editora, p. 320 e 321.
[18] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.03.2007, Colectânea de Jurisprudência do STJ, Tomo I, pág. 98 e seg.s.
[19] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 301.
[20] Colectânea de Jurisprudência do STJ, T. I, pág. 5, onde são citados outros acórdãos daquele Tribunal Superior.
[21] Silva Carvalho, O CASO JULGADO Na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade – limites objectivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado?)”, in http://www.search.ask.com/web?l=dis&q=Silva+Carvalho%2C+O+CASO+JULGADO+Na+Jurisdi%C3%A7%C3%A3o+Contenciosa+%28como+excep%C3%A7%C3%A3o+e+como+autoridade+%E2%80%93+limites+objectivos%29+e+na+Jurisdi%C3%A7%C3%A3o+Volunt%C3%A1ria+%28haver%C3%A1+caso+julgado%3F%29&o=APN10644A&apn_dtid=^BND101^YY^PT&shad=s_0047&gct=hp&apn_ptnrs=AG5&lang=pt&atb=sysid%3D101%3Auid%3D01d1d3bfb415bb15%3Auc%3D1364843619%3Asrc%3Dhmp%3Ao%3DAPN10644A.
[22] que aqui nos interessa.
[23] Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág.s 94 e 95.
[24] Proc. 5182/06.5TBMTS-B.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[25] Oggetto del Processo Civile e Cosa Giudicata”, Giuffrè Editore, Milão, 2009,116-118.
[26] Proc. 2204/10.9TBTVD.L1-2, in www.dgsi.pt.
[27] Locação financeira é o contrato pelo qual uma entidade --- o locador financeiro --- concede a outra --- o locatário financeiro --- o gozo temporário de uma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador a um terceiro (o fornecedor) por indicação do locatário.