Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
550/20.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE E DA ISENÇÃO
INUTILIDADE DO CONHECIMENTO DO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO DO GERENTE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP20220405550/20.2T8STS.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É de reconhecer às partes (a par das garantias extrínsecas de imparcialidade do juiz) a faculdade de se defenderem contra a parcialidade subjectiva do juiz, que se verificará quando o juiz dá mostras, no decurso do processo, de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidencia preconceito.
II - No domínio da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem-se entendido ser inadmissível a parcialidade subjectiva, expressa em actos anteriores à decisão.
III - Se a matéria impugnada pelo recorrente não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da acção, de acordo com o direito aplicável, não deverá a Relação conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril.
IV - O instituto da litigância de má fé acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça (esse o seu fundamento ético), destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial.
V - Revelando os autos, inequivocamente, elementos que permitem concluir que o apelante, dolosamente, alterou a verdade dos factos e omitiu matéria relevante (actuação com pleno conhecimento da não correspondência do alegado à veracidade conhecida), impõe-se a sua condenação como litigante de má fé.
VI - Não fornecendo os autos os elementos para fixar, logo na sentença, a indemnização pela litigância de má, deverá o juiz (art. 543º, nº 3 do CPC) ouvir as partes e fixar posteriormente o que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável (podendo sempre reduzir aos justos limites as verbas de despesas e honorários apresentadas).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 550/20.2T8STS.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
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Apelante: AA (autor)
Apelados: S..., Ld.ª e BB (réus).
Juízo de comércio de Santo Tirso (lugar de provimento de Juiz 3) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto
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Intentou o autor AA acção especial de destituição e nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, nos termos do disposto nos art.sº 1053º e 1055º do CPC, contra S..., Ld.ª e BB, pedindo que se procedesse à imediata suspensão da BB da gerência da sociedade ré e, subsequentemente fosse nomeado o autor como gerente e decretada a destituição definitiva do cargo de gerente exercido pela segunda ré.
Alegou, em síntese, que a primeira ré é uma sociedade por quotas, de cariz familiar, que tem por objecto a serralharia civil, estruturas metálicas, fabricação e montagem das mesmas, construção civil e engenharia civil, sendo sócios o autor (com uma quota de valor nominal de 38.500,00€) e a segunda ré (com quotas de valor nominal de 31.500,00€); que após ter desempenhado funções de gerente na primeira ré, o autor renunciou definitivamente à gerência em 2014, altura a partir da qual a mesma passou a ser gerida pela segunda ré BB (por ter o autor entendido que a mesma já adquirira experiência suficiente para a condução da empresa e competente exercício da gerência), a qual, entretanto, mormente em razão de divórcio ocorrido em 2017, veio a sofrer forte instabilidade emocional, registando a partir de então diversos episódios de internamento em unidades de saúde, tomando forte medicação que a incapacita, física e psicologicamente, para a gestão diária da sociedade, assumindo atitudes que carecem de qualquer lógica comercial em claro prejuízo da estabilidade financeira da sociedade primeira ré (adoptando, desde Dezembro de 2018, conduta de claro benefício de um funcionário da empresa, CC, com quem se envolveu afectivamente, iniciando uma relação de namoro – descrevendo factos para alicerçar tal alegação, concernentes aos valores de remuneração que lhe são pagos); mais alegou que a ré BB, nos últimos doze meses, foi diversas vezes hospitalizada por episódios de tentativa de suicídio, em razão do que entende que a mesma não reunirá as necessárias aptidões para gerir a primeira ré (uma empresa com vinte e um funcionários, estando os postos de trabalho destes seriamente postos em causa). Concluiu, assim, que o deferimento da pretensão se traduz na única forma de evitar que a segunda ré, na qualidade de sócia e única gerente, se mantenha nestas funções e faça perigar o futuro da sociedade ré.
Apreciado (e indeferido) o pedido de imediata suspensão da segunda ré do cargo de gerente, apresentaram-se as rés a contestar, impugnando a matéria alegada, sustentando que a acção tem como propósito o de lograr efectivar o despedimento de um dos mais qualificados funcionários da sociedade ré (CC), não se coibindo o autor de requerer a destituição de gerente da sua filha, de alegar os problemas do foro psíquico que esta padece, que não têm influência no seu desempenho profissional e que não surgiram nos últimos anos, pois que a segunda ré padece de um quadro de depressão grave há já mais de vinte anos, conforme é do inteiro conhecimento do aqui autor. Alegam ainda que a gestão levada a efeito pela segunda ré tem sido orientada por critérios de rigor e bom ambiente no local de trabalho, e que, por virtude do aludido colaborador (CC, admitido na sociedade ré pelo autor, que também lhe foi aumentando sucessivamente o vencimento) ter vindo a desempenhar um papel preponderante no crescimento e produtividade da primeira ré, tem sido compensando a nível salarial. Concluem pela total improcedência da demanda e pela condenação do autor como litigante de má fé em multa e indemnização nunca inferior a 5.000,00€, para lá dos honorários da mandatária (pois que, com dolo intenso, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, alterando a verdade dos factos e omitindo factos relevantes, fazendo do processo uso manifestamente reprovável, com o intuito de conseguir objectivo ilegal, tentando retirar a segunda ré da gerência, não se coibindo de mentir em tribunal para conseguir os seus intentos).
Pronunciou-se o autor sobre o pedido de litigância de má fé, alegando que só peticiona o que acredita corresponder à verdade, mantendo tudo o que alegou, não se justificando a sua condenação como litigante de má fé.
Tramitada a causa, realizadas as diligências probatórias requeridas, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo as rés do pedido, condenando o autor, como litigante de má fé, na multa de 15 (quinze) UC e na indemnização de seis mil euros (6.000,00€), metade para cada uma das rés.
Irresignado, apela o autor, pretendendo a revogação da decisão, declarando-se a nulidade de todo o processo (sic) ou, em alternativa, a destituição definitiva do cargo de gerente da segunda ré, terminando as alegações concluindo:
I. A Meritíssima Juiz levou a cabo uma errada apreciação dos factos visto que ficou, na opinião do ora Recorrente mais do que demonstrado e cabalmente provado que a Ré BB estava – e está – numa condição pessoal impeditiva do normal exercício de funções na outra Ré, a S....
II. Para além disso, e durante todo o julgamento, a Meritíssima Juiz a quo adoptou uma postura, com a devida vénia, parcial, de defesa intransigente da Ré, visto que sentiu-se “na pele” desta, tendo inclusive proferido comentários depreciativos da posição do Recorrente, e manifestando a sua discordância com a atitude deste de judicialmente agir contra a sua própria filha.
III. Em diversos momentos a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo manifestou o seu desagrado em relação ao Autor, pelo que o seu comportamento revela claramente uma violação dos princípios basilares do Direito da Imparcialidade e da Isenção, o que, inevitavelmente gerará a nulidade de todo o processado.
IV. Sem prescindir, e a par com esta postura, a Meritíssima Juiz a quo qualificou erradamente como provados factos que não o foram, desde logo os factos mencionados na Sentença como Provados com o nº 12 e 18, visto que ambos foram contrariados em sede de audiência de julgamento pelas testemunhas AA e DD, demonstrando, sem margem para dúvida, qual o momento em que foi o salário do trabalhador CC alterado para o montante de 3.000,00€, ou seja, em Setembro de 2017.
V. No mesmo sentido, a Meritíssima Juiz a quo considerou de forma errada como provados os factos constantes dos pontos 16, 17 e 18 da Sentença na matéria assente, o que, com o devido respeito, nunca poderá acontecer visto que resultou da prova produzida em sede de audiência de Julgamento exactamente o contrário daquilo que a Meritíssima Juiz a quo escreveu na Sentença em apreço, pelo que não poderemos considerar tal facto como provado, pelo que deveria ter sido dado como provado exactamente o facto oposto, o de que o Autor/Recorrente considera que a situação clínica da Ré BB afecta negativamente o seu desempenho profissional.
VI. Outrossim, a este propósito sempre se dirá que é inequívoco que uma pessoa que está constantemente a levar a cabo tentativas de suicídio, constantemente a ser internada, constantemente a ser fortemente medicada, não pode – nem, convenhamos, é admissível o contrário – estar plenamente capaz de exercer quaisquer que sejam as funções, e muito menos as de Gerente de uma grande empresa.
VII. Aliás, concordando em absoluto com esta posição, está o próprio Psiquiatra da Ré BB, testemunha ouvida em audiência de Julgamento, o qual afirma, sem margem para dúvidas, que esta necessita de medicação forte para tratar e combater a sua situação crónica de depressão aguda e profunda; aliás, o próprio admite que, no âmbito dos tratamentos que prescreveu à Ré BB, a medicação era tão forte que ela nem conseguia trabalhar… curiosamente (ou não) foi a testemunha da Ré, DD, quem foi falar directamente com o Psiquiatra e solicitou – qual supermercado – que ele retirasse a medicação à BB, a fim de ela poder ir para a empresa trabalhar.
VIII. Resulta, por isso, claro e inequívoco que deveria ter sido dado como provado os factos descritos no ponto b) da matéria dada como Não Provada, sendo por demais evidente que a Ré BB está a ser “usada” por terceiros, que lhe impõem a vontade de acordo com interesses que não os seus.
IX. Considerar normal um comportamento de uma pessoa, um terceiro, que se dirige a um médico a solicitar uma alteração de medicação é, no mínimo censurável; mas o médico anuir a isso, é desrespeitoso e violador de todos os princípios que deveriam de mediar a relação privilegiada e sigilosa entre um médico e um paciente.
X. Bem sabia o médico EE, testemunha nos autos, que a situação instável da Ré BB requeria uma medicação forte; retirar essa medicação para permitir que a Ré regressasse e retomasse as suas funções na empresa é incompreensível.
XI. É inequívoco que a Ré BB padece de uma situação clínica instável, e que algumas das decisões por si assumidas poderão, no mínimo, ser questionadas; foi atestado por todas as testemunhas a existência de problemas do foro psíquico, pelo que em momento algum se poderá considerar que o Autor/Recorrente usou de má-fé ao litigar para destituir a Ré da gerência; é inquestionável a sua situação diminuída, o quantum para efeitos de decisão só ao Tribunal caberá decidir.
XII. A Meritíssima Juiz a quo na sua Sentença realizou uma errónea interpretação e aplicação quanto ao disposto no artigo 542º do Código de Processo Civil.
XIII. Se os factos que, no entendimento da Sra. Juiz a quo, tendo sido dado como provados, deverão conduzir à condenação do Recorrente como litigante de má-fé, são passíveis de serem reapreciados e, cremos, serem decididos de maneira distinta pelo Tribunal ad quem, razão pela qual o Recorrente apresenta o ponto II. do presente Alegações de Recurso.
XIV. Não poderão tais factos, ainda que dados como provados em 1ª Instância, conduzir forçosamente à condenação do Recorrente em litigância de má-fé.
XV. Aliás, sendo a matéria de facto acima elencada correctamente apreciada pelo Tribunal ad quem e, consequentemente, sendo os pontos 12. e 28., 16. a 18 dos factos provados na decisão da 1ª Instância ser correctamente interpretado, e virem a ser considerados não provados, e o ponto B. dos factos não provados vir a ser dado como provado, toda a fundamentação explanada pela Juiz a quo relativamente à condenação do Recorrente como litigante de má-fé se desmoronará.
XVI. Por outro lado, e sem prescindir de entender que foi feita prova bastante para a alteração da resposta à matéria de facto que ora se peticiona, o que per se determinará a revogação da condenação como litigante de má-fé, sempre se dirá que,
XVII. Não podem aqueles factos dados como provados alicerçarem (apenas porque se encontram em contradição com o alegado pelo Recorrente) a condenação do Recorrente como litigante de má-fé.
XVIII. Este entendimento, a nosso ver ilógico, não pode servir para imputar ao Recorrente uma imprudência grosseira, originadora da aplicação do instituto de litigância de má-fé.
XIX. Isto porque, entendem as correntes jurisprudenciais e doutrinais amplamente maioritárias que este instituto da litigância de má-fé deve estar reservado, em moldes relativamente apertados e excepcionais, para as condutas processuais inequivocamente inadequadas ao exercício de direitos ou à defesa contra pretensões.
XX. Aliás, para que se possa aplicar o artigo 542º do CPC, não basta que se verifique o erro grosseiro ou culpa grave, sendo ainda necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão conscientemente infundada.
XXI. Nesta linha de rumo, é óbvio que, ante uma situação pouco definida na lide, por os elementos disponíveis para o efeito não serem suficientemente elucidativos para que possa concluir-se com segurança, pela existência de dolo, a condenação por litigância de má-fé não deve aplicar-se.
XXII. Como tal, não estando preenchidos os pressupostos para a aplicação do preceituado no artigo 542º do CSC,
XXIII. Não pode o Recorrente ser condenado como litigante de má-fé em multa e em indemnização.
XXIV. Pelo que o Tribunal de 1ª Instância ao decidir da forma que o fez violou as normas jurídicas contidas nos artigos 542º e 543º do CPC.
XXV. Acresce que, a condenação como litigante de má-fé deve ser precedida de discussão, em obediência ao Artigo 3º nº 3 do CPC, que proíbe as denominadas “decisões-surpresa” (e, assim, injustas, ao menos em termos procedimentais).
XXVI. Assim, devia o Tribunal a quo, antes de proferir a decisão de condenação da Recorrente como litigante de má-fé, proporcionar às partes que fossem ouvidas quanto aos elementos para se fixar na Sentença a importância da indemnização.
XXVII. No entanto, apesar da manifesta falta de elementos para a fixar desde logo, o Tribunal a quo decidiu não ouvir o Recorrente quanto à importância da indemnização, nos termos do artigo 457º nº2 CPC.
XXVIII. Ora, sem prévia audição dos visados sobre tal matéria, verifica-se uma nulidade processual por inobservância do contraditório, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º nºs 2 e 3, 4º e 195º, nº1, todos do CPC
XXIX. Pelo que o Tribunal de 1ª Instância ao decidir da forma que o fez violou as normas jurídicas contidas nos artigos 3º nºs 2 e 3, e 4º do CPC.
Contra-alegaram as rés em defesa da sentença apelada e pela improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso.
Considerando a decisão recorrida e as conclusões das alegações, o objecto do recurso consiste em apreciar das seguintes questões:
- da violação dos princípios da imparcialidade e da isenção (em virtude da adopção, pela Exma. Juíza do tribunal a quo durante a audiência de discussão e julgamento, de postura parcial de intransigente defesa da segunda ré),
- da impugnação da decisão da matéria de facto,
- da verificação dos requisitos para decretar a destituição da segunda ré do cargo de gerente da primeira ré (ou seja, da existência de justa causa de destituição da gerente),
- da verificação (não verificação, como sustentado na apelação) dos requisitos para considerar o autor como litigante de má fé,
- da nulidade da sentença no segmento em que decide do montante indemnizatório pela litigância de má fé, por violação do princípio do contraditório.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
A sentença apelada considerou com interesse para a solução do litígio:
Factos provados
1- ‘S..., Ld.ª’, pessoa colectiva nº ..., com sede na Av.ª ..., ..., freguesia ... e ..., ..., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Trofa, constando da certidão da mesma como gerente BB e como sócios AA (quota de 38.500,00€), e BB (com duas quotas no valor nominal de 15.750,00€ cada uma), tudo flui do teor da certidão de fls. 24 a 30 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2- Aos 16.05.2014 consta registada a renúncia a gerente por parte do sócio AA, tendo desde então sido a requerida BB a única gerente da sociedade ré.
3- BB é filha de AA e de FF (v. assento de nascimento de fls. 30 verso-31).
4- Aos 12 de Abril de 2017, de acordo com relatório de urgência do Centro Hospitalar ... – Polo ..., deu entrada BB, com diagnóstico primário de ingestão/intoxicação por medicamentos, com a triagem de ‘muito urgente’, sendo descrita a história da doença actual como se tratando de doente com antecedentes psiquiátricos há cerca de 20 anos com depressão endógena, tendo sido relatado pelo seu então marido que seria a quarta ou quinta vez que havia feito tentativa de suicídio com ingestão medicamentosa, sendo a última há cerca de 15 dias atrás, e que a ingestão em causa teria ocorrido algures após o jantar do dia de ontem e a manhã do dia em causa quando não foi possível acordá-la, tudo conforme documento de fls. 35 a 38 dos presentes autos, que aqui se dá por reproduzido.
5- Aos 10 de Julho de 2018, de acordo com relatório de urgência do Centro Hospitalar ... – Polo ..., deu entrada BB, com diagnóstico primário de ingestão/intoxicação por medicamentos, com a triagem de ‘urgente’, sendo descrita a história da doença actual como se tratando de doente que é transferida do Hospital 1..., trazida pela SIV após ter sido encontrada em casa por volta das 22 horas pela filha, inconsciente, com a face sobre o vómito; realizada lavagem gástrica no local, tendo a paciente referido que tomou 51 comprimidos da sua medicação habitual (não sabia precisar quais), negando intenção suicida porque “só queria dormir”, tendo tido alta naquele mesmo dia com encaminhamento para o médico de família, tudo conforme documento de fls. 41-42 dos autos, que aqui se tem por integralmente reproduzido.
6- Aos 19 de Fevereiro de 2019, pelas 21,01 horas, a requerida BB dá entrada na urgência do Centro Hospitalar ... – Polo ..., ali levada por verbalizar ideação suicida, apresentando auto-agressão, tendo relatado conflito com a filha mais velha, após o que terá verbalizado ideias de morte e terá provocado vários cortes com um corta-unhas no peito, tendo-lhe sido dada alta no próprio dia para consulta externa noutro hospital, sendo que no relatório de urgência atinente a este acontecimento consta que se encontrava acompanhada em consulta de psiquiatria pelo Dr. EE, tudo como flui do teor de fls. 43-44 dos presentes autos, que aqui se tem por inteiramente reproduzido.
7- Aos 27 de Março de 2019, BB dá entrada nos serviços de urgência do Centro Hospitalar ... – Polo ..., por intoxicação por medicamentos, com prioridade laranja (muito urgente), constando da história da doença actual que a paciente terá sido encontrada de manhã na cama não despertável e que há cerca de um mês havia tentado suicidar-se com mutilação de pulsos, tendo-lhe sido dada alta no mesmo dia por transferência interna – UCP, tudo conforme teor do documento constante de fls. 45-46 dos autos, que aqui se dá por reproduzido.
8- A requerida BB tem antecedentes psiquiátricos com depressão endógena há mais de 20 anos, tendo tido já diversos episódios de tentativa de suicídio (quer através de ingestão de medicamentação excessiva quer por auto-agressão), sendo que os últimos documentados nos autos terão ocorrido em Fevereiro e Março de 2019, tendo sido socorrida no Centro Hospitalar ....
9- Actualmente, a requerida BB encontra-se a ser acompanhada em consulta de psiquiatria pelo Dr. EE (médico especialista em psiquiatria), o qual enviou aos autos informação clínica escrita, dando conta de que trata-se de uma doente que é seguida em psiquiatria desde os 23 anos de idade (…) apresentando comportamento autodestrutivo recorrente, como forma de lidar com as emoções negativas intensas que apresenta (…) a doente é profissionalmente muito eficaz e capaz, tendo levado a empresa familiar a níveis de produção 5 vezes superior à da média habitual (…) a doente acredita que deve distribuir os lucros pelos funcionários e existe um conflito sobre a percentagem que deve ser atribuída ao principal vendedor. (…) O plano de tratamento atual é o de consulta de psiquiatria quinzenal e de psicoterapia semanal. A doente é assídua e ponutal e cumpre a medicação prescrita. (…) Não apresenta atividade alucinatória nem delirante. (…) Concluindo, a doente padece de um quadro de depressão recorrente e de uma alteração da personalidade emocionalmente instável. Compreende que tem uma patologia mental e que necessita de tratamento. A doente tem todas as capacidades para se autogerir e gerir a empresa em causa, sendo que os registos da atividade comprovam o desempenho da empresa em crescendo. Dito isto, convém clarificar que a patologia que apresenta acarreta níveis de sofrimento psicológico intensos, sem que isso interfira na sua capacidade de gestão, tudo conforme teor de fls. 48-50 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
10- Auscultado sumariamente o Contabilista Certificado da sociedade requerida, GG, veio o mesmo informar o processo, por escrito, que de acordo com os elementos contabilísticos disponíveis, não se vislumbra indício de gestão perdulária por banda da gerente BB, pois em conformidade com as demonstrações financeiras da sociedade nos anos económicos de 2018/2019, esta tem vindo a crescer positivamente de ano para ano em matéria de resultados líquidos do exercício, assim como tem evidenciado saúde financeira e capacidade de produzir riqueza, o que indicia boas práticas de gestão, mais tendo transcrito os seguintes resultados líquidos dos três últimos exercícios económicos:
- resultado líquido positivo do exercício de 2017: 79.366,16€,
- resultado líquido positivo do exercício de 2018: 301.266,27€,
- resultado líquido positivo do exercício de 2019: 380.681,31€, tudo conforme teor de fls. 56, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
11- A sociedade requerida (na pessoa de AA enquanto pessoa ali identificada como gerente e empregador) e CC, celebraram, em 08.05.2014, contrato de trabalho a termo certo, através do qual aquela primeira admitiu o segundo ao seu serviço com a categoria profissional de ‘medidor de obras’, devendo este desempenhar ainda quaisquer outras funções que dentro das suas aptidões se relacionem com a sua categoria profissional e que não impliquem desvalorização profissional, e com a remuneração ilíquida mensal de 500,00€ em regime de part-time, acrescido dos respectivos subsídios de alimentação/vale de refeição, tudo conforme teor de fls. 8-9 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
12- No ano de 2019, e em conformidade com as cópias dos recibos de vencimento juntos aos autos, o identificado trabalhador CC passou a auferir a título de vencimento 3 000,00€ mensais, sob a categoria de ‘Gestor de Operações’, sendo que em diversos meses desse ano, o aludido trabalhador chegou a auferir valores mensais superiores por virtude de comissões sobre vendas (v.g. no mês de Abril de 2019 auferiu 10.454,64€), tudo conforme teor de fls. 9 verso a 13 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13- Do pacto social da sociedade ré consta que o objecto da sociedade consiste em serralharia civil, estruturas metálicas, fabricação e montagem das mesmas, construção e engenharia civil, e que a sociedade se obriga com a assinatura da sócia-gerente, tudo conforme teor do documento de fls. 23 dos autos.
14- O autor AA renunciou à gerência em 2014 quando se reformou e passou a receber uma pensão de reforma da Segurança Social, tendo sido deliberada a atribuição ao mesmo de um complemento de reforma em assembleia geral de 30 de Maio de 2014, a processar mensalmente no valor equivalente a 1.750,00€, a vigorar a partir de 1 de Junho de 2014, complemento que contempla subsídio de férias e de Natal, ficando reservado o direito da sociedade em suspender ou reduzir tal valor, caso se venha a verificar algum período em que a empresa não detenha condições económicas e financeiras para realizar tal complemento, tudo conforme teor do documento de fls. 81 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
15- Apesar do facto referido em 14) o autor continuou a frequentar diariamente a empresa, movimentando-se principalmente na área produtiva, e a lidar com assuntos ligados à gerência da sociedade, o que a ré BB foi permitindo, por se tratar de seu pai, e os próprios funcionários da empresa por saberem que o autor é um dos sócios da empresa (sócio fundador).
16- O autor AA tem conhecimento dos problemas de saúde da ré BB, bem como do facto de os mesmos datarem já de há mais de 20 anos – o que foi reconhecido pelo autor em audiência de julgamento – e de tais debilidades não beliscarem a sua capacidade técnica e profissional.
17- Os problemas de saúde de índole psiquiátrica de que padeceu e padece a ré BB não a impediram de exercer com sucesso a sua actividade profissional, tendo a ré noção dos problemas que enfrenta.
18- Apesar da ré BB padecer de um quadro de depressão grave (crónico), demonstra capacidade para se autodeterminar, cumprindo com as suas obrigações profissionais enquanto gerente da sociedade ré, e gerindo os seus bens materiais (pessoais).
19- Vários dos episódios de crise e de sofrimento psicológico intenso sofridos pela ré BB surgiram na sequência de discussões existentes com o aqui autor (seu pai) ou com a sua progenitora, devido à forte pressão exercida por estes no sentido da ré abandonar a gerência da sociedade S..., sendo a ré BB, com frequência, chamada pelo seu pai de “puta”, “filha da puta”, “prostituta”, “ordinária”, dizendo-lhe “vai-te foder, tu não sabes nada”, condutas adoptadas na sede da empresa e na presença de outros funcionários.
20- Por escrito assinado pelo aqui autor, datado de 28 de Junho de 2019, e sob a designação de ‘Convocatória’, ali se fez exarar que se convocavam todos os sócios da sociedade comercial ‘S...’, para uma assembleia geral extraordinária, a realizar no próximo dia 18, pelas 14,00 horas, nas instalações da sociedade, sitas na Rua ..., ... em ..., para deliberar sobre a seguinte ordem de trabalhos: ponto único – Consentimento da sociedade para a cessão, por doação, de 4% da participação social de que é titular o sócio AA, sendo 2% ao Sr. HH e 2% à Sr.ª BB, tudo conforme teor do documento de fls. 84 verso dos presentes autos, que aqui se dá por reproduzido.
21- Por carta datada de 28 de Junho de 2019, a ré BB responde, por carta registada com aviso de recepção, ao aqui autor, referindo ser incompreensível o teor do escrito aludido em 20), mais consignando não conseguir perceber como é sua intenção fazer tal cedência quando nunca a contactou ou verbalizou tal intenção, pessoalmente ou por qualquer outro meio, mais dando conta que as assembleias gerais das sociedades devem ser convocadas e comunicadas aos sócios com a antecedência de 15 dias, o que não foi cumprido, mais comunicando que enquanto sócia da sociedade não concorda nem autoriza a cedência de quota ou qualquer participação social ao seu irmão HH, desde logo porque o mesmo será dono de uma empresa que se dedica ao ramo da serralharia, potencialmente concorrente desta sociedade, conforme é do inteiro conhecimento do aqui autor, por ter sido sócio nessa sociedade e ter cedido a sua quota naquela sociedade devido a desinteligências com aquele seu filho, tudo como flui do teor do documento de fls. 83-84 dos autos, que aqui se tem por inteiramente reproduzido.
22- Por escrito subscrito por autor e segunda ré aos 18.07.2019, ambos declararam, de comum acordo, dar sem efeito a assembleia geral para aquele dia convocada, tudo conforme teor do documento de fls. 85 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
23- No dia aludido no ponto anterior, o autor compareceu nas instalações da empresa, acompanhado de advogado, pretendendo abordar a situação do funcionário CC, por entender que o mesmo se encontra a auferir vencimentos injustificadamente elevados.
24- Aquando do facto referido em 11) houve necessidade de contratar um especialista em engenharia rádio de telecomunicações móveis, sendo que o autor já conhecia o Sr. CC por ter prestado anteriormente serviços de consultadoria, sendo que após ter prestado serviços para a 1.ª ré e ter feito deslocações a França, em regime de prestação de serviços, veio a ser celebrado o acordo aludido em 11), tendo ficado a constar a categoria profissional de medidor de obras, embora na prática não fosse essa a sua real função.
25- O aludido colaborador assumiu funções de comercial, angariando vários clientes para a sociedade ré, fazendo crescer a sociedade relativamente a serviços que antes a empresa não executava, tais como os de fornecimento de resina para o operador francês ‘free’, o que há muito a empresa pretendia e ainda não havia conseguido.
26- Em janeiro de 2016 foi o autor AA quem convidou o colaborador CC a assumir a chefia do gabinete de estudos da empresa, tendo ficado acertado entre autor, segunda ré e CC que este passaria a ter um horário de 40 horas semanais e a auferir o vencimento de 1.500,00€, tendo sido reduzido a tal respeito, escrito denominado ‘Aditamento ao Contrato de Trabalho a Termo Certo de Tempo Parcial para Tempo Inteiro’, tudo conforme teor do documento de fls. 87 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
27- Na prática, o colaborador CC exercia funções de gestor de operações, fazendo a parte comercial da empresa, angariando clientes, reuniões comerciais, acompanhamento da parte técnica, visita a obras, levantamentos em obra, medições, concepção de projectos, em razão do que veio a ser acertada a alteração da categoria do trabalhador para ‘Gestor de Operações’ em Junho de 2017, por decisão da gerência.
28- Em Julho de 2018 o autor entende que deviam ser actualizadas remunerações/salários, em razão do que envia um documento por si manuscrito à funcionária da empresa DD (técnica de gestão) – v. fls. 88 verso e 89 e 169 – ordenando que o colaborador CC passasse a auferir 3.000,00€, a gerente BB 6.100,00€, e o próprio autor passasse a auferir o complemento de 7.150,00€, o que veio a concretizar-se.
29- Após o colaborador CC ter passado a cumular as aludidas funções verificaram-se sucessivamente aumentos de facturação da sociedade ré (ano 2018 - 2.542.490,15€; ano 2019 - 2.626.217,73€, ano 2020 - 2.895.849,57€), aumentos estes que não são alheios à sua prestação, pois que se apuraram:
i) resultado líquido positivo do exercício do ano de 2017 - 79.366,16€,
ii) resultado líquido positivo do exercício do ano de 2018 - 301.266,27€,
iii) resultado líquido positivo do exercício do ano de 2019 - 380.681.31€.
30- Aquando da contratação inicial do trabalhador CC foi-lhe transmitido pelo autor AA que teria direito a uma comissão sobre as vendas da empresa para França (mercado principal onde o colaborador iria actuar), porém as mesmas não vieram a ser pagas até ao ano de 2017, passando a partir de então a receber 3% sobre as vendas da empresa para França.
31- Por virtude do facto referido no ponto 30), e conjugado o mesmo com o crescimento da empresa, o autor passou então a entender que aquele colaborador auferia um valor mensal muito elevado, pretendendo retirar-lhe regalias, o que originou que o colaborador CC enviasse comunicação escrita à empresa para esclarecer se mantinha o direito ao cartão de gasóleo para abastecer combustível na sua viatura (v. fls. 90 dos autos);
32- As comissões acordadas com o colaborador CC referiam-se a todas as vendas feitas pela empresa para França e não apenas a comissões por ‘vendas por si efectuadas de ferro’, tendo a terminologia usada de ‘ferro’ pretendido fazer a destrinça entre a actividade desenvolvida pela 1.ª ré e a actividade desenvolvida por uma outra empresa então ligada à 1.ª ré (T...) cuja actividade se centrava e justificava por facturar notas de cálculo realizadas pela 1.ª ré.
33- O colaborador CC é visto pela gerente BB como merecedor do salário que aufere, sendo visto pelos trabalhadores da 1.ª ré, ouvidos em audiência de julgamento, como empenhado, dedicado e como o “grande responsável” pelo crescimento que a empresa vem apresentando;
34 - Em Dezembro de 2018 é enviada, por mail, uma exposição escrita subscrita pela gerente BB, ao colaborador CC, onde é referido que conforme acordado na reunião de hoje (1.12.2018) entre o Sr. CC, eu BB na qualidade de gerente e o meu Pai AA, sócio maioritário, passa a ser dado por assente que no dia em que o Sr. CC deixar de colaborar com a S... receberá compensação no prazo de 60 dias ao equivalente a 5 (cinco) salários mensais referentes ao salário auferido à data da sua demissão, por cada ano de colaboração, ou seja desde o ano de 2013 até um limite máximo de €100.000,00 (cem mil euros), além de outras retribuições na lei em vigor à data como subsídio de férias e de natal, quer a demissão seja por sua ou nossa iniciativa, sem prejuízo de uma eventual demissão por justa causa; receberá ainda uma compensação de 4% referente à facturação bruta da T... desde Janeiro de 2017, data em que assumiu a responsabilidade do gabinete de estudos da T... (…) comprometendo-se o Sr. CC a não divulgar informação relevante sobre a empresa, não podendo durante um período de 2 anos assinar contrato com empresas sedeadas em Portugal concorrentes à actividade exercida pela S..., sendo que caso incumpra terá de indemnizar a S... no valor de €50.000,00, tudo conforme documento junto a fls. 91 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
35- A 2.ª ré e o funcionário CC mantiveram uma relação de namoro desde finais de 2018 a Outubro de 2019, mas tal relação não transpareceu no local de trabalho, tendo o colaborador em causa tratamento similar a todos os demais, sem prejuízo da sua hierarquia na empresa.
36- Apesar de a única gerente da sociedade ré ser a ré BB e o autor ser o sócio maioritário da empresa (não gerente), reformado, foi sempre este que foi ditando os valores que o próprio haveria de auferir a título de complemento de reforma – o que foi sendo aceite pela gerência –, tendo este obtido sucessivos aumentos pois que: em maio de 2014 cifrava-se em 1 150,00€, passando para 1.750,00€ em Maio de 2015, em Junho de 2015 passou para 2.250,00€, em Fevereiro de 2016 ascendeu a 3.750,00€, e em Janeiro de 2017 para 4.750,00€, passando em Julho de 2018 para 7.150,00€.
37- O autor tem ainda direito a usufruir de uma viatura Mercedes ... com direito a pagamento de portagens e combustível, telemóvel e despesas pagas em cartão de crédito fornecido pela empresa, e como resulta do relatório de gestão de 2018, neste ano o autor recebeu um valor de 71.400,00€, conforme exarado no documento de fls. 13 verso a 17 dos autos.
38- A 1.ª ré, desde 2016 até ao ano de 2019, teve uma evolução positiva dos seus capitais próprios, a saber:
i) ano 2016 - 853.245,78€,
ii) ano 2017 - 874.267,02€,
iii) ano 2018 - 950.174,74€,
iv) ano 2019 - 1.212847,94€.
39- Durante o período epidémico e de confinamento, o autor, devido à sua idade, deixou de comparecer com habitualidade nas instalações da sociedade ré, sendo que durante este período a empresa implementou um plano de contingência, trabalhando apenas com parte da equipa e privilegiando a utilização de ferramentas digitais, não tendo resultado qualquer perda de rendimento para qualquer colaborador.
40- Durante o período aludido em 39), a sociedade conseguiu aumentar o ritmo de crescimento do volume de facturação para o mercado nacional e intracomunitário em relação ao ano anterior, apesar da crise económica mundial decorrente da pandemia provocada pelo coronavírus COVID -19, sendo que esta situação é, em parte, consequência da estratégia de crescimento desenvolvida pela gerência com a diversificação e angariação de novos clientes, em especial, no mercado francês, tendo o volume de negócios no mercado intracomunitário atingido 92,10% do volume de negócios total, tudo como resulta do relatório de gestão 2020 de fls. 133 a 136 dos autos, cujo teor se tem aqui por inteiramente reproduzido, para os devidos e legais efeitos.
41- A ré BB, para além de sócia e gerente da empresa ré, assume postura de mais um dos membros da equipa de trabalho da sociedade ré, merecendo o respeito e consideração por parte dos trabalhadores da sociedade ré.
42- Sem prejuízo do Know How do autor na arte da serralharia, não possui o autor (nascido em Dezembro de 1948) dinamismo e formação que lhe permita comandar os destinos da sociedade ré tal qual a mesma hoje se apresenta, não dominando os meios informáticos.
43- O autor vem estando presente em todas as reuniões mensais realizadas com o gabinete de contabilidade, tendo acesso a todos os dados contabilísticos e financeiros da sociedade ré.
44- Aos sete do mês de Abril de 2021, pelas 15,00 horas, reuniram em assembleia geral os sócios da S..., Ld.ª., estando presentes os sócios BB e AA, com a seguinte ordem de trabalhos - apreciação, discussão e votação do relatório de gestão e das contas da sociedade relativas ao exercício do ano de 2020 -, tendo-se procedido à leitura e à análise do relatório de gestão das contas do período de 2020 e dos respectivos documentos de contabilidade, os quais apresentam um resultado líquido positivo de 583.839,93€ (quinhentos e oitenta e três mil, oitocentos e trinta e nove euros e noventa e três cêntimos), sendo que este reflecte já as gratificações do balanço atribuídas em 2020, tendo sido deliberado por unanimidade a sua aprovação, tendo ainda sido deliberado por unanimidade que os resultados tivessem a seguinte afectação: transferência de resultados para reforço das reservas livres, tudo como flui do teor do documento junto a fls. 124 dos autos, que aqui se tem por inteiramente reproduzido.
45- Apesar de estar inteirado da evolução positiva da sociedade ré e dos resultados financeiros positivos e em crescendo que a empresa vem obtendo, o autor não se inibiu de intentar a presente demanda judicial alegando que a 2.ª ré tem vindo a adoptar atitudes que carecem de qualquer lógica comercial em prejuízo da estabilidade financeira da empresa, o que sabia não ser verdade, não se coibindo de alegar e colocar sob discussão judicial a doença do foro psiquiátrico de que padece a 2.ª ré (sua filha), pretendendo assim obter a destituição de gerente da 2.ª ré por discordar da remuneração que vem sendo praticada por referência ao colaborador CC.
Factos não provados
a) O autor tenha renunciado à gerência, em 2014, por entender que a empresa já tinha mercado e estabilidade financeira que permitia que a ré BB a gerisse sem grande dificuldade.
b) A partir do divórcio ocorrido em 2017, a ré BB tivesse passado a registar diversos episódios de internamento no Hospital ... no Porto e no Hospital 2 ..., e que, desde essa altura passasse a tomar forte medicação que a incapacita tanto a nível físico mas sobretudo a nível psicológico, de exercer de forma capaz a gestão diária de uma sociedade.
c) A ré nos últimos 12 meses tenha sido hospitalizada mais de vinte vezes por episódios de tentativa de suicídio.
d) A ré BB, desde Dezembro de 2018, tenha passado a adoptar uma conduta de beneficiação financeira de um único funcionário (CC), única e exclusivamente em virtude de uma relação amorosa que ambos iniciaram.
e) A ré BB, desde que iniciou um relacionamento amoroso com o identificado funcionário da 1.ª ré, seja por este manietada psicologicamente, forçando--a a tomar decisões que o beneficiem, em prejuízo da empresa requerida.
f) A actividade desenvolvida pelo funcionário/colaborador da 1.ª ré, CC, se cinja à actividade de ‘medidor de obras’.
g) Em finais de 2017 a segunda ré iniciou relacionamento amoroso com o funcionário CC.
h) O autor, quando tinha cerca de 50 anos, viu ser-lhe atribuída, em França, uma reforma por invalidez por padecer de problemas psiquiátricos.
i) A ré BB tem 3 filhas, sendo uma delas licenciada e as outras duas filhas alunas de mérito.
j) O autor apresentou queixa por violência doméstica alegadamente sofrida pela 2.ª ré por parte do colaborador CC.
*
Fundamentação de direito.
A. Da violação dos princípios da imparcialidade e da isenção.
Alega o apelante (conclusões II.ª e III.ª) que, durante todo o julgamento, a Exma. Juíza do tribunal a quo adoptou postura parcial de defesa intransigente da segunda ré apelada, proferindo comentários depreciativos da posição do autor apelante, manifestando discordância com a atitude do autor agir judicialmente contra a sua filha, expressando (em vários momentos) o seu desagrado relativamente ao autor, o que ‘revela claramente uma violação dos princípios basilares do Direito da Imparcialidade e da Isenção’, que ‘inevitavelmente gerará a nulidade de todo o processado’.
Em sustento de tal conclusão transcreve, na motivação, as passagens que, em seu entender, demonstram tal alegada postura parcial da Exma. Juíza do tribunal a quo.
Arguição improcedente.
A ‘administração da justiça não é pensável sem um tribunal independente e imparcial: a imparcialidade do tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo’ (art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 14º, nº 1 do Pacto Internacional sore os Direitos Civis e Políticos e art. 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem)[1] – e por isso que o alcance do art. 20º da Constituição da República Portuguesa não pode ser desligado da imposição dum processo equitativo, célere e direcionado para uma tutela efectiva, garantindo que qualquer causa seja examinada por um tribunal independente e imparcial[2].
A garantia de imparcialidade do tribunal analisa-se em duas perspectivas: como garantia do tribunal perante terceiros (garantias materiais - respeitando à liberdade do tribunal perante qualquer instrução ou intromissão doutro órgão do Estado - e garantias pessoais - que protegem o juiz em concreto, como as garantias da inamovibilidade e a da irresponsabilidade) e como garantia das partes perante o tribunal, respeitante à independência do juiz e sua neutralidade perante o objecto da causa[3].
À economia da presente apelação apenas interessa esta segunda vertente.
Às partes, a imparcialidade dos juízes é ‘garantida positivamente pelas regras de determinação do juiz natural e negativamente pela enunciação dos casos em que o juiz que normalmente seria concretamente investido na função jurisdicional fica impedido de a exercer’ (arts. 115º e 117º do CPC) ‘ou pode ser afastado por suspeição’ (art. 120º do CPC)[4].
A par destas garantias extrínsecas de imparcialidade do juiz, tem também de reconhecer-se às partes a faculdade de se defenderem contra a parcialidade subjectiva do juiz, que se verificará quando o juiz (cuja isenção e rigor processual são de presumir) dá mostras, no processo, de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidencia preconceito[5] – no domínio da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que vigora directamente na nossa ordem interna – art. 8º, nº 2 da CRP[6]) tem sido entendido ser inadmissível a parcialidade subjectiva, expressa em actos anteriores à decisão (designadamente quando a pretensão da parte é pelo juiz, em audiência, qualificada como mentirosa, escandalosa ou repugnante ou mesmo quando o juiz denuncia a decisão que vai tomar antes do momento próprio para a proferir)[7].
Ainda que a parcialidade subjectiva, constituindo motivo de suspeição (parte final do nº 1 do art. 119º do CPC), deva ser arguida pela parte no prazo previsto no art. 120º do CPC (em caso de comportamento ocorrido em audiência, deve ser arguida em tal acto) sob pena de não o poder fazer mais tarde (nº 3 do art. 120º do CPC) e, também, sem prejuízo de tal parcialidade se manifestar em erro de julgamento susceptível de ser impugnado em recurso (os erros de julgamento, quer no âmbito da decisão de facto, quer no âmbito da decisão de direito, decorrentes da tal parcialidade, constituem razões de recurso), poderá entender-se que a mesma, traduzindo radical e insustentável violação dum dos pilares essenciais da tutela jurisdicional efectiva (o processo justo), é insanável – ou seja, que a verificar-se, não poderá tal violação ter-se por sanada por não ter a parte usado meio processual que a lei lhe faculta para se defender dela (a dedução da suspeição), pois que irremediavelmente inquinada a decisão na sua essência, por proferida em processo que não pode ter-se por justo.
Precavendo esta possibilidade interpretativa se apreciará da arguição.
Como se referiu, o apelante sustenta a arguição alegando que a Exma. Juíza do tribunal a quo, no decurso da audiência de julgamento, não conseguiu manter-se equidistante em relação ao caso que julgava, proferindo ‘comentários e expressões que demonstravam, desde cedo, que o seu julgamento estava pré-concebido, e que nada do que ali fosse dito ou demonstrado a faria mover ou alterar a sua opinião’, tendo advertido o autor/apelante que não pactuava nem aceitava que um pai ‘movesse uma acção contra uma filha’, muito menos por uma questão societária, especificando depois concretas passagens da inquirição duma da testemunhas que em seu entender demonstram tal preconceito e pré-juízo da Exma. Juíza.
Não indicou o apelante a passagem da gravação em que, como alega, a Exma. Juíza do tribunal a quo se dirigiu ao autor apelante fazendo a alegada advertência.
Ouvidas integralmente todas as sessões de julgamento, não detectou este tribunal que em qualquer momento (designadamente na prestação do depoimento de parte e das declarações de parte do autor, mas também em qualquer outro momento em que estivesse a ser prestado qualquer outro depoimento), a Exma. Juíza do tribunal a quo, se tenha dirigido ao autor apelante nos termos alegados ou que, de algum modo, tenha denunciado que o sentido da decisão a proferir seria determinado por não pactuar nem aceitar que um pai agisse judicialmente contra a filha (ainda mais por questões societárias) – o que ressalta é, pelo contrário, que a Exma. Juíza do tribunal a quo, com serenidade e urbanidade, inquiriu o apelante sem que fosse perceptível a mínima censura (ou preconceito) pelo facto de o autor estar a agir judicialmente contra a sua filha.
Não demonstram também tal preconceito ou pré-juízo as concretas passagens da inquirição da testemunha EE (médico psiquiatra, de quem a segunda ré é paciente) em que o apelante estriba a sua alegação.
Após inquirido pelos mandatários das partes (inquirição que se centrou na doença da segunda ré e seus efeitos/consequências), a inquirição prosseguiu entre a Exma. Juíza e a referida testemunha nos seguintes termos (depois de inquirida a testemunha sobre o caracter crónico da doença):
Meritíssima Juíza
Exatamente. Depois outra coisa que eu só queria ver se… vale o que vale, dentro da objetividade das questões que estão aqui colocadas para o tribunal se pronunciar, só para eu perceber ali um bocadinho da personalidade da Dona BB. Há pouco o senhor doutor perguntava: o pai gosta da filha? Isso é uma questão complicada, não é? Porque isso tem a ver com… se calhar gosta de uma maneira que é a maneira dele, que pode não interessar à filha. Por exemplo, eu se fosse filha não gostaria que gostassem de mim assim.
EE
Claro.
Meritíssima Juíza
Não gostava nada daquele gostar. Independentemente de ele lá estar, não é?
EE
Claro.
Meritíssima Juíza
Isto para ver se o senhor doutor me consegue explicar isto, que eu… como é que esta filha, que lhe relata o que relata, quer dizer, “eu estou sempre aqui a correr contra o prejuízo porque eu nunca sou boa o suficiente”;
EE
Isso.
Meritíssima Juíza
Continua a tratar “paizinho”, e disse-me aqui, informalmente, que eu tentei fazer a conciliação, que se gorou, não é?, porque não achava bonito um pai contra uma filha em termos judiciais discutir isto, “eu vou amar os meus pais incondicionalmente, até ao fim da minha vida…”, pronto, disse mais uma menos uma coisa assim, deste género, não é? Portanto, que pessoa… o que é que é isto, no sentido de dizer assim: “Eu não quero isto. Eu não quero este paizinho que só me está a fazer aqui mal”, e se calhar era aquilo que o senhor doutor estava a dizer, porque é que não dá esse passo terapêutico, até de constituir outra empresa e levar o know-how dela e se calhar uma grande parte das pessoas que estão com ela, digo eu, não é? Que o senhor doutor também há bocadinho apontou isso.
EE
Sim, sim.
Meritíssima Juíza
Portanto, porque é que depois se mantém? É as tais decisões que o senhor doutor diz que definem cada ser humano, ou que está… não sei se me estou a fazer…
EE
Sim, a relação.
Meritíssima Juíza
…compreender, porque é que isto continua, com o “paizinho”, continua…
EE
Sim. De facto há aqui uma relação de pai e filha extremamente forte, não é?, e presente, não é?, e que foi abalada agora.
Meritíssima Juíza
Super herói, não é?, que o senhor doutor falava, super herói.
EE
Super herói, que é o pai, não é?, portanto é o pai nessa figura. E, portanto a relação, voltando, era alguém que gosta do pai, e o pai naturalmente que gosta dela. É um gostar através do trabalho, do fazer, do construir… e não propriamente do cuidar, não é?, do estar atento às situações. E devo dizer que a Dona BB também tem essa forma de ser, do trabalho, não é?
Meritíssima Juíza
Pois.
EE
Como é que isto depois está separado? Psicologicamente, já… o que acontece dentro de nós são as chamadas clivagens. Ou seja, nós separamos: esta pessoa de certeza que não me pode estar a fazer isto, e eu nem sinto aquilo sequer, e portanto eu… e por outro lado não consigo unir estas situações e, portanto, se esta pessoa não está a fazer isto eu vou deixar de gostar dela; não é possível.
Ou por um lado porque a relação é muito forte, e depois porque eu separo, esta pessoa de certeza… na questão do abuso. “É impossível que ele não tenha estado lá para me defender. É impossível. Portanto, eu nem sequer sinto isto”, portanto, são fenómenos psicológicos, pronto, ditos primitivos, e por serem primitivos são muito fortes, não é?, a clivagem por um lado, e por outro lado a fusão, não é?, a fusão mãe/filha, pai/filha, as questões edipianas, que é disso que se trata, não é?, é um amor que vai… pai e filha é uma coisa poderosíssima, não é? Quando cai a figura do herói é uma coisa que até costuma se bastante antes, mas isto é, isto são… é a teoria que explica como é que isto é possível acontecer, e como é que a pessoa… para quem está de fora: “porque é que não se desfaz disto?”, isto é óbvio. Mas para quem está dentro não é possível, porque estas emoções tomam conta de tudo, e depois há mecanismos de defesa – é mesmo essa a palavra – para aguentar isto tudo.
Meritíssima Juíza
Certo.
EE
Mas aguentam de tal forma que a pessoa não consegue mudar.
Meritíssima Juíza
O senhor doutor não acompanha o Senhor AA, mas lá está, também daquela iniciativa do tribunal eu quase percebi que o senhor o que me disse foi: “Eu não estou contra a minha filha, eu estou contra esta medida…” portanto, lá está, a ação é contra a filha, não é?, destituir a filha, mas… “não, não é contra a minha filha, é contra a medida de ter lá o CC, a ganhar aquele balúrdio”.
Não decorre daqui que a Exma. Juíza tenha deixado transparecer (sequer que estivesse imbuída por preconceito que, em tal sentido a determinasse) inclinação em desfavor do autor pelo facto de demandar judicialmente a sua filha (ou por qualquer razão, acrescente-se), sequer que tenha de qualquer modo dado a entender (ou deixado transparecer) que lhe merecia censura (e que isso fosse relevante na apreciação da causa) a demanda com fundamento em doença da ré.
A circunstância de referir, de passagem, que tinha tentado a conciliação (das partes) por não achar ‘bonito um pai contra uma filha em termos judiciais discutir isto’, não tem outro significado que não o de, com acrescido afinco (pois que em todos as causas que se encontrem no poder de disposição das partes o juiz deve tentar conciliar as partes – art. 604º, nº 2 do CPC), a Exma. Juíza do tribunal a quo ter tentado conciliar as partes, evitando que pai e filha discreteassem em juízo sobre tema sensível, qual seja o da saúde mental da segunda ré (tal matéria integra a causa de pedir da acção) – a mera referência a que tal discussão não era ‘bonita’ não pode ser entendida como uma crítica ao autor, muito menos pode valorizar-se como revelando ou evidenciando qualquer preconceito, prejuízo, má-vontade ou falta de isenção (no fundo, qualquer parcialidade em desfavor do autor), pois que traduz a constatação de que o tema não seria agradável de discutir (e que as partes deviam ser poupadas a isso – e que isso constituía mais uma razão para que transigissem na causa).
Do exposto resulta não estar demonstrada qualquer parcialidade subjectiva da Exma. Juíza do tribunal a quo, improcedendo a invocada violação dos princípios da imparcialidade e da isenção.
B. Da censura dirigida à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
No âmbito da censura dirigida à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, sustenta o apelante:
- a existência de erro no julgamento do factos 12º e 28º – na conclusão IVª identifica-se o facto 18º, mas interpretando as alegações percebe-se a existência de lapso quanto à identificação deste facto, pois que a impugnação é dirigida ao facto 28º (veja-se, aliás, a conclusão XVª) –, sustentando que os mesmos ‘foram contrariados em sede de audiência de julgamento pelas testemunhas AA e DD’, ficando demonstrado, sem margem para dúvida, ter sido em Setembro de 2017 que o salário do trabalhador CC foi alterado para o montante de 3.000,00€, e
- dever julgar-se não provada a matéria julgada provada sob os números 16º a 18º da fundamentação de facto e julgada provada a matéria julgada não provada na alínea b) da fundamentação de facto.
B.1. Da censura dirigida à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto – da irrelevância da impugnação deduzida quanto aos factos provados número 12º e 28º.
De fácil demonstração a desnecessidade de apreciar da impugnação que incide sobre os factos 12º e 18º da matéria provada.
A Relação deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados[8].
O recurso da sentença destina-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido no que concerne ao mérito da causa, estando a impugnação da matéria de facto teleologicamente (e funcionalmente) ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter, na sua procedência, a alteração da decisão de mérito proferida na sentença recorrida. Propósito funcional da impugnação da decisão da matéria de facto que faz circunscrever a sua justificação às situações em que os factos impugnados possam ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito esteja dependente da modificação que o recorrente pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.
Se a matéria impugnada pelo recorrente não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da acção, de acordo com o direito aplicável (considerando as várias soluções plausíveis da questão de direito), não deverá a Relação sequer conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes para qualquer das soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância[9].
Tal é, precisamente, o que ocorre no caso dos autos relativamente à matéria objecto da impugnação agora em análise, ponderando que o respectivo objecto se centra, exclusivamente, no momento cronológico em que o trabalhador da primeira ré passou a auferir o salário de 3.000,00€.
Na verdade, apura-se por actividade interpretativa (as alegações, tal qual qualquer outra peça processual, estão sujeitas a interpretação, em vista de apurar o exacto sentido e alcance do declarado e pretendido) que o apelante não questiona a decisão da primeira instância a propósito de tais factos quanto a outra matéria (sejam os valores do vencimento e outros valores auferidos pelo funcionário em questão, seja até a circunstância do valor do vencimento do funcionário em causa ter sido actualizado – a par do vencimento de outros trabalhadores e da gerente e, também, do complemento de reforma do autor – para os 3.000,00€ por sua, apelante, iniciativa) que não seja a do exacto momento cronológico em que tal actualização ocorreu (sustentando que os elementos probatórios são demonstrativos de que tal ocorreu em Setembro de 2017).
Considerando o objecto da acção – a pretendida destituição da segunda ré do cargo de gerente da primeira ré por justa causa e nomeação do autor em substituição –, fácil é concluir que a alteração que o apelante pretende operar na matéria de facto (no que concerne aos factos 12º e 28º da matéria provada) é irrelevante e neutra para a decisão da causa (e para a sorte da apelação).
Tal alteração (seja apreciada autonomamente, seja em conjugação com a demais matéria – provada e/ou também objecto de impugnação) não releva na apreciação de existência de justa causa de destituição – a antecipação do momento da actualização do vencimento é indiferente e irrelevante na apreciação da questão, pois que não é a antecipação cronológica de tal acto, nos termos propugnados, que permitirá considerá-lo como acto de gestão ruinosa ou censurável (sendo certo que sempre seria de ponderar ter sido por iniciativa do apelante que o vencimento do funcionário foi actualizado, não resultando - tal actualização - de qualquer acto de gestão da segunda ré que pudesse consubstanciar justa causa de destituição – o acto de gestão terá sido, a esse respeito, certamente concordante com a iniciativa do apelante, sócio maioritário da sociedade primeira ré).
Assim, atenta a sua irrelevância e indiferença à decisão da causa, abstém-se a Relação de apreciar a impugnação deduzida pelo apelante aos factos 12º e 28º da matéria provada.
B.2. Da censura dirigida à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto – da impugnação deduzida aos factos provados números 16º a 18º e facto não provado sob a alínea b).
Os factos agora em apreciação podem agrupar-se em dois temas ou assuntos:
- um, concernente ao momento em que se manifestou a doença da segunda ré (de índole psiquiátrica) e aos efeitos que a mesma tem (como defendido pelo apelante) ou não tem (como considerado provado na decisão apelada) na sua capacidade profissional, no desempenho da sua actividade profissional e no cumprimento das suas obrigações enquanto gerente (e até de gerir os seus bens pessoais),
- outro, respeitante ao conhecimento que o autor apelante tem de os problemas de saúde da segunda ré datarem de há mais de vinte anos, não beliscando a sua capacidade técnica e profissional.
A prova produzida nos autos corrobora, inelutavelmente, a decisão impugnada.
Relativamente ao primeiro tema, foi produzida prova documental (sejam as informações concernentes aos quatro episódios de internamento da segunda ré referidos nos factos provados 4 a 7 dos factos provados, sejam os documentos elaborados pelos médicos especialistas que acompanharam e acompanham a segunda ré – o primeiro permite situar o manifestação da doença da ré em 1999, referindo-se a um internamento relacionado com fenómeno de depressão, donde resultou tentativa de suicídio; no segundo, datado de 2019, refere-se que segunda ré, que é acompanhada por apresentar quadro de depressão grave recorrente, vem sendo medicada mas apresenta capacidade para se autodeterminar, cumprir as suas obrigações e gerir os seus bens materiais; o terceiro, elaborado pelo mesmo clínico que elaborou o segundo, cujo teor se mostra transcrito no facto provado número 9, onde se conclui, expressamente, no que releva, que a segunda ré tem todas as capacidades para se autogerir e gerir a sociedade ré, não interferindo na capacidade de gestão da segunda ré os intensos níveis de sofrimento psicológico que a patologia de que padece acarreta) e prova testemunhal – descurando-se os depoimentos das testemunhas sem conhecimentos médicos, que empiricamente aludiram às intactas capacidades profissionais da segunda ré, importa destacar o único depoimento que demonstrou específicos e fundados conhecimentos sobre a matéria, qual seja o da testemunha EE, médico psiquiatra que vem acompanhando em consulta a segunda ré desde 2018 ( descreveu pormenorizadamente os problemas de índole psicológica de que a segunda ré padece - desde há mais de vinte anos -, as crises que sofre e que desembocam em tentativas de suicídio sérias, a medicação a que é sujeita, atestando porém que tal quadro clínico, crónico e não psicótico, não interfere com a capacidade de tomada de decisão da segunda ré, a qual permanece preservada, nem a medicação que toma impede a segunda ré de gerir a sociedade).
A análise crítica destes elementos probatórios (à luz de critérios de racionalidade – descurando empirismos voluntaristas e valorizando a contribuição dos elementos probatórios que se sustentam em conhecimentos do ramo científico respeitante ao tema em questão, que não foram minimamente infirmados) impõe se conclua serem os mesmos manifestamente suficientes (considerando como patamar de suficiência o grau de probabilidade bastante para as necessidades práticas da vida, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida) para permitir concluir pela demonstração da realidade factual que, a propósito do primeiro assunto, se julgou provada (e por contraponto, pela não demonstração da que se julgou não provada).
A propósito da segunda questão (ter o autor conhecimento de os problemas de saúde da segunda ré sua filha datarem de há mais de vinte anos e de não beliscarem os mesmos a sua capacidade técnica e profissional) vale o depoimento de parte do autor, prestado na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento – situou cronologicamente o início dos problemas de índole psiquiátrica da sua filha no tempo em que se divorciou do primeiro marido, que referiu (ponderando a idade da sua neta) ter acontecido há cerca de vinte anos (ainda que tenha afirmado que a mesma se tratou e ficou bem) e depois, a propósito do seu estado actual, ainda que tenha referido que a mesma se encontra num estado de vulnerabilidade (sendo influenciada pelos empregados – pelo CC e pela DD), admitiu expressamente que a segunda ré ‘está a trabalhar bem’, que ‘a empresa está a andar para a frente’, que está de ‘acordo com isso tudo’, só não concordando com o facto de ter apenas uma pessoa (o funcionário CC) a ‘ir lá fora vender’, pois seria melhor, com o dinheiro que lhe é pago, arranjar dois ou três funcionários para fazer tal serviço.
De corroborar, pois, inteiramente, o facto provado com o número 16 – o autor revelou conhecer que os problemas de saúde da sua filha se manifestaram há mais de vinte anos e reconheceu também que a doença não priva a sua filha das capacidades técnicas e profissionais (pois reconhece que a mesma se encontra a fazer um bom serviço na gerência da sociedade – o que significa que reconhece, implícita mas forçosamente, que os problemas da saúde da segunda não beliscam a sua capacidade técnica e profissional).
Improcede assim a impugnação dirigida pelo apelante à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
C. Da existência de justa causa de destituição da gerente.
Assenta o apelante este segmento impugnatório da sentença no exclusivo argumento de que a segunda ré se mostra incapaz para o exercício da gerência da sociedade ré – afirma (veja-se a conclusão VIª) ser ‘inequívoco que uma pessoa que está constantemente a leva a cabo tentativas de suicídio, constantemente a ser internada, constantemente a ser fortemente medicada’, não pode ‘estar plenamente capaz de exercer quaisquer que sejam as suas funções, e muito menos as de Gerente de uma grande empresa.
Este, e só este, o argumento esgrimido pelo apelante no recurso em vista de demonstrar a existência de justa causa (art. 257º, nº 4, 5 e 6 do Código das Sociedades Comerciais) para destituição da segunda ré apelada do cargo de gerente da sociedade apelada – funda o apelante a existência de justa causa não na prática, pela segunda ré, de qualquer concreto acto que, quebrando a necessária relação de confiança que o exercício do cargo pressupõe, demonstre não ser exigível à sociedade a manutenção de tal relação de gerência (isto é, que perante um tal acto, de acordo com a boa fé, seja inexigível à sociedade, à prossecução dos seus interesses societários, o prosseguimento da gerência pela segunda ré), antes e só na sua incapacidade, em razão do seu estado de saúde (da sua doença de índole psiquiátrica), para o normal exercício das suas funções.
Inquestionável que a incapacidade física ou psíquica para o normal desempenho das funções de gerência constitui justa causa de violação – segunda parte do nº 6 do art.257º do CSC.
Incapacidade que, porém, não se pode concluir.
A procedência do argumento esgrimido pelo apelante tinha por necessário pressuposto a procedência da impugnação da decisão da matéria de facto que, como vimos, não acontece.
Não resultando provada matéria que permita concluir que a segunda ré esteja incapaz, em razão da doença de índole psiquiátrica que a afecta, de exercer a gerência – pelo contrário, resulta provado que a segunda ré, padecendo de doença de índole psiquiátrica (causa de episódios que levaram ao seu internamento hospitalar nas ocasiões referidas nos factos provados número 4 a 7, por tentativas de suicídio), não tem beliscada a sua capacidade técnica e profissional, ou seja, que os problemas de saúde de que padece não são impeditivos do exercício da sua actividade profissional enquanto gerente da ré (factos provados 16º a 18º) –, tem de concluir-se pela não verificação de justa causa para a sua destituição do cargo de gerente.
D. Da litigância de má fé do autor apelante.
O instituto da litigância de má fé, previsto nos arts. 542º e seguintes do CPC, constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso do dever de cooperação e das regras da boa fé[10] (ou probidade) processual (arts. 7º e 8º do CPC).
A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.
O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça (esse o seu fundamento ético), destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial[11].
A litigância de má fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável, com qualquer das finalidades assinaladas na alínea d) do nº 2 do preceito) – a má fé material (ou substancial) ‘relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual’; a má fé instrumental ‘abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.’[12]
Em ambas as modalidades – mesmo na má fé substancial – está em causa sempre ‘um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais’ com uma das finalidades apontadas no nº 2 do art. 542, circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto ‘às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais’[13].
A proposição de uma acção que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte – a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência da sua pretensão[14] e assim que a simples circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada não é suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má fé: para ‘se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação’[15].
Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva (que compreende a garantia de amplo acesso aos tribunais e a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através do direito de acção), próprio do Estado de Direito, é incompatível com interpretações apertadas do art. 542º do CPC, ‘nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2’, pelo que não é por ‘se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má fé’[16].
A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé[17] – a ‘lide processual arrasta um afrontamento/conflito de interesses, pouco propício a uma ponderação serena e objectiva das intervenções processuais, obnubilando o todo processual e deixando «ver» apenas a «verdade» do «seu» caso’[18].
Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a afirmação, a negação ou a omissão são feitas[19].
Para se concluir pela verificação de uma tal conduta dolosa ou gravemente negligente deverá o processo revelar, de forma segura e inequívoca, que a parte omitiu factos cuja veracidade conhecia ou não podia deixar de conhecer ou que afirmou a existência de uma realidade que sabia falsa ou que não podia deixar de saber ser falsa (de acordo com o padrão de conduta exigível a uma pessoa normalmente prudente, diligente, sagaz e sensata).
A par do dolo (em qualquer das suas modalidades – desiderato de deduzir pretensão infundada ou de alterar a verdade dos factos, actuação com pleno conhecimento de tal falta de fundamento, factual e/ou jurídico, e da não correspondência do alegado à veracidade conhecida ou conformando-se com a alegação da materialidade factual em versão que se aceita não seja verdadeira), censuram-se comportamentos gravemente negligentes.
A decisão recorrida censurou a apelante como litigante de má ponderando:
(…), temos que resultou demonstrado que o autor vem estando presente em todas as reuniões mensais realizadas com o gabinete de contabilidade, tendo acesso a todos os dados contabilísticos e financeiros da sociedade ré, e que o autor tem conhecimento dos problemas de saúde da ré BB (sua filha), bem como do facto de os mesmos datarem já de há mais de 20 anos, e de tais debilidades não beliscarem a sua capacidade técnica e profissional.
Mais se demonstrou que foi o próprio autor que teve intervenção directa no aumento dos salários dos funcionários da sociedade ré, designadamente no que tange às remunerações sucessivamente aumentadas ao colaborador CC, e que, apenas quando lhe começaram a ser processadas as acordadas comissões, veio a insurgir-se com os valores mensalmente auferidos por aquele colaborador (superiores aos seus) e ainda que, apesar de estar inteirado da evolução positiva da sociedade ré e dos resultados financeiros positivos e em crescendo que a empresa vem obtendo, o autor não se inibiu de intentar a presente demanda judicial alegando que a ré BB tem vindo a adoptar atitudes que carecem de lógica comercial em prejuízo da estabilidade financeira da empresa, o que sabia não ser verdade, não se coibindo de alegar e colocar sob discussão judicial a doença do foro psiquiátrico de que padece a sua filha (2.ª ré) – conduta torpe –, pretendendo assim obter a destituição de gerente da ré BB por discordar da remuneração que vem sendo praticada por referência ao colaborador CC.
Em face destes factos, não temos dúvidas de que o autor omitiu factos relevantes para a decisão da causa, já que compulsada a sua petição inicial, não fez qualquer alusão ao facto de ter sido o próprio a ter intervenção nas sucessivas decisões de aumentos salariais dos funcionários da sociedade ré, nomeadamente no que concerne ao colaborador CC, nem aos acordos com este firmados no que tange a comissões sobre as vendas, e, por outro lado, alegou factos não verdadeiros, alterando a sua verdade, pois que bem sabia que os problemas de saúde da sua filha eram já antigos, e que os mesmos nunca interferiram com a prestação profissional da mesma, como veio a resultar provado, pois que o autor sempre esteve inteirado dos resultados financeiros francamente positivos que a sociedade ré tem obtido.
É quanto basta, em nosso entender, para ter por procedente a condenação por litigância de má-fé do aqui requerente.
Insurge-se o apelante contra o assim decidido quer impugnado a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto (seja no segmento em que se considerou provado conhecer o apelante que os problemas de saúde da segunda ré datavam já de há cerca de vinte e bem assim que os mesmos não beliscavam a sua capacidade técnica e profissional, seja no segmento em que se considerou que tais problemas de saúde não se repercutiam no desempenho da sua actividade profissional e no cumprimento das suas obrigações enquanto gerente), quer sustentando estar demonstrada a existência de problemas do foro psíquico da segunda ré, o que impede se considere ter usado de má-fé para a destituir da gerência (‘é inquestionável a sua situação diminuída, o quantum para efeitos de decisão só ao Tribunal caberá decidir’), quer defendendo ainda que a matéria dada por provada pelo tribunal recorrido, apenas porque em contradição com o que foi por si alegado, não permite alicerçar a sua condenação como litigante de má fé (as correntes jurisprudenciais e doutrinárias reservam o instituto da litigância de má fé ‘para condutas processuais inequivocamente inadequadas ao exercício de direitos ou defesa contra pretensões’, não bastando à aplicação do art. 542º do CPC o erro grosseiro ou culpa grave, sendo necessário que as ‘circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão conscientemente infundada’, não sendo no caso os elementos disponíveis suficientes para que, com segurança, se conclua pela existência de dolo).
Os autos revelam, inequivocamente, que o apelante omitiu matéria relevante (designadamente que foi ele que tomou as iniciativas iniciativa de aumentar o vencimento do funcionário CC até aos 3.000,00€ e com ele contratou as comissões a acrescer ao vencimento) e alterou a verdade dos factos:
- alegou que foi a segunda ré, adoptando conduta de claro benefício de um funcionário da empresa, CC, lhe aumentou o vencimento para 3.000,00€, beneficiando-o ao nível das comissões – sendo certo que foi ele, apelante, quem contratara o referido funcionário, quem negociara tais comissões e bem assim teve a iniciativa, como sócio maioritário da ré sociedade, de proceder a todos os aumentos de vencimento do referido funcionário (vejam-se os factos provados número 11, 12, 15, 24, 26, 28, 30, 32 e 36),
- alegou que a partir de 2017 a segunda ré passou a registar problemas de saúde que a impedem, tanto física como, sobretudo, psicologicamente, de exercer de forma idónea e capaz a gestão diária da sociedade ré – sabendo o apelante que os problemas da sua filha (que já datavam de há cerca de vinte anos) não beliscam a sua capacidade técnica e profissional (facto provado número 16).
Alteração da verdade dos factos e omissão de matéria relevante que pode imputar-se ao apelante a título de dolo (actuação com pleno conhecimento da não correspondência do alegado à veracidade conhecida) – sabia o apelante que a doença da segunda ré não a impedia do cabal desempenho das funções de gerente, alegando (o que sabia não ser verdadeiro) que a doença a incapacitava para tal exercício; tendo ele, apelante, negociado com um funcionário as comissões que lhe seriam devidas além do vencimento e bem assim tomado a iniciativa de proceder a todos os aumentos do respectivo vencimento (o que omitiu), alegou (o que, por incompatível, sabia não ser verdadeiro) ter sido a segunda ré a assim proceder (a realizar tais aumentos e diligenciar por lhe conceder tais comissões), sem qualquer lógica comercial (apenas para beneficiar o referido funcionário, com exclusivo propósito sentimental) em prejuízo da sociedade estabilidade financeira da empresa e sem qualquer lógica comercial.
Conclui-se do exposto que os autos fornecem elementos seguros e inequívocos que permitem afirmar que o autor, dolosamente, alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes (alínea b) do nº 2 do art. 542º do CPC) – não apenas que foi demonstrada em juízo versão contrária à alegada pelo autor apelante, antes que este alegou versão que sabia ser falsa.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão apelada ao considerar o autor apelante como litigante de má fé (sendo de manter a sua condenação no pagamento da multa no valor fixado, que não foi objecto de autónoma impugnação[20]).
E. Da nulidade da sentença no segmento em que decidiu do montante indemnizatório pela litigância de má fé, por violação do princípio do contraditório.
A decisão recorrida condenou o apelante, como litigante de má fé, a indemnizar as apeladas no montante de seis mil euros (metade a cada uma delas).
Argumenta o apelante que a decisão é, nesse segmento, nula, por não ter sido precedida da audição das partes a propósito dos elementos para se fixar a importância indemnizatória (conclusão XXVIª) – apesar da manifesta falta de elementos para fixar desde logo a indemnização, o tribunal a quo não ouviu o apelante quanto à importância da indemnização (nos termos do art. 543º, nº do CPC), o que consubstancia a nulidade da decisão (por inobservância do contraditório).
A questão suscitada pelo apelante, se bem a entendemos, não se coloca tanto no âmbito da nulidade da decisão por excesso de pronúncia (por conhecer de questão sem que sobre a mesma tenham tido as partes a possibilidade de se pronunciar), antes, agora na perspectiva da Relação, na necessidade de ampliar a matéria de facto (art. 662º, nº 2, c), parte final do CPC) em vista de apurar dos elementos relevantes para fixar a importância da indemnização.
A indemnização prevista na lei em sede de litigância de má fé está sujeita a regras diversas da estabelecidas nos artigos 562º e seguintes do CC destinadas a suprimir o dano sentido pelo lesado – o critério da indemnização não é a medida desse dano, e por isso que o montante da indemnização em dinheiro não é encontrado pela aplicação da teoria da diferença, sendo o padrão indemnizatório encontrado apenas na conduta do litigante de má fé; a finalidade visada pela indemnização não é ressarcitória, antes meramente sancionatória (como o atesta a necessidade de se ponderar a conduta do litigante improbo) e compensatória[21].
Sempre em função da culpa do agente (e não pela situação do lesado), deverá o julgador arbitrar a indemnização que julgue adequada (nº 2 do art. 543º do CPC), seja o reembolso das despesas que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos (alínea a) do nº 1 do art. 543º do CPC), seja o reembolso dessas despesas e a satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé (alínea b) do nº 1 do art. 543º do CPC).
Os elementos destinados à fixação de tal indemnização hão-de ser trazidos aos autos pelas partes (pelo requerente e pela parte contrária), produzindo-se prova sobre eles – se tiverem sido trazidos pelas partes em momento que permita o seu tratamento (julgamento) simultâneo com o julgamento da causa, serão adquiridos e apreciados na sentença, optando-se nessa peça processual, face a tais elementos, pela indemnização mais reduzida (alínea a) do nº 1 do preceito) ou pela mais abrangente (alínea b) do nº 1 do preceito), sempre em função da gravidade da conduta do litigante; não havendo no momento da prolação da sentença elementos para tanto (por as partes os não terem alegado), deverá o juiz ouvir as partes e, já depois da sentença em que condene a parte por litigante de má fé, fixar o que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável (podendo sempre reduzir aos justos limites as verbas de despesas e honorários apresentadas)[22].
Tal regime processual de fixação da indemnização não permite que o tribunal prescinda dos elementos que as partes entendam, a propósito, carrear aos autos – não tendo as partes alegado matéria pertinente à questão a tempo de ser apreciada conjuntamente com o julgamento da causa, deverá ser-lhes possibilitada a possibilidade de os trazerem posteriormente, para tanto sendo ouvidas, nos termos do art. 543º, nº 3, do CPC.
No caso dos autos, a decisão, fixando a indemnização pela litigância de má fé, foi proferida sem que aos autos fossem carreados os elementos relevantes – nada se apuou quanto a despesas suportadas pelas apeladas (ligadas por nexo de causalidade à má fé do apelante), sobre os honorários da respectiva mandatária ou sobre outros prejuízos por elas sofridos (ligados por nexo de causalidade à má fé), tendo sido fixada indemnização sem qualquer suporte factual, impondo-se, por isso, anular a decisão nesse segmento (art. 662º, nº 2, c), parte final do CPC) e determinar, para esse propósito, a ampliação da matéria de facto (ouvindo-se as partes nos termos do art. 543º, nº 3 do CPC).
F. Síntese conclusiva.
Do exposto decorre a parcial improcedência da apelação, mantendo-se a improcedência da acção e a condenação do autor apelante como litigante de má fé, na multa de 15 (quinze) UC, anulando-se a decisão no segmento que fixou em seis mil euros (metade para cada uma das rés) a indemnização pela litigância de má fé, determinando-se a esse propósito a ampliação da matéria de facto, ouvindo-se as partes nos termos do art. 543º, nº 3 do CPC.
A argumentação decisória transponível para sumário (art. 663º, nº 7 do CPC) pode sintetizar-se nas seguintes proposições:
…………………………...
…………………………...
…………………………...
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) em manter a decisão apelada no segmento em que julgou improcedente a acção, absolvendo as rés dos pedidos, e em que condenou o autor apelante como litigante de má fé na multa de quinze UC,
b) em anular a decisão apelada no segmento em que fixou em seis mil euros (metade para cada uma das rés) a indemnização pela litigância de má fé, determinando-se a esse propósito a ampliação da matéria de facto, com observância do disposto do art. 543º, nº 3 do CPC.

Custas da apelação na proporção de 4/5 pelo apelante e 1/5 pelas apeladas.
*
Porto, 5/04/2022
Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
_________________________
[1] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, 1997, p. 40.
[2] Cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, 2017, p. 101.
[3] Teixeira de Sousa, Estudos (…), p. 40.
[4] José Lebre de Freitas, Introdução (…), p. 82.
[5] Caracterizando assim a parcialidade subjectiva do juiz, o acórdão do STJ de 24/05/2011 (Armindo Monteiro), no sítio www.dgsi.
[6] Convenção Europeia dos Direitos do Homem, concluída em Roma em 4 de Novembro de 1950, entre nós aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13/10.
[7] José Lebre de Freitas, Introdução (…), pp. 82/83.
[8] Assim, ainda que considerando o anterior regime processual civil, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[9] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, por mais recentes, os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Batista), no sítio www.dgsi.pt.
[10] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol. (2ª edição revista e ampliada), p. 97.
[11] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude De Actos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.
[12] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 457.
[13] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade (…), p. 49.
[14] A ‘lei confere uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual’ - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 593.
[15] Acórdão do STJ de 28/05/2009 (Álvaro Rodrigues), no sítio www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do STJ de 11/12/2003 (Quirino Soares), no sítio www.dgsi.pt.
[17] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 14/03/2002 (Joaquim de Matos) e 15/10/2002 (Ferreira Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
[19] Ainda o citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
[20] Cfr., a este propósito, o acórdão do STJ de 4/07/2019 (Maria da Graça Trigo), no sítio www.dgsi.pt.
[21] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade (…), pp. 167/168.
[22] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 463.