Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2915/14.0T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
HIPOTECA NULA
HIPOTECA GENÉRICA
Nº do Documento: RP201909102915/14.0T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º907, FLS.60-69)
Área Temática: .
Sumário: I - O pedido de declaração de nulidade de uma hipoteca ultrapassa o objecto cognitivo de um procedimento de embargos de executado, não sendo este o processo adequado à obtenção daquele efeito jurídico. Sem embargo, é possível atender a este fundamento de embargos, exclusivamente como fundamento de não prosseguimento da execução quanto à Embargante.
II - É legal a constituição de uma hipoteca genérica – de conteúdo indeterminado - ao abrigo do disposto no art.º 686.º, n.º 2, do C Civil.
III - A determinabilidade do objecto das hipotecas genéricas apenas é exigida quanto ao objecto sobre que recai e quanto ao montante do crédito garantido. Esta determinabilidade não abrange qualquer elemento temporal.
IV – Sendo a hipoteca acessória em relação ao direito de crédito subjacente, esta somente se extingue, por via de regra, com a extinção da obrigação garantida (art.º 730.º, alínea a); do C Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2915/14.0T8OAZ-A.P1
Comarca: [Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, Comarca de Aveiro]
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Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
B…, Executada nos autos principais, veio deduzir oposição à execução, por embargos de executado, contra “C…”, Exequente nos mesmos autos, alegando, em síntese, que os demais Executados, D… e E…, são seus pais e eram administradores da sociedade “F…, S.A.”.
Diz que esta sociedade abriu conta bancária da Exequente e, começando a ter dificuldades financeira, os 2.º e 3.º Executados prestaram várias garantias e foram pressionados para que fosse constituída hipoteca sobre um imóvel a si pertencente, para garantir os empréstimos da sociedade, no que anuiu.
Relata que foi constituída hipoteca sobre o seu prédio, habitação correspondente a um T4, designado pela letra “E” do prédio constituído em regime de propriedade horizontal sita na Rua …, n.º …, …, inscrita na matriz urbana sob o artigo 3949 e descrita na competente Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o n.º 1324-E, a favor da Exequente para garantia “de todas e quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, designadamente mútuos, contratos de regularização de responsabilidades, acordos judiciais, aberturas de créditos, descobertos, pelo referido banco.”
Declara que desconhecia, tal como ainda desconhece, qual o critério para balizar o limite do seu compromisso, por não ser previsível até quando e até quanto tenha que assumir tal obrigação.
Entende que o objecto desta hipoteca não é determinado nem determinável, tanto mais que ela desconhece em que moldes os contratos foram ou são celebrados entre a Exequente e os 2.º e 3.º Executados.
Defende que, sendo o objecto indeterminável, o negócio jurídico é nulo e de nenhum efeito.
Mais alega que a livrança exequenda foi assinada em branco pelos 2.º e 3.º Executados, sem pacto de preenchimento, tendo a mesma sido preenchida a posteriori pela Exequente abusivamente.
Alega, por fim, que a habitação hipotecada e penhorada é a sua casa de habitação e que a venda da mesma lhe causará prejuízos graves e de difícil reparação.
Conclui pedindo que a hipoteca seja declarada nula por indeterminabilidade do seu objecto ou, no caso de assim se não entender, que o título dado à execução seja considerado como preenchido abusivamente e, por isso, nulo e de nenhum efeito sendo, em consequência absolvida do pedido, com todas as legais consequências.
Mais requer que, ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 733.º do Código de Processo Civil[1], se digne determinar que a venda do bem imóvel penhorado fique suspensa até que seja proferida decisão em primeira instância sobre os presentes embargos.
A Exequente contestou a oposição deduzida, impugnando a essencialidade dos factos alegados.
Contrapõe, com particular relevo, que a livrança dada à execução foi subscrita no mesmo dia - 15/03/2011 - e local em que ocorreu a celebração de um contrato de regularização de responsabilidades entre si e os 2.º e 3.º Executados e juntamente com a celebração do respectivo pacho de preenchimento.
Alega que, ainda no mesmo dia 15/03/2011, foi constituída a hipoteca voluntária a seu favor e tendo a Embargante tomado conhecimento do contrato celebrado de regularização de responsabilidades, designadamente os seus termos e condições.
Acrescenta que foi estabelecido um limite para o valor garantido a título de capital e acessórios, no valor global de €384 250,00. Bem como que é perfeitamente determinável o objecto da obrigação a constituir, estando apenas cobertos direitos de crédito resultantes de operações bancárias, que se prendem com a sua actividade bancária e com o recurso ao crédito bancário por parte dos Executados.
Defende que, constando do título constitutivo da hipoteca, relativamente aos créditos por ela garantidos, a identidade do devedor, o limite máximo do seu valor e o tipo de relação negocial que os pode originar, não se pode dizer que os créditos garantidos não se encontravam determináveis à data da outorga da hipoteca.
Remata pedindo que se julguem improcedentes os embargos, prosseguindo os respectivos termos a execução.
Proferiu-se despacho saneador, em que se fixou o objecto do litígio e se definiram os Temas da Prova.
Realizou-se audiência de julgamento de acordo com o legal formalismo, no âmbito da qual – entre o mais – se determinou a apensação ao presentes autos do Apenso B de Embargos de Executado.
Proferiu-se sentença final, com a seguinte parte decisória “Por todo o exposto, julgam-se os presentes embargos de executado improcedentes, por não provados, e, em consequência, determina-se o prosseguimento da execução.”
Inconformada com esta decisão, a Embargante/Executada interpôs recurso, pedindo a revogação da sentença, sendo substituída por outra que julgue a nulidade da hipoteca junta aos autos, absolvendo-a do pedido formulado ou, caso assim se não entenda, que se revogada, substituída por outra que apenas a condene a ser atingida na sua esfera jurídica no bem que deu de garantia, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I Por douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e de ora se recorre, foram os presentes embargos julgados improcedentes, por não provados, e em consequência, determina-se o prosseguimento da execução,
II A Embargante/Recorrente não se conformando com a douta sentença proferida, vem da mesma interpor o presente recurso.
III Foi dado como provado na douta sentença a quo, entre outros, o seguinte facto: “6. Teor do documento de fls. 18 verso e seguintes dos autos principais, intitulado «Hipoteca», outorgado em 15.03.2011, aqui dado por reproduzido”.
IV E… e D…, 1.º e 2.º executados respectivamente, são pais da aqui recorrente.
V. E… e D…, 1.º e 2.º executados respectivamente, eram administradores da sociedade anónima F…, S.A., com sede em …, Concelho de Santa Maria da Feira.
VI. No âmbito da relação comercial entre a firma F…, S.A., através dos seus administradores e pais da recorrente, e o exequente foram outorgaram diversos contratos e livranças aceites pela firma F…, S.A.
VII. A empresa F…, S.A., propriedade dos 1.º e 2.º executados começou a ter muito crédito mal parado e letras de câmbio devolvidas por falta de pagamento dos seus clientes.
VIII. Atentas as dificuldades que estavam a passar o 1.º e 2.º executados não lhes restou outra alternativa senão constituir hipoteca sobre o bem objecto dos autos, propriedade de sua filha.
IX. Tal hipoteca foi realizada com carácter genérico sobre o bem o objecto dos autos.
X. O documento de hipoteca refere “Que, pela presente escritura, constitui a favor do G…, que o primeiro Outorgante representa, HIPOTECA VOLUNTÁRIA, sobre a fracção autónoma atrás identificada, com todas as suas construções e benfeitorias edificadas ou a edificar, para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir, pelos seus pais – D… (…) perante o G…, provenientes: b) De todas e quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, designadamente mútuos, contratos de regularização de responsabilidades, acordos judiciais, aberturas de créditos, descobertos, autorizados, desconto de letras e/ou livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à exportação e importação, garantias bancárias e avales, locações financeiras mobiliária e/ou imobiliárias, até ao limite global de duzentos e noventa mil euros e respectivos acessórios, concedidos ou a conceder aos referidos – D… e mulher E… pelo referido banco”. E ainda “Que todos os documentos, sejam de que natureza forem, em que D… e mulher E…, figurem como responsáveis perante o G… e que porventura, se encontrem em conexão com a presente escritura, dele ficarão a fazer parte integrante, para efeitos de execução.”
XI. A recorrente e hipotecante desconhece qual o critério para balizar o limite do seu compromisso, pois a sua obrigação futura é incerta pois não é previsível nem lhe é possível determinar até quando tem que assumir tal obrigação.
XII. Neste sentido o AC n.º 4/2001 de 23/01/2001 (DR 1.ª Série A n.º 57 de 08/03/2001) com força obrigatória para fixação de jurisprudência, onde se decidiu que “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”.
XIII. O que é indeterminável para a recorrente, é que a mesma desconhece quando as operações que garante terminam ou quando acontece o prazo da sua extinção, pois quanto ao demais o limite garantido pela hipoteca está delimitado.
XIV. Porquanto na escritura de hipoteca não se refere que a garantia agora dada é por um ano, dois, cinco ou mais anos.
XV. A recorrente desconhece assim os critérios que constituem os limites da sua responsabilidade em termos temporais.
XVI. Quando estão em causa obrigações actuais ou futuras a recorrente tem a obrigação de conhecer o momento da estipulação das suas responsabilidades.
XVII. A recorrente não poderá cancelar a hipoteca em causa uma vez que a mesma é “ad eternum”, sem prazo, para garantia de valores ou responsabilidades assumidas ou a assumir.
XVIII. O limite temporal não é determinado nem determinável, sendo certo que a recorrente desconhece, em que moldes os contratos que garante foram ou são celebrados entre a exequente e o 1.º e 2.º executados e seus pais.
XIX. Porquanto a recorrente é terceira na relação entre exequente e 1.º 2.º executados.
XX. A recorrente não conhece os objectos determináveis do contrato, nomeadamente valor, prazos de assunção de dívida e prazos temporais de cancelamento das responsabilidades, o objecto do negócio é indeterminável, o negócio jurídico é nulo e de nenhum efeito.
XXI. Existindo assim uma indeterminabilidade do objecto como se constara hipoteca.
XXII. Pelo que torna-se impossível cancelar a hipoteca, pois o devedor/recorrente terá de fazer prova de factos negativos – que os executados nada devem ao exequente, o que se revela impossível, uma vez que é um terceiro às relações imediatas entre devedor e credor.
XXIII. Não se conhecem em concreto quais os débitos que a garantia assegura, sendo tais cláusulas manifestamente abusivas.
XXIV. Ou seja é por estas questões e razões de segurança jurídica e de certeza, que a lei sanciona com o vício de nulidade dos negócios cujo objecto seja indeterminável.
XXV. No caso sub judice está em causa um terceiro – o hipotecante – que fica “ad eternum” a garantir as dívidas de montantes e de natureza indeterminados que o devedor venha a contrair perante um banco.
XXVI. Pelo que deverá a hipoteca em causa ser declarada nula e de nenhum efeito.
XXVII. Caso a tese da recorrente - nulidade da hipoteca, o que não se concede, nunca a recorrente poderá ser condenada ao pagamento da quantia exequenda, tal como peticionado na execução de que os presentes embargos são apenso, porquanto.
XXVIII. Com efeito, a Recorrente nunca assinou quaisquer contratos, letras ou livranças para o Exequente nem tão pouco dos documentos dados à execução consta que a recorrente tenha assinado qualquer um deles.
XXIX. A recorrente nunca contraiu qualquer dívida junto do Exequente, pelo que nunca poderá ser responsável pelo pagamento da totalidade da dívida exequenda.
XXX. Assim, no caso de se considerar a hipoteca válida, o que não se concede, a recorrente apenas poderá ser atingida na sua esfera jurídica no bem que deu de garantia e nada mais….
XXXI. Assim, a douta sentença jurídica proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 280.º, n.º 1, 686.º, n.º 2 ambos do Código Civil e ainda os princípios da Segurança Jurídica, Princípio da Especialidade, o Princípio Acessório, o Princípio da Determinabilidade e o Princípio da Segurança e Protecção da Confiança.
A Embargada/Exequente não apresentou contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos aos vistos, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do CP Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como questão prévia, cumpre atender a que a Recorrente vem agora, em sede de recurso, pedir – entre o mais e a título supletivo – que a sentença proferida seja revogada e substituída por outra que apenas a condene a ser atingida na sua esfera jurídica no bem que deu de garantia.
Sustenta, para este efeito, que nunca poderá ser condenada ao pagamento da quantia exequenda, tal como peticionado na execução de que os presentes embargos são apenso, porquanto nunca assinou quaisquer contratos, letras ou livranças para o Exequente nem tão pouco dos documentos dados à execução consta que a recorrente tenha assinado qualquer um deles.
Afirma que nunca contraiu qualquer dívida junto do Exequente, pelo que nunca poderá ser responsável pelo pagamento da totalidade da dívida exequenda.
Defende que, no caso de se considerar a hipoteca válida, apenas poderá ser atingida na sua esfera jurídica no bem que deu de garantia e nada mais.
Ora, o objecto do recurso está balizado pelo objecto da acção, designadamente pela causa de pedir e pedidos formulados nos articulados.
Explica, a este respeito, António Abrantes Geraldes[2] que “Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.”
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido que “Os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados): a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo tribunal ad quem.”[3]
Analisados os autos, verifica-se que esta questão é totalmente nova, que não foi suscitada pela Embargante/Recorrente até agora, designadamente no seu articulado de embargos de executado.
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que esta questão, por configurar uma questão nova, não pode ser conhecida por este Tribunal da Relação.
De qualquer modo, apesar de esta questão não ter sido apreciada na sentença recorrida, por não ter sido atempadamente suscitada, deixa-se dito que a disposição legal do art.º 54.º do CP Civil apenas permite, relativamente ao terceiro, que na execução se penhore e venda o bem objecto de hipoteca.
Feita esta delimitação, temos que a questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a apreciação da indeterminabilidade do objecto da hipoteca em termos temporais.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos considerados provados na decisão recorrida:
1) Nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa, é exequente C…, sendo executados D…, E… e B….
2) Nos autos principais de execução, a exequente deu à execução a livrança aí junta a fls. 31, emitida em Lisboa com data de 15.03.2011, no valor de 818.447,11€, constando as assinaturas de D… e E… no local reservado aos subscritores.
3) A data de vencimento aposta na livrança é de 16.10.2014, tendo a execução dado entrada em juízo em 15.12.2014.
4) Nos autos principais de execução, a exequente deu igualmente à execução o contrato de fls. 26 e segs., datado de 15.03.2011, intitulado «Contrato de Mútuo», em que são partes G…, S.A, e os executados D… e E…, dando-se aqui o mesmo por integralmente reproduzido.
5) Para sustentar a sua legitimidade, a exequente invocou o contrato de trespasse pelo qual adquiriu G…, S.A., juntando os documentos de fls. 5 verso a 18 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
6) Teor do documento de fls. 18 verso e segs. dos autos principais, intitulado «Hipoteca», outorgado em 15.03.2011, aqui dado por reproduzido.
7) Entre G…, S.A., e os executados D… e E… foi celebrado o contrato junto a fls. 24 e segs., datado de 15.03.2011 e intitulado «Contrato de Regularização de Responsabilidades», cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8) Teor do documento de fls. 30, intitulado «Convenção de Preenchimento de Livrança em Branco n.º …………………».
9) A executada E… não exercia a gestão da sociedade F…, S.A.
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IV – INDETERMINABILIDADE DO OBJECTO DA HIPOTECA EM TERMOS TEMPORAIS
A Embargante/Executada interpôs recurso, pedindo a revogação da sentença, sendo substituída por outra que julgue a nulidade da hipoteca junta aos autos, absolvendo-a do pedido formulado.
Sustenta, nesse sentido, que a hipoteca foi realizada com carácter genérico sobre o bem o objecto dos autos.
Afirma que desconhece qual o critério para balizar o limite do seu compromisso, pois não é previsível nem lhe é possível determinar até quando tem que assumir tal obrigação.
Acrescenta que desconhece quando as operações que garante terminam ou quando acontece o prazo da sua extinção, pois quanto ao demais o limite garantido pela hipoteca está delimitado (porquanto na escritura de hipoteca não se refere que a garantia agora dada é por um ano, dois, cinco ou mais anos).
Defende que, estando em causa obrigações actuais ou futuras, tem a obrigação de conhecer o momento da estipulação das suas responsabilidades – existindo assim uma indeterminabilidade do objecto da hipoteca, sendo nula a hipoteca.
Antes de mais, cumpre referir que os embargos de executado são uma fase eventual da acção executiva, tendente a obstar à execução e/ou venda de certos bens, cabendo ao executado, para o efeito, invocar factos de impugnação e/ou de excepção.
Em casos como o dos autos, em que a execução tenha sido instaurada igualmente contra pessoa diversa do devedor da quantia exequenda, este, na qualidade de executado, pode invocar factos no sentido de infirmar a validade e ou a abrangência da garantia relativamente ao direito de crédito exequendo.
No entanto, esta defesa terá que se confinar ao objecto deste incidente de oposição.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2009, tendo como Relator Lopes do Rego[4], “A função primacial dos embargos de executado – tal como a da oposição à execução que lhes sucedeu – não é a de dirimir um litígio entre as parte, em aspectos que possam extravasar o andamento e tramitação da acção executivo, mas apenas, como decorre do seu carácter incidental, resolver uma questão, substantiva ou adjectiva, na estrita medida em que esta se projecta no destino do processo de que os embargos são dependência: na verdade, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, visando a pronúncia que neles é feita, quer sobre o mérito, quer sobre a matéria processual, servir exclusivamente as finalidades e os fins da execução.”
A pretendida declaração de nulidade da hipoteca ultrapassa o objecto cognitivo de um procedimento de embargos de executado, não sendo este o processo adequado à obtenção daquele efeito jurídico.
Sem embargo, é possível – tal como se fez na sentença recorrida – atender a este fundamento de embargos, exclusivamente como fundamento de não prosseguimento da execução quanto a esta Executada.
Delimitado por esta forma o objecto do recurso, temos que a hipoteca – tal como prescreve o art.º 686.º do Código Civil[5] - confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis[6] pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
O direito constituído através do negócio jurídico de hipoteca traduz-se num direito real menor de garantia, versando tipicamente sobre um direito de propriedade[7].
A hipoteca constituída garante o crédito, os acessórios do mesmo e os juros dos últimos três anos (cf. art.º 693.º do C Civil).
Trata-se de um contrato ou negócio jurídico unilateral causal, tendo como função económico-social a garantia e sendo esta garantia, por seu turno, acessória em relação ao direito de crédito subjacente.
Nos casos, como o destes autos, em que o autor da hipoteca é um terceiro, o credor hipotecário pode executar o bem do terceiro, ficando este sub-rogado nos direitos daquele sobre o devedor (cf. art.º 592.º, n.º 1, do C Civil).
Com efeito, o art.º 818.º do C Civil determina expressamente que o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito.
Assim, nesta situação específica, o credor pode optar por demandar apenas o devedor, por demandar apenas o terceiro ou demandar cumulativamente os dois.
Tendo a Exequente destes autos optado por demandar simultaneamente o credor e o terceiro, a sua actuação está perfeitamente legitimada pela disposição legal processual do art.º 54.º, n.º 2 do CP Civil.
Afinando a nossa análise à luz dos fundamentos do recurso, é pacífico a legalidade de constituição de hipotecas genéricas ao abrigo do disposto no art.º 686.º, n.º 2, do C Civil, sendo assim designadas aquelas que são de conteúdo indeterminado.
No entanto, o art.º 280.º, n.º 1, do C Civil comina com nulidade o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
A ratio desta disposição legal é a de prevenir que o devedor fique totalmente à mercê do credor.
Deve, assim, entender-se que a hipoteca, para ser válida, deve ter um objecto, ainda que indeterminado, determinável.
Tal como referem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte[8] quanto ao alcance necessário desta determinabilidade: “Este tipo de garantia, que também se poderia designar por hipoteca sem limite (ou «plafond») máximo, não parece que possa ser válido quando não haja elementos que permitam a sua determinação; ou seja se no momento da constituição for indeterminável. Tal como acontece com a fiança, a lei permite a constituição de hipoteca como forma de garantia de dívida futuras (artigo 686.º, n.º 2, do Código Civil), mas, em qualquer caso, do contrato tem de constar um critério objectivo para a determinação da prestação garantida ou a garantir.”
Igualmente a este respeito, refere Almeida Costa[9] que uma das características fundamentais da hipoteca é a especialidade “que se traduz no facto de a hipoteca pressupor a determinação da coisa sobre que recai, do montante do crédito assegurado, dos seus acessórios e do respectivo fundamento.”
Na jurisprudência têm-se decidido no mesmo sentido, citando-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 14/02/2007, tendo como Relator Pinto de Almeida[10]: “O princípio da especialidade que caracteriza a garantia hipotecária reporta-se ao seu objecto – indispensabilidade dos elementos individualizadores da coisa sobre que incide a garantia – e ao crédito – deve estar suficientemente determinado e quantificado o montante máximo que a dívida pode atingir – isto é, o valor que a hipoteca garante, bem como o seu fundamento, os juros e acessórios do crédito devem constar do registo, sob pena de nulidade (art.º 96.º do CRP).”
Ou seja, a determinabilidade do objecto da garantia apenas é exigida quanto ao objecto sobre que recai e quanto ao montante do crédito garantido.
Ao contrário do defendido pela Recorrente, esta determinabilidade não abrange um qualquer elemento temporal.
Aliás, face às características do negócio jurídico de hipoteca deve mesmo entender-se que a fixação de um prazo de vigência será tipicamente contrário à respectiva teleologia: a hipoteca deverá, em princípio, manter-se enquanto durar o crédito garantido.
Como se referiu acima, a hipoteca é acessória em relação ao direito de crédito subjacente.
Assim sendo, por via de regra, a hipoteca somente se extingue com a extinção da obrigação garantida (cf. art.º 730.º, alínea a), do C Civil)[11].
Contudo, aceitamos que, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, as partes possam estipular um prazo máximo de vigência contratual da hipoteca ou fixar uma qualquer condição resolutiva.
No entanto, no contrato dos autos, e tal como realçado pela Recorrente, as partes limitaram-se a estipular “Que, pela presente escritura, constitui a favor do G…, que o primeiro Outorgante representa, HIPOTECA VOLUNTÁRIA, sobre a fracção autónoma atrás identificada, com todas as suas construções e benfeitorias edificadas ou a edificar, para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir, pelos seus pais – D… (…) perante o G…, provenientes: b) De todas e quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, designadamente mútuos, contratos de regularização de responsabilidades, acordos judiciais, aberturas de créditos, descobertos, autorizados, desconto de letras e/ou livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à exportação e importação, garantias bancárias e avales, locações financeiras mobiliária e/ou imobiliárias, até ao limite global de duzentos e noventa mil euros e respectivos acessórios, concedidos ou a conceder aos referidos – D… e mulher E… pelo referido banco”. E ainda “Que todos os documentos, sejam de que natureza forem, em que D… e mulher E…, figurem como responsáveis perante o G… e que porventura, se encontrem em conexão com a presente escritura, dele ficarão a fazer parte integrante, para efeitos de execução.”
Verifica-se, pois, que as partes fixaram um critério delimitador da responsabilidade da recorrente, definindo o objecto sobre que recai a hipoteca e o montante máximo de crédito garantido. É quanto basta para considerar que se trata de uma hipoteca com objecto determinável.
Ou seja, previram que quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, designadamente mútuos, contratos de regularização de responsabilidades, acordos judiciais, aberturas de créditos, descobertos, autorizados, desconto de letras e/ou livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à exportação e importação, garantias bancárias e avales, locações financeiras mobiliária e/ou imobiliárias, se encontram garantidas pela hipoteca, até ao limite global de duzentos e noventa mil euros e respectivos acessórios.
Mais se verifica que as partes optaram por não prever qualquer prazo máximo de vigência da hipoteca o que, como já deixamos dito, é o tipicamente característico: a hipoteca apenas se extinguirá com a extinção da obrigação garantida.
Sem necessidade de mais considerações, conclui-se pela improcedência do presente recurso.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela Embargante/Executada, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente - art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 10 de Setembro de 2019
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, p. 109.
[3] In Acórdão de 28/05/2009 proferido no Processo n.º 160/09.5YFLSB, tendo como Relator Oliveira Rocha e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[4] Proferido no Processo n.º 3910/05.5TVLSB-A.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[5] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[6] Ou bens móveis que sejam, para este efeito, equiparados a imoveis, tais como automóveis, navios e aeronaves.
[7] Mas podendo também incidir sobre outros direitos reais menores.
[8] In Garantias de Cumprimento, 2.ª Edição, 1997, Almedina, pág. 129.
[9] In Direito das Obrigações, 12.ª Edição, 2016, Almedina, pág. 946.
[10] Proferido no Processo n.º 0636941 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[11] Há ainda outras formas de extinção não relevantes para a apreciação do presente recurso, como a prescrição a favor do terceiro adquirente, o perecimento da coisa hipotecada e a renúncia do credor.