Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6290/11.6IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA RODRIGUES
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRAZO
CAUSAS DE SUSPENSÃO E/OU INTERRUPÇÃO
DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
Nº do Documento: RP202305176290/11.6IDPRT.P1
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO A TODOS OS RECURSOS, INTERLOCUTÓRIOS E DA DECISÃO FINAL, INTERPOSTOS PELO ARGUIDO .
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Nos crimes de abuso de confiança, o prazo de 90 dias previsto na alínea a) do nº 4 do art. 105, do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, uma vez que não impede que possa ser exercida a acção penal, apenas impedindo que possa ter lugar a punição.
II – Assim sendo, nos crimes de abuso de confiança, do foro fiscal, inicia-se na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº 2 do artº 5º do RGIT terminou o prazo para o cumprimento da entrega das prestações tributárias.
III – Acresce que aquela situação prevista na alínea a) também não pode ser considerada uma causa de suspensão da prescrição, pois que não só não está especialmente prevista na lei como tal, como não se integra em qualquer uma das alíneas do nº 1, do art. 120º do Código Penal.
IV – Para efeitos de suspensão e interrupção da prescrição do procedimento criminal, deverá considerar-se que a recusa de recebimento da comunicação escrita para constituição de arguido tem inteiro paralelismo com a recusa de recebimento das notificações em geral, pelo deverá ter-se tal notificação válida e eficazmente efetuada, tal como tem sido aceite pacificamente pela jurisprudência.
V – A declaração de contumácia constitui causa simultaneamente causa de suspensão e de interrupção do prazo prescricional, mas tal suspensão que não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
VI – É de declarar a contumácia do arguido por desconhecimento da sua morada, quando o mesmo dificultou o conhecimento do seu paradeiro e obstaculizou à tomada de TIR por duas vezes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6290/11.6IDPRT.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1. RELATÓRIO

Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum Singular nº 6290/11.6IDPRT do Juízo Local Criminal do Porto – J6 - do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi em 22 de novembro de 2022 proferida sentença, na qual se decidiu (transcrição):

“III –DECISÃO:
Nestes termos e face ao exposto, julga-se a acusação totalmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Condenar o arguido AA, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105º, n.º 1, 2, 4 e 7, do RGIT (com referência aos artigos 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Cód. do IVA), na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz o total de €750.
b) Mais se condena o arguido nas custas criminais do processo - arts. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal - sendo a taxa de justiça fixada em 3 U.C..
(…)”

Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação do Porto, finalizando as respectivas motivações com as seguintes conclusões: (transcrição)

“I. Salvo devido respeito, mal andou o tribunal a quo em considerar totalmente procedente a acusação e bem assim em condenar o Arguido na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, perfazendo um total de 750,00€.
II. Numa primeira linha de razões, dir-se-á que, tal como vem o Arguido defendendo o procedimento criminal dos presentes autos há muito se encontra prescrito, aliás encontram-se pendentes para apreciação pelo tribunal ad quem três recursos interpostos pelo ora Recorrente, tendo o mesmo já dissertado e esgrimido os seus argumentos relativamente à prescrição do procedimento criminal dos presentes autos, os quais deverão subir e ser apreciados conjuntamente com o presente recurso
III. Sem prejuízo, dir-se-á que:
- O Arguido por carta rogatória n.º 12/2016 foi notificado pessoalmente a 02.08.2016, em seu nome e em representação da sociedade arguida do despacho de arquivamento e de acusação proferido nos autos a fls. 447 a 453;
- O Arguido foi posteriormente notificado da designação de data para a realização da audiência de julgamento e apresentação de contestação, notificação essa datada de 20.12.2016 para a morada indicada na carta rogatória 12/2016 sita na Av.ª ..., ... Município ...,
- Face à supra mencionada notificação e exercendo o seu direito do contraditório o Arguido apresentou a sua contestação aos dias 23.01.2017, invocando, em suma, a prescrição do procedimento criminal.
-Tendo a contestação apresentada pelo arguido sido admitida por despacho de 03.02.2017, conforme notificação remetida para a aqui Causídica aos dias 06.02.2017 com a ref. 378339649.
- Ulteriormente por despacho de 21.09.2017 veio o tribunal a quo declarar a contumácia do Arguido por alegadamente ser desconhecido o paradeiro do mesmo.
- Perante tal despacho, veio o Arguido interpor recurso, alegando resumidamente a ilegalidade da declaração de contumácia, porém tal recurso apesar de admitido relativamente ao momento da sua subida, entendeu o tribunal a quo que apenas deveria subir com o recurso da decisão final.
- Já no corrente ano o Arguido apresentou-se na secretaria do tribunal a quo coma finalidade prestar TIR, nomeadamente aos dias 11.08.2022, tendo sido uma vez mais notificado da acusação, da data de designada para a realização de audiência de julgamento e do prazo para apresentação de nova contestação.
- Nesta senda, o Arguido apesar de já ter apresentado a sua contestação, veio aos dias 20.09.2022 apresentar nova contestação clamando novamente pela sua absolvição com fundamento na prescrição do procedimento criminal.
- Nos termos do disposto no n.º1 do art. 335º do CPP a declaração de contumácia depende sempre da impossibilidade de notificar o arguido do despacho que designa data para a audiência de julgamento, sendo que é nessa sequência que se procede à afixação de editais.
- Face à notificação do arguido por via postal, a declaração de contumácia do mesmo encontra-se ferida de uma ilegalidade, ilegalidade essa que se argui para os legais efeitos.
- Deste modo, tratando-se de uma declaração de contumácia ilegal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não se suspendeu em 21.09.2017, pelo que se encontra decorrido há muito o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos.
- Importa salientar uma vez mais que o Arguido foi notificado da acusação deduzida pelo MP aos dias 02.08.2016 através da carta rogatória 12/2016, sendo esta causa de interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos – cfr. art. 121º n.º 3 do CP ex vi art. 21º n.º4 do RGIT e art. 120º n.º 1 al. b) e n.º2 do CP.
- O tribunal a quo ao aplicar o prazo da suspensão da prescrição contante no art.º. 120º n. 1 al. c) do CP desconsidera de forma ilegal o recurso interposto pelo arguido acerca da (in)validade da declaração da contumácia sobre o qual não foi proferido o necessário e douto acórdão
- Desconsidera e entra em perfeita derrapagem legal quando determina no despacho da declaração de contumácia que o arguido não está pessoalmente notificado da acusação, quando dos autos decorre de forma translúcida que o foi! Aliás o arguido deduz contestação penal aos dias 23.01.2017 e sobre esta incidiu despacho de admissão
- Pelo supra exposto e desconsiderando a declaração de contumácia, por ilegal, poder-se-á concluir que, após decorridos 5 anos + 2 anos e 6 meses (prazo de interrupção nos termos do n.º3 do art. 121º do CP) e ainda o prazo de 3 anos relativo ao período de suspensão do prazo de prescrição, conforme decorre do art.º 120º n.º 1 al. b) do CP, o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos encontrou-se alcançado no dia 16 de fevereiro de 2022.
- Concluindo-se, em face dos argumentos expostos e face ao que decorre de forma translúcida dos presentes autos pugna-se pela procedência do recurso interposto e extinção do procedimento criminal instaurado contra o arguido AA fazendo assim inteira e Sã Justiça.”
IV. Numa segunda linha de razões, temos como presente que, e no que respeita ao ora recorrente, foram dados como provados os factos 5, 10 e 13 por manifesto erro notório na apreciação da prova, violando assim o tribunal o art.º 410º n.2 al. c) do CPP, quando tais factos e face à prova constante dos autos deveriam ter sido dados como não provados.
V. Aliás, iremos ainda mais longe, inexiste quaisquer provas dos autos, quer documental, quer testemunhal que alicerce os factos então dados como provados.
VI. Há erro notório na apreciação da prova do tribunal a quo a dar como provado que foi a Sociedade que forneceu os documentos para análise contabilística (ponto 5 dos factos provados), atente à passagem da gravação do depoimento da Testemunha BB, início da gravação no dia 14.11.2022 às 09:44:16 e fim da gravação às 09:58:24. Passagem de 00:01:24 a 00:02:34 “00:01:24 Testemunha: Daquilo que eu me lembro, já foi há muitos anos, isto foi um pedido de informação por causa de um IVA que foi liquidado e não entregue. E, portanto, eu … eu à partida devo ter mandado carta aviso a dizer que ia, não sei se isto é uma (…) não interessa. Eu lembro-me de ter estado à porta, a tocar à campainha e estar à espera a ver se alguém atendia. Mas nunca atendeu ninguém, e fiz uns telefonemas até encontrar quem me desse os elementos que eu precisava.
00:02:03 Magistrada MP: Que elementos eram esses? E o que é que recolheu sobre essa pessoa? 00:02:07 Testemunha: Não com ele nunca falei, segundo está na minha informação, porque eu não me lembro de nada disso. Segundo está naquilo que eu escrevi eu contactei com o técnico de contas desta empresa, depois de muitas insistências consegui falar com ele e com o único cliente que ele tinha, na altura. E eles enviaram-me extratos de conta corrente, cópias de faturas, cópias de recibos e foi com isso que eu fiz a minha informação.”
VII. Por outro lado, há erro notório na apreciação da prova do tribunal a quo a dar como provado que o Arguido não regularizou a situação em falta (ponto 13 dos factos provados), porquanto do depoimento da Testemunha BB, extrai-se que se desconhece esse facto, não tendo o tribunal a quo indagado e ordenado oficiosamente a junção de prova de tal facto. Atente-se ao aludido depoimento, início da gravação no dia 14.11.2022 às 09:44:16 e fim da gravação às 09:58:24. Passagem de 00:11:48 a 00:13:43
00:11:48 Defensora Arguido: Aqui quando diz que existem outras execuções no valor aproximado de 172 mil e mais alguma (…), acho que oitocentos e dois, chegou a este montante global, no sistema viu que estava incluída esta 00:12:09 Testemunha: O nosso sistema a única informação que nos dá é o valor total em dívida, o valor pago, o valor por pagar, x planos prestacionais, mas depois quando eu tento entrar eu não consigo entrar em detalhe. Não sei existem planos prestacionais, se as reversões foram executadas ou não 00:12:28 Defensora Arguido: Mas não existe um sistema em que possa verificar se estes valores foram eventualmente foram entregues por guias, ou se foram pagos? 00:12:34 Testemunha: Estes 172 estão todos em falta … 00:12:37 Defensora Arguido: Não… 00:12:38 Testemunha: Há uma parte que já foi paga. 00:12:39 Defensora Arguido: Estes 172 estão, está incluído as quantias que nós estamos aqui a falar? 00:12:44 Testemunha: Não consegui ver. (…) 00:13:11 Defensora Arguido: Portanto neste momento não sabe se estas quantias estão em dívida. 00:13:15 Testemunha: Esta específica destes três períodos não. 00:13:20 Defensora Arguido: Não sabe? 00:13:21 Testemunha: Não sei, agora não sei, é o que eu disse, eu não sei se é, como nós não precisamos disto para trabalhar, no meu trabalho, como a rede está tão sobrecarregada às tantas tiraram-nos acesso. Não faço ideia, não faço ideia. Quem tem acesso a isto é o serviço de finanças onde o senhor pertence, eles têm que ter porque eles trabalham com isto no dia-a-dia.”
VIII. Há ainda erro notório na apreciação da matéria de facto dada como provada, mormente o ponto 10. da sentença que ora se recorre, porquanto não existem quaisquer indícios, nem provas de que o Arguido se apropriou do montante correspondente ao IVA, fazendo-o ilegitimamente seu e da empresa Arguida.
IX. Aliás, conforme se extrai da motivação da matéria de facto dada como provada o tribunal a quo motivou que “Também desconhecemos qual o fim dado ao valor de IVA recebido e não entregue ao Estado, mas não resulta de qualquer meio de prova que tal montante tenha sido empregue para proveito pessoal do arguido.”
X. Não pode face a esta PROVA, o tribunal a quo concluir como conclui sem cair em derrapagem por manifesto erro notório, pelo que o Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou o artigo art.º 410º n.2 al. c) do CPP.
XI. Perante o depoimento da única testemunha e face às regras da experiência comum, o tribunal a quo, salvo devido respeito, mal andou ao considerar como provados os pontos 5, 10 e 13, devendo pelas razões e prova serem dados e julgados como não provados. Impunha-se pois, decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo, com a consequente absolvição do Arguido por manifesta insuficiência de prova e ainda em cumprimento do princípio in dubio pro reo.
XII. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou de forma flagrante o princípio constitucionalmente consagrado no art.32º n.º2 1ª parte da CRP de in dubio pro reo, porquanto o tribunal a quo deu como provado factos duvidosos, arriscando mesmo dizer que deu como provados factos que não poderiam ter sido dados como provados face à prova produzida em audiência de julgamento e aos documentos dos autos, que são desfavoráveis ao arguido.
XIII. Outrossim, impunha-se um estado de dúvida, que segundo o princípio geral orientador do nosso processo penal do in dubio pro reo não poderia o tribunal a quo ter decidido como decidiu e ainda atenta a motivação da formação da sua convicção. Face a isso impunha-se pois ao tribunal decidir a favor do arguido (pro reo)
XIV. Dos autos inexiste qualquer prova, quer documental, quer testemunhal que ateste que o Arguido efetivamente não regularizou a situação em falta, e bem assim de que o Arguido se apropriou do valor do IVA para proveito próprio e/ou da empresa.
XV. Na verdade, e no que respeita ao pagamento ou não do IVA, conforme decorre do depoimento da única testemunha a mesma afirma que foram realizados alguns pagamentos, porém a plataforma não permite aferir se os mesmos se referem ao período em falta ou não, ou mesmo se foi operado um plano prestacional para pagamento de eventuais valores em dívida, atente-se ao depoimento da Testemunha BB, início da gravação no dia 14.11.2022 às 09:44:16 e fim da gravação às 09:58:24. início da gravação no dia 14.11.2022 às 09:44:16 e fim da gravação às 09:58:24. Passagem de 00:11:48 a 00:13:43
00:11:48 Defensora Arguido: Aqui quando diz que existem outras execuções no valor aproximado de 172 mil e mais alguma (…), acho que oitocentos e dois, chegou a este montante global, no sistema viu que estava incluída esta. 00:12:09Testemunha: O nosso sistema a única informação que nos dá é o valor total em dívida, o valor pago, o valor por pagar, x planos prestacionais, mas depois quando eu tento entrar eu não consigo entrar em detalhe. Não sei existem planos prestacionais, se as reversões foram executadas ou não 00:12:28 Defensora Arguido: Mas não existe um sistema em que possa verificar se estes valores foram eventualmente foram entregues por guias, ou se foram pagos? 00:12:34 Testemunha: Estes 172 estão todos em falta … 00:12:37 Defensora Arguido: Não… 00:12:38 Testemunha: Há uma parte que já foi paga. 00:12:39 Defensora Arguido: Estes 172 estão, está incluído as quantias que nós estamos aqui a falar? 00:12:44 Testemunha: Não consegui ver. (…) 00:13:11 Defensora Arguido: Portanto neste momento não sabe se estas quantias estão em dívida. 00:13:15
Testemunha: Esta específica destes três períodos não. 00:13:20 Defensora Arguido: Não sabe? 00:13:21 Testemunha: Não sei, agora não sei, é o que eu disse, eu não sei se é, como nós não precisamos disto para trabalhar, no meu trabalho, como a rede está tão sobrecarregada às tantas tiraram-nos acesso. Não faço ideia, não faço ideia. Quem tem acesso a isto é o serviço de finanças onde o senhor pertence, eles têm que ter porque eles trabalham com isto no dia-a-dia.”
XVI. Em suma, o princípio in dubio pro reo afirma-se como um princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213, Ed. de 1974].
XVII. A violação do princípio in dubio pro reo tem vindo a ser tratada pelo STJ como erro notório na apreciação da prova [Cfr. o Ac. do STJ de 24 de Março de 1999, in “Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça”, ano VII, tomo 1, pág. 247 e ss].
XVIII. Assim e face ao estado de dúvida que se impunha ao Tribunal a quo, este violou o artigo art.32º n.º2 1ª parte da CRP que consagra o princípio in dúbio pro reo, inconstitucionalidade e ilegalidade que se arguiu para os legais efeitos. Ademais, dúvidas não há de que a culpa do Arguido não pode decorrer da mera circunstância da quantia de IVA não ter sido entregue, no prazo devido, nos cofres do Estado, sob pena da decisão recorrida estar ferida de inconstitucionalidade, por força do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
XIX. Num outro plano, o nosso processo penal orienta-se e é regido ainda pelo princípio da investigação, ou seja, incumbe não só às partes, mas também ao julgador a condução e esclarecimento da matéria factual, tudo com vista à descoberta da verdade material, princípio este aliado ao princípio da investigação.
XX. Destarte, sobre o julgador recai “o ónus de investigar oficiosamente, independentemente das contribuições das partes, o facto submetido a julgamento” (Jorge de Figueiredo Dias. Direito Processual Penal, 1988-9. p.129);
XXI. Tal desiderato encontra-se consagrado no artigo 340º n.º1 do CPP, posto que o juiz pode e deve ordenar oficiosamente ou a requerimento a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
XXII. Pelo que o Tribunal a quo não cumpriu o ónus de investigação oficiosa a que se encontra adstrito entrando em verdadeira derrapagem legal e violando o princípio incito no normativo 340º n.º1 do CPP, ilegalidade que se arguiu para os legais efeitos.
XXIII. Acresce ainda que, o tribunal a quo na sentença que ora se recorre, o tribunal a quo entra em flagrante contradição, vejamos,
- Da motivação da sentença que ora se recorre o tribunal a quo afirma que “a testemunha afirmou que foram feitos alguns pagamentos, mas que não consegue imputar a estes períodos, pelo que não ficou demonstrado se o arguido procedeu, ou não, à liquidação desta quantia. Também desconhecemos qual o fim dado ao valor de IVA recebido e não entregue ao Estado, mas não resulta de qualquer meio de prova que tal montante tenha sido empregue para proveito pessoal do arguido”, porém dos factos provados o tribunal a quo deu como provado no ponto 10. Que “ao invés disso, o arguido AA apropriou-se desse montante, fazendo-o ilegitimamente seu e da empresa arguida”;
- ao passo que no facto provado 13 o tribunal a quo afirma que o Arguido ainda não regularizou a situação em falta, por outro lado na sua motivação o tribunal a quo afirma que não ficou demonstrado se o arguido procedeu ou não à liquidação desta quantia.
XXIV. Mas afinal que entendimento se poderá extrair face à prova produzida em sede de audiência de julgamento e a motivação do tribunal a quo?? Quid iuris?
XXV. Assim, conclui-se pela existência de contradição insanável da fundamentação, porquanto se verifica uma oposição insanável entre os factos provados e a motivação da formação da convicção do tribunal a quo, note-se relativamente a essa contradição o Acórdão do STJ de 22/05/1996 –Proc. 306/96, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. 502/08.0GEALR.E1.S1, de 24.02.2016, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 3805/12.6IDPRT.G1, de 11.05.2015
XXVI. Deste modo e face a tais contradições insanáveis, o tribunal a quo violou o disposto no art. 410º n.º2 al. b) do CPP, ilegalidade que se arguiu para os legais efeitos.
XXVII.Assim, face à contradição insanável entre os factos provados e a sua motivação e ainda ao erro notório da apreciação da prova, mormente os pontos 5, 10 e 13, impunha-se ao tribunal a quo decisão diversa, sob pena de violação do princípio penal de in dubio pro reo.
Nestes termos e nos mais de direito deverão V.ª Ex.ª julgar procedente o presente recurso e em consequência ordenar a revogação da sentença que ora se recorre com a consequente absolvição do Arguido do crime a que foi condenado, fazendo-se assim INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”
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Por despacho proferido em 20.01.2023 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo ao recurso interposto da decisão final, sustentando que a sentença recorrida não padece de qualquer vicio e fez uma correcta interpretação e aplicação da lei e do direito e, por isso, o recurso não merece provimento, devendo a sentença ser mantida nos seus precisos termos.
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DOS RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS:

i) Em 06.03.2017 foi proferido nos autos o seguinte despacho (fls. 555/559):

No âmbito da respetiva contestação, o arguido, AA, requereu a extinção do procedimento criminal com fundamento na prescrição.
Aberta vista, o Ministério Público opôs-se à pretensão do arguido, pelas razões aduzidas na promoção de fl. 549-550, com as quais se concorda.
Cumpre, pois, decidir, já que a tal nada obsta.
E, decidindo, vale destacar, de pronto, que não assiste razão ao arguido.
Senão, veja-se.
O arguido, AA, encontra-se acusado, nos presentes autos, da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de Abuso de Confiança Fiscal, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), por referência aos artigos 19.° a 26.°, 27.°, 29-° e 41.° do Código do Iva.
Por sua vez, a arguida, A..., Unipessoal, Lda., é responsável por tal infracção nos termos do artigo 7.º do RGIT.
Acresça-se que a acusação foi recebida com a qualificação jurídica efetuada pelo Ministério Público (cf. fls. 510) - é esta qualificação que, ipso facto, importa aqui considerar.
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Do teor da acusação, além do mais, resulta o seguinte:
- os factos atribuídos ao arguido respeitam ao terceiro trimestre de 2010 (2010/09T) e ao primeiro trimestre de 2011 (2011/03T);
- as quantias de IVA correspondentes deviam ter sido entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (ou seja, respetivamente, ate ao dia 15 de novembro de 2010 e até ao dia 15 de maio de 2011); e
- o Ministério Público considerou que a reiteração de actos ou a multiplicidade formal de infrações, por parte do arguido, foi dominada por uma única resolução ou objetivo.
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O artigo 5.° do RGIT tem a subsecutiva redação:
“1 - As infrações tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no nº 3.
2 - As infrações tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários.
3 - Em caso de deveres tributários que possam ser praticados em qualquer serviço da administração tributária ou junto de outros organismos, a respetiva infração considera-se praticada no serviço ou organismo do domicílio ou sede do agente" (o sublinhado é da minha autoria).
Interessa clarificar, hic et nunc, que há crimes que, apesar de se consumarem por atos sucessivos ou reiterados, configuram apenas um crime: não há pluralidade de crimes, mas antes pluralidade no modo de execução; e a execução surge reiterada quando cada ato de execução sucessivo realiza, parcialmente, o evento do crime, id est, a cada fração ou parcela da execução segue-se um evento parcial. Contudo, os eventos parcelares devem ser valorados como evento unitário, sendo, pois, a soma dos eventos parcelares que constitui o crime único.
Trata-se, pois, de uma realização plúrima e repetida do tipo e a pertinente execução consolida-se de forma duradoura ou permanente. Significa isso que a violação do bem jurídico protegido perdura no tempo e prolonga-se para além dos concretos momentos em que se estão a ocasionar as concretas infrações - o crime persiste enquanto durarem os atos lesivos, isto é, enquanto se mantiver a situação antijurídica. A esse propósito, na doutrina francesa, fala-se da denominada infração contínua, que se prolonga por um certo tempo, quer pela vontade do agente (infração continua sucessiva), quer pela natureza das coisas (infração continua permanente) - Ver Manuel Lopes Rocha, Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço, nas Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, C.E.J., Fase l, pág. 102 - o crime surde conformado por uma execução criminosa continuada, dominada por uma única resolução.
Pode, assim, declarar-se que o crime que se concretiza por atos sucessivos se mostra consumado com o primeiro ato parcial; porém, não se esgota/exaure até que se realizem todos os demais atos parciais. Assim sendo, conquanto se opere a consumação com o primeiro ato parcial, o delito apenas se considera terminado com o último ato que integra a situação antijurídica.
Tal natureza determina, desde logo, que o início do prazo prescricional se reporte ao dia da prática do último ato criminoso, ou seja, ao momento final da ação típica - Cf. H.H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Vol. 2°, Bosch, Barcelona, 1981, pág. 1240.
Firmado que se trata de um crime consumado por atos sucessivos ou reiterados, conclui-se que a consumação do crime atribuído ao arguido se tem por verificada no dia 15 de maio de 2011, correspondente à data referente à última infração.
Nesse sentido, dispõe o artigo 19.º, n° 2, do Código de Processo Penal, que "para conhecer do crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados, ou por um só ato suscetível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato."
De outro lado, o artigo 119.º do Código Penal, além do mais, estabelece o seguinte:
"1. O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2. O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último ato criminoso."
Dado que se trata de um crime consumado por atos sucessivos ou reiterados, mostra-se inadmissível, naturalmente, fracionar o crime único pelas parcelas que o completam.
Ressalte-se também que o artigo 105.º, n.° 4, alínea a), do RGIT, fixa que "os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação."
Relativamente ao sobredito normativo, incumbe avultar que o decurso do período de 90 dias sobre o termo do prazo de entrega da prestação não é um elemento constitutivo do crime e consubstancia, unicamente, uma condição de instauração do procedimento criminal, isto é, uma condição de procedibilidade ou de punibilidade - Ver Nuno Lumbrales, O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infrações Tributarias, Fiscalidade 13/4, Revista de Direito e Gestão Fiscal, janeiro/abri 2003,pág. 93; A. Silva Dias, Crimes e Contra-Ordenações Fiscais, pág, 463; Alfredo José de Sousa, Infrações Fiscals (Não Aduaneiras), 3.ª Edição, anotada e atualizada, do. dit pão. 107; e, Antônio Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo, Regime Geral das Infrações Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais anotados, Coimbra Editora, 2002, pág. 333-. Na verdade, haja em vista que, nos termos do estabelecido no artigo 5.º, n.° 2, o momento da consumação das infrações fiscais omissivas ocorre no termo do prazo para o cumprimento dos deveres tributários.
O mencionado prazo de 90 dias permite ainda distinguir o crime de abuso de confiança fiscal do pertinente ilícito de contraordenação fiscal - este último verifica-se quando a falta de entrega dolosa durar por um período até 90 dias.
A consumação verifica-se, pois, no dia seguinte àquele em que terminar o prazo para a entrega da prestação tributária.
Contudo, insta enfatizar que a antedita condição objetiva de punibilidade releva naturalmente para efeitos do início do prazo e para a suspensão da prescrição, nos termos dos artigos 119.º, n. 1, e 120.º, n.° 1, alínea a), do Código Penal - In hoc sensu, cf. Isabel Marques da Silva, Regime geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEF, n.° 5, 2.ª edição, pg. 179, e o Acórdão da Relação do Porto de 21/04/2010, disponível em www.dgsi.pt/trp.
*
Sinalize-se, nesta oportunidade, que o artigo 21º. da Lei n.° 15/2001, de 05/06 (RGIT), estatui o seguinte, nos respetivos números 1 e 2:
"1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática sejam decorridos cinco anos.
2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a 5 anos."
Ora, o sobredito artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, determina que, "quem não entregar a administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias."
De outro lado, o artigo 118.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, preceitua que o procedimento criminal se extingue, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tenham decorrido cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos"
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Anote-se, agora, que, no dia 02/08/2016 (cf. fls. 501), o arguido, AA, foi notificado da acusação deduzida pelo Ministério Público - com a citada notificação, interrompeu-se a prescrição [cf. o artigo 121.º, n.° 1, alínea b)] e ocorreu, igualmente, a partir de tal notificação, a suspensão da prescrição referida no artigo 120.º, nos 1, alínea b), e 2, do Código Penal, com o limite de três anos.
Convém ainda registar que, por efeito da predita condição objetiva de punibilidade, a prescrição do procedimento criminal se suspendeu, a partir de 15/05/2011, pelo período de 90 dias, porquanto, sem se entrar transcorrido tal período, o procedimento criminal não podia legalmente iniciar-se - cf. os artigos 119.°, n.° 1, e 120.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
Ex positis, a prescrição apenas teria ocorrido se o arguido tivesse sido notificado da acusação após o dia 15/08/2016.
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Desta sorte, atenta a data da prática dos factos, o lapso de tempo entretanto decorrido, a interrupção e as suspensões da prescrição do procedimento criminal verificadas e, ainda, o disposto no artigo 121.º, n.º 3, 1.ª parte, é inconcusso que o procedimento criminal que, nestes autos, é exercido contra o arguido, AA, não se encontra prescrito.
À vista do exposto, indefiro o requerido pelo arguido.
Notifique.
Por ora, notifique também o arguido, na pessoa da sua mandatária, para aclarar se pretende comparecer ao julgamento que se mostra designado, ou se consente/autoriza que o julgamento se realize na respetiva ausência.
Prazo: 10 dias.

O arguido interpôs recurso desse despacho judicial (fls. 564/577), pugnando pela sua revogação, o qual remata com as seguintes conclusões:

I - O crime de abuso de confiança fiscal, da previsão dos arts. 105.º, n.º1, 2, 4,3 7 do RGIT, é um crime de dano, cuja conduta típica pressupõe a lesão do patrimônio fiscal do Estado, consubstanciado na tutela do erário público, e esgota-se no não cumprimento, pelo substituto tributário, de um dever previsto na lei, não entrega à administração fiscal da prestação tributária a que estava obrigado, no prazo fixado por lei para cada tipo e espécie de prestação deduzida.
II - Ao contrário do que sucedia na vigência do RJIFNA (redacção do DI n.º 394/93, de 24 de Novembro), o elemento "apropriação" não integra, atualmente, o tipo de ilícito, tendo portanto deixado de ser um crime de resultado, sob a forma de comissão por ação, e passado a ser um crime de mera atividade - ou, no caso, de mera inatividade.
III- A conduta típica respectiva traduz-se, pois, numa omissão pura, que se consuma com a não entrega dolosa das prestações deduzidas nos termos e no prazo de entrega fixado para cada prestação.
IV- Tal como decorre desde logo da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 6/2008, publicado no DR, I Série, de 15-05-2008, o prazo de 90 dias a que se refere a alínea a) do n.° 4 do art.° 105° do RGIT configura mera condição objectiva de punibilidade que, situada totalmente fora. do perímetro de delimitação da infração penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa, não pode por conseguinte ter qualquer interferência ou repercussão no momento consumativo daquele ilícito típico, que continua a ocorrer no termo do prazo legal de entrega da prestação devida.
V -a consumação formal e material ocorre aqui com a simples omissão de entrega da prestação devida até ao limite do respectivo prazo legal.
VI - Isto desde logo porque o resultado que, com a sua previsão típica, se pretende evitar é apenas e tão só que o agente não deixe de entregar a prestação contributiva devida, até à data em que o Estado a espera arrecadar. A incriminação foi erigida, pois, apenas para punir a conduta omissiva do respectivo agente, conduta essa desligada até de qualquer resultado lesivo. Ou seja, independentemente da subsequente entrega ou não entrega das quantias descontadas e devidas, a conduta típica já está perfectibilizada.
VII- Neste quadro, e por se não vislumbrar assim a verificação de qualquer evento que, para além da conduta em si mesma, possa ainda interessar à valoração do ilícito que o tipo tutela, a distinção entre "consumação formal" versus "consumação material" não assume a menor relevância típica no contexto do crime fiscal de abuso de confiança.
VIII - For isso, o eventual pagamento voluntário da prestação tributária devida no decurso da condição objectiva de punibilidade prevista na citada alínea a) do art. 105.º do RGIT nada acrescenta à definição da espécie ou do tipo legal de crime, configurando apenas uma causa de extinção da responsabilidade penal que não uma hipotética desistência da tentativa, porquanto aquele se consumou com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei.
IX - O acórdão do STJ, proc. n.º 398/09.5TALGS-EI-A-51, data de 08-01-2015 em www.dgsi.pt., conclui que "Do mesmo passo que não resulta igualmente aceitável que quem entende (como acontece com Isabel Marques da Silva com certo sector de jurisprudência das Relações) que a exigência prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade, considere ainda assim que ela possa funcionar como uma causa de suspensão do procedimento criminal. "E isto porque, encontrando-se, por força do princípio da legalidade, as causas de suspensão da prescrição previstas expressamente no Código Penal (artigo 120°), no âmbito de qualquer uma delas [mais exactamente e com relevância para o caso, na alínea a) do número 1 da mesma disposição legal] não é susceptivel de enquadrar-se a referida alínea a) do número 4 do artigo 105 do RGIT”.
X- Por todo o aduzido (alicerçado na jurisprudência e doutrina abundante), entende-se que o momento a considerar, para efeitos de consumação do crime de abuso de confiança fiscal (quer fiscal em sentido estrito - artigo 105 do RGIT -quer contra a Segurança Social - artigo 107° do mesmo diploma) e, na decorrência disso, do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, e, nos termos do artigo 5°, número 2 do mesmo diploma, o dia seguinte ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega da prestação contributiva deduzida
XI- no caso concreto a data relevante a atender, para efeitos do inicio da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de que vem acusado o arguido, aqui Recorrente, é a que correspondente ao dia seguinte ao termo do prazo legal para a entrega da prestação contributiva, ou seja a partir de 15 de Maio de 2011.
XII- está assente que o arguido apenas foi notificado da acusação a 02/08/2016
XIII- por consequência o procedimento criminal contra o aqui arguido está prescrito, tendo por referencia o art.º 118° n.º 1 al. c) do CP, o art. 105º n.º1 e art.º 5 n.º 2 do RGIT
XIV - por conseguinte, o tribunal a quo ao decidir que "por efeito da predita condição objetiva de punibilidade, a prescrição do procedimento criminal se suspendeu, a partir de 15/05/2011, pelo período de 90 dia, porquanto, sem se entrar transcorrido tal período, o procedimento criminal não podia legalmente iniciar-se - cf. Art.119, n,° 1 e 120° n.° 1 al. a) do CP', mal andou violando os normativos 105., n.º1, 2, 4, 3 7, e 5° n.º 2 do RGIT, ilegalidade que se argui para os legais efeitos.
XIII- para além do mais, o tribunal a quo ao decidir como decidiu em despacho que ora se recorre, contraria manifestamente jurisprudência unânime uniforme já parafraseada na motivação do presente recurso, e ainda doutrina abundante já aclamada na motivação do recurso.
Nestes termos e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser revogado a douto despacho recorrida, com as legais consequências.

Este recurso foi inicialmente admitido por despacho proferido a 08.05.2017, para subir com o recurso interposto da decisão final, nos próprios autos, e com efeito devolutivo mas, posteriormente em despacho de 22.06.2017 prolatado em audiência de julgamento que não se realizou, considerado como de subida imediata em separado. Todavia não foi apreciado já que por decisão sumária deste TRP determinou-se o regresso à 1ª instância.

O Ministério Público respondeu (fls. 587/594) e aduziu o seguinte quadro conclusivo:

1- O Douto Despacho recorrido constante de fls. 555 a 559, encontra-se devidamente fundamentada, não estando ferido de qualquer vício, nem incorrendo na violação de qualquer normativo legal, ou princípio legal, tendo aplicado corretamente os normativos legais previstos parta o caso em concreto quer os previstos no Código Penal, quer os previstos no Regime Geral das Infrações Tributárias, pelo que, deve ser integralmente mantido e improcedente o recurso interposto.
2- Com a notificação pessoal da acusação ao arguido e representante legal da sociedade arguida, ocorreu a suspensão e a interrupção da prescrição do procedimento criminal no dia 2 de Agosto de 2016, antes de se ter completado o prazo normal da prescrição do procedimento criminal.
3- Dispõe o art.° 121° n.° 1, alínea b), do Código Penal que a prescrição do procedimento criminal, interrompe-se com a notificação da acusação. Por efeito da causa de interrupção prevista no art.° 121.° n.° 1, alínea b), do Código Penal, é desde logo aplicável o disposto no art.° 121.° n.° 3, do Código Penal. Acresce que, o previsto no Código Penal sobre a suspensão e interrupção da prescrição do procedimento criminal é aplicável por força da remissão operada pelo art.° 21 n.° 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
4- Na verdade, de acordo com tal normativo do Regime Geral das Infracções Tributárias, o prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal (...).
5- Face ao supra exposto, com as causas de suspensão e de interrupção ocorridas, atrás indicadas, concluímos que o prazo máximo de prescrição nos autos ainda não decorreu. Pois, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de cinco anos e tendo ocorrido causas de suspensão e de interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal previstas na alíneas a) e b) do n.° 1 do art.° 120° do Código Penal e nos termos do art.o 121.° n.° 1, alínea b), ambos do Código Penal conjugado com o previsto nos art.°s 120.° n.° 2 e 121.° n.° 3, ambos do Código Penal, somos do parecer não estar ainda alcançado o prazo máximo da prescrição do procedimento criminal como invoca o arguido, pois o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal são 10 anos e 6 meses, o que apenas ocorrerá no dia 16 de Fevereiro de 2022.
6- Em face do supra exposto e contrariamente ao recorrente, entendemos que não se mostra violada qualquer norma ou disposição legal, nem se conclui estar decorrido o prazo máximo da prescrição do procedimento criminal que por estes autos se move contra o arguido, a qual apenas se verificará após decorridos 5 anos + 2 anos e 6 meses (art.° 121.° n.° 3, do Código Penal - interrupção) e ainda o prazo 3 anos, relativo ao período da suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal aplicável, concluindo-se então que se alcançará o prazo máximo da prescrição do procedimento criminal no dia 16 de Fevereiro de 2022.
7- Concluindo-se, em face dos argumentos expostos conjugados com argumentos do douto despacho recorrido, que se mostra deviamente fundamentado, pugnamos pela improcedência do recurso interposto e manutenção do prosseguimento do procedimento criminal instaurado contra o arguido.
Contudo, V.as Ex.ªs, farão, como, sempre, JUSTIÇA”

ii) Em 21.09.2017 foi proferido nos autos o seguinte despacho (fls. 621/622):

“O arguido AA, actualmente com paradeiro desconhecido, foi acusado em autoria material da prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos artigos 6º, 105º, nºs 1, 2, 4 e 7 do RGIT.
Designada a data para a realização da audiência de discussão e julgamento, não foi possível notificá-lo do respectivo despacho, constatando-se ainda, não estar o arguido notificado da acusação.
Determinou-se, então, por despacho de fls. 605 e 606 por referência à promoção de fls. 550, o cumprimento do disposto no artigo 335º nº1, do Código de Processo Penal, ou seja, a notificação do arguido por editais para se apresentar em juízo, no prazo de 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.
O arguido não se apresentou em juízo dentro do prazo supra referido.
Nestes termos e ao abrigo do disposto no artigo 335º, nº3 do Código de Processo Penal, declaro a CONTUMÁCIA de AA.
*
A partir da presente declaração de contumácia, consideram-se anuláveis todos os negócios jurídicos de natureza patrimonial efectuados pelo arguido – artigo 337º, nº 1, “in fine”, do Código de Processo Penal.
*
Decreta-se a proibição de o arguido AA obter, junto de autoridades públicas, os documentos, certidões ou registos de que venha a necessitar – artigo 337º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Notifique nos termos do disposto no nº5 do art. 337º do Código de Processo Penal.
*
Dê-se cumprimento ao disposto no nº 6, do artigo 337º, do Código de Processo Penal.
*
Os presentes autos estão suspensos até à sua apresentação ou detenção, nos termos do disposto no artigo 335º, nº3 do Código de Processo Penal, sem prejuízo da prática de actos urgentes, de acordo com o artigo 320º, do referido diploma legal.
*
A presente declaração implica a interrupção do prazo prescricional – artigo 121º, nº1, al. c), do Código Penal.”

O arguido interpôs recurso desse despacho (fls. 564/577), pugnando pela sua revogação, o qual remata com as seguintes conclusões:

I - Do teor do despacho ora em crise, resulta o seguinte "o arguido AA, actualmente com paradeiro desconhecido” (sublinhado nosso) declarara a contumácia do arguido, aqui Recorrente
II - Ora, e com o devido respeito que é todo, o tribunal a quo, mal decidiu e avaliou ao declarar a contumácia do arguido, aqui Recorrente
III- porquanto, e tendo em consideração que foi cumprida Carta rogatória n° 12/2016, através do qual o aqui arguido/ recorrente foi notificado pessoalmente, no dia 02-08-2016, em seu nome e em representação da sociedade arguida, do despacho de arquivamento e acusação proferido nos autos a fls. 447 a 453;
IV- e que predita carta rogatória tinha a indicação de notificar o arguido na morada Av. ..., ... ....
V - e ainda que o arguido, aqui recorrente foi notificado por carta registada com aviso de receção a fls. na qualidade de arguido, para comparecer em audiência de discussão e julgamento,
VI- foi ainda o arguido de despacho de acusação / pronuncia, e ainda do termo de identidade e residência, cfr. Art.° 196° do CPP conforme carta que se junta e se dá por integramente reproduzida, cfr. Doc. 1.
VII-A carta foi expedida para a morada do arguido sito à Av. ..., ... ...
VIII-A predita carta, cfr. Doc. 1 foi recebida pelo aqui arguido AA conforme doc. 2
IX- Ora, conhecida que é a sua morada no Brasil, país, onde já foi notificada para outros atos processuais, nomeadamente da audiência de julgamento e do TIR (esta ultima por carta registada com aviso de receção e recebida pelo arguido, conforme prova cabal nos autos, cfr.Doc. 1 e 2) ; e ainda da possibilidade de nesta morada continuar a ser notificado da data para a audiência de julgamento, tem-se como mais assertiva não só segundo as exigências legais como também segundo o sentido pragmático da melhor tramitação processual com vista a atingir o desiderato final no processo em causa, que a declaração de contumácia nesta situação de conhecimento da morada do arguido, seria uma errónea solução, que o legislador pretende evitar, sendo esta o último remédio para aqueles casos em que, de todo, não é conhecida a morada do arguido e, logo, não é possível notificá-lo.
X- Conclui-se, desta feita, que e ao contrário que o tribunal a quo pretende fazer crer, o paradeiro do arguido, ora recorrente é conhecido, que se apresenta nos autos como Av. ..., ... ...
XI - O Tribunal a quo não podia ter declarada a contumácia do arguido, nos termos em que o fez, na medida em que o arguido foi devidamente notificado do despacho que recebeu a acusação e designou data para julgamento através de carta com aviso de receção.
XII- Ainda que assim não se entendesse, e dado o paradeiro conhecido do arguido sempre o Tribunal a quo poderia ou devia ter diligenciado pela emissão de carta rogatória para procederem à notificação do arguido para comparecer no Tribunal a fim de ser ouvido em audiência de julgamento, assim como de todo o conteúdo do despacho que recebe a acusação/ pronúncia.
XIII- Ao dar por assente que o arguido tem paradeiro desconhecido o despacho recorrido violou o preceituado nos arts. 196.° e 335° do Código de Processo Penal.
XIV - O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 335, n° 1 e 337°, n.° 3 do C.P.P, o artigo 32°, n° 5, 2ª parte da C.R.P, ou seja, não cumprir o preenchimento dos requisitos para a declaração da contumácia e coarctou os direitos do arguido, assim como as garantias de processo criminal a que está vinculado, designadamente o exercício do direito de defesa do arguido.
XV - devendo deste modo, o que se roga aquele despacho ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos para marcação de audiência de discussão e julgamento.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E EM CONSEQUÊNCIA SER REVOGADO O DOUTO DESPACHO ORA RECORRIDO, COM AS LEGAIS CONSEQUENCIAS.
FAZENDO-SE ASSIM INTEIRA E SÃ JUSTIÇA”

Este recurso foi admitido por despacho proferido a 20.11.2017 (fls. 787), para subir com o recurso interposto da decisão final.

O Ministério Público respondeu (fls. 798/807) e aduziu o seguinte quadro conclusivo:

1- Inconformado com o teor do Douto Despacho proferido a 21 de Setembro de 2017, constante de fls. 621 e 622, no qual foi declarada a contumácia do arguido AA vem, o mesmo interpor o presente recurso, o que suspende o andamento dos autos.
2- Dos autos resulta que foi expedida Carta Rogatória n.° 2/2016, para o Brasil, com vista à notificação, constituição de arguido e prestação de Termo de Identidade e Residência do arguido e sociedade arguida na morada conhecida ao arguido no Estado do Ceará (cf. fls. 397 a 403), mas do oficio do Ministério Público Federal da Procuradoria da República do Estado do Ceará, o arguido no dia 17 de Março de 2016, recusou tomar conhecimento dos factos a si imputados, bem como, assinar o correspondente termo de notificação (cf. fls. 414 dos autos e ainda a notificação de fls. 427).
3- De fls. 431 e 432, consta que a 17 de março de 2016, o arguido em termo de declarações por si assinado perante o Exmo Procurador Regional da República do Ceará, informou que não desejava efectuar qualquer tipo de acto, tendo recusado a receber a descrição das acusações e dos factos detectados pela inspeção tributária realizada na empresa A..., Unipessoal, Lda., bem como, assinar o termo de notificação constante de fls. 20 do Procedimento de Cooperação Internacional.
4- Por força do disposto no art.° 113.° n.° 7 alínea a), do Código de Processo Penal, mediante aquela recusa, considerou-se nos autos o arguido notificado e com a qualidade de arguido desde o dia 17 de Março de 2016.
5- Expedida a carta rogatória n.° 12/2016 de fils. 461 e 481 a 505, para as autoridades judiciárias do Brasil para a morada conhecida ao arguido (Av. ..., ..., ...) foram feitas diversas diligências para a localização do arguido (cf. fis. 494) e foi apurado que o mesmo não se encontrava naquela morada e estaria em Fortaleza.
6- Entretanto, com todas as dificuldades que se lograram ter para encontrar o arguido, resulta de fls. 501 a 503 que, o arguido acabou por ser pessoalmente notificado a 02 de Agosto de 2016 (teor de fls. 501) do despacho de arquivamento e de acusação proferido nos autos, do prazo que tinha para requerer a abertura de instrução e para preencher o Termo de Identidade e Residência.
7- A posição do recorrente foi sempre no sentido de dificultar a sua notificação, não tendo preenchido, nem prestado o termo de identidade e residência que acompanhou a carta rogatória n.° 12/2016 (mostrando-se esses documentos no Anexo II, sem qualquer preenchimento ou assinatura do arguido, bem como, a fls. 465 e 466 dos autos principais).
8- Concluímos que inexiste nos autos um Termo de Identidade e Residência do arguido e em representação da sociedade arguida, com a indicação de morada para efeitos de notificação, pelo que, se inviabiliza de todo efectuar de forma regular a notificação do arguido e da sociedade arguida para contestar e para a realização do julgamento.
9- O aviso de recepção a que o recorrente alude, trata-se de fls. 528, no qual se mostra aposta uma rúbrica (imperceptível) cuia autoria se desconhece que seja do arguido e que o mesmo pode vir a invocar não ser aquela a sua assinatura/ rubrica.
10- Posto isto, da falta dos Termos de Identidade e Residência (para arguido e sociedade arguida), com indicação de morada em território nacional para ser notificado, o Tribunal deu cumprimento ao previsto no art.° 335.° n.º 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, sob pena de ser declarado contumaz.
11- Decorrido o prazo legal dos editais para o arguido por si e em representação da sociedade arguida se apresentar em juízo ou ser detido, com a cominação de ser declarado contumaz e não tendo sucedido a sua apresentação em juízo ou detenção, foi o mesmo declarado contumaz a 21 de Setembro de 2017 - cf. fls. 621 a 622.
12- Salientamos que o andamento processual não se compadece com a delonga para cada notificação com a expedição de cartas rogatórias avulsas para cada acto, nem se mostra válida a notificação do arguido por carta registada, com aviso de recepção, cuja assinatura e identificação se desconhece que seja do arguido.
13- Sendo certo, que tal posição levaria a que o Tribunal da primeira instância, chegada a data do julgamento, não pudesse concluir se o arguido estava ou não regularmente notificado, podendo até suceder não ser conhecido o resultado da carta rogatória e também aí se o arguido estava ou não notificado.
14- O invocado pelo arguido é de todo inviável e contrário ao previsto na lei processual penal para notificação do(s) arguido(s) no processo judicial penal.
15- Do disposto art.° 196.° do Código de Processo Penal, podemos ver o que aí se encontra regulado sobre a prestação do Termo de Identidade e Residência e no seu n.° 1, se refere que, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido (...) e, no n. 2, dispõe-se que, "para efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do art.° 113, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha. (...) e no n.º 3 alínea b) de que as posteriores notificações serão feitas por via postal para a morada indicada no m.°2, excepto se o arguido comunicar outra morada (..)
16- Sem prestação de Termo de Identidade e Residência, nunca se poderá considerar o arguido regularmente notificado, nos termos previstos no art. 196.º n.º 2 e 3 alínea c) e artºs 332.º n.º 1 e 333.º, todos do Código de Processo Penal.
17- A notificação prevista para o arguido por prova de depósito, como se exige, não pode ser efectuada para o Brasil, por essa forma de notificação não existir naquele país.
18- Contudo, o arguido até agora, não se sujeitou à prestação do Termo de Identidade e Residência que foi solicitado através da carta rogatória n.° 2 /2016 e na carta rogatória n.° 12/2016, não colaborando com as autoridades judiciárias do Brasil no âmbito da cooperação judiciária Internacional, pelo que, para efeitos processuais é desconhecido o seu actual paradeiro.
19- Caso não se exija a prestação do Termo de Identidade e Residência, o arguido poderá mais tarde vir invocar nulidades ou irregularidades, bem como, se não forem cumpridas as formalidades regularmente previstas na lei processual penal portuguesa para a sua notificação.
20- A posição do arguido no presente recurso apresentado, seria uma porta aberta para os arguidos conseguirem a prescrição do procedimento criminal do crime e assim obstarem a ser criminalmente responsabilizados e julgados.
21- O arguido não invoca qualquer fundamento legal doutrinal ou jurisprudencial que sustente ou apoie a sua posição, a qual nos parece não ter qualquer acolhimento, nem na lei, nem na jurisprudência, pelo que, deverá ser o recurso julgado improcedente por manifesta carência absoluta de fundamento legal.
22- O douto despacho recorrido da Mm.° Juiz a quo, não violou quaisquer normas de direito processual penal ou de direito constitucional, invocadas, não merecendo qualquer censura, pelo que, pugnamos pela manutenção da declaração de contumácia do arguido.
Contudo, V.ªs Ex.ªs farão como sempre Justiça”

iii) Em 19.10.2022 foi proferido nos autos o seguinte despacho (fls. 922):

No que respeita à prescrição invocada, renovo o despacho de fls. 876.
Notifique.
*
Fls. 918:
Ao Ministério Público.
*
Para audiência de discussão e julgamento, designa-se o dia 14 de Novembro de 2022, às 9h15m.
Como segunda data, ao abrigo do art.º 312.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, para o caso da primeira audiência ser adiada ou para audição do arguido nos termos do n.º 3 do art.º 333.º, do Código de Processo Penal, desde já se designa o próximo dia 17 de Novembro de 2022, às 14h, neste Tribunal.
(…)

Já o despacho aludido de fls. 876 foi proferido em 06.07.2022 e é do seguinte teor:

O arguido encontra-se acusado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.ºs 1,2, 4 e 7, do RGIT.
Considerando a moldura penal fixada para tal tipo legal, ao abrigo do disposto no art.º 118.º, n.º 1, al. c), do Código Penal (sendo certo que aplicamos aqui o regime jurídico actualmente em vigor, por ser o mais favorável ao arguido, considerando o limite temporal que agora se estabelece para a suspensão em razão da declaração de contumácia), o prazo de prescrição é de 5 anos.
Por seu turno, atendendo-se à condição objectiva de punibilidade de 90 dias, conclui-se que o crime continuado se consumou em 15/08/2011.
Compulsados os autos, verifica-se que, antes de decorrerem os 5 anos de prescrição, ocorreram as seguintes causas de interrupção e de suspensão:
1.º Com a notificação da acusação ao arguido, ocorrida em 02/08/2016, o prazo interrompeu-se e suspendeu-se - art.ºs 120.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, e 121.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. – e tem a duração máxima de três anos e, assim, esta suspensão apenas terminou em 21/09/2017, data em que foi declarada a contumácia, tendo alcançado o tempo de duração de 1 ano, 1 mês e 19 dias;
2.º Declaração de contumácia, em 21/09/2017 (data em que se interrompeu e suspendeu a contagem do prazo de prescrição), sendo que esta suspensão teve início depois de cessada a suspensão anterior (ocorrida pela notificação ao arguido da acusação) e ainda não terminou, sendo que o limite temporal admitido para a suspensão por contumácia é igual ao da prescrição, ou seja, cinco anos – art.ºs 120.º, n.º 1, al. c) e n.º 3, e 121.º, n.º 1, al. c), ambos do C.P.
Em face do exposto, ainda não decorreu o prazo de prescrição, estando tal prazo, neste momento, suspenso por força da declaração de contumácia, cujo limite máximo apenas ocorrerá em 21/09/2022, data em que recomeçará a contagem do prazo de prescrição.
No entanto, a lei estabelece um prazo máximo de prescrição, conforme prevê o art.º 121.º, n.º 3, que diz que a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
Considerando que os dois prazos de suspensão, decorrentes da notificação da acusação e da declaração de contumácia, ocorreram em momentos autónomos e distintos e não se sobrepuseram, conclui-se que o prazo total das duas suspensões é de 6 anos, 1 mês e 19 dias (1 ano, 1 mês e 19 dias a partir da notificação da acusação e 5 anos da declaração de contumácia).
Considerando a data dos factos (15/08/2011), o prazo de prescrição acrescido de metade (5 anos + 2 anos e 6 meses), acrescido do dois prazos de suspensão (6 anos, 1 mês e 19 dias), concluímos que o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal apenas ocorrerá no dia 03/04/2025, assim se concluindo que o procedimento criminal ainda não prescreveu.
Em face do exposto, proceda como se promove na vista que antecede.
Notifique”

O arguido interpôs recurso desse despacho em 11.11.2022 (fls. 930), pugnando pela sua revogação, o qual remata com as seguintes conclusões:

I - O Arguido por carta rogatória n.º 12/2016 foi notificado pessoalmente a 02.08.2016, em seu nome e em representação da sociedade arguida do despacho de arquivamento e de acusação proferido nos autos a fls. 447 a 453;
II. O Arguido foi posteriormente notificado da designação de data para a realização da audiência de julgamento e apresentação de contestação, notificação essa datada de 20.12.2016 para a morada indicada na carta rogatória 12/2016 sita na Av.ª ..., ... Município ...,
III. Face à supra mencionada notificação e exercendo o seu direito do contraditório o Arguido apresentou a sua contestação aos dias 23.01.2017, invocando, em suma, a prescrição do procedimento criminal.
IV. Tendo a contestação apresentada pelo arguido sido admitida por despacho de 03.02.2017, conforme notificação remetida para a aqui Causídica aos dias 06.02.2017 com a ref. 378339649.
V. Ulteriormente por despacho de 21.09.2017 veio o tribunal a quo declarar a contumácia do Arguido por alegadamente ser desconhecido o paradeiro do mesmo.
VI. Perante tal despacho, veio o Arguido interpor recurso, alegando resumidamente a ilegalidade da declaração de contumácia, porém tal recurso apesar de admitido relativamente ao momento da sua subida, entendeu o tribunal a quo que apenas deveria subir com o recurso da decisão final.
VII. Já no corrente ano o Arguido apresentou-se na secretaria do tribunal a quo com a finalidade prestar TIR, nomeadamente aos dias 11.08.2022, tendo sido uma vez mais notificado da acusação, da data de designada par a realização de audiência de julgamento e do prazo para apresentação de nova contestação.
VIII. Nesta senda, o Arguido apesar de já ter apresentado a sua contestação, veio aos dias 20.09.2022 apresentar nova contestação clamando novamente pela sua absolvição com fundamento na prescrição do procedimento criminal.
IX. Sucede que, veio o tribunal a quo proferir despacho que ora se recorre, decidindo pela inexistência da prescrição do prazo procedimento criminal porquanto tal prazo se suspendeu com a declaração de contumácia do arguido.
X. Ora, salvo o devido respeito, o tribunal a quo ao decidir como decidiu, fez uma errónea interpretação e aplicação da lei, tal como vem o Arguido alegado em sede dos recursos anteriormente interpostos.
XI. Porquanto, para a morada conhecida do arguido nos presentes autos foi remetida carta registada com designação da data da realização da audiência de julgamento para o dia 14.06.2017 às 13:45 horas e ficando designada a segunda data em caso de adiamento para o dia 21.06.2017 às 13:45 horas e a conceder prazo para apresentação de contestação.
XII. Assim, e considerando que, quem a recebeu foi o Arguido, que o mesmo nunca negou a receção dessa mesma notificação, caiem por terra os pressupostos que permitem a declaração de contumácia do arguido.
XIII. Nos termos do disposto no n.º1 do art. 335º do CPP a declaração de contumácia depende sempre da impossibilidade de notificar o arguido do despacho que designa data para a audiência de julgamento, sendo que é nessa sequência que se procede à afixação de editais.
XIV. Face à notificação do arguido por via postal, a declaração de contumácia do mesmo encontra-se ferida de uma ilegalidade, ilegalidade essa que se argui para os legais efeitos.
XV. Deste modo, tratando-se de uma declaração de contumácia ilegal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não se suspendeu em 21.09.2017, pelo que se encontra decorrido há muito o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos.
XVI. Ainda que assim não se entenda, subsidiariamente, dir-se-á, que nos termos do disposto no n.º1 do art. 335º do CPP o instituto da contumácia é um instituto residual, que somente é aplicável nas situações em que não é possível notificar o arguido, o que efetivamente não sucedeu nos presentes autos.
XVII. Relativamente a este instituto, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra de 30.06.2021, proc. 343/15.9JALRA-A.C, que “I – Residindo o arguido no estrangeiro, e sendo a respectiva localização conhecidos nos autos, a forma de assegurar a regularidade da notificação daquele do despacho que designa dia para a audiência de julgamento passa necessariamente pela expedição de carta rogatória com acionamento dos mecanismos de cooperação judiciária internacional. II – Não sendo tomada essa
forma de notificação, não estão reunidos os pressupostos para a declaração de contumácia do arguido.”
XVIII. Pelo que, salvo devido respeito, o tribunal a quo mal andou ao declarar o arguido contumaz, uma vez que, impendia sobre o tribunal a quo o ónus de realizar todas as diligências legalmente admissíveis para a notificação do arguido, ou seja, ordenar a expedição de carta rogatória tendente à notificação do arguido do despacho de marcação de dia e hora para a realização de audiência de julgamento.
XIX. O que efetivamente não ocorreu, não se encontrando deste modo preenchidos todos os requisitos necessários para uma válida declaração de contumácia do arguido, irregularidade que se argui para os legais efeitos.
XX. Desta feita, o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos, ao contrário do alegado pelo tribunal a quo, não se suspendeu aos dias 21.09.2017.
XXI. Posto que, tal como alegado em sede de recurso do despacho de declaração de contumácia, o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos encontra-se largamente ultrapassado.
XXII. Desconsiderando em absoluto, por ilegal, a declaração de contumácia passemos à análise do prazo de prescrição do procedimento criminal, o crime de que o Arguido vem acusado, crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º n.º1, 2, 4 e 7 do RGIT, trata-se de um crime consumado por atos sucessivos ou reiterados,
XXIII. Sendo certo que a consumação verifica-se no dia seguinte àquele em que terminar o prazo para entrega da prestação tributária, ou seja, 15 de maio de 2011.
XXIV. Nos termos do disposto no artigo 19º n.º1 e n.º2 al. b) do CP o prazo de prescrição inicia-se a partir do dia em que o facto se consumou, isto é, desde o dia da prática do último facto.
XXV. Note-se que da conjugação dos artigos 21º e 105º n.º1 do RGIT o prazo de prescrição do procedimento criminal do crime do qual o Arguido vem acusado é de 5 anos encontrando-se afastada a aplicação dos prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal (cfr. art. 21º n.º2 do RGIT).
XXVI. Uma vez aferido o prazo de prescrição aplicável ao crime de que o Arguido em acusado, importa referir que atento a natureza do crime em causa e conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.05.2012 , proc. 4/02.9IDMGR.C2 “1- O prazo de 90 dias a que alude o artº 105º nº 4 do RGIT, não deve ser tido em conta para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, pois aquele constitui uma condição objetiva de punibilidade que não impede o exercício da ação penal, apenas impedindo que possa ter lugar a punição; 2- Tal prazo de prescrição inicia-se na data em que o crime se consumou, isto é em que termina o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários.”
XXVII. Sem prejuízo, e ainda de que se considere que a prescrição do procedimento criminal se suspenda a partir do dia 15.05.2011 por período de 90 dias, ou seja, até ao dia 15.08.2011, por decorrência do art. 105º n.º4 al. a) do RGIT e art. 119º n.º1 e 120º n.º1 al. a) do CP.
XXVIII. Importa salientar uma vez mais que o Arguido foi notificado da acusação deduzida pelo MP aos dias 02.08.2016 através da carta rogatória 12/2016, sendo esta causa de interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos – cfr. art. 121º n.º3 do CP ex vi art. 21º n.º4 do RGIT e art. 120º n.º 1 al. b) e n.º2 do CP.
XXIX. O tribunal a quo ao aplicar o prazo da suspensão da prescrição contante no art.º. 120º n. 1 al. c) do CP desconsidera de forma ilegal o recurso interposto pelo arguido acerca da (in)validade da declaração da contumácia sobre o qual não foi proferido o necessário e douto acórdão
XXX. Desconsidera e entra em perfeita derrapagem legal quando determina no despacho da declaração de contumácia que o arguido não está pessoalmente notificado da acusação, quando dos autos decorre de forma translúcida que o foi! Aliás o arguido deduz contestação penal aos dias 23.01.2017 e sobre esta incidiu despacho de admissão.
XXXI. Pelo supra exposto e desconsiderando a declaração de contumácia, por ilegal, poder-se-á concluir que, após decorridos 5 anos + 2 anos e 6 meses (prazo de interrupção nos termos do n.º3 do art. 121º do CP) e ainda o prazo de 3 anos relativo ao período de suspensão do prazo de prescrição, conforme decorre do art.º 120º n.º 1 al. b) do CP, o prazo de prescrição do procedimento criminal dos presentes autos encontrou-se alcançado no dia 16 de fevereiro de 2022.
XXXII. Concluindo-se, em face dos argumentos expostos e face ao que decorre de forma translúcida dos presentes autos pugna-se pela procedência do recurso interposto e extinção do procedimento criminal instaurado contra o arguido AA fazendo assim inteira e Sã Justiça.”

Este recurso não foi expressamente admitido.
Porém, consideramos que a omissão deste acto (formalidade que a lei prevê) não constituindo nulidade de entre as tipificadas na lei, e caindo na categoria de mera irregularidade não foi sequer arguida pelo interessado, no caso o recorrente arguido, mas não determina a invalidade do recurso que se tem assim por admitido.

No recurso interposto da sentença, declarou que mantém interesse na apreciação dos recursos interlocutórios vindos de referir.
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Subiram os autos a este Tribunal da Relação, e a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art. 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), acompanha a posição do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, aderindo à argumentação oferecida que subscreve e dá por transcrita, concluindo pela improcedência de todos os interpostos recursos e a sentença recorrida mantida.

Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do CPP nada mais foi acrescentado.
*
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Entre outros, pode ler-se no Ac. do STJ, de 15.04.2010, disponível in www.dgsi.pt.: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões que supra se deixaram transcritas, as questões a apreciar no recurso da decisão final prendem-se com:

- erro notório da apreciação da prova, em relação aos pontos 5, 10 e 13, contradição insanável entre os factos provados e a sua motivação e ainda a violação do principio in dúbio pro reo.
*
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Apreciação dos recursos interlocutórios:

Uma vez que foram interpostos recursos em momento anterior à decisão final, cuja apreciação, em função do regime de subida atribuído, foi deferida para apreciação conjunta com os que viessem a ser interpostos da decisão que pôs termo à causa, haverá que por eles começar, quer por uma razão de ordem, quer ainda para prevenir a hipótese da eventual solução que lhes possa ser conferida prejudicar a apreciação dos demais.


As questões suscitadas pelo arguido nos três recursos interlocutórios prendem-se essencialmente com:

- A prescrição do procedimento criminal no 1º e 3º recursos
- A ilegalidade da declaração de contumácia do arguido

Com interesse para a apreciação dos sobreditos recursos interlocutórios por ora importa considerar as seguintes ocorrências/incidências processuais relevantes:

a) O arguido AA foi acusado nos presentes autos, da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de Abuso de Confiança Fiscal, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), por referência aos artigos 19.° a 26.°, 27.°, 29-° e 41.° do Código do IVA;
b) a acusação foi recebida com a qualificação jurídica efetuada pelo Ministério Público (cf. fls. 510);
c) os factos atribuídos ao arguido respeitam ao terceiro trimestre de 2010 (2010/09T) e ao primeiro trimestre de 2011 (2011/03T) e as quantias de IVA correspondentes deviam ter sido entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (ou seja, respetivamente, ate ao dia 15 de novembro de 2010 e até ao dia 15 de maio de 2011);
d) Do teor do termo de declarações nº 7/2016, datada de 17.03.2016 e constante de fls. 431/432 (através de Carta Rogatória expedida às Autoridades Judiciárias do Brasil) consta a recusa do arguido AA em se sujeitar à constituição de arguido, em recusar ter conhecimento da factualidade que lhe é imputada, em representar a sociedade A..., Unipessoal, Lda..”, em recusar e receber em mãos a notificação a que alude o art. 105, nº 4, al. b) do RGIT.
e) A acusação pública foi deduzida a 12.05.2016 (fls. 453)
f) No dia 02/08/2016 (cf. fls. 501), o arguido, AA, por carta rogatória n.º 12/2016 foi notificado pessoalmente do despacho de arquivamento e de acusação proferido nos autos;
g)) Com vista à notificado da designação de data para a realização da audiência de julgamento e apresentação de contestação, foi enviada para a morada indicada na carta rogatória 12/2016 sita na Av.ª ..., ... Município ..., carta registada com prova de recepção datada de 20.12.2016 (fls. 524) constando do AR rubrica impercetível da pessoa que a recepcionou (fls. 528) em 06.01.2017.
h) O Arguido apresentou contestação em 23.01.2017, invocando, em suma, a prescrição do procedimento criminal, a qual foi admitida por despacho de 03.02.2017 (fls. 546).
i) Por despacho de 21.09.2017 o tribunal a quo declarou a contumácia do Arguido por ser desconhecido o paradeiro do mesmo e por não se mostrar o mesmo notificado da acusação. (fls. 621/622)
j) O Arguido apresentou-se na secretaria do tribunal a quo com a finalidade de prestar TIR, no dia 11.08.2022, tendo sido notificado da acusação, da data de designada para a realização de audiência de julgamento e do prazo para apresentação de nova contestação.

Comecemos então pela prescrição do procedimento criminal:

A questão da prescrição está inevitavelmente ligada ao decurso do tempo, estabelecendo a lei determinados prazos a partir dos quais se entende que o “poder punitivo” do Estado já não se justifica, deixou de ter sentido.
No que à essência da prescrição concerne, vem sendo entendida como causa de anulação, desvanecendo-se a necessidade do castigo, conforme defendia Beleza dos Santos, in RLJ ano 77.º, pág. 322, ou como um simples obstáculo processual, de acordo com Cavaleiro de Ferreira, em “Curso de Processo Penal”, vol. III, pág. 61, ou, ainda, como sendo um instituto de natureza processual e material ao mesmo tempo, o que defendem Jescheck e Figueiredo Dias, respectivamente, em “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, tradução espanhola, págs. 1327 e ss., e em “Direito Processual Penal”, pág. 32.
E é tão só o tempo decorrido desde a prática da infracção que vai determinar essa desnecessidade, esse esquecimento, essa renúncia do Estado à perseguição ao infractor.
Quanto à justificação, diz-nos Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pg. 699 “A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva. É óbvio que o mero decurso do tempo sobre a prática de um facto não constitui motivo para que tudo se passe como se ele não houvesse ocorrido; considera-se, porém, que uma tal circunstância é, sob certas condições, razão bastante para que o direito penal se abstenha de intervir ou de efectivar a sua reacção. Por um lado, a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer. Por outro lado, e com maior importância, as exigências de prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos: quem fosse sentenciado por um facto há muito tempo cometido e mesmo porventura esquecido, ou quem sofresse execução de uma reacção criminal há muito tempo já ditada, correria o sério risco de ser sujeito a uma sanção que não cumpriria já quaisquer finalidades de socialização ou de segurança. Finalmente e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas. Por todas estas razões, a limitação temporal da perseguibilidade do facto ou da execução da sanção liga-se a exigências político-criminais claramente ancoradas na teoria das finalidades das sanções criminais e correspondentes, além do mais, à consciência jurídica da comunidade”.
A prescrição penal é, pois, e consabidamente um instituto que se vincula directamente ao direito fundamental ao prazo razoável do processo constitucionalmente reconhecido no nosso sistema.
Há ademais que reter que no caso que temos em mãos, o arguido veio sucessivamente ao longo do processo a clamar pela prescrição do procedimento e, dada a sua natureza e o decurso permanente e ininterrupto do tempo, desde a interposição do primeiro recurso até ao presente momento, a questão da prescrição já evoluiu, sofre metamorfoses, estando a solução/decisão sujeita a algumas variáveis, nomeadamente sobre a posição da contagem do início do prazo, tema que é desde logo colocada pelo arguido no primeiro dos interpostos recursos e mereceu do tribunal a quo a posição que se viu - o decurso do período de 90 dias sobre o termo do prazo de entrega da prestação, condição objetiva de punibilidade, releva para efeitos do início do prazo e para a suspensão da prescrição,
Vejamos então a primeira sub-questão fulcral acerca do momento em que se iniciou a contagem do prazo de prescrição.
É pacifico que os factos atribuídos ao arguido respeitam ao terceiro trimestre de 2010 (2010/09T) e ao primeiro trimestre de 2011 (2011/03T) e que as quantias de IVA correspondentes deviam ter sido entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (ou seja, respetivamente, ate ao dia 15 de novembro de 2010 e até ao dia 15 de maio de 2011), subsumidos à previsão do art. 105º, n.º 1, 2, 4 e 7, do RGIT (Lei n.º 15/2001, de 05 de junho).
Ademais considerou o Ministério Público que tal reiteração de actos ou a multiplicidade formal de infrações, por parte do arguido, foi dominada por uma única resolução ou objetivo, e daí o cometimento de um único crime.
E no que diz respeito ao momento da prática do facto, prevê especificamente o art. 5º do RGIT quanto ao momento da prática do facto, o seguinte:
“1 - As infrações tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no nº 3.
2 - As infrações tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários.
3 - Em caso de deveres tributários que possam ser praticados em qualquer serviço da administração tributária ou junto de outros organismos, a respetiva infração considera-se praticada no serviço ou organismo do domicílio ou sede do agente"
Lopes de Sousa e Simas Santos, no RGIT anotado por, 2ª Ed., 2003, pág. 81: “importa notar que, nos termos do nº 1 deste artigo, as infracções omissivas, considerem-se praticadas na data em que termine o prazo para o respectivo cumprimento, o que é reafirmado expressamente no seu nº 2”.
Desta feita, o crime em apreço inclui-se na classificação doutrinária dos crimes omissivos, consumando-se num momento convencionado por lei, relacionado com o termo do prazo de entrega dos deveres tributários.
Por outras palavras, na sua configuração atual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, de mera (in)atividade, uma vez que a apropriação deixou de integrar o tipo legal, pelo que o crime consuma-se na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5.º nºs 1 e 2 do RGIT.
No caso dos autos, o momento relevante será aquele em que é executado o último ato que integra a infração, donde, não há incertezas que a consumação do crime assacado ao arguido se tem por verificada no dia 15 de maio de 2011, correspondente à data da última infração.
Atente-se na estatuição do art. 119º do Código Penal:
1. O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2. O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último ato criminoso.”
Já o art. 21º do RGIT sob a epígrafe “Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal” dispõe o seguinte:
“1. O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos 5 anos.
2. O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a 5 anos.
3. O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo da caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
4. O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no nº 2 do art. 42º e no art. 47º”.
Por seu turno o art. 105º sob a epigrafe “Abuso de confiança” estatui no seu nº 1:
“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Já no art. 118º, nº 1, al. c) estabelece-se que “O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (..) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos
Como não estamos perante a previsão do nº 3 do art. 21º do RGIT, o prazo prescricional a considerar é, pois, o geral, de 5 anos.
A questão que agora se coloca, remete-nos para o aludido art. 105º do RGIT, nº 4 al. a), anotando-se o teor do preceito:
“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
E não sendo o decurso do período de 90 dias estipulado na al. a) do nº 4 um elemento constitutivo do crime, mas unicamente uma condição de instauração do procedimento criminal – condição de punibilidade, entendeu o tribunal recorrido que a aludida condição objectiva de punibilidade releva para efeitos do inicio do prazo e para a suspensão da prescrição nos termos dos arts. 119º, nº 1 e art. 120º, nº 1, al. a), tendo-se o crime por consumado no dia seguinte àquele em que terminar o prazo para a entrega da prestação tributária (art. 5º, nº 2) do RGIT.
O cerne do dissidio prende-se, por conseguinte, com a questão de saber se este prazo não deve ser tido em conta no prazo da prescrição que se inicia com a prática do crime, o qual se tem por consumado na data em que termina o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, como sustenta o recorrente, ou se, pelo contrário, deverá tal prazo de 90 dias ser tido em conta, só devendo contar-se o início do prazo de cinco anos de prescrição do procedimento criminal a partir do termo de tal prazo, como foi entendido pelo tribunal recorrido no despacho proferido a 06.03.2017 (fls. 555) e que foi objecto de recurso (1º recurso interlocutório).
Ora, este prazo de 90 dias tem sido considerado, à semelhança do prazo estabelecido na actual al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, relativamente ao qual incidiu o Acórdão de fixação de jurisprudência nº6/2008 de 9.04.2008, publicado no DR, I Série, de 15-05-2008, uma condição objectiva de punibilidade ou, noutra terminologia, cláusula adicional de exclusão da punibilidade.
No antedito aresto pode ler-se “o prazo de 90 dias a que se refere a alínea a) do n.º 4 do art.º 105º do RGIT configura mera condição objectiva de punibilidade que, situada totalmente fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa, não pode por conseguinte ter qualquer interferência ou repercussão no momento consumativo daquele ilícito típico, que continua a ocorrer no termo do prazo legal de entrega da prestação devida”.
E ainda “(…) o resultado que, com a sua previsão típica, se pretende evitar é apenas e tão só que o agente não deixe de entregar a prestação contributiva devida, até à data em que o Estado a espera arrecadar. A incriminação foi erigida, pois, apenas para punir a conduta omissiva do respectivo agente, conduta essa desligada até de qualquer resultado lesivo. Ou seja, independentemente da subsequente entrega ou não entrega das quantias descontadas e devidas, a conduta típica já está perfectibilizada.” (...)Por isso, o eventual pagamento voluntário da prestação tributária devida no decurso da condição objectiva de punibilidade prevista na citada alínea a) do art. 105.º do RGIT nada acrescenta à definição da espécie ou do tipo legal de crime, configurando apenas uma causa de extinção da responsabilidade penal(…).”
Ora tal prazo - de 90 dias – al.) do nº 4 do artº 105º do RGIT - sendo por isso uma condição objectiva de punibilidade não impede que possa ser exercida a acção penal. O que apenas impede é que possa ter lugar a punição, pelo que em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança, neste caso fiscal, se inicia na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº 2 do artº 5º do RGIT terminou o prazo para o cumprimento da entrega das prestações tributárias.
Acresce que a situação prevista na alínea a) também não pode ser considerada uma causa de suspensão da prescrição uma vez que, não só não está “especialmente prevista” na lei como tal, como não se integra em qualquer uma das alíneas do nº 1, do art. 120º do Código Penal.
Destarte, o momento da consumação do crime e o momento de verificação da condição objectiva de punibilidade, são duas realidades distintas.
É também este o nosso entendimento, posição igualmente sufragada por grande parte da jurisprudência, pelo que procedemos à recolha de pertinentes e elucidativos arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt. sobre o abordado tema de entre os quais se transcreve os respetivos sumários:
- Ac. TRC de 17.12.2014 (Proc. nº 225/12.6TAACN.C1):
I. O crime de abuso de confiança em relação á segurança social é um crime omissivo e como tal, considera-se praticado na data em que terminou o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários (art.º 5º, nº 2).
II. Estando em causa um crime continuado (de abuso de confiança contra a segurança social), o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último acto (artº 119º, nº 2, alínea b), do Código Penal).
III. O disposto no artº 105º, nº 4, alíneas a) e/ou b), constituindo condições objectivas de punibilidade, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, se inicia na data em que o crime se consumou.
- Ac. TRC de 30.05.2012 (Proc. nº 4/02.9IDMGR.C2):
1- O prazo de 90 dias a que alude o artº 105º nº 4 do RGIT, não deve ser tido em conta para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, pois aquele constitui uma condição objetiva de punibilidade que não impede o exercício da ação penal, apenas impedindo que possa ter lugar a punição;
2- Tal prazo de prescrição inicia-se na data em que o crime se consumou, isto é, em que termina o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários.
- Ac. TRP 10.10.2012 (Proc. nº 163/10.7TAMCD.P1)
I – O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se com o terminus do prazo legal para entrega da prestação tributária deduzida, uma vez que se trata de uma prestação tributária regida pelo princípio da auto-liquidação.
II - O decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, estabelecido na norma remissiva do art. 105°, no 4 do RGIT, é genericamente entendido como uma condição de punibilidade (ou causa de exclusão da punibilidade), que não tem eficácia interruptiva ou suspensiva do procedimento criminal.
- Ac. TRL 20.03.2012 (Proc. nº 5209/04.5TDLSB.L1-5)
IIº O crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais, iniciando-se o prazo de prescrição no termo do prazo legal da entrega da prestação;
IIIº O prazo de 90 dias previsto no nº4 do art.105, do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal;
- Ac. TRL 24.2.2010 (Proc nº 2191/08.3 LSB-A.L1-3)
“O prazo de 90 dias previsto no nº 4 do artº 105º do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, apenas impede que possa ter lugar a punição, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social se inicia na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº 2 do artº 5º do RGIT terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à segurança social”.
- Ac. TRE 06.03.2014 (Proc. nº 28/08.2TALLE.E1)
I - O momento relevante para aferir se o prazo prescricional se apresenta decorrido, para efeito de procedimento por crime de abuso de confiança contra a segurança social, é o do termo do prazo legal para entrega da prestação devida, não obstante a punibilidade dos factos esteja sujeita à condição objectiva de que tenham decorrido mais de 90 dias sobre esse mesmo termo.
II – A data da consumação do ilícito não é alterada por via da consagração daquela condição, funcionando esta, apenas, como causa de restrição da pena, por afastamento pelo legislador das necessidades da aplicação desta.
- Ac. TRE 16.04.2013 (Proc. nº 538/11.4TABJA.E1)
I. Não existe razão para proceder à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal de forma que não respeite o disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal – o seu início coincide com o momento da consumação do crime.
II. Na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT consagra-se uma condição objetiva de punibilidade, situada fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa.
III. O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se no momento da não entrega nos cofres do Estado das prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que se estava legalmente obrigado a entregar.
Atente-se ainda que no Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2015 de 19/02 foi fixada a seguinte jurisprudência: “No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma” que sufraga por isso a posição por nós acolhida, ainda que em relação aos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Em tal acórdão pode ler-se “(…) enquanto certa corrente jurisprudencial e bem assim doutrinal considera que o mencionado prazo deve começar a contar-se a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega, às instituições de Segurança Social, das prestações contributivas deduzidas por retenção na fonte, outra corrente entende que a contagem de tal prazo prescricional só se inicia depois de decorridos 90 dias sobre o termo daquele prazo estabelecido para a entrega das prestações contributivas. (…) Do mesmo passo que não resulta igualmente aceitável que quem entende (como acontece com Isabel Marques da Silva, e com certo sector da jurisprudência das Relações) que a exigência prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade, considere ainda assim que ela possa funcionar como uma causa de suspensão do procedimento criminal.
E isto porque, encontrando-se, por força do princípio da legalidade, as causas de suspensão da prescrição previstas expressamente no Código Penal (artigo 120º), no âmbito de qualquer uma delas [mais exactamente e com relevância para o caso, na alínea a) do número 1 da mesma disposição legal] não é susceptível de enquadrar-se a referida alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.
Para além de que uma tal construção jurídica, não parecendo ajustar-se às faladas razões de política criminal que estiveram na génese do dito normativo [como visto, mais de índole pedagógica e economicista do que de cariz sancionatório acrescido (em que, na prática, se traduziria a prorrogação do prazo de prescrição do procedimento, por via do diferimento do mesmo prazo para o termo dos referidos 90 dias)], também não se afeiçoaria à letra do preceito da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.”
Donde, inexiste a causa de suspensão da prescrição que o tribunal a quo considerou verificada, contrariamente ao decidido na 1ª instância que acolheu a posição de suspensão do sobredito prazo a partir de 15.05.2011 pelo período de 90 dias.
Procede nesta parte o 1º recurso interposto.
*
Mas cumpre verificar se ocorreram nos autos causas de interrupção/suspensão da prescrição, sendo certo que no despacho proferido em 06/03/2017, a primeira e única causa interruptiva e suspensiva da prescrição considerada é a da notificação da acusação ocorrida no dia 02/08/2016, entendendo o tribunal recorrido que a prescrição apenas teria ocorrido se o arguido tivesse sido notificado da acusação após o dia 15/08/2016 (respeitada a suspensão de 90 dias a partir de 15/05/2011).
Vejamos então.
Prevê, como é consabido, o Código Penal várias causas determinantes da suspensão ou da interrupção do procedimento criminal.
Assim, nos termos do art. 120º, nº 1 do Código Penal, a prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.
5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.
6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.
Por seu turno nos termos do art. 121º do mesmo Código a prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) Com a declaração de contumácia.
d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.
Nos termos do disposto no nº2 do mesmo artigo, depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, aditando–se no nº 3: Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
Mas este usualmente designado prazo máximo de prescrição só será processualmente convocado para evitar que o prazo normal da prescrição se prolongue excessivamente face às causas de suspensão/interrupção, tendo, porém, como pressuposto que esse mesmo prazo normal ainda não tenha decorrido integralmente e que, assim, as causas de suspensão e interrupção tenham ocorrido ainda no seu decurso. Ou seja, só será de ponderar o apelo àquele prazo máximo se e quando, no prazo normal de prescrição do procedimento criminal, ocorreram quaisquer causas de suspensão e/ou interrupção.
Regressados ao caso, constata-se a verificação de uma causa de interrupção relevante, qual seja, a constituição de arguido (art. 121º, nº1, al. a) do CP).
No que à constituição de arguido diz respeito, rege o art. 58º do CPP, e concretamente no nº 2 em que se dispõe “A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.”.
E como se viu, do teor do termo de declarações nº 7/2016, datada de 17.03.2016 e constante de fls. 431/432 (através de Carta Rogatória expedida às Autoridades Judiciárias do Brasil) consta a recusa do arguido AA em se sujeitar à constituição de arguido, em recusar ter conhecimento da factualidade que lhe é imputada, em representar a sociedade A..., Unipessoal, Lda..”, em recusar e receber em mãos a notificação a que alude o art. 105, nº 4, al. b) do RGIT.
Ora, perante esta recusa do arguido em receber e assinar a comunicação, não pode deixar de consubstanciar, à luz da citada disposição legal uma válida constituição de arguido ou pelo menos obstar, por deliberada frustração do arguido, aos efeitos decorrentes do estatuto do arguido, entre eles aquele que intencional frustrou da interrupção do prazo de prescrição, em violação princípio da lealdade processual a que está obrigado.
A recusa de recebimento da comunicação escrita para constituição de arguido, tem assim inteiro paralelismo com a recusa de recebimento das notificações em geral, a respeito do que a jurisprudência tem pacificamente aceite como notificação válida e eficazmente efetuada.
Mais se diga que o acto em causa - constituição como arguido - não é revestido de qualquer formalidade operando-se por simples comunicação verbal ou escrita, nem a lei adjetiva impõe qualquer dever de fundamentação, como ocorre, por exemplo, com o 1º interrogatório judicial de arguido — cfr. arts. 61º, nº 1, al. c) e 141º nº 4 als. c) a e) do CPP.
Em suma, em relação ao acto de constituição como arguido, a lei não exige formalidade especial, podendo o mesmo operar-se através de comunicação oral ou por escrito (nº2, do art. 58º), pelo que tendo o ora recorrente compreendido a situação que estava em causa, o sem dúvida alcançou, pois tomou conhecimento dos factos a si imputados, considera-se que o recorrente foi validamente constituído como arguido, na aludida data.
Daí que, dada a verificada constituição de arguido ocorrida a 17.03.2016, (antes de decorrido o prazo de 5 anos da prescrição que se completaria 15.05.2016), ocorre causa de interrupção da prescrição conforme previsto na al. a) do nº 1 do art. 121º do CP.
Em suma, ocorreu causa de interrupção, datada de 17.03.2016, com aquela recusa.
Posteriormente, o arguido foi pessoalmente notificado da acusação, a 02.08.2016, pelo que tal circunstância suspendeu e interrompeu o prazo de prescrição em curso nos termos previstos nos arts. 120º, nº 1, al. b) e 121º, nº 1, al. b) do CP, causa de suspensão que tem a duração máxima de três anos (art. 120º, nº 2 do CP).
Certo é que esta suspensão apenas terminou em 21.09.2017, data em que foi declarada a contumácia do ora recorrente, e durou assim 1 ano, 1 mês e 19 dias.
Ora esta declaração de contumácia que teve lugar em 21.09.2017, e que outrossim constitui causa simultaneamente de suspensão e de interrupção do prazo prescricional (arts. 120º, n. 1, al. c) e nº 3, e 121º, nº 1, al. c), do CP, suspensão que não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
Para além disso, retenha-se que esta suspensão teve início depois de cessada a suspensão anterior (ocorrida pela notificação ao arguido da acusação), sendo que o limite temporal admitido para a suspensão por contumácia igual ao da prescrição, ou seja, cinco anos.
A declaração de contumácia cessou em 11.08.2022, (antes ainda do prazo máximo que ocorreria em 21.09.2022) data em que o arguido se apresentou na secretaria do tribunal a quo com a finalidade de prestar TIR, tendo sido notificado da acusação, da data de designada para a realização de audiência de julgamento e do prazo para apresentação de nova contestação, suspensão que durou assim 4 anos, 10 meses e 19 dias, sem embargo do inconformismo do arguido manifestado na interposição de recurso tendo por objecto tal depacho e que mais à frente apreciaremos, porém relembre-se que ao mesmo foi atribuído efeito meramente devolutivo (cfr. despacho de fls. 787).
Depois, com a notificação ao arguido da sentença condenatória em 22.11.2022 (cfr. art. 373º, nº 3 do CPP) ocorre nova causa de suspensão do procedimento criminal (art. 120º, nº 1, al. e) do CP) e que não pode ultrapassar cinco anos, já que no caso não foi declarada a excepcional complexidade do processo (nº 4 do art. 120º do CP).
No entanto, a lei estabelece um prazo máximo de prescrição, conforme prevê o art. 121º, nº 3, que estipula que a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade: Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
Donde, além de se contabilizar o prazo normal, acrescido de metade, deverão adicionar-se depois os períodos de suspensão que se tenham verificado, só se ocorrendo a prescrição do procedimento se este prazo global (o prazo máximo acrescido dos períodos da suspensão) tiver já decorrido.
Deste modo, ainda não decorreu o prazo de prescrição, estando tal prazo, neste momento, suspenso por força da notificação da sentença condenatória, cujo limite máximo é de cinco anos.
Assim sendo, considerando a data dos factos (15/05/2011), o prazo de prescrição acrescido de metade (5 anos + 2 anos e 6 meses), e os três prazos de suspensão que ocorreram em momentos autónomos e distintos e não se sobrepuseram (1 ano 1 mês e 19 dias + 4 anos 10 meses 19 dias + 5 anos), o que tudo perfaz 18 anos, 6 meses e 8 dias, concluímos que o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal apenas se completará apenas no dia 23/11/2029, pelo que o procedimento criminal não está prescrito.
Improcedem assim as diversas pretensões do ora recorrente nesse sentido.
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Todavia, o recorrente interpôs recurso do despacho de declaração de contumácia de 21.09.2017.
Pelo que cumpre apreciar.
No seu entendimento, dado ser conhecido o seu paradeiro, sempre o tribunal a quo poderia ou devia ter diligenciado pela emissão de carta rogatória para proceder à notificação do arguido para comparecer no Tribunal a fim de ser ouvido em audiência de julgamento, assim como de todo o conteúdo do despacho que recebe a acusação/ pronúncia.
Pelo que ao dar por assente que o arguido tem paradeiro desconhecido o despacho recorrido violou o preceituado nos arts. 196.° e 335º do CPP, não se mostrando cumpridos o preenchimento dos requisitos para a declaração da contumácia e coarctou os direitos do arguido, assim como as garantias de processo criminal a que está vinculado, designadamente o exercício do direito de defesa do arguido.
Mas, desde já se adianta que não merece acolhimento tal posição.
Senão vejamos.
A declaração de contumácia do arguido é regulada no art. 335º, nº 1, do CPP que dispõe o seguinte:
1 - Fora dos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo anterior, se, depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 2 e a primeira parte do n.º 3 do artigo 313.º, não for possível notificar o arguido do despacho que designa o dia para a audiência, ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas no n.º 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.”
A declaração de contumácia pressupõe por isso a prática de determinados trâmites com vista à sua declaração, nomeadamente a designação de data para julgamento e a realização subsequente das diligências exequíveis para conhecimento do paradeiro do arguido.
Por sua vez, e como é amplamente sabido, foi com a Lei nº 59/98, de 25-8, e sobretudo com o DL nº 320-C/2000, de 15-12, constatada a ineficácia do diploma anterior (como o revela abundantemente o preâmbulo deste último), que o legislador procedeu a uma reforma profunda do julgamento na ausência do arguido, mantendo o princípio da obrigatoriedade da sua presença em audiência, mas conferindo a essa presença mais o caráter de direito do que de obrigação do arguido, podendo portanto o tribunal realizar o julgamento na sua ausência, desde que considere que a presença dele não é absolutamente indispensável.
Na verdade, logo que constituído como tal, o arguido presta TIR, ficando notificado de que poderá ser julgado na sua ausência (arts. 196º, nº 3, d), e 333º do CPP).
Neste quadro, a contumácia perdeu importância, tornando-se praticamente residual. Ela agora só é aplicável nos casos excecionais em que os arguidos não tenham prestado TIR, nem tenha sido possível proceder à sua detenção ou à prisão preventiva, se admissível, para proceder à sua notificação da data da audiência – vide Ac. da Relação de Coimbra de 12/04/2019 proferido no Proc. nº 26/14,7IDVIS -A.C1 acessível em www.dgsi.pt
Ou seja, o legislador encontrou um mecanismo em que, desde que exista a constituição de arguido no processo, haverá necessariamente também a prestação de TIR.
Confira-se o teor do nº 1 do art. 196º, nº 1, do CPP: “A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250º”.
Donde, com esta prestação de TIR, os autos prosseguirão sempre para julgamento, com ou sem a presença do arguido. Pelo que a prestação de TIR facilita, processualmente, a notificação do arguido dos atos processuais. E sendo a presença do arguido vista na perspetiva de um direito seu, ficará de algum modo no critério do arguido, exercê-lo. O que o Estado pretende é que o processo não fique suspenso, que a questão seja decidida, que o jus puniendi, se for o caso, seja também exercido.

E foi precisamente isso que sucedeu no caso concreto, pois o arguido não havia prestado até àquele momento TIR nos autos, pelo que o instituto da contumácia era passível de aplicação.
Atente-se.
Durante a investigação, pelo Ministério Público foram realizadas diligências várias no sentido de localizar o arguido, notificá-lo da acusação, bem como sujeitá-lo à prestação de TIR. E se bem que o arguido tivesse sido localizado (no Brasil) as diligências resultaram infrutíferas para aquele fim.
Em realidade, como se deu nota supra, foi expedida Carta Rogatória para o Brasil, com vista à notificação, constituição de arguido e prestação de Termo de Identidade e Residência do arguido e sociedade arguida na morada conhecida ao arguido no Estado do Ceará, mas do oficio do Ministério Público Federal da Procuradoria da República do Estado do Ceará, o arguido no dia 17.03.2016, recusou tomar conhecimento dos factos a si imputados, bem como, assinar o correspondente termo de notificação.
Aliás, dessa mesma Carta Rogatória consta (fls. 431 e 432), consta que naquela data o arguido em termo de declarações por si assinado perante o Exmo. Procurador Regional da República do Ceará, informou que não desejava efectuar qualquer tipo de acto, tendo recusado a receber a descrição das acusações e dos factos detectados pela inspeção tributária realizada na empresa A..., Unipessoal, Lda.., bem como, assinar o termo de notificação constante de fls. 20 do Procedimento de Cooperação Internacional.
Foi entretanto deduzida acusação em 12.05.2016 e com vista à sua notificação ao arguido, o qual, relembre-se, ainda não havia prestado TIR (e só o veio a fazer em 11.08.2022 quando se deslocou ao nosso país por sua iniciativa), foi expedida a carta rogatória nº 12/2016 (de fls. 461 e 481 a 505), para as autoridades judiciárias do Brasil para a morada conhecida ao arguido (Av. ..., ..., ...) foram feitas diversas diligências para a localização do arguido (cf. fis. 494) e foi apurado que o mesmo não se encontrava naquela morada e estaria em Fortaleza.
Aliás a informação de fls. 494, atesta que não só o nº 1213 da Av. ... pertence a um tal CC, como na suposta residência do arguido (em diferente endereço) a pessoa que ali se encontrava de nome DD e que segundo se depreende do assento de casamento junto a estes autos a fls. 846 casou com o arguido em 2011 em Matosinhos Portugal, informou que o arguido não se encontrava no local mas sim em Fortaleza e estava-se preparando para mudar desse local. Mais se acrescenta na informação que a morada é Rua ... de numeração fora dos padrões convencionais e fornecida a localização geográfica com meras coordenadas.
Entretanto, com todas as dificuldades que se lograram ter para encontrar o arguido, resulta de fls. 501 a 503 que, o arguido acabou por ser pessoalmente notificado a 02.08.2016 do despacho de arquivamento e de acusação proferido nos autos, do prazo que tinha para requerer a abertura de instrução e para preencher o Termo de Identidade e Residência.
Como se percebe, o recorrente foi dificultando sempre a sua notificação, e sobretudo absteve-se sempre de prestar o TIR, pois não preencheu, não prestando assim o termo de identidade e residência que acompanhou a carta rogatória nº 12/2016 (mostrando-se esses documentos no Anexo II, sem qualquer preenchimento ou assinatura do arguido, bem como, a fls. 465 e 466 dos autos principais).
De qualquer forma, recebida a acusação e designado dia para julgamento, foi, com vista à notificação de tal despacho e concretamente da designação de data para a realização da audiência de julgamento e apresentação de contestação, enviada para a morada indicada na carta rogatória 12/2016 sita na Av.ª ..., ... Município ..., carta registada com prova de recepção datada de 20.12.2016 (fls. 524) constando do AR rubrica impercetível da pessoa que a recepcionou (fls. 528) em 06.01.2017. E desconhecendo-se a autoria que tanto podia ser do arguido como não ser, podendo de resto o mesmo ter vindo invocar não ser aquela a sua assinatura/ rubrica, e uma vez mais, insiste-se, inexistindo nos autos um Termo de Identidade e Residência do arguido e em representação da sociedade arguida, com a indicação de morada para efeitos de notificação, não se mostrava viável efectuar de forma regular a notificação do arguido e da sociedade arguida para contestar e para a realização do julgamento.
Pelo que, perante a falta dos Termos de Identidade e Residência (para arguido e sociedade arguida), com indicação de morada em território nacional para ser notificado, o Tribunal deu cumprimento ao previsto no art. 335º n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Decorrido o prazo legal dos editais para o arguido por si e em representação da sociedade arguida se apresentar em juízo ou ser detido, com a cominação de ser declarado contumaz e não tendo sucedido a sua apresentação em juízo ou detenção, acabou o mesmo por ser declarado contumaz.
E porque o andamento processual não se compadece com a delonga para cada notificação com a expedição de cartas rogatórias avulsas para cada acto, nem se mostra válida a notificação do arguido por carta registada, com aviso de recepção, cuja assinatura e identificação se desconhece que seja do arguido, sendo certo, que tal posição levaria a que o tribunal, chegada a data do julgamento, não pudesse concluir se o arguido estava ou não regularmente notificado, podendo até suceder não ser conhecido o resultado da carta rogatória e também aí se o arguido estava ou não notificado, optou, e bem, por lançar mão daquele instituto.
Em suma, sem prestação de Termo de Identidade e Residência, nunca se poderia considerar o arguido regularmente notificado, nos termos previstos no art. 196.º n.º 2 e 3 alínea c) e arts. 332º nº 1 e 333º, todos do Código de Processo Penal.
E foi o próprio que não se quis sujeitar à prestação do Termo de Identidade e Residência que foi solicitado nas duas cartas rogatórias (carta rogatória nº 2 /2016 e na carta rogatória nº 12/2016), não colaborando com as autoridades judiciárias do Brasil no âmbito da cooperação judiciária Internacional. E caso assim não sucedesse, o arguido poderia mais tarde vir invocar nulidades ou irregularidades, por não cumprimento das formalidades regularmente previstas na lei processual penal portuguesa para a sua notificação.
É aliás surpreendente que o arguido para além de ter conhecimento da existência dos autos, e de ter constituído mandatária nos autos (cfr. procuração de fls. 479 datada de 04.08.2016, 2 dias após a notificação da acusação) e que até apresentou contestação, não tenha vindo informar a sua correcta morada. Confira-se aliás o despacho proferido em 04.10.2016 (fls. 513) a notificar a sua mandatária para clarificar se o arguido entretanto regressou a Portugal e em caso afirmativo, qual a sua morada actual, informando-se que o esclarecimento pretendido se destina a prevenir a remessa eventualmente desnecessária de uma carta rogatória para o Brasil a fim de notificar o arguido das datas a designar para julgamento. Tal notificação obteve a singela resposta de fls. 516 a informar que o arguido mantém o seu paradeiro no Brasil na morada já constante dos autos, o que não foi passível de confirmação.
Ora como já atrás se destacou o arguido não tem residência no nº 1213 da Av. ... ( pois da informação consta que pertence a um tal CC, e na suposta residência do arguido DD, informou que o arguido não se encontrava no local mas sim em Fortaleza e estava-se preparando para mudar desse local. Mais se acrescenta na informação que a morada é Rua ... de numeração fora dos padrões convencionais e fornecida a localização geográfica com meras coordenadas.
Portanto, decididamente, o arguido manteve até à cessação da contumácia uma atitude de dificultar o conhecimento do seu paradeiro, obstaculizou à tomada de TIR por duas vezes, donde, dar sem efeito a declaração de contumácia - a que o mesmo podia desde logo ter posto termo a qualquer momento, bastando apresentar-se em juízo -, seria um meio ínvio de obter mais um prazo puramente dilatório no andamento do processo.
Pelo que a declaração de contumácia do arguido é legalmente válida não tendo sido violadas quaisquer normas, mormente as convocadas pelo recorrente.
Nesta medida, improcede este recurso interlocutório.
*
Recurso da sentença condenatória:

Enunciou-se supra as questões a apreciar neste recurso:
- erro notório da apreciação da prova, em relação aos pontos 5, 10 e 13, contradição insanável entre os factos provados e a sua motivação e ainda a violação do principio in dúbio pro reo.

Importa antes de mais recordar a fundamentação da matéria de facto que se transcreve:

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS PROVADOS
De relevante para a discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade comercial “A..., Unipessoal, Lda.”, possui o NIPC ..., tem sede na Rua ..., no Porto, e tem como objeto social atividades de consultadoria para o negócio e gestão, agentes de comércio por grosso de produtos de higiene e saúde.
2. No exercício da sua atividade, a sociedade encontra-se tributada para efeitos de Imposto de Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periocidade trimestral e quanto ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) no regime geral de determinação do lucro tributável.
3. O arguido AA é sócio gerente da sociedade, desde a sua constituição, em 2007, até aos presentes dias, pelo que foi sempre, de facto e de direito, legal representante e responsável pela gestão e administração daquela empresa, competindo-lhe decidir a faturação dos serviços prestados, dos lançamentos contabilísticos, bem como cobrar e arrecadar os montantes faturados e proceder ao pagamento dos impostos.
4. A sociedade, no terceiro trimestre de 2010 (2010/09T) e no primeiro trimestre de 2011 (2011/03T), aos valores de IVA liquidado em cada trimestre, deduziu o IVA liquidado nas faturas recebidas, subtraiu ainda o IVA com direito a dedução, e apurou o IVA recebido em cada trimestre:
- no montante de € 7.676,00, referente ao período de 2010/09T, e - no montante de €10.906,42, referente ao período 2011/03T,
Num total de € 18.582,42, quantias que deveriam ter sido entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, nos termos dos artigos 27º, 29º e 41º, do CIVA, e nos 90 dias subsequentes ao termo de tal prazo - cfr. artigo 105º, n.º 4, al. a), do RGIT.
5. Tais montantes de IVA a entregar ao Estado foram efetivamente recebidos pela sociedade, conforme resulta da análise contabilística efetuada aos documentos apresentados pela sociedade – recibos e extratos de conta corrente, de fls. 23 a 66 -, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos, e analisados pelas Finanças.
6. Assim, a sociedade arguida, por decisão de AA, não procedeu à entrega das aludidas importâncias, na data em que terminou o prazo para cumprimento da obrigação de entrega, nem nos 90 dias seguintes, antes a fez sua, utilizando-a em benefício da sociedade arguida.
7. O arguido AA tinha perfeito conhecimento das suas obrigações fiscais, pois sabia que, por via do exercício da atividade da sociedade e de acordo com as normas vigentes em matéria tributária, estava e está legalmente obrigado a entregar ao Estado/Fazenda Nacional, nos prazos fixados na lei, as quantias liquidadas e recebidas a título de tal imposto.
8. AA bem sabia que as aludidas importâncias que recebeu dos clientes da sociedade que representa, a título de IVA, não lhe pertenciam a si nem àquela, mas sim ao Estado, e que as deveria entregar, simultaneamente com a declaração periódica a que se refere o artigo 27º do CIVA, nos competentes Serviços do IVA, ou noutro local autorizado, dentro dos respetivos prazos legais supra mencionados.
9. Nem regularizou a situação em falta no prazo de 30 dias, após notificado nos termos do artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT.
10. Ao invés disso, o arguido AA apropriou-se desse montante, fazendo-o ilegitimamente seu e da empresa arguida.
11. O arguido AA estava perfeitamente consciente das obrigações que sobre ele impendia de entregar nos Serviços de Administração do IVA, simultaneamente com a respectiva declaração periódica, o montante daquele imposto.
12. Atuou por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, atuando em nome e no interesse coletivo daquela e, ao não entregar aquele montante recebido a título de IVA, fê-lo com o propósito conseguido de obter proveitos económicos indevidos a que não tinha direito, e que consistiram naquelas quantias de IVA, que não foram por si suportadas, mas sim cobradas aos seus clientes, agindo ainda com o intuito de causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou pois, ao não entregar à Administração Tributária aquele montante de IVA diminuiu as receitas tributárias e, por via disso, lesou o erário público da Fazenda Nacional no montante global de € 20.686,30, correspondente ao IVA que não entrou nos cofres do Estado.
13. Até à data, o arguido AA ainda não regularizou a situação em falta.
14. Ofendeu o arguido AA, desse modo, o regular funcionamento do sistema fiscal e, consequentemente, os interesses de ordem pública que o mesmo deve satisfazer, impedindo ainda a realização da justiça fiscal.
15. O arguido AA agiu, pois, em seu nome e em nome da sociedade arguida, voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Condições sócio-económicas do arguido:
16. O arguido exerce a actividade profissional de Gerente e vive no Brasil.
17. A sociedade arguida tinha apenas um único cliente e está encerrada.
Dos antecedentes criminais do arguido:
18. Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos não provados com relevo para a boa decisão da causa.
*
C) MOTIVAÇÃO
Para a formação da convicção quanto aos factos provados, o Tribunal alicerçou-se na apreciação crítica de todas as provas produzidas recorrendo às regras da experiência comum, e em grande parte à prova documental constante dos autos.
O arguido requereu o julgamento na ausência, razão pela qual não pudemos colher a sua motivação.
A prova dos factos resultou da conjugação crítica dos documentos juntos aos autos com o depoimento da Inspectora Tributária BB, que descreveu o contexto em que analisou a documentação relativa à empresa gerida pelo arguido. Esclareceu que o arguido era o único sócio-gerente e que a análise da contabilidade da empresa foi relativamente simples por aquela apenas ter um cliente. Efectivamente, referiu que contactou o técnico de contas da empresa e o único cliente que ele tinha, que lhe enviou o extracto de conta corrente, sublinhando que nunca conseguiu contactar com o arguido.
Quanto aos factos propriamente ditos, disse que apurou o 3.º Trimestre de 2010 e que o valor recebido e não pago foi de €7.676. Esclareceu que em relação ao mesmo trimestre, o IVA não pago ao Estado foi de €9.779,88, porém, apenas conseguiu demonstrar o recebimento de €7.676, razão pela qual demos como provado este valor e eliminamos dos factos o valor mais elevado, nos termos da comunicação efectuada em julgamento, nos termos do art.º 358.º, n.º 1, do CPP.
A testemunha confirmou também que relativamente ao 1.º Trimestre de 2011, apurou IVA efectivamente liquidado e recebido no valor de €10.906,42, que não foi entregue ao Estado.
A testemunha afirmou que foram feitos alguns pagamentos, mas que não consegue imputar a estes períodos, pelo que não ficou demonstrado se o arguido procedeu, ou não, à liquidação desta quantia.
Também desconhecemos qual o fim dado ao valor de IVA recebido e não entregue ao Estado, mas não resulta de qualquer meio de prova que tal montante tenha sido empregue para proveito pessoal do arguido.
O depoimento da testemunha está consonante com a prova documental junta aos autos, designadamente: o Auto de notícia de fls. 13; os Extratos de Conta Corrente de fls. 23 a 47; os Recibos de fls. 48 a 66; as Declarações Periódicas do IVA de fls. 71 a 74; o Parecer da AT (artigo 42º, n.º3, do RGIT) de fls. 86 a 94; a Carta Rogatória n.º 2/2016, expedida para constituição de arguido e notificação do artigo 105º, n.º4, al. b), do RGIT de fls. 397 a 407, 417 a 433 e Anexo; o Termo de declarações de recusa da notificação de fls. 431 a 433; a Certidão Comercial de fls. 438 a 440 e a Informação da Autoridade Tributária de fls. 389 a 393 e 443 a 445.
Da conjugação de todos estes elementos de prova, pessoais e documentais, dúvidas não tivemos de que os factos ocorreram e tal como vêm descritos na acusação, com excepção do valor respeitante ao 3.º Trimestre de 2010, que foi devidamente corrigido.
Os factos relacionados com a vida sócio-económica do arguido resultam dos documentos dos autos, bem como a informação de que o arguido reside no Brasil.
Por fim, os antecedentes criminais do arguido assentam no certificado de registo criminal actualizado junto aos autos de fls. 924.”

Apreciando:

Sustenta desde logo o recorrente que:
- há erro notório na apreciação da matéria de facto dada como provada quando o tribunal a quo deu como provado o ponto 5 pois da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento resulta claro que o Arguido em tempo algum apresentou quaisquer documentos à Inspetora Tributária no decurso da sua investigação, outrossim, foram entregues elementos pelo técnico oficial de contas da sociedade e pelo único cliente que a sociedade tinha à data e transcreve excertos do depoimento da Testemunha BB.
- Há ainda erro notório de julgamento quando o tribunal a quo dá como provado o ponto 13. dos factos provados o tribunal a quo fez incorreta avaliação dos meios de prova conforme se extrai do depoimento prestado pela única testemunha Inspetora Tributária BB.
- Há ainda erro notório na apreciação da matéria de facto dada como provada, mormente o ponto 10., porquanto não existem quaisquer indícios, nem provas de que o Arguido se apropriou do montante correspondente ao IVA, fazendo-o ilegitimamente seu e da empresa Arguida.
Mais ainda refere que o tribunal a quo entra em flagrante contradição entre o facto provado 13. e a motivação quanto à formação da convicção dos factos provados: no facto provado 13 o tribunal a quo afirma que o Arguido ainda não regularizou a situação em falta, e na sua motivação, por outro lado o tribunal a quo afirma que não ficou demonstrado se o arguido procedeu ou não à liquidação desta quantia.
O mesmo relativamente ao facto provado 10. que se encontra em clara contradição com a motivação, dado que dá como provado no ponto 10 que o Arguido se apropriou do montante recebido a título de IVA, tendo-o feito ilegitimamente seu e da empresa, porém na sua motivação e da análise da prova testemunhal o tribunal a quo conclui que inexistem provas nesse sentido.
Existe, em seu entender, contradição insanável da fundamentação.
Impunha-se, pois, decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo, com a consequente absolvição do Arguido por manifesta insuficiência de prova e ainda em cumprimento do princípio in dubio pro reo, conclui o recorrente.
Aclaremos.
Assinala-se como nota prévia à apreciação das delimitadas questões colocadas pelo recorrente que este invoca, para sustentar a sua discordância relativamente a parte da decisão de facto, os vícios previstos no art. 410º, nº2, al. b) e c), do CPP. E nessa decorrência não distingue claramente os dois tipos de impugnação da matéria de facto ao longo da motivação, antes amalgamando os vícios previstos no art. 410º, nº 2 do CPP e a sindicância da convicção livremente formada pelo Tribunal em relação aos meios de prova produzidos.
Mas vejamos.
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, n.º 2 do CPP, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla a que se reporta o art. 412º, nº 3, 4 e 6 do CPP, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Na primeira elencada situação de impugnação da matéria de facto – que integra o chamado recurso de «revista ampliada» - trata-se de uma intervenção restrita, já que apenas admissível no tocante às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art. 410º e evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
Os vícios ali elencados: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova – constituem vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
O elenco legal destes vícios abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum].
Nesse seguimento, o recorrente suscita em primeira linha, o erro notório na apreciação da prova - al. c), que ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Ou seja, existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - cfr. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, 2.º Vol., pág. 740.
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art. 374º, n.º 2).
Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente - cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341.
O erro notório na apreciação da prova terá assim de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
E no que vício decisório previsto na al. b), do referenciado nº 2 do art. 410º tange, abrange, em realidade, dois vícios distintos: a contradição insanável da fundamentação; e - a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Assim, na primeira hipótese incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” – cfr. Ac. do TRC de 13.05.2020, acessível em www.dgsi.pt. citando o Ac. do STJ de 18.02.1998, no convencional JSTJ00034535.
Já a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Mais uma vez se esclarece que os vícios decisórios, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
Dito isto, analisemos, em concreto, as razões de discordância debatidas pelo recorrente que concretamente alega que “foram dados como provados os factos 5, 10 e 13 por manifesto erro notório na apreciação da prova, violando assim o tribunal o art.º 410º n.2 al. c) do CPP, quando tais factos e face à prova constante dos autos deveriam ter sido dados como não provados (…) inexiste quaisquer provas dos autos, quer documental, quer testemunhal que alicerce os factos então dados como provados”.
E desde já se anota que, mormente na perspetiva do “erro notório”, o recorrente incorre num equívoco ao invoca-lo por referência à al. c) do nº 2, do art. 410º do CPP, já que o “erro” que imputa à decisão de facto não se evidencia pela análise da própria decisão, antes depende da diferente valoração da prova efectuada pelo próprio em relação à que foi levada a efeito pelo tribunal recorrido, ou seja, o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal, com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do art. 127º do CPP; esse é um tema que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova e só é sindicável caso seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Veja-se que o recorrente se atém ao depoimento da testemunha BB, da Inspetora Tributária que analisou a documentação relativa à empresa gerida pelo arguido, procurando desacreditá-lo, apontando pretensas contradições e inconsistências, recorrendo a excertos truncados de tal depoimento. Refugiando-se ademais na ausência de provas que atestem parte dos impugnados factos.
Donde, no fundo, e pese embora invoque expressamente os assinalados vícios, certo é que o recorrente pretende sindicar a apreciação da prova produzida em 1.ª instância, pelo que temos nos fixar na substância das coisas em detrimento de nominalismos: se o recurso tiver aptidão para ser conhecido como impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, a Relação assim deve entender.
De todo o modo, visionando toda a matéria factual, sempre se dirá que não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta, e não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão.
Neste particular, da convocada contradição insanável entre os factos provados 10. e 13. e a fundamentação, não se reconhece a alegada contradição.
Aliás, resultou apurado:
4. A sociedade, no terceiro trimestre de 2010 (2010/09T) e no primeiro trimestre de 2011 (2011/03T), aos valores de IVA liquidado em cada trimestre, deduziu o IVA liquidado nas faturas recebidas, subtraiu ainda o IVA com direito a dedução, e apurou o IVA recebido em cada trimestre:
- no montante de €7.676,00, (sendo de assinalar um lapso na comunicação da alteração não substancial dos factos a que o tribunal procedeu dá conta do montante de €7.636,00 e não 7.676,00, mas na fundamentação consta aquele valor de €7.676,00) – cfr. acta de leitura da sentença de fls. 945) referente ao período de 2010/09T, e - no montante de €10.906,42, referente ao período 2011/03T,
Num total de €18.582,42, quantias que deveriam ter sido entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, nos termos dos artigos 27º, 29º e 41º, do CIVA, e nos 90 dias subsequentes ao termo de tal prazo - cfr. artigo 105º, n.º 4, al. a), do RGIT.
5. Tais montantes de IVA a entregar ao Estado foram efetivamente recebidos pela sociedade, conforme resulta da análise contabilística efetuada aos documentos apresentados pela sociedade – recibos e extratos de conta corrente, de fls. 23 a 66 -, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos, e analisados pelas Finanças.
10. Ao invés disso, o arguido AA apropriou-se desse montante, fazendo-o ilegitimamente seu e da empresa arguida
13. Até à data, o arguido AA ainda não regularizou a situação em falta.
É, pois, evidente que não se verifica qualquer contradição insanável da fundamentação, explicitando o tribunal, de forma cristalina, por que motivo ficou convencido de que os factos ocorreram tal como vêm descritos na acusação, da conjugação dos elementos de prova testemunhais e documentais, o que dali se retira sem incerteza.
Quanto à alusão a alguns pagamentos (referido pela testemunha) e à duvida se o arguido procedeu ao pagamento de quantias, retira-se com clareza que não se referem aos períodos em questão (terceiro trimestre de 2010 e primeiro trimestre de 2011), sendo que os valores destes, efetivamente não foram pagos ao Estado.
Obviamente que dizer-se que se desconhece o fim dado ao valor do IVA não entra em contradição com a apropriação inequívoca desse montante pelo arguido.
Portanto o facto de se desconhecer se o recorrente procedeu a algum pagamento por conta de impostos (em relação a outros períodos) em nada interfere com o facto conhecido e provado da não entrega do IVA dos períodos em referência.
Improcede, nos termos vistos, a pretensão recursiva, no que a este concreto modo de impugnação da matéria de facto se refere.
*
No entanto, como já atrás se mencionou, se o recurso tiver aptidão para ser conhecido como impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, assim deve por nós ser entendido, e a verdade é que o recorrente, pese embora invoque os sobreditos vícios, indubitavelmente pretende sindicar a apreciação da prova produzida em 1.ª instância.
Cumpre assim verificar os pressupostos de que depende a reapreciação da prova, o que nos remete para o citado art. 412º, nº 3 do CPP, aí se dispondo “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” – nº 4.
E no nº 6 “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”.
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se pois ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Importa também destacar que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso como se lê no Ac. STJ de 16.06.2005 disponível in www.dgsi.pt.
Este modo de impugnação, porque não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, não pressupõe, portanto, uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto
aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorrectamente julgados – vide neste sentido os Acórdãos do STJ de 29-10-2008, proc. 07P1016 e de 20-11-2008, proc. 08P3269, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, o recorrente, para além de elencar os factos impugnados, e de indicar unicamente como prova que imporia decisão diversa, o depoimento da testemunha BB, extraindo do depoimento desta curtos e desgarrados excertos que transcreve, esqueceu-se que os depoimentos das testemunhas têm que ser sempre analisados na integra e tem complementarmente que atender-se à globalidade da prova produzida, o que, sempre se diga, o tribunal recorrido adequadamente fez.
Com efeito, o recorrente na alegação recursiva transcreve, como se viu pequenas do depoimento da mencionada testemunha, olvidando por completo que tais declarações e depoimentos têm de ser analisados segundo as regras da lógica e da experiência comum e têm de ser observados na sua globalidade e não fragmentados, concatenando-os com a restante prova e no caso com a abundante prova documental junta aos autos ainda na fase de inquérito.
Desta feita, emerge com clareza a inobservância das exigências legais que regem a impugnação ampla da matéria de facto, já que aquele, apenas exprime a divergência relativamente à avaliação da prova efectivada pelo tribunal recorrido, e mesmo concretizando os factos que considera incorrectamente julgados, não indica, porém, em relação a cada um desses impugnados factos, as provas concretas que impõem, e não apenas permitem - decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
Por seu turno, olhando à motivação da sentença, percebe-se que foram, com clarividência, conjugados todos os elementos de prova produzidos, fazendo-se referência exaustiva a todas as provas atendidas e as razões do convencimento do tribunal a quo.
Mais se diga, que sequer o arguido esteve presente em audiência de julgamento, posto que optou por não comparecer, não tendo por isso aduzido uma versão diferente ou alternativa aos factos, nem ofereceu prova apta a infirmar tal versão, o que constituindo uma opção perfeitamente legitima, ainda assim dir-se-á que ao seu silêncio não se pode atribuir ressonância que a lógica das coisas não consente.
Isto é, o direito ao silêncio também não o pode beneficiar, posto que, numa atitude simplista e não alicerçada em factos concretos não pode aquele pretender vir agora, apenas nesta fase de recurso argumentar que não pode considerar-se provado que não procedeu nos moldes descritos na acusação.
Aliás a contestação apresentada de fls. 914 a 916, sequer rebate um qualquer facto da acusação, reincidindo apenas no tema da prescrição e da declaração de contumácia.
De todo o modo, não é uma qualquer divergência que pode levar o tribunal ad quem a decidir pela alteração do decidido em sede de matéria de facto. Antes as provas invocadas pelo recorrente – e que, note-se, se reconduz apenas ao depoimento de uma testemunha e de resto na qual o tribunal se ancorou - e a apreciação que sobre as mesmas é pelo mesmo feita, em confronto com a valoração que o tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida.
E ainda assim, a haver prova produzida em sentido diverso- e que não há - ao acolhido e considerado relevante pelo tribunal a quo, só por si não basta para alterar a decisão em sede de matéria de facto.
Pois o que é fundamental é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal. Desiderato que, não alcançou.
Na verdade, conferido porque escutado o depoimento da testemunha BB na integra, do mesmo se retira que a testemunha confirmou a factualidade dada como assente pelo tribunal a quo, e o seu “alegado” desconhecimento se refere ao primeiro trimestre de 2010 e não ao terceiro trimestre de 2010. E como se viu (ponto 4) relativamente ao ano de 2010 só está em causa o terceiro trimestre e não o primeiro, e depois o primeiro trimestre de 2011.
Daí que, quando afirma que desconhece se o arguido procedeu, ou não, à liquidação de quantias, está a inequivocamente a referir-se ao primeiro trimestre, sendo que esses factos não foram imputados ao arguido, sequer constavam da acusação. A antedita testemunha começou por referir que havia um auto em que constava que o IVA não havia sido entregue e depois apurou que no terceiro trimestre de 2010 igualmente ficou por entregar o IVA e como não foi capaz de descortinar se em relação ao primeiro trimestre tal situação havia sido regularizada avançou na investigação do terceiro trimestre de 2010 (esclarecendo que o respetivo montante era de €7,676,00) e no primeiro de 2011 que asseverou não terem sido liquidados.
Em suma, o desconhecimento de que fala a testemunha é sempre referente ao primeiro trimestre de 2010. No mais revelou-se afirmativa e convincente, sendo o seu depoimento valorado no cotejo com a demais prova documental. E repete-se, sendo o pagamento um facto facilmente demonstrável, não se percebe como é que o arguido “tendo” em mãos tal irrefutável prova não a juntou aos autos.
Donde, porque não se vislumbra na essência racional do tribunal recorrido algo que seja ofensivo das regras da experiência ou qualquer vício de raciocínio que evidencie algum erro, inevitavelmente está a impugnação em causa votada ao insucesso nos termos supra expostos, e desde logo porque não convoca meios de prova que imponham decisão distinta da proferida.
Em suma, no caso que nos ocupa, o tribunal a quo explanou claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais, conferiu credibilidade à versão dos factos carreada pela acusação, e por outro lado o elemento de prova convocado pelo recorrente para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal a quo, não impõe, decididamente, decisão diversa da recorrida.
Pelo exposto não soçobra margem para a pretendida alteração da matéria de facto, posto que não se detecta na decisão recorrida erro de julgamento tal como defende o recorrente, pelo que improcede, neste segmento, a pretensão recursiva.
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Por último no que tange à alegada violação do principio in dúbio pro reo.
Na decorrência da questão anteriormente analisada relativa ao pretenso erro de julgamento quanto à supra mencionada matéria de facto dada como provada, sustenta o recorrente que a decisão em crise violou o princípio do in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla.
Vejamos.
É consabido que o evocado princípio decorre do princípio constitucional de presunção de inocência (cf. artigo 32.º n.º 1 da CRP), sendo fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, e tem aplicação quando a livre apreciação da prova, com respeito pelo princípio da legalidade das provas, conduz à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência do facto ilícito típico e do seu autor, impondo que nesse caso o tribunal decida a favor do arguido.
Assim, não opera perante a existência de uma qualquer dúvida ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas antes quando uma dúvida assumida pelo próprio julgador surge como insanável, isto é, impossível de ultrapassar apesar de todo o empenho no esclarecimento dos factos, razoável, ou seja, racional e argumentada, e, além disso, objectivável, isto é, que pode ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.
No caso que nos ocupa, reafirma-se que, analisada a motivação desenvolvida pelo tribunal a quo, não se vislumbra e confirma a existência de dúvida razoável e insanável sobre a ocorrência dos factos ilícitos imputados ao arguido que tenha surgido no espírito do julgador, tal como não se suscita a este tribunal.
Diversamente, e olhando atentamente à motivação da sentença recorrida, constatamos que não subsistiu ao tribunal a quo, qualquer dúvida positiva e invencível sobre os elementos do crime imputado ao arguido, daí que a ponderação conjugada da prova produzida conduziu à formação de convicção segura pelo sobredito tribunal do cometimento pelo arguido dos factos considerados provados, não constituindo as considerações tecidas por este substrato objectivo para a existência de dúvida razoável e insanável sobre a matéria de facto impugnada.
Certo é que o arguido se limita a impugnar alguma da factualidade que foi considerada provada, sem sucesso, repita-se, nos termos supra expostos, já que, no que a elementos probatórios diz respeito, o arguido não arrolou qualquer meio de prova relevante para a discussão da factualidade em causa nestes autos.
Desta feita, e a par da factualidade apurada, nada mais quedou demonstrado com interesse para o que ora se decide e, conforme flui da motivação inserta na sentença, a valoração da prova baseia-se em critérios de objectividade e está em consonância com as regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, não sendo os argumentos aduzidos pelo recorrente idóneos a afastar aquele juízo probatório, nem excluem a valoração da prova efectuada, isto é, não contrariam a viabilidade do raciocínio desenvolvido pelo tribunal a quo e, como tal, não determinam a modificação do decidido, pois que não basta a demonstração de ser possível uma diferente avaliação ou ponderação da prova, mas antes a lei exige para a procedência da impugnação que as provas especificadas pelo recorrente imponham efectivamente uma alteração factual, desiderato que não foi alcançado no caso presente, como decorre do vindo de expôr.
Em síntese, o recorrente convoca uma deficiente interpretação do princípio in dubio pro reo, na medida em que uma ofensa àquele só se verifica quando, na apreciação global dos meios de prova destinada à reconstituição do facto histórico que lhe é proposto, o juiz permanece na dúvida sobre a verificação do evento imputado ao arguido; e, nesse estado subjectivo, acaba por decidir no sentido da sua autoria pelo mesmo arguido. Tal não é o caso normal da controvérsia penal, em que os sujeitos processuais têm posições contrárias sobre a verificação de tal facto ou não verificação. Como é óbvio, a simples existência de proposições contraditórias sobre ele não significa que o julgador tenha que absolver o imputado, nem que haja aqui qualquer observância necessária daquele princípio.
E assim, bastaria, em tal linha de raciocínio, o arguido contestar de forma coerente e não absurda a acusação, para lograr o funcionamento do princípio in dubio por reo – o que não é manifestamente aceitável.
Nesta decorrência carece de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo.
Em consequência, naufraga, na totalidade, o recurso.

3. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento a todos os recursos, interlocutórios e da decisão final interpostos pelo arguido AA, em consequência do que, decidem confirmar integralmente as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UCs.

Notifique.

(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 17 de maio de 2023
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
Raul Cordeiro