Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
63/10.0IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO
JUÍZO DE RAZOABILIDADE
Nº do Documento: RP2014100863/10.0IDPRT.P1
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artº 14º1 RGIT quanto ao período de suspensão da pena de prisão está em vigor;
II - A jurisprudência fixada no AFJ nº 8/2012 não é aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada p.p. pelo artº 104º RGIT porque é punível apenas com pena de prisão, não sendo possível a opção entre pena de prisão (eventualmente suspensa nos termos do artº 14º1 RGIT) e a pena de multa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: P.63/10.0IDPRT.P1

Acordam, em conferência, os juízes na secção criminal [1ª] do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

No processo comum [com intervenção do tribunal singular] n.º63/10.01IDPRT.P1 do 1ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, por sentença proferida em 24/4/2013 e depositada na mesma data, foi decidido:
- condenar o arguido B… pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, n.º 2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), a uma pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz um total de €1.680,00 (mil, seiscentos e oitenta euros).
- condenar a arguida C…, S.A. pela prática de um crime de fraude fiscal, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, e 2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, a uma pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €15,00 (quinze euros), o que perfaz um total de €5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros).
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Produzida prova em sede de audiência de discussão e julgamento e dada por assente a matéria de facto constante da sentença recorrida, foi considerado pelo Tribunal recorrido que os factos se subsumiam ao ilícito pelo qual o arguido e a sociedade vinham submetidos a julgamento, mas p. e p. nos arts. 103º, nº 1, al. c) e 104º, nº 2, al. b) do RGIT;
2. Assim, quanto ao arguido, o Tribunal a quo, à luz da matéria de facto dado por assente e face ao enquadramento jurídico que fez, não podia ter optado por pena não privativa da liberdade, violando os comandos legais supra mencionados;
3. Destrate, o art. 104º supra reproduzida sanciona as pessoas singulares que praticam o crime de fraude qualificada com prisão de um a cinco anos;
4. Ou seja, o Tribunal tinha forçosamente que optar por pena privativa da liberdade;
5. Todavia, as circunstâncias de vida do arguido e o circunstancialismo próprio ao caso, permitem a formação de um juízo de prognose favorável quanto ao seu futuro comportamento em sociedade;
6. Por isso, entendemos que poderá haver lugar à suspensão da pena de prisão que venha a ser aplicada, tendo em conta a moldura do ilícito em análise;
7. Contudo, haverá que atentar ao artigo 14º do RGIT que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos;
8. No tocante ao ente colectivo, também se constata que, pese embora o digno Tribunal recorrido tivesse enquadrado a factualidade dada por assente no ilícito tipificado no art. 104º do RGIT (fraude qualificada), atendeu à moldura penal prevista para o crime previsto no art. 103º (fraude);
9. Ou seja, o digno Tribunal, certamente devido ao uso de meios informáticos também não atentou à moldura penal prevista no art. 104º quando decidiu sancionar a sociedade arguida com a pena de 360 dias de multa;
10. Porquanto, os factos previstos no artigo 104º são puníveis com … multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas e não multa até 360 dias, como é referenciado na decisão recorrida;
11. Pelo que, necessariamente, atendendo ao período temporal de duração dos factos e montante da vantagem patrimonial ilegitimamente obtida, a pena de multa a aplicar ao ente colectivo deverá ser aplicada em dias superiores a 360;
12. Por tudo exposto, entendemos que o Tribunal recorrido violou os arts. 40º e 70º do Código Penal e 104º do RGIT.
O arguido B… respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.647 e 648].
A arguida C…, SA não apresentou resposta.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou pela procedência do recurso [fls.658 a 660].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos e respectiva fundamentação:
«2.1 – dos factos
Após instrução e julgamento da causa, resultaram provados os seguintes factos:
(da acusação pública)
1. A sociedade arguida, C…, SA, então com sede na Rua …, …, ….-… Vila do Conde, e denominada D…, SA, é sujeito passivo do Imposto sobre o Valor Acrescentado, enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal, tributado em IRC no Serviço de Finanças de Vila do Conde, pelo exercício da actividade de Comércio de Veículos Automóveis, - CAE …...
2. Designadamente no período dos anos compreendidos entre 2006 a 2008, inclusive, a sociedade arguida era gerida de direito e de facto pelo administrador único, B…, dirigindo os destinos da sociedade, dava as ordens sobre a sua actividade e decidia sobre a gestão das receitas e despesas geradas, efectuando compras e contratos, decidindo, além do mais sobre o pagamento das prestações tributárias.
3. No aludido período, compreendendo cerca de três anos de actividade, a sociedade arguida contabilizou a aquisição, no mercado comunitário, de 51 veículos, legalizados em seu nome, nos montantes totais de (IVA comunitário incluído):
a. 16 Veículos em 2006 - 637.429,95 Euro;
b. 20 Veículos em 2007 - 638.230,76 Euro; e
c. 15 Veículos em 2008 - 473.025,84 Euros.
4. As aquisições destes veículos, dado tratar-se de aquisições intracomunitárias de bens (AICB´s), constituem operações tributadas em Portugal.
5. Nas vendas efectuadas, no que concerne aos veículos usados, as facturas foram emitidas pelo preço de venda final, com a indicação da liquidação do IVA pelo regime da margem.
6. Não obstante, verificou-se que a sociedade arguida, e de acordo com ordens e execução a cargo do arguido administrador da mesma, houve lugar a liquidação indevida do IVA pelo regime da margem, dado que em certas situações, atinentes às transacções de alguns daqueles veículos, não se encontravam reunidos os pressupostos para utilização do referido regime.
7. A D…, assim designada à data, e correspondente, actualmente, à sociedade C…, liquidou o IVA pelo regime da margem nas vendas de veículos usados adquiridos a sujeitos passivos revendedores de outro Estado Membro, cujas transmissões por estes sujeitos passivos não foram efectuadas ao abrigo de regulamentação idêntica à do DL 199/96, co-respectiva e vigente no respectivo Estado Membro de aquisição de bem usado.
8. As transmissões dos veículos no Estado Membro de origem foram efectuadas pelo regime normal de imposto, não podendo ter sido, como foram, sujeitas e declaradas para efeitos da liquidação do imposto pelo regime da margem.
9. Nestes casos a sociedade arguida deveria ter considerado o valor tributável para a tributação em IVA pelo regime normal correspondente ao valor da venda do veículo deduzido do IVA liquidado pela sociedade arguida pelo regime da margem.
10. Foi assim contabilizada a comercialização dos seguintes veículos:
(2006)
a. ..-BI-..
b. ..-BR-..
c. ..-BR-..
d. ..-CE-..
e. ..-CD-..
f. ..-BU-..
(2007)
g. ..-DA-..
h. ..-DA-..
i. ..-DA-..
j. ..-DC-..
k. SAL… ….
l. ..-DG-..
m. ..-DG-..
n. ..-DI-..
o. ..-DR-..
p. ..-DR-..
q. ..-DG-..
r. ..-DX-..
s. ..-EE-..
t. ..-DV-..
u. ..-ES-..
v. ..-FA-..
(2008)
w. ..-FN-..
x. ..-FS-..
y. ..-FQ-..
z. ..-GL-..
aa. ..-GQ-..
11. Assim, a sociedade arguida procedeu à aplicação de regime diverso do legalmente admissível, liquidando IVA calculado com base na “margem” (comercial), id est, o valor de venda deduzido do custo de aquisição, onde se incluiu o IVA comunitário suportado, com excepção para os veículos com as matrículas ..-FN-.., ..-FQ-.. e ..-FS-.., – uma vez que a liquidação pelo regime da margem efectuada pelo contribuinte enfermou somente em erro ao deduzir o IA/ISV no apuramento da margem para tributação.
12. Em conformidade, face ao regime aplicado pela sociedade arguida, esta deixou de liquidar IVA, nos seguintes valores:
a. Ano de 2006 – 32.413,50 Euros;
b. Ano de 2007 – 93.781,02 Euros;
c. Ano de 2008 – 23.455,19 Euros, valores esses em que ficou lesada a Fazenda Nacional.
13. A sociedade arguida contabilizou os montantes de IVA comunitário como custo, integrado nos preços de aquisição dos veículos, sendo que, os sujeitos passivos de IVA estabelecidos em território português têm direito ao reembolso do IVA suportado em operações efectuadas noutros Estados Membros da União Europeia.
14. Não obstante, a sociedade arguida não exerceu o direito à restituição do IVA liquidado pelos fornecedores comunitários, pelo que, sempre que não seja exercido esse direito, o montante do IVA contabilizado como custo não é dedutível para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC, porque não se verifica o requisito de indispensabilidade exigido pelo n.° 1 do artigo 23.° do respectivo Código.
15. Deste modo, e como bem sabia e queria a arguida, a matéria colectável do IRC declarada por esta para os anos 2006, 2007 e 2008 foi influenciada negativamente nos montantes correspondentes ao IVA comunitário contabilizado como custo, nos montantes, a saber:
a. Exercício de 2006 – 21.289,67 Euros;
b. Exercício de 2007 – 67.860,32 Euros;
c. Exercício de 2008 – 14.912,61 Euros.
16. Entretanto, para além das correcções efectuadas pela liquidação indevida do IVA pelo regime da margem, pela análise da contabilidade da D…, uma quantidade de veículos comercializados pela empresa, ou com intervenção desta, foram veículos importados e legalizados na Alfândega em nome de particulares.
17. Foram importados veículos automóveis em nome de particulares, com o consentimento destes, por iniciativa do arguido B… e em benefício da sociedade arguida, que aparentemente cobraria a esses particulares um valor pela sua intervenção nessa importação, com as seguintes matrículas:
a. ..-BQ-..;
b. ..-BS-..;
c. ..-CA-..;
d. ..-CD-..;
e. ..-CF-..;
f. ..-CF-..;
g. ..-CG-..;
h. ..-CH-..;
i. ..-CI-..;
j. ..-CI-..;
k. ..-CV-..;
l. ..-CX-..;
m. ..-DB-..;
n. ..-DF-..;
o. ..-EB-..;
p. ..-DX-..;
q. ..-DX-..;
r. ..-DX-..;
s. ..-EC-..;
t. ..-ED-..;
u. ..-EJ-..;
v. ..-EM-..;
w. ..-EM-..;
x. ..-EN-..;
y. ..-EV-..;
z. ..-FE-..;
aa. ..-FE-..;
bb. ..-FE-..;
cc. ..-FF-..;
dd. ..-FJ-..;
ee. ..-FL-..;
ff. ..-FO-..;
gg. ..-FO-..;
hh. ..-FQ-..;
ii. ..-FR-..;
jj. ..-FU-..;
kk. ..-FX-..;
ll. ..-GH-..;
mm. ..-GH-..;
nn. ..-GJ-..;
oo. ..-GP-..;
pp. ..-GP-..;
qq. ..-GR-..;
rr. ..-HA-..;
ss. ..-HA-..;
situação em que apenas foi debitada uma comissão pela D…, a título de serviços de intervenção na aquisição de viaturas, justificando a intervenção da arguida com a afirmação de “serviços de intervenção na aquisição da viatura mat:(…)”, e facturando de acordo com tal aparência e justificação, fazendo constar as mesmas na contabilidade respectiva.
18. E houve a importação de veículos por particulares que de imediato foram vendidos à D….
19. Foram assim importados veículos automóveis em nome de particulares, com o consentimento destes, por iniciativa do arguido B… e em benefício da sociedade arguida, a quem foram de imediato vendidos, com as seguintes matrículas:
a. ..-BE-..;
b. ..-BI-..;
c. ..-BJ-..;
d. ..-BI-..;
e. ..-BH-..;
f. ..-BL-..;
g. ..-BL-..;
h. ..-BD-..;
i. ..-BN-..;
j. ..-BR-..;
k. ..-BX-..;
l. ..-CB-..;
m. ..-CF-..;
n. ..-CG-..;
o. ..-CJ-..;
p. ..-CH-..;
q. ..-CC-..;
r. ..-DT-..;
s. ..-EN-..;
t. ..-EL-..;
u. ..-EM-..;
v. ..-FJ-..;
w. ..-GJ-..;
x. ..-FR-..;
y. ..-GQ-..;
z. ..-GQ-..;
aa. ..-GR-..;
bb. ..-GU-..;
cc. ..-FQ-...
20. O pagamento dos referidos veículos foi efectuado pelos adquirentes nacionais através de meios de pagamento, cheques, emitidos à ordem e depositados pela sociedade arguida, ou pelo seu administrador, e ainda em numerário, por exigência do arguido.
21. Os valores declarados e constantes das declarações periódicas de IVA apresentados pela sociedade arguida, e os registos contabilísticos efectuados, constantes aquelas e estas dos autos, e que se dão por integralmente reproduzidas, não correspondem à realidade, uma vez que analisados estes e os respectivos documentos de suporte às operações realizadas ficou por liquidar IVA no montante global de:
a. 180.599,55 € no ano de 2006;
b. 173.296,90€ no ano de 2007; e
c. 209.198,78 €, no ano de 2008,
conforme apuramento efectuado com referência aos períodos de imposto compreendidos entre Fevereiro de 2006 e 4º trimestre de 2008, nos seguintes termos:


22. E em sede de IRC, restaram correcções a efectuar por imposto por liquidar nos seguintes termos:
2006 2007 2008
Lucro tributável declarado 15.695,76 19.287,71 3.137,72
Correcções:
Regime margem 21.289,67 67.860,32 14.912,61
Veíc. part. c/”intermediação” 3.638,45
Veíc. part. s/”intermediação” 79.540,00 17.479.74 70.462,18
Correcções totais 100.829,67 88.978,51 85.374,79
Lucro tributável corrigido 116.525,43 108.266,22 88.512,51
13. Tais declarações, correspondentes aos rendimentos dos anos de 2006, 2007 e 2008, foram entregues em 22/05/2007, 15/05/2008 e 18/05/2009, respectivamente.
24. Por força da actuação dos arguidos não foi liquidado IRC nos seguintes períodos/exercícios e montantes:
a. 2006 €25.207,42;
b. 2007 €22.244,63;
c. 2008 €21.343,70.
25. Com estes comportamentos e declarações, e decorrente da junção das facturas das operações atinentes a alegadas transacções efectuadas por terceiros, algumas com venda subsequente à sociedade arguida, ou ainda por declaração de regime diverso de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, como supra enunciado, em representação e no interesse da sociedade arguida, o arguido alterou os valores de IVA a declarar que deviam constar das declarações apresentadas, e assim, diminuiu o IVA a entregar nos cofres do Estado, pela sociedade arguida.
26. Decorrentemente, deu-se uma alteração dos valores e rendimentos dos anos fiscais respectivos, em sede de IRC a declarar, nos termos acima descritos, e assim com consequente redução de imposto sobre o rendimento pago, por não liquidado, patente a divergência dos valores declarados como custos, mas correspondentes a valores retidos a título de imposto.
27. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, visando além do mais ocultar à administração fiscal os valores reais e devidos de IVA decorrente de transacções intracomunitárias efectuadas pela sociedade por si representada, com a consequente não entrega do imposto devido, o que quis, ao importar veículos em nome de particulares, e aparentando a prestação de um serviço de mediação.
28. Nesta medida, o arguido B…, por si e em representação da sociedade arguida, agiu com a intenção de beneficiar esta, benefício patrimonial fiscal que sabia não terem direito, em detrimento e prejuízo da Fazenda Nacional.
29. Os arguidos fizeram seus os montantes acima descritos e que receberam, em resultado da actividade comercial da sociedade por si representada, a título de IVA, não os declarando nos exactos termos percebidos e como tal devidos à Fazenda Nacional.
30. Em todas as sobreditas condutas e respectivas modalidades, o arguido agiu de forma concertada, valendo-se da não verificação e fiscalização sucessiva das sobreditas condutas, designadamente ao longo dos referidos meses e anos de 2006 a 2008, de forma livre voluntária e consciente, em sabendo serem as mesmas proibidas e punidas por lei.
(da situação dos arguidos)
31. O arguido trabalha na comercialização de automóveis numa empresa do seu filho de 22 anos, recebendo o salário mínimo e comissões.
32. Vive sozinho em casa de um amigo.
33. Entrega €150,00 a título de alimentos devidos a uma filha menor.
34. Estudou até à 4.ª classe e começou a trabalhar aos 9 anos de idade.
35. O arguido foi condenado pela prática em 30 de Novembro de 2010 de um crime de abuso de confiança fiscal, numa pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €7,00, o que perfaz um total de €1.260,00, pena já declarada extinta pelo seu cumprimento.
36. A sociedade arguida encontra-se inactiva desde Setembro de 2009.
37. Foi esta sociedade condenada pela prática em 1 de Julho de 2009 de um crime de abuso de confiança fiscal, numa pena de 500 dias de multa, à taxa diária de €7,00, o que perfaz um total de €3.500,00.
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Não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente:
A. Que o arguido, administrador único da sociedade arguida, em data não concretamente apurada de 2006, decidiu concretizar um plano destinado a diminuir fraudulentamente o montante de IVA a entregar pela sociedade por si representada à Fazenda Nacional e que era devido pela aquisição intracomunitária de veículos, e sua venda subsequente em território nacional, assim não declarando as aquisições intracomunitárias de veículos recorrendo a imputação de IVA pelo regime de margem de vendas e não pelo regime normal, não entregando na respectiva Repartição de Finanças, juntamente com as declarações periódicas, os correspondentes meios de pagamento, em função do regime devido, mas por um regime diverso, que lhe permitia apropriar de valores acrescidos.
B. Que assim sabia o arguido que era obrigação fiscal da sociedade declarar e entregar ao Estado as quantias referentes a IVA devidas pela aquisição comunitária e venda em território nacional dos veículos automóveis no regime de tributação normal, e não pelo regime da margem, face ao regime e modo de aquisição, e que, ao não o fazer, prejudicava a Fazenda Nacional, o que visava.
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O Tribunal fundou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida, do modo que agora se passa a expor.
B…, aqui arguido, no que ao regime de tributação em sede de IVA, nas transacções intracomunitárias respeita, admitiu a aplicação do chamado “regime da margem”, o que adviria das indicações que colhia do seu técnico oficial de contas, – de que seria também este inclusivamente responsável –, assim como do sancionamento que a aplicação de tal regime recebia da revisora oficial de contas que prestava serviços nessa qualidade à sociedade, E…. Aceitando assim esta prática, residiria a sua origem nas indicações que recebia dos serviços de contabilidade, declarando desconhecer que poderia obter a devolução do IVA suportado nas aquisições de automóveis que efectuava na Alemanha.
Já no que se refere à importação de veículos em nome de particulares, o arguido admitiu ter usado o nome de particulares, amigos e familiares, para poder importar veículos em nome dele, beneficiando do respectivo regime fiscal, mais favorável. Sabendo que a importação estava limitada a dois carros por ano, segundo o arguido, teria inclusivamente recebido um conselho de um agente das finanças, em 2006, para usar esta forma de comportamento. Estava assim convencido da sua legalidade.
No que se refere aos veículos em que a sociedade surgia como prestadora de serviços de intermediação, defendeu o arguido a valia desta conduta, porquanto a sociedade tratava dos formalismos burocráticos e do transporte do veículo, assegurando os riscos desse transporte,
Descreveu credivelmente a sua situação pessoal e a da sociedade arguida.
Ouviu o tribunal de seguida F…, Inspector Tributário da Direcção de Finanças do Porto. Tendo efectuado nessa qualidade a acção inspectiva à contabilidade da sociedade, incidente sobre os exercícios de 2006 a 2008, pôde o tribunal compreender do seu testemunho os reais contornos das práticas acima descritas. Assentou assim em grande medida neste testemunho a solidificação da convicção do tribunal.
G… foi uma das pessoas que se dirigiu à D… para adquirir na Alemanha um veículo. A partir desse ponto a D…, na pessoa do arguido, tratou da vinda do veículo, pagando a testemunha o preço do carro, as despesas de transporte e a “comissão da D… directamente ao arguido.
Já H… dirigiu-se à D… para comprar um veículo, tendo para o efeito assinado vários documentos, em seu nome, entre eles uma declaração de compra e venda, destinados a permitir a sua importação. Segundo esta testemunha, era à D… que comprava o veículo, o preço que lhe deram corresponderia ao “carro posto cá” e o negócio só não se teria concretizado porque não foi aceite o veículo que pretendia “dar à troca”.
As testemunhas I…, conhecido da família do arguido desde o tempo do pai do arguido, J…, amigo de tropa do arguido, K…, amigo de infância do arguido, L…, que conhece o arguido desde miúdo, M…, ex-mulher da testemunha N…, sobrinho do arguido, e esta testemunha, todos admitiram ter “dado” o nome ao arguido para este trazer automóveis da Alemanha em seu nome. E em consentaneidade os documentos constantes do apenso 1, anexo B4, referentes à importação desses veículos, a eles são imputados (respectivamente a fls. 107 a 120, 146 a 157, 158 a 166, 167 a 175, 196 a 205 e 178 a 184). Perante esta admissão, que aliás já provinha do próprio arguido, presente nos testemunhos acima recebidos, e considerando a homogeneidade das comunicações constantes dos “particulares adquirentes” em resposta à solicitação das finanças, nos termos patentes a fls. 1, 5, 12, 19, 26, 34, 40, 53, 62, 69, 81, 88, 95, 107, 121, 137, 146, 129, 158, 167, 178, 185, 196, 206, do Apenso I, anexo B4, que estas testemunhas acabaram por admitir que foi o arguido que delas “tratou”, não teve o tribunal dúvidas ao concluir que as viaturas supra descritas em foram trazidas em nome de particulares no e para o exercício exclusivo da actividade da sociedade arguida.
O carácter exaustivo e sistemático do uso desta prática de dissimular a importação de veículos com identidades de particulares, com sensíveis prejuízos para a Fazenda, sendo evidente a natureza lesiva desta prática para qualquer cidadão, leva o tribunal a concluir que seguramente saberia o arguido da ilicitude da sua conduta.
U…, ex-amigo do arguido, adquiriu-lhe veículos, mas em período diferente do aqui discutido.
No tangente aos veículos importados por particulares, em que a sociedade agiria como intermediária, cobrando nessa medida uma comissão, o tribunal deu relevo aos testemunhos de F… e de H…, em conjugação com a constatação que as aquisições e movimentações financeiras respectivas vieram a repercutir-se na conta n.º …………., do banco O…, da titularidade da sociedade arguida, conforme extractos constantes do Apenso I, Anexo B5, sem pagamentos directos dos clientes ao vendedor estrangeiro, e que era assim o arguido que lidava com todas estas operações, assumindo o custo de reparações necessárias com o transporte. Embora estes clientes assinassem os documentos de que lhes apresentavam (como referiu a testemunha H…), e conforme se constata da análise dos documentos do Apenso I, Anexo B2, restaria no seio da actividade da sociedade arguida, sob comando do arguido, o domínio de todas estas transacções, nas quais o arguido tratava dos seus diferentes trâmites, nomeadamente o desalfandegamento dos veículos. Neste campo foi relevante o testemunho de P…, despachante oficial contratado pela sociedade arguida para proceder a este labor, e que confirmou ter prestado este tipo de serviços ao arguido, sempre em cumprimento dos preceitos legais.
Daqui colheu o tribunal a asserção de que o arguido agia usando este sistema de “intermediação” para reduzir os seus custos de operação, mantendo pleno domínio da operação comercial, mascarando dessa forma a actuação da sociedade.
No que se refere ao emprego contabilístico do “regime da margem” no apuramento do IVA devido, o afastamento dos factos descritos em A e B teve como fonte o depoimento das testemunhas Q…, técnico oficial de contas da empresa, e E…, revisora oficial de contas da sociedade, aliado ao teor de documentos juntos aos autos.
Explicou o técnico oficial de contas que naquela data não se sabia bem como contabilizar tais operações, embora achasse que a maneira correcta fosse aquela que foi seguida, de contabilização do IVA devido pelo regime da margem. A senhora revisora oficial de cotas, E…, não perceberia do assunto, e jamais havia feito qualquer reparo à forma de contabilização das operações em causa.
Ora, esta testemunha veio contrariar esta versão, afirmando ter alertado o técnico oficial de contas de que havia lançamentos que não estavam bem, o que encontraria reflexo nas recomendações e reservas que fez às contas apresentadas. Admitindo que a forma de contabilização do IVA pela margem se encontrava em dúvida à data, e que só em 11 de Julho de 2008 é que os serviços da finanças clarificaram a situação do IVA suportado nas transacções intracomunitárias, que não seria aceite como custo.
Os diferentes relatórios de certificação de contas da ROC juntos aos autos, nomeadamente o relativo às contas de 2007, com duas versões, com e sem reservas, sendo uma das versões seguramente falsa, fez aumentar o “ruído” sobre esta discussão. Contudo, esta altercação salientou a distância que seguramente o arguido teria sobre a questão da contabilização das operações. Tratava-se de uma questão técnica, com intervenção directa e decisiva destes técnicos de contabilidade, restando por demonstrar o domínio que dela tinha o arguido, e a subsequente consciência e intenção fraudulentas deste ao seguir a “via contabilística” do regime da margem no cálculo do IVA a pagar ao Estado.
As testemunhas S…, funcionário da sociedade arguida, e T…, funcionário do gabinete de contabilidade da testemunha Q…, referindo-se à actividade laboral respectiva, nada relevante trouxeram ao tribunal que acrescentasse valor à matéria probatória já colhida.
Considerou ainda o tribunal, na determinação dos factos, no respeitante à sociedade, as certidões permanentes de fls. 22 a 26, as certidões do registo comercial de fls. 40 a 45 e 49 a 51. No respeitante aos veículos e à fisionomia da sua comercialização e facturação, considerou também o tribunal os quadros de fls. 82, 91 e 92.
Ponderou o tribunal os CRC’s juntos aos autos dos arguidos.»

Apreciação
O âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só podendo o tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, como são, entre outras, os vícios da sentença previstos no art. 410.º nº 2 do C.P.Penal.
No caso vertente, atentando nas conclusões apresentadas, a questão trazida à apreciação deste tribunal reconduz-se à escolha e determinação da medida das penas decorrente do enquadramento jurídico efectuado.
O arguido B… foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal na forma continuada p. e p. pelos arts.103.º n.º1 al.c) e 104.º n.º2 do RGIT, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de €7,00 e a arguida C…, SA, pela prática de um crime de fraude fiscal na forma continuada p. e p. pelos arts.103.º n.º1 al.c) e 104.º n.º2 do RGIT, na pena de 360 dias, à taxa diária de €15,00.
O recorrente insurge-se quanto ao facto de, tendo os arguidos incorrido na prática do crime de fraude qualificada, o tribunal não ter atentado na moldura penal deste crime para a determinação da espécie e medida da pena, mas antes na prevista para o crime de fraude fiscal “simples”.
Dispõe o art.103.º do RGIT, sob a epígrafe Fraude:
«1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento de prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto á natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2. Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000.
3. Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»
E o art.104.º do RGIT, sob a epígrafe Fraude qualificada, preceitua:
«1. Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções,
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
2. A mesma pena é aplicável quando:
a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a interpretação de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou
b) A vantagem patrimonial for de valor superior a €50.000.
3. […]
4. […] »
Atentando na sentença recorrida, dúvidas não restam que a conduta dos arguidos foi integrada na prática de um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada, lendo-se a fls.621 «Os valores em causa tornam a actuação dos arguidos subsumível à prática de fraude qualificada p. e p. pelo art.104.º, n.º2, al.b) do RGIT, e não à hipótese contida no n.º1, al.d) do preceito, pois nenhuma das acções de falseamento ou ocultação de elementos probatórios aí previstas foi praticada pelos arguidos.
Conclui-se então pelo cometimento do crime imputado aos arguidos, por se encontrarem preenchidos todos os elementos legais constitutivos do tipo de ilícito à luz do normativo aplicável, cometido sob a forma continuada».
E em conformidade com o trecho que acabou de se transcrever, no dispositivo da sentença, consta expressamente que os arguidos praticaram «um crime de fraude fiscal na forma continuada, p. e p. pelos arts.103.º, n.º1, al.c), e art.104.º, n.º2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
Face ao enquadramento jurídico-penal efectuado, com o qual o Ministério Público e os arguidos se conformaram, logo se conclui que o Sr.Juiz a quo se equivocou na escolha e determinação da medida das penas, pois atentou na moldura penal prevista no art.103.º do RGIT e não no art.104.º do mesmo diploma.
O crime de fraude fiscal qualificada é punido com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
A determinação da medida da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no art.71.º do C.Penal, tendo em vista as finalidades das penas, quais sejam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente em sociedade, constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena – cfr. art.40.º n.º1 e 2 do C.Penal.
A este propósito, como refere a Prof.Anabela Rodrigues, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Ano 12, n.º 2, Abril-Junho de 2002, 147/182, o art.40.º do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção dos bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena, de onde resulta que:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas».
Em síntese, culpa e prevenção, geral e especial, são os dois termos do binómio com base no qual se determina a medida concreta da pena.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e constituindo esta o limite máximo da pena.
«Através da prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente em ordem a uma sua integração digna no meio social» – Ac.STJ de 20/4/2010, proc. n.º1103/05.0PBOER.S1, relatado pelo Conselheiro Fernando Frois.
De salientar ainda que, no âmbito do RGIT, nos termos do art.13.º, na determinação da medida da pena deve atender-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.
Por outro lado, o disposto no art. 79.º do C.Penal, aplicável subsidiariamente por força do disposto no art.3.º al.a) do RGIT, determina que o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
No caso, no que se reporta ao arguido B…, há a ponderar:
- o grau da ilicitude dos factos, aferido pelo valor do prejuízo causado com a conduta mais grave que integra a continuação criminosa – €68.018,48 –, é muito elevado,
- o dolo é directo,
- as necessidades de prevenção geral são muito exigentes, embora tendo sempre como limite a culpa do agente, face à circunstância dos crimes fiscais estarem generalizados e constituírem condutas de grande danosidade social, entendendo-se prevenção geral enquanto reforço da confiança e das expectativas da comunidade no ordenamento juridico-penal.
- as necessidades de prevenção especial não são especialmente relevantes, uma vez que à data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais, embora posteriormente viesse a sofrer uma condenação por crime de abuso de confiança fiscal, a que acresce que o arguido está integrado sócio-profissionalmente.
No que se reporta à empresa arguida, cuja responsabilidade criminal decorre do art.7.ºdo RGIT, há que ponderar o valor do prejuízo causado com a conduta mais grave que integra a continuação criminosa – €68.018,48 –, as necessidades de prevenção geral, muito acentuadas, assim como a situação financeira da empresa.
Tudo ponderado, mostram-se adequadas as seguintes penas:
- 2 anos de prisão, para o arguido B…,
- 500 dias de multa, à taxa diária de €15,00, para a arguida C… ..
O art.50.º n.º1 do C.Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º59/2007, de 4 de Setembro, [em vigor aquando da maioria dos factos integradores da continuação criminosa] dispõe que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
E o n.º5 do mesmo normativo estabelece que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
Por sua vez, o art.14.º do RGIT [Suspensão da execução da pena de prisão] preceitua no seu n.º1 que «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento da quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».
Há, assim, uma incompatibilidade entre as disposições do n.º5 do art. 50.º do C.Penal e do art. 14.º n.º1 do RGIT, no que respeita ao prazo de duração da suspensão da execução da pena. Porém, este último normativo não se pode considerar revogado por aquele preceito do C.Penal, pois, por um lado, a Lei n.º59/2007 não o revogou expressamente e, por outro, o art. 14.º n.º1 do RGIT não foi tacitamente revogado na parte em que prevê que o pagamento da dívida fiscal possa ocorrer até ao limite de 5 anos e, consequentemente, que o prazo de suspensão da pena seja fixado até ao máximo de 5 anos, dado tratar-se uma de norma especial. [v. Ac.R.Coimbra de 23/6/2010, proc. n.º3994/02.8TALRA.C1, relatado pela Desembargadora Cacilda Sena]
Por isso, nos casos abrangidos pelo art. 14.º n.º1 do RGIT é esta a norma que estabelece o limite máximo aplicável ao período de suspensão da pena, assim como impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos. De realçar que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado pela não inconstitucionalidade do art.14.º do RGIT, enquanto condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida – v., entre outros, Acórdão n.º 335/03, 376/03, 500/05, 543/06, 29/07, 61/07, 556/09, 587/09 e 237/11, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
No caso presente, considerando que o arguido está integrado sócio-profissionalmente e aquando dos factos não tinha antecedentes criminais, afigura-se ser possível fazer um juízo de prognose social favorável no sentido de que não cometerá novos crimes, sendo a ameaça da pena suficiente para o desencorajar da prática de novos ilícitos.
Nos termos do art.14.º n.º1 do RGIT fixa-se a suspensão da execução da pena pelo período de 4 anos, suspensão que será condicionada ao pagamento das quantias de €338.465,51 [referente a IVA de Março de 2006, Abril de 2006, Outubro de 2006, 3º trimestre de 2007, 4º trimestre de 2007, 1º, 2º, 3º e 4º trimestres de 2008 – cfr.fls.19 da sentença] e de €37.500,55 [referente a IRC dos anos de 2006 e 2008 – cfr. fls.19 da sentença] e acréscimos legais, pagamento a efectuar em duas parcelas, sendo €231.340,00, no prazo de dois a contar do trânsito da decisão, e a restante quantia até ao termo do prazo da suspensão.
De salientar que a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º8/2012, publicado no Diário da República nº 206, Iª série, de 24/10/2012, no sentido de que «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.» não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade.
Seguiremos neste aspecto muito de perto o Ac.R.Porto de 20/2/2013, proc. n.º131/08.9IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato, por concordarmos inteiramente com o raciocínio no mesmo explanado. «O que resulta do acórdão [referindo-se ao AFJ n.º8/2012] é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura. Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa –, poderá ser aplicável a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (também eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa. No caso em apreço, em que está em causa um crime de fraude fiscal tributária, punível apenas com pena de prisão, não se coloca a possibilidade de opção entre pena de prisão suspensa na sua execução e pena de multa.»

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes na secção criminal [1ª] do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso procedente e em consequência condenar:
- o arguido B… pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, n.º 2, al.b), ambos do RGIT, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, nos termos do art.14.º n.º1 do RGIT, pelo período de quatro anos, condicionada ao pagamento das quantias de €338.465,51 [referente a IVA de Março de 2006, Abril de 2006, Outubro de 2006, 3º trimestre de 2007, 4º trimestre de 2007, 1º, 2º, 3º e 4º trimestres de 2008] e de €37.500,55 [referente a IRC dos anos de 2006 e 2008], pagamento a efectuar em duas parcelas, sendo €187.983,00, no prazo de dois anos a contar do trânsito da decisão, e a restante quantia até ao termo do prazo da suspensão.
- condenar a arguida C…, S.A. pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, e 2, al.b), ambos do RGIT, a uma pena de 500 [quinhentos] dias de multa, à taxa diária de €15,00 [quinze euros], o que perfaz um total de €7.500,00 [sete mil e quinhentos euros].
Sem custas.
[texto elaborado pela relatora e revisto por ambas as signatárias]

Porto, 8/10/2014
Maria Luísa Arantes
Ana Luísa Bacelar