Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4348/19.2T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: PRESTAÇÃO DE FACTO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO
Nº do Documento: RP202105104348/19.2T8AVR.P1
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Vem constituindo objecto de controvérsia saber se a execução específica das obrigações de prestação de facto jurídico prevista no artigo 830º do Código Civil é a regra ou a exceção, isto é, se corresponde a uma proposição jurídica de alcance geral, aplicável a todas as obrigações de prestação de facto jurídico, ou corresponde a uma proposição jurídica excepcional, de alcance restrito, aplicável apenas às obrigações de prestação de facto jurídico constituídas na sequência da celebração de um contrato-promessa.
II - O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
III - Por isso, ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação, de maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 4348/19.2T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro – Juízo Central Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO

B…, SA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C…, SA, alegando em resumo que:
- Mediante contrato escrito assinado a 01 de setembro de 2014, a Autora deu de arrendamento à Ré diversas fracções autónomas, sendo uma delas destinada a comércio e serviços e as restantes a lugares de estacionamento automóvel.
- Tal contrato foi celebrado por cinco anos, renovando-se por períodos sucessivos de um ano, pela renda anual de 49.500 €, a pagar em 11 prestações mensais no valor de 4500 €.
- Nesse edifício arrendado, a Ré exerce a sua actividade.
- O valor da renda acordado teve em consideração o interesse da Autora na celebração de um contrato de empreitada celebrado conjuntamente com o contrato de arrendamento, pelo que é inferior ao valor corrente do mercado.
- No ano de 2014, a Ré tinha à frente da sua actividade e fazia-se representar por D… que foi com quem a Autora discutiu e acordou os contratos de arrendamento e empreitada supra mencionados.
- Em Março de 2015, o referido D… afastou-se da Ré, deixando de colaborar com ela, de a representar e de estar à frente da sua actividade, sendo substituído por E….
- No início do ano de 2019, a Ré, por intermédio da E… e a A. por intermédio do seu director comercial, F…, iniciaram entre si negociações com vista ao aumento da renda e do prazo de renovação do arrendamento.
- Por intermédio da referida E…, interveio também nas negociações G…, apresentado como responsável pelos assuntos de imóveis dentro do grupo H…, ao qual a Ré pertence.
- As negociações decorreram quer por mail quer através de reuniões em que estiveram presentes os três intervenientes já referidos.
- O acordo final foi firmado em reunião ocorrida a 24 de junho, tendo a 25 de Junho a Autora enviado à Ré, por intermédio da sua representante E… e com conhecimento simultâneo também ao seu representante G…, a minuta final do contrato nos termos acordados.
- O novo contrato seria celebrado pelo período de dois anos, tendo a renda um valor mensal de 8.713,23 € e teria início a 01 de Setembro de 2019.
- No dia 05 de Julho a Ré, por intermédio da sua representante E… e com conhecimento simultâneo ao G… enviou para a Autora mail com o seguinte teor:
“Estamos de acordo com a última versão enviada. Agora estamos em processo de assinatura de mesmo”.
- Por mail de 31 de Julho a mesma E…, por mail, respondendo a uma interpelação do autor respondeu “Ainda estou à espera. Vou tentar enviar isso o quanto antes”.
- No dia 19 de Agosto a Ré enviou à A. carta registada onde refere “Com referência ao contrato que V. Exas nos remeteram para análise cumpre-nos transmitir que procedemos à sua análise juntamente com o nosso CEO (responsável máximo da Multinacional) e os nossos advogados e, lamentavelmente, não concordamos com os termos nele apresentados.
Pelo que, permanece em vigor o contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado entre as partes em 01 de setembro de 2014”.
A carta encontra-se assinada por I….
- A essa carta seguiu-se uma troca de correspondência entre a Autora e a Ré que manteve a sua posição de não assinatura do novo contrato.
- Até ao fim do mês de Julho de 2019 a referida E… assinava os seus mails como Directora ou “Facilities Manager”, expressão essa traduzida por “gerente do estabelecimento”, “directora do centro” ou “gerente do centro”.
- Foi sempre a referida E… quem, após março de 2015, passou a estar à frente da actividade da Ré, tratando e decidindo dos mais variados assuntos inerentes ao desenvolvimento normal das operações do seu quotidiano empresarial e isso de modo diário, constante, estável e público, tendo um gabinete de trabalho próprio e exclusivo e de onde coordenava toda a actividade desenvolvida nas instalações da Ré e onde trabalham cerca de 200 trabalhadores.
- Desse modo a E… sempre se apresentou e sempre foi vista interna e externamente como a directora e única responsável pela actividade da R. sem ninguém que lhe fosse hierarquicamente superior.
- De realçar, para além da negociação da renovação do contrato de arrendamento já explanada, a existência de uma outra negociação de um outro contrato de arrendamento com a Autora, incidindo sobre outro espaço e em que foi interlocutora, como representante da Ré, a referida E….
- O modo como a E… se apresentava e relacionava com todos, e especialmente com a A., era adequado a que aquela acreditasse e confiasse que aquela primeira representava a R. para gerir e garantir a continuação da actividade desenvolvida no local, designadamente quando acordou o fim do anterior contrato de arrendamento em 01/09/2019, e negociou um novo contrato de arrendamento por um novo prazo de dois anos a contar daquela data e uma nova renda.
- A Autora confiou que a Ré lhe tivesse conferido poderes para discutir, acordar e fechar com ela o novo contrato de arrendamento.
- A Autora desconhece se a referida E… tinha ou não poderes formais de representar a Ré.
- No entanto, esta está obrigada a aceitar como seu o contrato de arrendamento acordado, estando vinculada à imagem externa que a empresa deixou e deixa transparecer no sentido da sua representação direta perante a Autora.
- Recai sobre a R. o chamado risco da organização, segundo o qual o modo de funcionamento da empresa, em concreto, facilita a criação da situação de aparência e induz o terceiro em erro, no sentido de que, independentemente de culpa, com fundamento no princípio do risco da organização, à R. enquanto representada (pela E…) e detentora de uma empresa, é oponível o contrato de arrendamento, celebrado entre a A. e a sua representante aparente – a E… – (além do G…) com fundamento no princípio do risco da organização.
- A E… ao aparecer e atuar de modo correspondente ao de um gerente de direito da R., com a tolerância dos sócios e do agente inscrito no registo comercial, perante terceiros e perante a A. que confiou nessa aparência, vinculou aquela sua representada – a Ré, ao contrato de arrendamento que acordou.
- Não dispondo a E…, eventualmente, de poderes formais de representação, como o mandato, a procuração ou equivalente, certo é que a natureza da actividade por ela desempenhada no interesse, por conta, ordens e remuneração da R. e para a qual foi contratada envolvia, necessariamente, a celebração e o acordo sobre o contrato de arrendamento do local onde aquela exercia a sua actividade.
- A E… exercia as funções de gerente de comércio ou preposto, nos termos do art. 248º do Código Comercial, o que acarreta que fosse considerada como representante perante terceiros.
- Como consequência do que fica exposto, está a Ré constituída na obrigação de assinar e, em qualquer caso, de aceitar e cumprir como se o tivesse assinado o contrato de arrendamento referido.
- Ao longo de negociações e contactos que se prolongaram por praticamente meio ano, através da troca de e-mails, de várias conversas telefónicas, de pelo menos 3 reuniões pessoais e de troca de minutas para o contrato de arrendamento, a A. agiu sempre no convencimento sério de que eram propósito e vontade da R., manifestados pela E…, celebrar um novo contrato de arrendamento, pelo prazo de dois anos a iniciar-se em 1 de Setembro de 2019, mediante o pagamento de uma nova renda.
- Acordo esse em que a Autora confiou e que abrangeu o texto final e definitivo para esse novo contrato.
- Existia, assim, em relação à Ré, mais do que um dever de conclusão do contrato: o contrato já estava finalizado, fechado e pronto a ser assinado, impondo-se, por isso à R. um autêntico dever de o assinar.
- A Ré, ao recusar-se assinar o contrato, defraudou os interesse contratuais da Autora.
- Não pautou a sua conduta segundo as regras da boa-fé e os princípios da confiança, a que estava legalmente obrigada e que violou grave e grosseiramente.
Conclui pedindo que seja proferida sentença:
1) que decida que a R. estava e está obrigada (i) a assinar e a aceitar, como arrendatária, o contrato de arrendamento integral e explicitamente transcrito no artigo 56º da petição inicial, em que a A. figura como senhoria ou locadora, e (ii) a cumpri-lo nos seus precisos termos e condições ali transcritas;
2) que em especial decida ainda que a R. estava e está especialmente constituída, como se tivesse sido ela a assiná-lo, como arrendatária, na obrigação de pagar as rendas mensais pelos valores e nas datas de vencimento estipuladas no nº 3 da cláusula sexta desse contrato, e com a actualização que resultar do estipulado no nº 3 daquela cláusula;
3) que, em consequência, decida que essa sentença (i) substitui as declarações negociais e de vontade da A., como locadora, e da R., como locatária, nos termos e condições que constam da minuta do contrato de arrendamento cujo teor foi integralmente transcrito no artigo 56º da petição inicial, bem como a assinatura, pela própria R., daquele contrato de arrendamento nos termos e condições constantes do seu texto ali transcrito, e (ii) produz os efeitos daquelas declarações e das obrigações por elas assumidas, por parte da R., de tomada de arrendamento à A., das fracções autónomas identificadas no artigo 4º da petição inicial e na cláusula primeira do mencionado contrato de arrendamento, pelo prazo, renda e demais condições ali transcritas;
4) que, assim, decrete que entre a A. e a R. foi celebrado o contrato de arrendamento nos termos e condições transcritas no artigo 56º, condenando-se aquela última– a R. – a cumpri-lo nos seus precisos termos e condições, com a menção expressa, nessa sentença, para que dúvidas não haja, de que o prazo de duração de tal contrato é de dois anos, com início no dia 1 de Setembro do corrente ano de 2019 e fim no dia 1 de Setembro de 2021, renovando-se automática e sucessivamente por iguais períodos de tempo, tendo como objecto as fracções autónomas identificadas no artigo 4º desta petição inicial e na cláusula primeira da sua minuta transcrita no artigo 56º e como fim o mencionado na cláusula segunda dessa mesma minuta, mediante o pagamento, pela R. à A., das rendas pelo valor mensal de 8.713,23 €, actualizável de acordo com o estipulado no número 3 da cláusula sexta, e de que, no caso de mora da arrendatária no pagamento das rendas, a sua obrigação de pagar abrange não só o valor da renda ou rendas em falta, bem como o valor correspondente a 50% do valor de cada uma dessas rendas;
5) que decida que a R., ao não pagar as rendas vencidas nos dias 1 de Agosto a Dezembro de 2019 respeitantes aos meses de Setembro a Dezembro de 2019 e a Janeiro de 2020, pelo valor acordado e estipulado pelo novo contrato de arrendamento, transcrito no artigo 56º, incorreu em mora e, por força do estipulado no nº 4 da cláusula sexta desse contrato, ficou constituída na obrigação de pagar à A., a título de agravamento, a quantia 21.805,29 €, correspondente a 50% da importância 43.610,59 € já alegada no anterior artigo 88º-B;
6) que condene a R. a respeitar o que for decidido quanto aos anteriores números 1) a 5) deste pedido e, ainda, em consonância com o assim decidido, que igualmente condene a R. a pagar à A. as seguintes quantias:
a) de imediato, a quantia já vencida e não paga de 34.852,92 €, respeitante às 4 rendas, já vencidas e não pagas, no valor mensal de 8.713,23 € cada uma, dos meses de 1/9/2019 a 31/12/2019;
b) também de imediato, a quantia, igualmente já vencida e não paga, de 8.757,67 € respeitante à renda do mês de Janeiro de 2020, vencida em 1 de Dezembro actualmente ainda em curso, pelo valor de 8.713,23 € actualizado pelo coeficiente de actualização legal em vigor no ano de 2020 (1,0051 – Aviso nº 15225/2019), conforme estabelecido no nº 3 da cláusula sexta do contrato de arrendamento;
c) no dia do seu respectivo vencimento, conforme estabelecido na cláusula sexta do contrato, as quantias respeitantes às rendas mensais vincendas de 1 de Janeiro a 1 de Novembro de 2020, respeitantes aos meses de Fevereiro a Dezembro desse mesmo ano, pelo valor mensal referido na alínea anterior de 8.757,67 € por cada mês, no total, quanto a esses meses, no total de 96.334,37 €; d) igualmente no dia do seu respectivo vencimento, conforme estabelecido na mesma cláusula sexta, as quantias respeitantes à rendas vincendas de 1 de Dezembro de 2020 a Julho de 2021, respeitantes às rendas dos meses de Janeiro a Agosto de 2021, pelo valor da anterior alínea b) (8.757,67 €), mais o valor da actualização legal segundo o coeficiente que vier a ser publicado para esse ano;
e) ainda de imediato, a quantia de 21.805,29 €, correspondente a 50% da quantia de 43.610,59 € referida no anterior nº 7) deste pedido;
f) a quantia de 50% do valor de cada renda que, de futuro, ou seja, de 1 de Janeiro a 1 de Novembro de 2020 (respeitantes aos meses de Fevereiro a Dezembro do mesmo ano), se vença e não seja paga no dia e prazo devido;
g) juros de mora à taxa legal para os créditos de que sejam titulares as empresas comerciais, nos termos do artº 102º, § 3º, a contar da citação, sobre as quantias peticionadas nas anteriores alíneas a), b) e e);
7) que, em consequência e por efeito do acordo a que se referem os artigos 31º a 63º desta petição inicial, do que foi expressamente combinado entre A. e R., e do decidido quanto aos anteriores números 1) a 6), o contrato de arrendamento a que se referem os artigos 4º a 11º desta petição terminou em 31 de Agosto de 2019;
8) que a A. reconhece à R. o direito de levar o valor por ela já pago conforme alegado nos anteriores artigos 88º e 88º-A, no total de 23.137,90 €, a desconto na quantia cujo pagamento é pedido na alínea a) do número 7) deste pedido;
9) que, por último, condene a R. no pagamento das custas e demais encargos, nos termos legais.
A Ré veio contestar, impugnando a matéria constante da petição inicial e alegando que não é, legalmente admissível, no caso em apreço, recorrer à execução específica.
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido saneador/sentença que julgou improcedente a ação.
Inconformada com tal ato decisório, veio a autora interpor o presente recurso, admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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A ré apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, o objeto do presente recurso está circunscrito à apreciação da questão de saber se os elementos constantes dos autos permitem, numa fase interlocutória do processo (despacho saneador), a prolação de uma decisão de mérito a julgar improcedente o pedido que formulou, por ausência de suporte legal que legitime, no caso, o recurso à execução específica do negócio que alegadamente terá sido firmado entre as partes.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito de apreciação do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

No ato decisório sob censura considerou-se que as pretensões principais que a autora formula no âmbito da presente ação declaratória se reconduzem a um pedido de execução específica.
Na decorrência desse entendimento e por igualmente se considerar que a execução específica é apenas admissível quando esteja em causa o cumprimento de um contrato-promessa, o que não é o caso, decidiu julgar-se a ação improcedente por “não terem qualquer suporte legal os pedidos formulados, quer os que se referem especificamente à execução específica (pedidos 1 a 4) quer os que pretendem extrair consequências quanto ao pagamento das rendas pressupondo essa execução específica (pedidos 5 a 8)”.
A autora rebela-se contra esse segmento decisório sustentando que, em rigor, não aduziu qualquer pedido de execução específica, já que verdadeiramente o que pede se traduz antes no reconhecimento de que entre as partes foi celebrado um contrato de arrendamento nos moldes descritos nos artigos 1º a 56º da petição inicial, contrato esse que, apesar de não se mostrar assinado, é válido, eficaz e oponível à ré.
Independentemente da bondade da argumentação adrede produzida pela apelante, não se pode, todavia, concordar com essa visão das coisas, já que a forma como estrutura as concretas pretensões de tutela jurisdicional que formula nestes autos revela, em termos objectivos, que a sua pretensão efetiva passa por um pedido de execução específica – que, como é consabido, se consubstancia numa intervenção judicial para efeitos de substituição da declaração de vontade do devedor[1] -, como inequivocamente o demonstra o facto de peticionar que seja proferida sentença que “substitu[a] as declarações negociais e de vontade da A., como locadora, e da R., como locatária, nos termos e condições que constam da minuta do contrato de arrendamento cujo teor foi integralmente transcrito no artigo 56º da petição inicial, bem como a assinatura, pela própria R., daquele contrato de arrendamento nos termos e condições constantes do seu texto ali transcrito”, e “produz[a] os efeitos daquelas declarações e das obrigações por elas assumidas, por parte da R., de tomada de arrendamento à A., das fracções autónomas identificadas no artigo 4º da petição inicial e na cláusula primeira do mencionado contrato de arrendamento, pelo prazo, renda e demais condições ali transcritas”.
Questão que então se coloca é a de saber se no nosso ordenamento jurídico a execução específica será apenas admissível para obter o cumprimento das obrigações de prestação de facto jurídico constituídas através de um contrato-promessa.
Ora, ao invés do que se entendeu na decisão recorrida (onde peremptoriamente se afirma que a execução específica somente é possível quanto tiver sido celebrado entre as partes um contrato promessa), a questão está longe de obter uma solução pacífica, especialmente na doutrina pátria, registando-se a propósito entendimentos díspares, discutindo-se se a ação de execução específica das obrigações de prestação de facto jurídico é a regra ou a exceção, isto é, se corresponde a uma proposição jurídica de alcance geral, aplicável a todas as obrigações de prestação de facto jurídico, ou corresponde a uma proposição jurídica excepcional, de alcance restrito, aplicável apenas às obrigações de prestação de facto jurídico constituídas através da outorga de um contrato-promessa.
ANTUNES VARELA[2] e GALVÃO TELLES[3], por exemplo, consideram-na como uma exceção, sustentando que a execução específica se aplica apenas ao contrato-promessa e que a execução específica é no nosso sistema jurídico, claramente, uma providência excepcional e por isso não pode ampliar-se a outras situações, ainda que análogas ou dalgum modo análogas.
Outros autores[4], porém, consideram-na como uma regra, na medida em que a ação de execução específica tem prioridade sobre a ação de indemnização e a resolução do contrato, advogando que o art. 830º do Cód. Civil deverá, por isso, aplicar-se directamente às obrigações de prestação de facto jurídico fundadas no contrato-promessa e aplicar-se indirectamente (por analogia geral ou analogia juris) às obrigações de prestação de facto jurídico fundadas noutros contratos ou na lei.
Como, a este respeito, escreve VAZ SERRA[5] a regra do art. 830º, nº 1, do Cód. Civil “é suscetível de interpretação extensiva, de maneira a ser aplicável também a outros casos abrangidos pelo seu espírito: seria estranho e injustificável que só na hipótese de promessa de um contrato fosse permitido ao credor obter a sentença que esse artigo menciona (…). Dada a identidade de razão, é legítima a interpretação extensiva do preceito do art. 830º do Cód. Civil: a lei diz menos do que o que queria dizer, [devendo, nessa medida, ser interpretada] de modo a abranger qualquer obrigação de emitir uma declaração de vontade. A chamada execução específica da obrigação de contratar (ou, mais latamente, de emitir uma declaração de vontade), não estará, pois, circunscrita à obrigação derivada de um contrato-promessa, estendendo-se também às outras obrigações de contratar ou emitir uma declaração de vontade emanada de qualquer outra fonte”. Isso mesmo é igualmente enfatizado por ALMEIDA COSTA[6] ao afirmar que “não se vê, com efeito, que a regra do art. 830º constitua um princípio excepcional no quadro jurídico vigente. Corresponde ao sistema da nossa lei, que atribui à restauração natural prevalência sobre a indemnização por equivalente (art. 566º, nº 1). Aceita-se, deste modo, que uma execução específica idêntica à prevista no art. 830º seja suscetível de abranger outras situações. Até por maioria de razão, nas hipóteses de existência do dever de contratar”.
Portanto, nesta matéria, um sector significativo da doutrina vem preconizando a aplicação, em termos gerais[7], da execução específica prevista no art. 830º do Cód. Civil (por analogia ou interpretação extensiva), de modo a abranger no seu âmbito de previsão outras hipóteses em que se exista um dever jurídico de contratar, para além do que emerge de um contrato promessa.
Como assim, sendo defensáveis várias soluções sobre a questão da aplicabilidade, ou não, de execução específica a outras obrigações de contratar que resultem de outras fontes (v.g. da lei, da vontade das partes ou mesmo da boa-fé) que não o contrato promessa, não estariam verificados os pressupostos da antecipação, para o despacho saneador, do conhecimento do mérito da causa.
Na verdade, como decorre do art. 596º do Cód. Processo Civil, no plano das funções atribuídas a esse despacho, a apreciação dos aspetos jurídico-processuais da ação constitui o conteúdo essencial do mesmo, sendo o conhecimento do mérito apenas uma sua finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença.
É certo que, em certas condições, a apreciação desse mérito pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode fazê-lo nesse despacho “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória” (art. 595, nº 1 al. b) do Cód. Processo Civil).
O conhecimento imediato do mérito só se realiza, assim, no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
No caso, no despacho saneador, o decisor de 1ª instância por entender que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito do pedido, conheceu logo dele, julgando-o improcedente.
É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja justa.
Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador tão-somente se a questão puder ser decidida nesse momento, ou seja se essa apreciação, segundo as vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objeto, não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador.
Não é essa, todavia, a situação vertente.
Com efeito, os elementos que se colhem nos autos revelam a existência de factos controvertidos carecidos de prova, com indiscutível relevância para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, isto é, segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objeto da ação. De facto, em conformidade com a alegação da autora (que foi alvo de impugnação por banda da ré no articulado de defesa que apresentou), as partes, na sequência das negociações que encetaram a partir do início do ano de 2019 e que perduraram até final de junho desse mesmo ano, terão alcançado consenso quanto aos elementos essenciais do acordo de renegociação do contrato de arrendamento que entre elas vigorava desde 2014, negócio esse a que apenas terá faltado a respectiva formalização, sendo que, nessas circunstâncias, alguns autores[8] vêm entendendo que a insuficiência formal pode ser suprida por sentença do tribunal caso se tenham verificado os restantes pressupostos do contrato.
Por conseguinte, contrariamente ao afirmado no ato decisório sob censura, o processo não possibilitava o conhecimento imediato do mérito do pedido, logo no despacho saneador. Se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam essa antecipação – por existir outra solução plausível da questão de direito - é meramente consequencial a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão que ordene o prosseguimento da causa.
Impõe-se, pois, a procedência do presente recurso.
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene, como for de direito, o prosseguimento da instância.
Custas pela parte vencida a final na proporção em que o for.

Porto, 10 de maio de 2021
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Como tem sido sublinhado na doutrina (cfr., por todos, CALVÃO DA SILVA, in Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 1987, págs. 140-158 e 498-501, HENRIQUE MESQUITA, in Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1990, págs. 233 e seguinte e TEIXEIRA DE SOUSA, in Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, 2ª edição, Lex, pág. 611) a execução específica constitui um meio de tornar mais consistente o direito do credor à prestação creditória, possibilitando a satisfação do seu interesse in natura sem a cooperação do devedor ou até contra a vontade deste. Por essa via, o efeito instantâneo da procedência de ação de execução específica (que assume natureza de ação constitutiva, mas que, como enfatiza TEIXEIRA DE SOUSA, na obra e página citada, reveste, porém, funcionalmente uma natureza simultaneamente executiva, na medida em que realiza o interesse do credor à prestação prometida) traduz-se em o credor obter as mesmas consequências que decorreriam da regular emissão de uma declaração de vontade, independentemente e mesmo contra a vontade da contraparte.
[2] In Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, Almedina, pág. 365 e in Sobre o contrato-promessa, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 71 e seguinte, onde escreve que “a lei admitiu excepcionalmente a realização coactiva (específica) da obrigação de contratar, quando a obrigação proviesse de um contrato promessa”.
[3] In Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, pág. 135.
[4] Cfr., inter alia, ALMEIDA COSTA (in Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, págs. 195 e seguinte), CALVÃO DA SILVA (in Sinal e contrato-promessa, 12ª edição, Almedina, pág. 145), BAPTISTA MACHADO (in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, 1991, págs. 244 e seguinte), PINTO OLIVEIRA (in Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, 2005, pág. 186 e in Ensaio sobre o sinal, Coimbra Editora, 2008, págs. 126 e seguinte), JANUÁRIO GOMES (in Em tema de revogação do mandato civil, Almedina, 1989, págs. 133 e seguinte) e ANA PRATA (in O contrato-promessa e o seu regime civil, Almedina, 1995, págs. 899-904).
[5] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100º, págs. 194-197 e ano 111º, pág. 16.
[6] Ob. citada, pág. 196.
[7] Registe-se, neste conspecto, que em domínios específicos essa aplicabilidade vem sendo sustentada de forma relativamente constante, como sucede, entre outras, com a obrigação que, no mandato sem representação, impende sobre o mandatário de transferência para o mandante dos direitos adquiridos em execução do mandato (cfr., por todos, JANUÁRIO GOMES, ob. citada, págs. 131 e seguinte, MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. III, 6ª edição, Almedina, pág. 459 e MENEZES CORDEIRO, in Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, tomo I, 3ª edição, Almedina, págs. 73 e seguinte), com a obrigação de preferência (cfr. AGOSTINHO GUEDES, Responsabilidade pela violação do dever de dar preferência, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Horster, Almedina, 2012, pág. 53 e ANA PRATA, ob. citada, págs. 899 e seguinte) e na carta de intenções (cfr., MENEZES CORDEIRO, in Manual de Direito Bancário, 2ª edição, Almedina, pág. 447).
[8] Cfr., neste sentido, PAIS DE VASCONCELOS, Superação judicial da invalidade formal no negócio jurídico de Direito Privado, in Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, págs. 313-338, MENEZES CORDEIRO, in Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, vol. 1º, 3ª edição, Almedina, pág. 569 e ANA PRATA, ob. citada, págs. 903 e seguinte.