Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA DEOLINDA DIONÍSIO | ||
Descritores: | FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA EXAME CRÍTICO DA PROVA NULIDADE DA SENTENÇA NULIDADES IRREGULARIDADE REGIME PROVAS AUDIÊNCIA EXAME FACTOS GENÉRICOS DIREITO DE DEFESA CONTRADITÓRIO CONSEQUÊNCIAS CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA REQUISITOS | ||
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Nº do Documento: | RP20230614246/21.8GBAMT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | 1 | ||
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Sumário: | I – Nem a eventual existência dos vícios a que alude o artigo 410º n.º 2, nem a invocação de erro de julgamento por via da impugnação da matéria de facto de acordo com a previsão contida no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal, determina a nulidade da sentença, figura perfeitamente autónoma e distinta, pois que caracterizando-se as sentenças judiciais como actos decisórios necessariamente fundamentados, por força do estatuído nos artigos 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º n.ºs 1 a) e 5, do Código de Processo Penal, o legislador autonomizou o respectivo regime das nulidades consagrando no artigo 379º deste último diploma legal. II – Por outro lado, as nulidades que não estejam legalmente densificadas como insanáveis, carecem de ser invocadas pelos interessados, em tempo e sede próprios, sob pena de ficarem sanadas, o mesmo acontecendo com as irregularidades. III – A indicação e exame crítico das provas decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção, servindo de garante a um processo equitativo, além de que o exame crítico da prova reveste especial relevo já que é aí que o tribunal explica a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir. IV – Deste modo, haverá nulidade quando, perante as circunstâncias do caso, a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do “iter” que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, ou seja para se perceber as razões que sustentam tal decisão. V – É inquestionável que, tendo em vista a salvaguarda do princípio da imediação e defesa dos sujeitos processuais relativamente a decisões surpresa e/ou arbitrárias, dispõe o n.º 1, do artigo 355º do Código de Processo Penal que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”. VI – Todavia, a proibição em causa não é absoluta, consignando-se logo no seu n.º 2 que “ressalvam-se do disposto no número anterior “as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”. VII – O entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante é perfeitamente consensual quanto ao facto das meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, serem inadmissíveis no processo criminal, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas. VIII – Assim, o quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há-de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, de molde que, por um lado, o arguido possa exercitar plenamente o seu direito de defesa e contraditório e, por outro, seja possível ao julgador dirimir integralmente e com segurança todas as questões que constituem o “thema decidendum”. IX – O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, pois está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, através de um clima de medo, angústia, intranquilidade. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO PENAL n.º 246/21.8GBAMT.P1 Comarca: Porto Este Tribunal: Amarante/Juízo Local Criminal Processo: Comum Singular n.º 246/21.8GBAMT 2ª Secção Criminal Conferência/Urgente [Violência Doméstica] Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjuntos: Jorge Langweg Maria Dolores Sousa Assistente: AA Arguido: BB Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO 1. Por sentença proferida a 24 de Novembro de 2022, com declaração de depósito referente, certamente por lapso, ao dia anterior (23/11/2022 - cfr. fls. 463 do processo físico), no âmbito do processo supra referenciado, o arguido BB, com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão cuja execução foi suspensa por igual período mediante regime de prova e a regra de conduta de se abster de contactar a assistente por qualquer meio. 2. Entretanto, tendo-se constatado que a decisão publicitada e depositada, segundo se invoca, por lapso de origem informática, não continha os factos provados e não provados, embora contivesse a motivação destes, foi a mesma novamente reproduzida nos autos, com assinatura do dia 07 de Dezembro de 2022 e depósito apenas a 09 de Dezembro de 2022, e notificada aos sujeitos processuais respectivos. 3. Inconformado, o arguido BB interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões[1]: (transcrição) I- Resulta do art.º 613 n.º 1 do CPC, aplicável por força do art.º 4 do CPP, que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, não podendo o julgador corrigir o ato decisório, excepto nas situações previstas no art.º 380 do CPP. II- Ainda que se admita que por mero esquecimento, na primitiva sentença, proferida a 24/11/2022, o M.º Juiz não incluiu a matéria que considerou provada e não provada, não se pode aceitar que a matéria que foi considerada provada e não provada é a que lhe foi aditada na nova sentença. III- Ao retificar a sentença inicialmente proferida aditando 53 factos provados, 25 factos não provados, e acrescentando 7 novos factos que não constavam da acusação, o julgador não está a corrigir um lapso manifesto, que resulta evidente da simples leitura da sentença. IV- Pelo que a sentença retificada proferida em 7/12/2022 é nula, por violação do disposto no art.º 380 n.º 1 b) do CPP e do art.º 613 n.º 1 do CPC, aplicável por força do art.º 4 do CPP. V- A sentença é nula e padece de insuficiente fundamentação, não tendo procedido à análise crítica de todas as provas, nos termos supra alegados, violando por isso o art.º 379 n.º 1 a) do CPP, devendo ser substituída por outra que proceda ao exame fundamentado e crítico de todas as provas produzidas. VI- O Tribunal para formar a sua convicção, lançou mão de prova proibida, pois, para “avivar a memória da assistente”, o tribunal não leu as passagens necessárias ao avivamento da memória e relativas aos factos que a mesma alegou já não se recordar, tendo entregue à assistente o auto onde constavam as suas anteriores declarações, que esta leu, em silêncio, pelo que a prova assim obtida é nula nos termos expressamente previstos nos artº 355 n.º 1 e artº 356 n.º 9 do C.P.P. VII- Deverão ser desconsiderados todos os factos genéricos constantes dos factos provados vertidos em 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18 e 23, e supra referidos, por não corresponderem a factos concretos, mas antes a imputações genéricas, formas vagas e imprecisas, temporalmente indefinidas, cujas ocorrências e cadência não estão concretamente determinadas, impedindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa, devendo por isso ser consideradas por não escritas, por violação do direito constitucionalmente consagrado do art.º 32 n.º 2 da Constituição, e no art.º 127 do CPP, devendo retirar-se tais expressões da matéria de facto supra referida. VIII- A sentença objeto de recurso padece ainda de erro de julgamento no que tange à matéria de facto considerada provada no que respeita aos factos provados referidos em: 4 a 21, 23, 25, 28 a 46. IX- As declarações da assistente - a instâncias do M.º Juiz, de 24:56 a 31:57, e mais tarde, a instâncias do Ministério Público de 2:40 a 3:31, conjugadas com o depoimento da sua mãe, do minuto 02:35 a 2:56 e de 4:03 a 06:03 -, e ainda com o depoimento do seu pai, do minuto 04:33 a 07:44 e ao minuto 10:25, impõem decisão diversa da vertida nos factos vertidos em 4 e 5 da matéria provada nos termos supra referidos, devendo ser considerados não provados. X- No que respeita ao facto provado referido em 6, não podia o tribunal ter dado como provado que em tal período o arguido ligava semanalmente para a assistente e que tais situações coincidiam na sua maioria com momentos em que o arguido não estava com a menor, pois as declarações da própria assistente, ao minuto 03: 07 a 03:52, e ao minuto 24:56 a 26:36, impunham que o tribunal considerasse esta matéria não provada. XI- No que respeita ao facto provado referido em 7 e 9 apenas resultou das declarações da assistente, ao minuto 32: 21 a 35:36 e depois a instâncias do MP, ao minuto 4:39 a 5:05 que esta admitiu que uma única vez, em que se cruzou com o arguido junto da Câmara Municipal, ele lhe fez um gesto, sem se perceber qual, e não se concretizou quanto tal sucedeu, não se sabendo se respeita ao facto 7 ou ao vertido em 9, devendo m qualquer caso, por força da não localização no tempo, serem ambos considerados não provados. XII- No que respeita ao facto provado referido em 8, em momento algum do seu depoimento a assistente declarou que tais expressões foram proferidas e muito menos que o foram pela recusa desta em reatar a relação, pelo que as declarações da assistente não permitem concluir como se concluiu, devendo também ser considerado não provado. XIII- O Tribunal deveria dar como não provada a matéria vertida nos factos provados referidos em 10 e 11, pois nada resulta das declarações da assistente sobre as circunstâncias temporais em que os mesmos ocorreram e, por outro lado, do depoimento da testemunha CC, do minuto 02:39 a 11:08, apenas se provou que em certas circunstâncias, cujo número de ocorrências não pode precisar, (3/4 vezes referiu) que se cruzaram com o arguido, não soube concretizar se foram coincidências ou não. XIV- As declarações da assistente, do minuto 39:15 a 40:52, permitem concluir que a matéria que o Tribunal considerou provada em 12 e 13 e 14 foi incorretamente julgada, pois esta não conseguiu concretizar quando tal episódio ocorreu, apenas admitiu que foram umas quatro vezes, assim como não confirmou que o arguido tenha invertido sentido de marcha e voltado a passar em frente a tal local, pelo que este factos devem ser considerados não provados. XV- A assistente não conseguiu concretizar uma única data em que terá ocorrido o facto provado referido em 15, pelo que, mesmo tendo por base o meio de prova indicado pelo Tribunal esta matéria terá que ser considerada não provado. XVI- No que respeita ao facto provado referido em 16, e conforme as declarações, da assistente, do minuto 08:31 a 08: 41, dos documentos juntos a fls 150 e 153, apenas resulta que um perfil com o nome e foto do arguido terá visualizado, sem se saber quando, por duas vezes um determinado perfil do LINKEDIN, mas daí tão pouco resulta que tal perfil pertencia à assistente, assim como apenas resulta de fls.145 que um perfil com o nome e foto do arguido terá efectuado um pedido, para “seguir” um outro determinado perfil, no Instagram, pelo que este facto, atento o meio de prova indicado pelo Tribunal não permite concluir como se concluiu, devendo também ser considerado não provado. XVII- no que respeita ao facto provado referido em 17 nenhuma prova resultou de que algum episódio concreto assim tivesse sucedido, sendo que as alegadas motivações para tal comportamento, são meras convicções da assistente, desprovidas de qualquer outro meio de prova que as suporte, pelo que tal facto deve ser considerado não provado. XVIII- no que respeita ao facto provado referido em 18, respeitante ao facto de o arguido pedir a cadeira automóvel emprestada, não se conseguiu descortinar a razão porque tal pedido causava transtorno à Assistente, já que tal pedido apenas sucedia quando aquele ia buscar a menor e por uma questão de segurança da mesma, pelo que mesmo o meio de prova indicado pelo Tribunal não permite concluir como se concluiu, devendo também ser considerado não provado. XIX- no que respeita ao facto provado referido em 19, 20 e 21, nenhuma prova foi feita do que aí consta, que também não foi referido pela assistente, tão pouco consta dos documentos referidos pelo tribunal para justificar a sua decisão, pelo que nenhum meio de prova indicado pelo Tribunal permite concluir como se concluiu, devendo tais factos ser considerado não provados. XX- no que respeita ao facto provado referido em 23, a assistente apenas se referiu a um episódio semelhante, sem concretizar no tempo, no seu depoimento ao minuto 13:45 a 14:04, e mais nenhuma testemunha se referiu a tal propósito, sendo que resultando dos factos provados que desde junho de 2021 até dezembro de 2021 a menor era entregue e recolhida pela mãe da assistente, então as alegadas expressões aí proferidas teriam que ter ocorrido em data anterior, devendo por isso tal facto ser considerado não provado. XXI- no que respeita ao facto provado referido em 25, não resulta do depoimento da assistente, do minuto 10:17 a 10:40, que o arguido tenha acelerado e muito menos que lhe tenha causado receio de que a pudesse atropelar, pelo que atento o meio de prova indicado pelo tribunal, tal facto não pode ser considerado provado. XXII- no que respeita ao facto provado referido em 28 e 29, a que apenas a assistente se referiu, apenas pode ser dado como provado que o “arguido lhe desferiu um pancada com o telemóvel que a atingiu no olho e na testa”, não se tendo apurado as reais circunstâncias em que tal sucedeu, designadamente se o arguido atirou o telemóvel com intenção de a agredir, ou se pura e simplesmente, ao devolver o telemóvel da assistente, atingiu a assistente no olho e na testa e lhe causou as lesões descritas, até por obediência ao in dubio pro reo, devendo também estes dois factos ser considerado não provado. XXIII- no que respeita ao factos provados referidos em 30 a 42, tais documentos são conversas estabelecidas entre a assistente e o arguido, tendo apenas resultado da audiência que esta era a forma como os arguidos falavam, sobre questões relacionadas com a menor, mas, não deixam de ser mensagens descontextualizadas, não se sabendo todo o contexto em que foram proferidas e acima de tudo delas não resulta a sua motivação e relevância para o crime em causa, sendo certo que a sua esmagadora maioria são inócuas e nada de relevante importam para o crime aqui em causa, pelo que também não deveriam ser dadas como provadas. XXIV- no que respeita ao facto provado referido em 43 a 46, considerado provado com base nas declarações da assistente, não poderá manter-se o que neles consta pois a assistente em momento algum do seu depoimento referiu ter sentido vergonha ou ansiedade, receio de que o arguido pudesse atentar contra sua vida ou de terceiros, que vivesse constrangida na sua liberdade com receio de que o arguido atentasse contra a sua integridade física. XXV- E do conjunto da demais prova produzida, resulta até que a assistente continuou a fazer a sua vida com normalidade, passeando sozinha ou acompanhada com as suas amigas nas ruas da cidade ..., apesar de trabalhar em ..., conforme resulta do facto provado em 12, tendo apenas declarado logo ao minuto 03:07 a 03:52 que, face aos comportamentos do arguido, ficava “nervosa, triste e com medo”. XXVI- Assim como se provou, com base nas suas próprias declarações, que pese embora a sua mãe estivesse por perto e pudesse fazer a entrega da menor ao arguido, nos episódios referido em 4 e 5, e 24 e 25, a assistente decidiu dirigir-se sozinha, para próximo do arguido, assim como frequentava e continuou a frequentar um cabeleireiro e café próximos da casa do arguido, bem sabendo que era muito provável que ali com ele se cruzasse;- cfr declarações a instâncias da mandatária do arguido ao minuto 07:30 a 7:40 e cfr declarações ao minuto 39:15 a 40:52 a instâncias do M.º Juiz XXVII- Das declarações da mãe da assistente, ao minuto 13:50 e da testemunha CC, ao minuto 9:07 a 11:08, resulta que a Assistente não mudou as suas rotinas, o que não evidencia qualquer constrangimento na liberdade dos seus movimentos ou receio de que o arguido pudesse atentar contra sua integridade física, devendo ser dado como não provada tal matéria nos termos supra referidos respeitante ao vertido em 43.º XXVIII- Existiu assim, erro de julgamento na apreciação da prova, já que o M.º Juiz não poderia ter dado como provada a matéria de facto constante dos factos 4 a 19, 21, 23, 25, 28 a 46, pois os depoimentos da assistente e das testemunhas supra indicados deveriam ter determinado que tais factos fossem considerados não provados. XXIX- Por último, os factos imputados ao arguido não integram o crime de violência doméstica, pelo qual foi condenado, já que atento o previsto no art.º 152 n.º 1 alínea a) do C.P., comete o crime de violência doméstica quem “de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, provações da liberdade e ofensas sexuais a) ao cônjuge ou ex-cônjuge; XXX- Como vem sendo entendido pela nossa jurisprudência, nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou liberdade de determinação, constituem crime de violência doméstica, o que consideramos ser o que sucede no caso em apreço, já que as condutas imputadas não atingem o patamar necessário para que se mostrem preenchidos os elementos do tipo de crime por que foi condenado. XXXI- Em momento algum dos factos provados conseguimos verificar a existência de maus tratos com gravidade e intensidade tal que ultrapassem o tipo de crime que cada um dos ilícitos individualmente considerados visa proteger. XXXII- Como resulta da prova produzida, trata-se de um comportamento ocorrido de maio de 2021 a novembro de 2021, imediatamente a seguir à ruptura definitiva do casal, sempre motivado por resolução de questões que se prendem com a filha menor de ambos, dos quais não resultaram consequências de maior, e cujo comportamento do arguido terminou desde que a assistente deu conhecimento dos factos às autoridades e ainda antes de lhe ter sido aplicada a medida de coação ainda em vigor nestes autos, que tais condutas não preenchem o tipo legal de crime pelo qual foi condenado. XXXIII- Pelo que o Tribunal fez um errada interpretação e a aplicação do disposto no art.º 152 n.º 1 do CP, devendo o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica por que foi condenado. 4. Admitido o recurso por despacho com o teor que se pode ver a fls. 536 do processo físico, respondeu o Ministério Público sufragando, sem alinhar conclusões, a sua improcedência e manutenção do decidido. 5. Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer igualmente no sentido do não provimento do recurso, acompanhando e reforçando a resposta aludida. 6. Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido, o mesmo acontecendo quando cumprido o n.º 5, do mesmo preceito legal. 7. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão. *** II - FUNDAMENTAÇÃO 1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt]. Daí que, se o recorrente suscita questões na motivação que, depois, não retoma nas conclusões, deve dar-se predominância à matéria que nestas foi vertida, olvidando-se o mais que naquela consta – v., Ac. STJ, de 1/7/2005, Proc. 1681/01- 3ª, in dgsi.pt. Assim, no presente caso as questões suscitadas que cumpre apreciar são, na sua preordenação lógica, apenas as seguintes: a) Nulidades da sentença Violação do disposto no art. 380º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal Insuficiência de fundamentação b) Valoração de prova proibida c) Imputações genéricas d) Erros de julgamento da matéria de facto e) Errónea subsunção jurídica ao crime de violência doméstica2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição) A) Factos Provados 1. O Arguido BB e AA casaram catolicamente no dia 18/08/2012, fixando residência desde o ano de 2016 na Rua ..., ..., ..., Amarante; 2. Durante o casamento nasceu a menor DD em .../.../2019; 3. O Arguido e a Assistente estão divorciados desde 16/11/2020; 4. No dia 20/05/2021, pelas 19h10 o denunciado deslocou-se até à Rua ..., ..., Amarante para ir buscar a filha menor do casal, sendo que por a menor estar a chorar a Assistente entrou no veículo do Arguido para tentar acalmar a filha, tendo o Arguido iniciado bruscamente a marcha do veículo com a Assistente no seu interior, só tendo parado a pedido da vítima, vários metros à frente; 5. A Assistente decidiu então pegar num saco que estava no banco da frente do veículo que continha as coisas da menor e de imediato o arguido agarrou-a pelo pescoço com as duas mãos fazendo força, deixando-o vermelho; 6. Durante o Verão de 2021, entre Junho e Setembro de 2021, o Arguido enviou diversas mensagens escritas a dizer que queria falar com a Assistente e fez-lhe diversas chamadas através do número de telemóvel ...59 para o telemóvel da Assistente ...74, com uma periodicidade semanal, sendo que estas situações coincidiam na sua maioria com momentos em que o Arguido não estava com a menor, sendo que o regime de visitas já estava fixado e não coincidia com tais dias; 7. Em datas não concretamente apuradas do Verão de 2021 o Arguido cruzou-se de carro na rua com a Assistente e passou a mão no pescoço como que dizendo que lho ia cortar; 8. Em datas não concretamente apuradas o Arguido ligou à Assistente e pediu para reatar o relacionamento e perante a recusa da Assistente o Arguido disse-lhe “és uma oferecida, vestes-te para agradar a outros homens, andas com amigas divorciadas”; 9. Em final de Outubro/inicio de Novembro de 2021 quando a ofendia seguia a pé no largo da Câmara Municipal ..., do lado do mosteiro de ..., em direção ao carro que ali se encontrava estacionado viu o Arguido passar de carro com a filha do casal, tendo o mesmo dado duas voltas no largo, e da segunda vez ao passar pela Assistente fez um gesto com a mão como se lhe fosse bater; 10. Em julho de 2021 quando a Assistente se encontrava no interior de uma loja na zona do ... em Amarante o Arguido ao vê-la naquele local, inverteu o sentido de marcha, andando às voltas no largo ali existente e passou em frente à referida loja por diversas vezes; 11. De seguida e porque a Assistente ali permanecia o Arguido telefonou para a Assistente por diversas vezes; 12. No Verão de 2021 pelo menos em 10 dias diferentes o Arguido passou em frente ao seu local de trabalho, sito na Rua ..., em ..., invertendo o sentido de marcha e voltando a passar em frente do mesmo; 13. Nessa mesma altura, o Arguido telefonou diversas vezes para o local de trabalho da Assistente pedindo para falar com o seu patrão e quando lhe perguntava o assunto perguntava se ali trabalhava uma AA e desligava; 14. Nessa mesma semana o Arguido telefonou por número privado diariamente para a Assistente por volta das 07h15/07h20; 15. O Arguido ligou para a Assistente no mês de Julho e Agosto de 2021 e em diversas dessas ocasiões perguntou-lhe se não tinha saudades da vida familiar, se a mesma tinha alguém, sendo que quando a Assistente lhe dizia que não queria nada com ele começava a dizer que era má mãe, que lhe entregava a menina “cagada”, dizendo-lhe “és uma oferecida, vestes-te para agradar a outros homens, andas com amigas divorciadas desesperadas, andas com esse putedo para ver se arranjas emprego”; 16. O Arguido visitava desde o divórcio e até 06/12/2021 várias vezes o perfil da Assistente no Linkedin, tendo pedido por diversas vezes amizade à Assistente na rede social Instagram; 17. O Arguido fica propositadamente com objetos pessoais da menor, entregando a menor descalça e sem determinada roupa de modo a que a Assistente se veja obrigada a entrar em contacto com ele, ficando com peças que sabe que a Assistente gosta mais só para a arreliar; 18. O Arguido desde o divórcio e até 23/11/2021 sempre que queria ir buscar a menor pedia a cadeira automóvel emprestada à Assistente, o que causava transtorno à Assistente; 19. No dia 19/11/2021 o Arguido quando entregou a menor à avó materna sem que tivesse entregado a cadeira automóvel que a Assistente lhe tinha emprestado para transportar a menor, obrigando a Assistente a contactá-lo telefonicamente para que o fizesse, sendo que quando lhe pediu a cadeira ele desligou; 20. Depois a Assistente voltou a ligar mas como o mesmo não lhe atendeu enviou-lhe uma mensagem escrita dizendo que se não lhe entregasse a cadeira que ia apresentar queixa na GNR; 21. Em resposta o Arguido remeteu uma mensagem escrita com o seguinte teor: “vai eles adoram ver ao vivo a autora dos famosos vídeos”; 22. Apenas no dia 21/11/2021 o Arguido devolveu a cadeira da menor; 23. Desde Junho de 2021 e até Dezembro de 2021 que a menor DD era entregue e recolhida pela mãe da depoente e isto porque sempre que era a Assistente a entregar/recolher a menor o Arguido apelidava-a de “puta, stripper”, criticando a forma como se vestia dizendo que andava despida para agradar a outros homens, mais lhe dizendo que havia de provar que ele era um bom marido e que ela é que era uma puta; 24. No dia 23/11/2021, pelas 18h45/18h50 o Arguido deslocou-se até à residência da Assistente sita na data na Rua ..., Amarante, para ir buscar a filha menor, tendo a Assistente descido à entrada do prédio questionado o Arguido sobre se tinha cadeirinha para a menor; 25. Como o Arguido não lhe respondeu a Assistente deu a volta ao carro para verificar se tinha cadeirinha para a menor, sendo que no momento em que a Assistente estava em frente ao carro o Arguido, que permanecia no interior do veículo, acelerou o mesmo simulando que iria arrancar, causando assim receio na Assistente de que a pudesse atropelar; 26. De seguida, o Arguido saiu do veículo e começou a discutir com a Assistente perguntando-lhe se queria problemas, ao que a Assistente respondeu que não, mas que não lhe voltaria a emprestar a cadeira da menor; 27. De imediato o Arguido arrancou das mãos o telemóvel que a Assistente trazia entrando novamente no veículo automóvel, colocando-o no banco do passageiro; 28. A Assistente impediu o Arguido de fechar a porta exigindo-lhe que lhe devolvesse o telemóvel, tendo de imediato o Arguido dito para a Assistente em tom de voz alto “és uma puta. És uma stripper que toda a gente vai saber que tu és uma puta” e de seguida desferiu-lhe uma pancada no olho e testa com o telemóvel; 29. Em face de tal comportamento o Arguido causou na Assistente dor e as seguintes lesões: a. Face: edema e área equimótica frustre na região frontal direita e na região infraorbitária esquerda. Tais lesões determinaram 5 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional. 30. De seguida o Arguido ausentou-se do local levantando na direcção da Assistente o dedo médio da mão; 31. No dia 11/06/2021, pelas 16h39 o Arguido remeteu do número de telemóvel ...59 para o número de telemóvel da Assistente a seguinte mensagem escrita “espero que os likes dos namorados tenham válido a pena, a saúde da tua filha”; 32. No dia 23/08/2021, pelas 21h09 o Arguido remeteu do número de telemóvel ...59 para o número de telemóvel da Assistente a seguinte mensagem escrita “tu agora ó és amiga das divorciadas desesperadas, que tristeza AA”; 33. No dia 28/08/2021, pelas 17h41 o Arguido remeteu do número de telemóvel ...59 para o número de telemóvel da Assistente a seguinte mensagem escrita “gastas o dinheiro da menina nas noitadas, ainda te ajudo. E reclamas. Quem estiver no estrangeiro que te mantenha! Mostra então que és capaz de mesmo tudo por dinheiro”; 34. No dia 19/07/2021, peals 10h25 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “já te temho dito que desde que “agora ando no ginásio uuuuuuu a menina sente a tua falta, nc quer ir embora e se digo vamos À mae chora, agarra-se a outras pessoas. Já do teu jeito ali na esquina do ... não falta quem goste”; 35. No dia 19/07/2021, peals 10h40 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA...@gmail.com um email com o seguinte teor: “apenas ando extremamente preocupado com a minha filha, até te vou pedir para que me dês +1 dia com a menina, pois não faz sentido ela nc estar com um dos pais. Caso não atendas ao meu pedido, vou propor pelas vias legais”; 36. No dia 21/07/2021, peals 15h58 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “vai chupar creatina…não me fodas a cabeça”; 37. No dia 21/07/2021, pelas 16h07 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “mais vale mal educado do que pessoa que marca “encontros” para sacar informações a outra só dizendo mentiras”; 38. No dia 30/10/2021, pelas 13h25 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “preciso falar ctg”; 39. No dia 03/11/2021, pelas 14h36 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “vou ter mesmo de “lutar” com a pessoa com quem casei e estive junto durante uma vida inteira??”; 40. No dia 20/12/2021, pelas 16h52 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “compensa ir namorar os GNRs ahh aahhhh”; 41. No dia 22/12/2021, pelas 12h27 o Arguido remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA....@ gmail.com um email com o seguinte teor: “quando comprei a casa não esperava que se trona-se na barraca dos ciganos mas parece que sim”, referindo-se ao facto de por vezes os pais da Assistente ficarem a dormir na sua casa em especial quando vão entregar/buscar a menor ao Arguido que neste momento é entregue junto ao Posto da GNR ...; 42. No dia 03/02/2022, pelas 17h09, por a Assistente ter ido passar uns dias fora com a menor, remeteu do seu endereço de email BB...@....com.pt para o email da Assistente AA...@gmail.com um email com o seguinte teor: “é preciso ir assim para longe?” seguido de um link que direcionava para o site do motel A... (https:\\...); 43. Com a conduta do Arguido a Assistente sentiu vergonha e humilhação, e ainda medo e ansiedade de que o mesmo possa atentar contra a vida da mesma e de terceiros, vivendo constrangida na sua liberdade porquanto tem receio que o Arguido atente contra a sua integridade física ou vida; 44. Agiu, o Arguido, deliberada, livre e consciente, com o propósito, concretizado, de maltratar física e psicologicamente a Assistente, bem sabendo que a sua conduta era apta a causar-lhe dor e as lesões supra descritas, bem como medo e inquietação, fazendo crer à Assistente que está disposto a atingir a sua vida e integridade física, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar-lhe medo, receio e inquietação, como efetivamente causou, bem como a ofender a sua honra e consideração e constranger a sua liberdade de movimentos, resultado que representou e quis; 45. Bem sabia o Arguido que devia particular respeito e consideração à Assistente enquanto sua ex-mulher; 46. O Arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei; Mais se apurou que, 47. O Arguido é empregado de escritório em fábrica; 48. Vive sozinho, em ...; 49. Frequentou o curso superior de gestão bancária; 50. Não tem antecedentes criminais; 51. Desde o momento em que a Assistente deu conhecimento dos factos às autoridades, e ainda antes da aplicação das medidas de coação em vigor, que a conduta do Arguido deixou de ser semelhante à acima vertida; 52. Foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, nos termos da sentença de 16 de Novembro de 2020, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Família e Menores do Marco de Canaveses, ficando a menor a residir habitualmente com a mãe, sendo que as responsabilidades parentais, referente aos atos de responsabilidade ficam a cargo de ambos os progenitores; 53. O Arguido tem direito de visita da menor e está obrigado ao pagamento de pensão de alimentos;B) Factos Não Provados Da discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que: a) O relacionamento do casal começou a deteriorar-se a partir do nascimento da filha comum, sendo que desde tal data que o Arguido no decurso de discussões que ocorriam na residência comum do casal apelidava a Assistente de “pelintra, puta, filha da puta”, dizendo-lhe que ganhava pouco, com uma frequência diária; b) Após o nascimento da filha o Arguido começou a gastar dinheiro em jogos e deixou de pagar algumas contas, nomeadamente de água, cartão de crédito, prestação do carro, seguros, etc; c) Em data não concretamente apurada mas de Setembro de 2019 o Arguido retirou a quantia de €140,00/150,00 do interior de um mealheiro pertencente à menor, sem conhecimento da Assistente e de um outro cuja quantia não consegue precisar; d) Nessa mesma data o Arguido procedeu ao levantamento da quantia de €400,00 da conta correspondente ao subsídio de férias da Assistente sem o conhecimento desta; e) Confrontado pela Assistente quanto ao destino dado ao dinheiro o mesmo respondeu-lhe que tinha sido para jogo; f) O relacionamento começou a degradar-se ainda mais, sendo que acordaram que seria a Assistente a gerir o dinheiro do casal, contudo tal não se mostrou viável, sendo que quase todas as semanas havia discussões por causa de dinheiro sendo que o Arguido no decurso de discussões apelidava a Assistente de “pelintra, puta, filha da puta”, dizendo-lhe “és licenciada e ganhas o salário mínimo, és como uma empregada de limpeza”; g) Em data não concretamente apurada mas entre o nascimento da filha do casal e a data do divórcio, em algumas discussões, em número não concretamente apurado mas mais do que duas ou três vezes, o Arguido recusou-se a sair com a Assistente dizendo-lhe que se vestia como uma velha e que como tinha uma filha ninguém a iria querer caso o deixasse ficar; h) No decurso de discussões, na residência comum do casal, do ano de 2020 (até ao divórcio) mais do que uma ocasião, mas menos do que 10, o Arguido disse à Assistente “tu cala-te sua puta senão mato-te”; i) Em data não concretamente apurada do ano de 2020, mas anterior a Outubro de 2020, o Arguido no decurso de uma discussão, na residência comum do casal, disse-lhe “tu cala-se sua puta senão mato-te”, e de imediato apertou-lhe o braço, causando-lhe dor e deixou-a com nodoas negras com a marca dos dedos; j) Em inicio de 2020 o Arguido contraiu um crédito pessoal no valor de €1.500,00 sem o conhecimento da Assistente; k) O Arguido ao saber da intenção da Assistente em se divorciar disse-lhe que teriam de vender a casa comum do casal ou então ela teria de lhe dar €20.000,00; l) O Arguido chegou em Outubro de 2020 a colocar um anúncio da venda da casa comum do casal no OLX, sem o conhecimento ou consentimento da Assistente, colocando o número da Assistente como contacto, tendo a Assistente visualizado o anúncio com o nome do Arguido mas com o contacto telefónico da Assistente; m) Quando foi confrontado pela Assistente com tal anúncio disse à Assistente “quem pôs a casa à venda foste tu, está lá o teu número” o que o Arguido bem sabia não ser verdade; n) Cerca de uma semana após o divórcio o Arguido saiu da residência comum do casal, contudo deslocava-se ali diariamente com a desculpa de ver a filha, e como tinha chave entrava no interior da residência mesmo sem a presença da Assistente e sem esta lhe dar autorização; o) Em algumas ocasiões o Arguido iniciou discussões com a Assistente acusando-a de ser interesseira e de que só se tinha divorciado porque os pais da Assistente tinham regressado da Suíça e que a culpa do divórcio era da Assistente; p) Em Janeiro de 2021, o Arguido contraiu covid e o casal reconciliou-se e passou a viver em comunhão de cama, mesa e habitação na Rua ..., ..., ..., ... Amarante; q) A 27/03/2021 a Assistente teve conhecimento através de um amigo chamado EE que andariam a circular imagens e vídeos da Assistente e do Arguido de cariz sexual que correspondiam a filmagens de conteúdo íntimo de ambos que tinham sido efectuadas em data anterior ao nascimento da menor com o consentimento da Assistente; r) A Assistente confrontou o Arguido com tal situação tendo o mesmo negado ter divulgado tais vídeos – tendo a Assistente formalizado queixa crime que deu origem ao processo n.º 1176/21.9JAPRT; s) Em face de tal situação, o relacionamento entre o casal terminou já que a Assistente acredita que foi o Arguido quem divulgou tais vídeos; t) Após a separação definitiva do casal, o Arguido remeteu em diversas ocasiões mensagens à Assistente dizendo-lhe que a Assistente era má mãe, alegando que quando a menor estava doente a culpa era da Assistente; u) O Arguido no dia 24/11/2021 remeteu para uma tia da Assistente que vive em Inglaterra uma mensagem pelo Messenger por parte do Arguido com o seguinte teor: “se soubesses como a tua mãe era tratada podes imaginar pois nem com um euro a ajudavam”, referindo-se ao modo como os pais da Assistente e esta tratavam da avó da Assistente; v) No dia 08/02/2022, pelas 12h00, pouco depois de ter saído das instalações do DIAP ... onde esteve presente para primeiro interrogatório não judicial presidido por Magistrado do Ministério Público, o Arguido quando se encontrava parado no seu carro junto da fábrica da B... em ..., Amarante, ao ver o carro do pai da Assistente conduzido por este iniciou a marcha e entrou de repente na faixa de rodagem obrigando o mesmo a travar repentinamente para não embater no carro do Arguido, tendo o Arguido igualmente imobilizado o seu veículo e feito marcha atrás em direcção ao veículo do denunciado parando junto ao mesmo; w) Poucos segundo depois o Arguido iniciou novamente a marcha ocupando as duas faixas de rodagem para evitar ser ultrapassado, tendo acelerado o veículo e ausentou-se do local; x) O pai da Assistente dirigiu-se então para a residência da sua filha sita na Rua ..., ..., ..., Amarante, onde ia deixar umas compras que tinha feito pouco tempo antes e quando estava no exterior do carro, junto à residência da Assistente o Arguido apareceu junto a si e disse “meu filho da puta, meu porco, essa casa não e tua. Eu pus a tua filha na internet nua. Qualquer dia mato-te seu porco”; y) Parte dos factos descritos supra ocorreram na casa comum do casal; * Consigna-se que não foram considerados os factos negativos (dos factos provados), os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e/ou relevância para a decisão da causa.* C) MotivaçãoA convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise crítica, concatenada e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal), concretamente, na análise das declarações da Assistente, bem como das restantes testemunhas inquiridas. A factualidade descrita em 1. a 3. resulta da documentação junta aos autos, nomeadamente os assentos de nascimento (fls. 17 a 19), sendo confirmado de forma global por todos os intervenientes. Quanto ao remanescente. O Arguido optou por não prestar declarações. A Assistente recusou prestar declarações relativas ao período de casamento e aos períodos de coabitação, confirmando que após março de 2021 o casal afastou-se de forma definitiva. Ora, após março de 2013 a Assistente relatou que existiam diversas discussões entre ela e o Arguido, sobretudo quando efetuavam a troca da filha. Por vezes, nessas discussões, o Arguido dirigia-lhe expressões como “puta”, “pelintra”, “vestes-te para agradar aos outros” e “ninguém te quer”. Relata que o Arguido passava várias vezes nos locais onde a mesma se encontrava. Relatou os episódios descritos em 18. a 22. e 23. a 29., embora sem se recordar das datas. Referiu-se às mensagens enviadas pelo Arguido, transcritas entre 32. a 43., e, após ser confrontada com fls. 189 a 199.204 a 214 e 236 a 239, confirmou as mesmas. A instâncias do Ministério Público, afirmou não se recordar do episódio vertido em 4. e 5. ou do descrito em 7., mas recordou-se do que consta em 9., em 8. e em 13. (embora sem se recordar das datas). A requerimento do Ministério Público, foram lidas as declarações da Assistente prestadas perante o Ministério Público. Perante a leitura das declarações, a Assistente foi confirmando as datas e os locais, bem como as restantes situações de que afirmara não se recordar, com a exceção da situação onde o Arguido a teria agarrado pelo pescoço com as duas mãos, descrito em 5., relativamente ao qual a Assistente, mesmo após a leitura, continuou a afirmar não se recordar. Ora, analisadas as declarações prestadas inicialmente pela Assistente e as declarações prestadas pela mesma na sequência da leitura da sua inquirição em sede de inquérito, concluímos que as mesmas foram prestadas com grande emotividade, o que é natural atenta a natureza dos factos, mas sem se denotar qualquer intenção retaliatória ou vingativa, antes pelo contrário. Na verdade, foi visível e notório que, atento o acordo alcançado entre as partes e a tendência de pacificação no conflito entre as mesmas (espelhada no requerimento junto aos autos em 18-11-2022, a Assistente não queria sequer prestar declarações (e, na parte em que legalmente o pôde, recusou-se a prestar). Das suas declarações transpareceu que a Assistente não pretendia prejudicar o Arguido, recorrendo inúmeras vezes à ausência de memória para não relatar determinados episódios. Contudo, ainda assim a Assistente foi relatando diversos episódios ocorridos e, após a leitura das declarações anteriores, foi recordando-se de outros episódios e precisando no tempo e espaço os que já se tinha recordado antes. Estas declarações da Assistente mereceram inteira credibilidade e foram prestadas de forma que nos pareceu sincera e contextualizada. Aliás, foi notório que a Assistente não se limitou a confirmar os factos vertidos na acusação, mas antes admitiu não se recordar de alguns (como é exemplo o descrito em 5.). Acrescente-se que nada impede que a prova dos factos da acusação/contestação assente, exclusivamente, nas declarações de Arguido/Assistente, mesmo se opostas e se desacompanhadas de outras provas corroborantes. Esta problematização não é nova, pois no âmbito da criminalidade que ocorre na reserva da vida privada, a prova possível consistirá predominantemente no depoimento destes intervenientes. Daí que este possa surgir naturalmente no processo como a única fonte de conhecimento. E na presente situação, as declarações da Assistente, pelos motivos acima mencionados, mereceu credibilidade. Acresce que prestaram declarações FF (mãe da Assistente), GG (pai da Assistente), CC (amiga da Assistente) e HH (prima da Assistente). Os pais da Assistente afirmaram que nunca viram qualquer agressão física ou verbal, mas viam a filha nervosa e chorosa, sendo que mesma era reservada e não lhes contava o que se passava. A mãe da Assistente assistiu ao sucedido em 20-05-2021, embora não tenha visto o que aconteceu dentro da viatura. Quer a mãe, quer o pai, da Assistente confirmam que na sequência de tal episódio, repararam que a mesma tinha o pescoço vermelho e que esta lhes transmitiu que foi o Arguido que o apertou. Tais depoimentos, relativamente aos quais não se notou qualquer interesse ou parcialidade, em conjunto com as declarações da Assistente, foram cruciais para a valoração do vertido em 5., pois se a Assistente declarou não se recordar, mesmo após a leitura das declarações anteriormente prestadas, o facto de o ter mencionado aos seus pais em momento seguido e, mais tarde, a 06-12-2021 o ter referido em sede de declarações, em conjunto com toda a dinâmica descrita em 4. e 5., bem como as marcas no seu pescoço, são suficientes para convencer o Tribunal da ocorrência de tal situação. Também o depoimento de CC, amiga da Assistente, foi prestado de forma espontânea e sincera, relatando que o Arguido surgia inúmeras vezes junto à Assistente quando esta estava em momentos de lazer com as amigas. Não se descura que II, irmã do Arguido, veio declarar que não assistiu a qualquer agressão física ou verbal, e até relatou uma situação em foi a própria Assistente a procurar o Arguido pois este não lhe atendia as chamadas (a filha estaria com temperatura). Ora, sem prejuízo da credibilidade da testemunha (que não nos mereceu reparos), tal não tem o condão de infirmar o que se retirou da restante matéria probatória. Por outro lado, o Arguido não prestou declarações. Resulta assim que se o silêncio do Arguido não o pode desfavorecer, o certo é que o seu silêncio não coloca em crise as declarações da Assistente. Acresce que, além das declarações da Assistente e, parcialmente, das testemunhas acima mencionadas, o Tribunal analisou a prova documental junta aos autos, nomeadamente o relatório pericial de fls. 91 a 92 (quanto ao descrito em 29. e episodio de 23-11-2021), os prints das mensagens enviadas de fls. 109 a 124, ,150 a 152, 191 a 199, 206 a 214, 2016 a 220, 235 a 237, 239 a 240 e 268 a 269, os quais solidificaram a convicção quanto ao descrito de 4. a 42.. O juízo de verosimilhança formado a propósito dos pontos 43. a 46. da factualidade adquirida, atinentes às consequências para a Assistente e ao fim com que o Arguido agiu, ao conhecimento e vontade com que actuou, bem como à sua consciência quanto à ilicitude da conduta levada a cabo, foi extraído dos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso. É consabido que a factualidade em causa, que é de ordem psicológica – ainda que também normativa -, se afigura de difícil objectivação em termos de racionalidade do processo de apreensão da realidade. Todavia, a convicção alcançada resulta de uma análise global do comportamento do Arguido, designadamente dos seus atos e expressões proferidas, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer. Ademais tal factualidade foi relatada de forma convincente pela Assistente, nos termos acima mencionados. Quanto às condições pessoais, foi tido em consideração as declarações do Arguido e o assento de nascimento. Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal considerou o certificado junto aos autos. Nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, dúvidas não teve o Tribunal em considerar provados os factos nos termos deixados consignados. Quanto aos factos considerados como não provados, sem prejuízo do que acima se disse, nenhuma prova foi produzida que permitisse considerá-los comos provados. *** 3. Apreciação do mérito 3.1 Do recurso e da validade da decisão judicial Enquadrando brevemente – já que a matéria é consensual na doutrina e jurisprudência – as questões suscitadas na síntese recursória, importa recordar que o recurso tem em vista o estrito controlo da observância da legalidade na concretização do acto de julgar e decidir de outro órgão judiciário, não visando o cotejo de diferentes sensibilidades sobre a questão controvertida, funcionando antes como remédio quanto a questões concretamente suscitadas e, eventualmente, carecidas de reparação por enfermarem de uma qualquer desconformidade relevante. E, a matéria de facto, incluída no âmbito de conhecimento deste Tribunal ad quem, por força da previsão do art. 428º, do Cód. Proc. Penal, pode ser sindicada por duas vias distintas: i) A requerimento ou oficiosamente, por intermédio dos vícios que se evidenciem do texto da própria decisão, nos termos do disposto no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal; ou ii) A requerimento do interessado e mediante prévio cumprimento dos específicos requisitos previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma, através de impugnação. Todavia, nenhum deles determina a nulidade, figura perfeitamente autónoma e distinta, pois que caracterizando-se as sentenças judiciais como actos decisórios necessariamente fundamentados - arts. 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º n.ºs 1 a) e 5, do Cód. Proc. Penal -, o legislador autonomizou o respectivo regime das nulidades consagrando no art. 379º, deste último diploma legal que: “1 – É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do art. 374º; b) Que conhecer de factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos arts. 358º e 359º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.” A nulidade acarreta a invalidade do acto em que se verifica bem como a de todos aqueles que pela mesma possam ser afectados tendo, por isso mesmo, que ser repetidos, como decorre da previsão do art. 122º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Penal. As nulidades do regime geral estão submetidas ao princípio da legalidade dispondo o art. 118º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, que “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”. Estatuindo no n.º 2, do mesmo normativo legal que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”. As nulidades que não estejam legalmente densificadas como insanáveis, carecem de ser invocadas pelos interessados, em tempo e sede próprios sob pena de ficarem sanadas, o mesmo acontecendo com as irregularidades. » In casu, o recorrente, invoca erros de julgamento da matéria de facto provada a dirimir por via da reapreciação da prova, cumpridos que sejam os atinentes requisitos legais, a nulidade da sentença por insuficiência da fundamentação, na vertente do exame crítico da prova, resultante das disposições conjugadas dos arts. 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, e ainda uma nulidade inominada resultante, segundo afirma, da violação do disposto no art. 380º, n.º 1, al. b), do Cód Proc. Penal. Sendo invocados erros de julgamento, como é o caso, a reapreciação da prova é balizada pelos pontos questionados pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus legal de impugnação especificada, sendo necessário que este individualize os concretos pontos de facto da discórdia, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas. E, no caso da reapreciação da prova gravada, acresce ainda o ónus das duas primeiras especificações deverem ser feitas por referência à acta e com indicação concreta [ou transcrição se a acta for omissa – v. Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012[2]] das passagens em que se funda a impugnação, consoante decorre do n.º 4, do normativo legal citado. » Por seu turno, de harmonia com o disposto no aludido art. 374º, n.º 2, é requisito obrigatório da sentença criminal, a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A enumeração da matéria de facto provada e não provada visa garantir, para além de qualquer dúvida, que o tribunal contemplou todos os factos submetidos à sua apreciação, sendo pacificamente aceite que tal obrigação se restringe aos factos essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes [narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal] e bem assim, sendo o caso, à determinação da sanção. A indicação e exame crítico das provas decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção, servindo de garante a um processo equitativo. O exame crítico da prova reveste especial relevo já que é aí que o tribunal explica a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir. Com efeito, a citada previsão legal impõe ao dominus do processo que individualize as razões objectivas e a base racional que levou à convicção exprimida na factualidade provada e/ou não provada e bem assim os motivos que subjazem à valoração e credibilidade atribuída aos meios de prova disponíveis. E, como é bom de ver, o exame crítico só será suficiente quando exteriorize cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com a simples enumeração dos meios probatórios ou sequer com a descrição – mais ou menos alargada - do seu conteúdo. Mas, para tanto, o julgador não necessita de realizar exposições doutrinárias, citações jurisprudenciais ou sequer descrever (por súmula ou desenvolvidamente) o teor de cada uma das provas produzidas. Basta que exprima com clareza e rigor as circunstâncias que determinaram a opção efectuada, tornando perceptível aos intervenientes processuais e aos cidadãos em geral as razões da sua íntima convicção e as provas que a sustentam, seja por si só ou em conjugação com as regras de experiência e normalidade de acontecer, devendo neste caso explicitar-se o respectivo âmbito de actuação. Todavia, como bem se compreende, essa tarefa comporta diferentes graus de complexidade, conforme as circunstâncias do caso, a amplitude e a unanimidade ou divergência da prova produzida. Deste modo, haverá nulidade quando perante as circunstâncias do caso, a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, ou seja para se perceber as razões que sustentam tal decisão. * Assentes estes pressupostos e feito o enquadramento das matérias suscitadas pelo recorrente cumpre agora descer ao caso concreto.* 3.1.1 Das nulidades§1º Da violação do art. 380º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal Consoante resulta do já anteriormente exposto a sentença publicitada a 24 de Novembro de 2022 foi depositada com a fundamentação de facto incompleta já que, embora apresentasse a motivação da convicção, faltava a enumeração dos factos provados e não provados. Apercebendo-se do sucedido, o M.mo Juiz a quo, invocando a previsão do art. 380º, n.ºs 1, al. b) e 3, do Cód. Proc. Penal e 249º, do Cód. Civil, determinou a rectificação da sentença, ordenando que a omissão fosse suprida através da introdução integral da mesma para mais fácil compreensão e sem prejuízo dos prazos legais para o recurso. O arguido, aqui recorrente, BB sindica tal procedimento invocando que não está em causa a rectificação de um lapso manifesto que resulte evidente da simples leitura da decisão, pelo que a sentença proferida a 07/12/2022 é nula, por violação dos arts. 380º, n.º 1, al. b) e 613º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Importa, desde já, recordar que as nulidades da sentença criminal, tal como resulta do anteriormente explicitado, estão previstas no Código de Processo Penal, pelo que, inexistindo lacuna, não são aqui aplicáveis as normas de processo civil. Ora, é por demais evidente que a presente situação não integra o elenco das nulidades da sentença consagrado no art. 379º, do Cód. Proc. Penal. É também certo que o art. 380º, deste diploma legal, admite a correcção da sentença, oficiosamente ou a requerimento, fora dos casos previstos naquele normativo, se contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. E, como é bom de ver, se o citado art. 379º, n.º 1, al. a), considera nula a sentença que não contenha as menções previstas no art. 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, entre as quais se conta a enumeração dos factos provados e não provados, é óbvio que a introdução de tal matéria em falta em momento ulterior à publicação da sentença constitui uma modificação essencial e, por conseguinte, inadmissível com base no referido art. 380º. Todavia, a violação desta disposição legal não está cominada como nulidade (insanável ou sanável) pelo que, nos termos do já referido art. 118º, constitui mera irregularidade processual que tinha que ser invocada perante o tribunal a quo nos moldes previstos no art. 123º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o que não aconteceu estando, assim, sanada. Mas ainda que assim não fosse o resultado seria idêntico. Com efeito, as nulidades, tornam inválido o acto em que se verificarem e pressupõem a repetição deste, sempre que possível. Foi precisamente isso que fez o tribunal a quo. Com efeito, a primitiva sentença estava afectada por nulidade por insuficiência de fundamentação de facto, ou seja por omissão do elenco factual, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, invalidade que pressupõe a reformulação respectiva, de molde a supri-la, pelo mesmo julgador. Foi isso que fez o tribunal a quo, acautelando os prazos de recurso dos sujeitos processuais. Assim sendo, a pretensão do aqui recorrente nem sequer tem objecto porquanto o efeito útil almejado já foi alcançado, ou seja a publicação de nova sentença com observância de todos os requisitos legais, designadamente em sede de fundamentação de facto. Daí que, a revogação da nova sentença e a devolução ao tribunal a quo para reformulação da sentença inicial, de molde a eliminar a nulidade decorrente da falta de enumeração dos factos provados e não provados - que no fundo redundaria na inserção da mesma decisão, entretanto, proferida nos autos e aqui recorrida -, constituísse acto desprovida de sentido, de todo e qualquer efeito útil e claramente violador dos princípios da celeridade e economia processual. Consequentemente, por estar em causa irregularidade sanada por falta de oportuna invocação e falta de objecto, não há qualquer nulidade a declarar com base na violação do art. 380º, do Cód. Proc. Penal. * §2º Da fundamentação – arts. 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. PenalO arguido BB invoca que a sentença é nula, nos termos do art. 379º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, por insuficiente fundamentação visto não ter procedido à análise crítica de todas as provas produzidas, remetendo para as alegações antecedentes onde, afinal, se limita a fazer alguns considerandos genéricos sobre o dever de fundamentação e a tecer comentários sobre a convicção do julgador dos quais se destaca o seu inconformismo por grande parte da factualidade assentar nas declarações da assistente AA e assinalando que o tribunal se limita a remeter para inúmeros documentos (v.g. prints das mensagens) que não foram objecto de prova em julgamento, em total violação do disposto no art. 355º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal. Sendo certo que, como já antes se explicitou, a fundamentação da sentença criminal impõe a indicação e exame crítico da prova e que a sua falta ou insuficiência ditam a nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, é manifesto não ser essa a hipótese dos autos. Com efeito, percorrendo a motivação exarada na decisão recorrida facilmente se constata que a exposição, escorreita, exaustiva e clara, permite alcançar facilmente quais foram as provas, os motivos e circunstâncias que fundamentam a convicção adquirida e o raciocínio que subjaz à solução encontrada, sendo óbvio que não está em causa qualquer insuficiência de fundamentação mas antes e apenas a discordância do recorrente relativamente à opção do julgador, circunstância perfeitamente irrelevante nesta sede. É que, a divergência da interpretação do acervo probatório não encontra tutela legal nesta sede, pois que discordar da convicção tal como exarada pelo dominus do processo não é o mesmo que não alcançar o sentido e fundamento dessa convicção por falta de explicitação do julgador. Ora, feita a leitura integral da motivação da convicção exarada na decisão recorrida, não subsiste qualquer dúvida sobre o acervo probatório e as circunstâncias que determinaram a preferência do julgador, devidamente referenciada, escalpelizada e concatenada com a prova disponível. Depois, cremos ser praticamente unânime o entendimento – firmado há décadas - da doutrina e jurisprudência quanto à desnecessidade de leitura de documentos juntos aos autos até ao julgamento, considerando-se os mesmos lidos em audiência, desde que a sua leitura não seja proibida, como decorre, entre outros, dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 87/99 e 110/2011, publicados no DR, II Série, de 01/07/1999 e 06/04/2011[3]. Resumindo e concluindo, percorrendo a motivação exarada na decisão recorrida é patente que aí foi feita a indicação dos meios de prova disponíveis e atendidos, complementada, na medida do necessário, por comentário explicativo do respectivo conteúdo e das razões da preferência em detrimento a outras não atendidas, total ou parcialmente, observando cabalmente os requisitos previstos no aludido n.º 2, do art. 374º, face às concretas circunstâncias do caso. Neste conspecto, a pretensão do recorrente tem que improceder, por manifestamente infundada, nenhum reparo merecendo a decisão recorrida. *** 3.2 Da valoração de prova proibidaSufraga o aqui recorrente BB que o tribunal a quo para firmar a sua convicção lançou mão de prova proibida porquanto «…para “avivar a memória da assistente”, o tribunal não leu as passagens necessárias ao avivamento da memória e relativas aos factos que a mesma alegou já não se recordar, tendo entregue à assistente o auto onde constavam as suas anteriores declarações, que esta leu, em silêncio, pelo que a prova assim obtida é nula nos termos expressamente previstos nos artº 355 n.º 1 e artº 356 n.º 9 do C.P.P.». Vejamos, então. É inquestionável que, tendo em vista a salvaguarda do princípio da imediação e defesa dos sujeitos processuais relativamente a decisões surpresa e/ou arbitrárias, dispõe o n.º 1, do citado art. 355º, que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”. Todavia, a proibição em causa não é absoluta, consignando-se logo no seu n.º 2 que “ressalvam-se do disposto no número anterior “as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”. Por seu turno, sob a epígrafe “Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações”, consagra o art. 356º, no que ao caso importa, o seguinte: “3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária: a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias. (…) 9 - A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade”. No caso em apreço, como evidencia a acta de audiência de julgamento do dia 21 de Novembro de 2022 (fls. 459 a 462 do processo físico), no decurso das declarações da assistente AA, o Ministério Público pediu a palavra e, sendo-lhe concedida, promoveu que fossem lidas as declarações da ofendida de fls. 182 e segs. porquanto esta, por várias vezes, referira que não se recordava ou que não se podia recordar de tudo, mas fora inquirida, em sede de inquérito, pela procuradora titular do processo, em data mais próxima dos factos, tendo sido muito mais detalhada relativamente a situações que envolviam insultos, ameaças e ofensas a integridade física, relativamente à data em que os factos ocorreram. Tal pretensão veio a ser deferida, por despacho do M.mo Juiz a quo, cujo teor é o seguinte: “Uma vez que o requerido se destina ao avivamento da memória das declarações prestadas pela assistente perante Magistrada do Ministério Público nos termos do art. 356º, n.º 3, alínea a), defere-se o requerido.” O arguido, bem como a sua ilustre defensora que subscreve o presente recurso, estavam presentes na mencionada sessão da audiência de julgamento, não constando da acta respectiva qualquer requerimento ou protesto seu relativamente aos moldes em que se concretizou a admitida leitura das declarações em causa. Na resposta ao recurso, o Ministério Público teve o cuidado de referenciar que o invocado pelo arguido não acontecera, como resultava da acta e da gravação das declarações da assistente, adiantando que certamente teria ocorrido algum lapso na redacção do recurso. Todavia, convidado a rectificar a síntese recursória, ao abrigo do disposto no art. 417º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, o arguido BB, pela mão da sua defensora, insiste na questão suscitada, mantendo a afirmação de que não foi feita a leitura das declarações antes tendo sido facultadas à assistente que as leu em silêncio. Certamente esqueceu-se que a audiência de julgamento foi objecto de gravação integral, a qual demonstra a falsidade da alegação. Com efeito, após ter proferido o despacho supra citado, o M.mo Juiz a quo após uma breve explicação sobre o acto, procede à leitura dos segmentos das declarações que a ora assistente AA prestara perante a Magistrada do Ministério Público titular dos autos, a qual tem a inquestionável qualidade de autoridade judiciária [v. art. 1º, al. b), do Cód. Proc. Penal)], questionando-a sobre a matéria respectiva, especialmente sobre a localização temporal dos acontecimentos que a mesma dissera não recordar no julgamento mas constava das suas declarações prestadas no inquérito, tudo como melhor se pode comprovar no ficheiro áudio de 21/11/2022 – 12h27m, Referência 20221121121510_3821305_2871653.wma (1.841KB), entre o mais, nos segmentos 01:48 a 04:30; 04:42 a 05:56; 06:15 a 06:49; 06;57 a 07;45; 07;50 a 08;22; 08:24 a 09:23; 09:40 a 10:55 e 11:29 a 12:02 disponibilizado a este tribunal ad quem. Nestes termos, a admissibilidade da leitura das declarações e a concretização do acto mostra-se perfeitamente conforme aos requisitos legais, sendo manifestamente infundada e falsa a alegação do aqui recorrente sobre os moldes como aquela teria decorrido, pelo que a prova daí resultante é perfeitamente legítima nada obstando à respectiva valoração. *** 3.3 Das imputações genéricasAlega o recorrente BB que os pontos 6 a 8, 11, 12 a 16, 18 e 23 dos factos provados se reconduzem a imputações genéricas, recorrendo a fórmulas vagas e imprecisas, temporalmente indefinidas, cuja ocorrência e cadência não estão concretamente determinadas, impedindo um efectivo contraditório. Pois bem. O entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante é perfeitamente consensual quanto ao facto das meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, serem inadmissíveis no processo criminal, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas[4]. Assim, o quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há-de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, de molde que, por um lado, o arguido possa exercitar plenamente o seu direito de defesa e contraditório e, por outro, seja possível ao julgador dirimir integralmente e com segurança todas as questões que constituem o thema decidendum. Todavia, tal não significa a obrigatoriedade de especificação do dia, hora, minuto e lugar dos acontecimentos. Veja-se que mesmo relativamente à acusação - peça processual que delimita o objecto do processo – o legislador impõe “a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena” mas os elementos relativos à indicação do lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação do agente e outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, ficam sujeitos à possibilidade de indicação, como decorre da previsão do art. 283º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal. Assim, no tocante à factualidade provada nos pontos 6, 7, 8, 12, 14, 15, 16, 18 e 23 da sentença, tratando-se de acontecimentos perfeitamente localizados no tempo e espaço ou individualizados e contextualizados por outras referências específicas que facilmente permitem ao arguido identificar o “concreto pedaço de vida” que lhes está subjacente, não colhe a invocada indefinição para os efeitos densificados como imputação genérica. Relativamente aos pontos 11 e 13 existe uma indeterminação relativa, pelo uso da expressão “várias vezes”, mas irrelevante para o fim em vista (tanto assim que essa mesma locução consta do ponto 10 e o recorrente não o questionou) já que o que é essencial é a descrição da variedade de actos persecutórios por parte do arguido, imiscuindo-se não só na vida pessoal da ofendida mas perturbando-a também no trabalho, e relacionados com as demais condutas apuradas e descritas, sendo indiferente dizer que o arguido telefonou várias vezes ou que o fez mais do que uma vez, nas ocasiões devidamente individualizadas [em Julho de 2021 quando a ofendida estava no interior de uma loja na zona do ... em Amarante e no Verão de 2021 para o local de trabalho da mesma]. Na verdade, se a narração dos factos que fundamentam a responsabilização criminal é obrigatória e indispensável, já a obrigação de localização temporal da conduta delituosa fica dependente de tal se mostrar possível, sendo certo que esta não pressupõe necessariamente a indicação da precisa data, hora e minuto, bastando-se com referências que permitam situar o acontecimento imputado, como é o caso. Neste conspecto, nenhuma censura merece a decisão recorrida nos segmentos assinalados. *** 3.4 Dos erros de julgamento Alega também o recorrente BB que a matéria de facto provada se mostra mal julgada não havendo prova suficiente para dar como provados os pontos 4 a 19, 21, 23, 25 e 28 a 46. Assim, o aqui recorrente sindica a totalidade da matéria de facto que sustenta a sua responsabilização penal sem qualquer especificação dos segmentos da prova que, relativamente a cada um deles, impunha outra solução, aludindo à prova gravada sem referência à acta e indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, de harmonia com a previsão do art. 412º, n.º 4, do Cód. Proc. Penal, e também sem realizar a respectiva transcrição em conformidade com a jurisprudência estabelecida no já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012. Com efeito, limita-se a afirmar, a maior parte das vezes, em discurso indirecto, que as declarações da assistente não são suficientes para sustentar a factualidade descrita em diversos pontos, que a prova testemunhal invocada também não supre tal insuficiência e que a prova documental se reporta a mensagens descontextualizadas, na sua maioria inócuas e sem relevância criminal, olvidando, como é óbvio, as declarações da assistente, prestadas em sede de inquérito e lidas na audiência de julgamento para avivamento da memória desta, pelo M.mo Juiz a quo, e não em silêncio, pela própria, como anteriormente afirmou para poder agora omiti-las e afirmar a inexistência de circunstâncias temporais ou de contexto das condutas descritas. Tal como ignora que a intenção criminosa, v.g. o elemento subjectivo da infracção se afere pelos factos indiciários apurados e cotejados com as regras de experiência e normalidade de acontecer, surgindo, por via de presunção judicial, como normal decorrência das condutas descritas. Ora, conforme já anteriormente se esclareceu a impugnação da matéria de facto por via da reapreciação da prova é balizada por exigências muito estritas, como resulta do preceituado no art. 412º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, pois que o recorrente tem que especificar os concretos pontos de facto da discórdia (v.g. identificando objectivamente e com precisão factos considerados provados que devam transitar para os não provados e vice-versa e ainda outros que, não constando do elenco factual, devam ser inscritos como provados por interessarem à boa decisão da causa), as provas que impõem tal solução - diversa da apontada na decisão recorrida - e as provas que devem ser renovadas, acrescendo ainda o ónus, tendo havido gravação, das duas primeiras especificações deverem ser feitas por referência à acta e com indicação concreta - ou transcrição se a acta for omissa - das passagens em que se funda a impugnação. Quer isto dizer que a simples discussão da interpretação e valoração probatórias realizada pelo tribunal a quo, a apresentação de juízos de censura crítica relativamente à motivação da convicção e/ou as referências à (in)suficiência ou (in)certeza dos meios de prova, com apelo ao princípio in dubio pro reo, não configura impugnação susceptível de fundar o desiderato pretendido, pois que tal actividade se limita a impugnar a livre convicção do julgador que vigora em sede probatória por força do disposto no art. 127º, do Cód. Proc. Penal e que, por isso mesmo, se sobrepõe à de qualquer sujeito processual pois que, a não ser assim, haveria uma inversão das personagens do processo, substituindo-se a convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão[5]. E, como patenteia o exame crítico da prova exarado na decisão recorrida, o tribunal a quo ficou plenamente convencido dos acontecimentos narrados nos factos provados pelas razões e acervo probatório que indicou e explicitou de forma exaustiva, designadamente as declarações da ofendida - e incapacidade desta recordar o exacto recorte temporal de determinadas ocorrências, tendo as dúvidas sido superadas e esclarecidas com a leitura das declarações prestadas ainda durante o inquérito, em momento mais próximo do sucedido e, por conseguinte, mais presente na sua memória -, consideradas fidedignas e sem qualquer intenção retaliatória, em conjugação com outros elementos probatórios que especificou, designadamente as mensagens enviadas pelo arguido e transcritas nos autos, bem como a prova testemunhal e os moldes em que a mesma foi atendida e respectivos fundamentos e bem assim a prova documental devidamente especificada por referência aos factos que influenciou. Aliás, é consabido que o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos ou versão em detrimento de outros, bem como atender a totalidade ou apenas parte das declarações/depoimentos disponíveis[6], desde que a sua preferência esteja devidamente explicitada, seja convincente e não inquine as regras de experiência comum, como é o caso. E, como já antes se concluiu, a motivação da convicção é perfeitamente clara e adequada ao caso e a solução alcançada, cotejada com as provas disponíveis e atendidas, mostra-se consentânea com as regras de experiência, normalidade e bom senso. Claro que se dúvidas houvesse devia ser accionado o princípio in dubio pro reo que, enquanto corolário da presunção de inocência, deve ser perspectivado e entendido como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público. Na verdade, este princípio, visa garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos do crime, exigindo ao juiz que, em caso de non liquet inultrapassável após a produção da prova, decida em sentido favorável ao arguido, considerando o facto incriminador como não provado[7]. Assim, a violação de tal princípio apenas existe quando se comprova que no espírito do julgador subsistiu uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto e que decidiu desfavoravelmente ao arguido, não bastando para o efeito a constatação da existência de versões divergentes ou que o tribunal tenha utilizado provas instrumentais e as regras de experiência como coadjuvantes da convicção adquirida[8] ou que tenha optado por solução que ao mesmo desagrada. E, não se trata aqui de dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve mas devia ter tido segundo a interpretação subjectiva que faz da prova produzida, pois que o princípio in dubio pro reo não serve para controlar as dúvidas daquela sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal a propósito da decisão dessa matéria. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética ou abstracta mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador. Ora, percorrendo o texto da decisão recorrida, facilmente se conclui que tal não aconteceu, evidenciando-se antes que o julgador alcançou um elevado grau de certeza quanto à verificação dos factos em causa, pelo que a invocação de tal princípio não faz aqui sentido, porquanto a dúvida é apenas do interessado no resultado do processo. Com efeito, na hipótese sub iudicio, a motivação da convicção é exemplar, exprimindo de forma cristalina as razões da valoração probatória e solução alcançada e o caminho percorrido para lá chegar, não evidenciando qualquer dúvida ou desvio às regras de experiência, único limite estabelecido à livre convicção do julgador, nem aos princípios que regem nesta sede. Tratando-se unicamente de divergente sensibilidade sobre a relevância do acervo probatório disponível, por não ter sido demonstrado qualquer desvio às regras de normalidade e experiência comum ou violação de prova tarifada, é óbvio que há-de prevalecer a solução do julgador, atento o já citado princípio da livre apreciação da prova estatuído no art. 127º, do Cód. Proc. Penal. A existência de concretas provas que imponham decisão diversa da do julgador não se confunde com a diferente interpretação que, dessas provas, fazem os interessados, sendo isso e apenas isso que, na presente hipótese, se verifica. Neste conspecto - e concluindo - resta recordar que em sede probatória, estatui o art. 127º, do Cód. Proc. Penal, que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador”. Também já ficou devidamente esclarecido que a impugnação da matéria de facto por via da reapreciação da prova é balizada por requisitos muito específicos, que o recorrente não cumpriu, sendo certo que a simples discussão da interpretação e valoração probatórias realizada pelo tribunal a quo, a apresentação de juízos de censura crítica relativamente à motivação da convicção e/ou as referências à (in)suficiência, (in)certeza ou falta de credibilidade dos meios de prova, não configura impugnação susceptível de fundar o desiderato pretendido, pois que tal actividade se limita a impugnar a livre convicção do julgador, com assento e protecção legal no citado art. 127º e que, por consequência, se sobrepõe à de qualquer sujeito processual. Neste conspecto, forçosa é a conclusão que o recorrente, nesse preciso segmento, visou unicamente o acto de julgar e não a própria decisão de facto. Termos em que, afirmando-se a falta de fundamento dos invocados erros de julgamento, improcede, por inviável, a pretendida modificação da matéria de facto que deve considerar-se definitivamente assente. *** 3.5 Da subsunção jurídica Sufraga o arguido BB que os factos que lhe estão imputados não integram o crime de violência doméstica pois que em momento algum consegue “verificar a existência de maus tratos com gravidade e intensidade tal que ultrapassem o tipo de crime que cada um dos ilícitos individualmente considerados visa proteger”. E adianta que está em causa período temporal ocorrido de Maio a Novembro de 2021, imediatamente a seguir à ruptura definitiva do casal, sempre motivados pela resolução de questões relativas à filha menor de ambos e dos quais não resultaram consequências de maior, tendo o arguido cessado o seu comportamento logo que a assistente deu conhecimento do caso às autoridades. Por seu turno, o tribunal a quo sustentou tese diferente invocando, no essencial, o seguinte: (transcrição) «Na sequência do acima se foi escrevendo, podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal, que a ação típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, ameaças, desde que os mesmos correspondam a atos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima. Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-05-2010, processo 179/08.3GDSTS.P1 (in www.dgsi.pt), só se justifica uma punição mais grave se se tratarem de condutas que exprimam um lastro de danosidade social mais intensa ou comportem a tutela de um bem jurídico distinto, mas sempre com relevância jurídico-penal. O tipo legal do artigo 152.º, do Código Penal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou sobre a sua honra ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. Este é, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual. (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-11-2015, processo 77/14.1TAAVV.G1, in www.dgsi.pt) Ora, perante os factos dados como provados, e face à sua reiteração no tempo, bem como à intrínseca gravidade dos mesmos, entendemos que o Arguido submeteu a Assistente a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoa, com total desrespeito pela sua personalidade e auto-estima, ciente que, como pessoa, e sobretudo como ex-conjuge, lhe devia especial respeito. Revelou desprezo e desconsideração pela Assistente, perturbando-a na sua tranquilidade, fazendo-a viver num permanente clima de medo e intranquilidade, o que quis. No caso sub judice, a factualidade dada como demonstrada é suficiente para dela se extrair que o Arguido adotou comportamentos, agressão emocional, ameaças e a agressão à liberdade (designadamente de movimentação), ofensas à honra e consideração, as quais, analisadas no contexto específico em que foram produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, através de um clima de medo, angústia, intranquilidade. Ora, entende este Tribunal que factos, acompanhados das consequências provocadas pelos mesmos e da intenção do Arguido (acima relatados), são aptos a serem subsumidos ao conceito de maus tratos psíquicos, pelo que se conclui estarem preenchidos os elementos do tipo objectivo de ilícito do crime de violência doméstica, na sua forma prevista no n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal. Todavia, não se demonstrou que o Arguido tivesse praticado os factos em domicílio comum, ou no domicilio da vitima. É certo que se poderá até presumir que a filha menor presenciou alguns dos factos, mas tal não se mostra alegado, nem se demonstrou de forma inequívoca. Desse modo, não se preenche a agravação prevista no artigo 152.º n.º 2 alínea a) do Código Penal. O presente tipo subjetivo pode unicamente ser preenchido de forma dolosa, afigurando-se o conhecimento da identidade da vítima de importância capital para a conformação do dolo do agente. No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, resultou, do acervo factual dado como provado que, ao adoptar tais condutas, o Arguido tinha conhecimento que estas eram aptas a atingir a integridade física e a dignidade moral e humana da Assistente, o que sucedeu. Provou-se, por fim, que o Arguido agiu livre e conscientemente determinado, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei, estando em causa um crime que, aliás, se inclui no apodado “direito penal de justiça”.» Vejamos. No que ao caso interessa, dispõe o art. 152º, n.ºs 1, als. b) e 2, al. a), do Cód. Penal, o seguinte: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Com a redacção do n.º 1, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, veio o legislador legitimar a jurisprudência que já vinha entendendo que os maus tratos se podiam reportar a situações de agressão (física ou psicológica) reiterada e continuada no tempo, ou a agressões únicas mas de gravidade tal, que possibilitem a afirmação de que foram praticadas por especial malvadez ou grave disfunção do agente, subsumindo-se, por isso, a tal infracção. Consequentemente, a circunstância de existir uma conduta delituosa isolada não obsta, só por si, à subsunção legal ao crime de violência doméstica. Essencial é determinar se o acto praticado atingiu a gravidade/danosidade que a densificação normativa pressupõe. Ou seja, se o facto ilícito excede a tutela conferida pelo tipo matriz e impõe a defesa reforçada específica daquele primeiro. Na verdade, o crime de violência doméstica tutela muito mais do que a soma dos vários ilícitos típicos que o podem preencher, dirigindo-se a condutas que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de contextualizar uma situação de maus tratos físicos e/ou psíquicos. In casu, a pretensão do recorrente é patentemente infundada já que assente em premissas que não correspondem à factualidade provada. Desde logo porque o período temporal é mais alargado que aquele que referiu, mantendo-se as variadas condutas desviantes de Maio de 2021 até Fevereiro de 2022, tendo também ocorrido há muito a ruptura definitiva da relação entre arguido e ofendida já que o seu divórcio verificou-se a 16 de Novembro de 2020, data em que igualmente ficou regulado o exercício das responsabilidades parentais. Finalmente, nenhum dos actos descritos se relaciona com resolução de questões relativas à filha menor, antes demonstrando a atitude persecutória e de posse do arguido para com a sua ex-mulher, intrometendo-se constantemente na sua vida pessoal e profissional dos mais diversos modos, insultando-a e agredindo-a fisicamente mais do que uma vez. A natureza, número e intensidade das perseguições e agressões verbais e físicas é incontestável, não se compaginando minimamente com a singeleza que o aqui recorrente lhes atribui. Consequentemente, nenhuma censura merece a qualificação jurídica dos factos visto que consentânea com a realidade apurada e descrita, bem diversa da sustentada pelo arguido. * Mercê de ter decaído totalmente, o arguido deverá suportar as inerentes custas, tendo-se como adequado, em virtude do correspondente labor exigido, fixar em cinco UC a respectiva taxa de justiça - cfr. arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este Anexa. III - DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso do arguido BB e manter nos precisos termos a decisão recorrida. * Custas pelo recorrente com 5 (cinco) UC de taxa de justiça - art. 513º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e Tabela III anexa ao Reg. Custas Processuais.Notifique. * [Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[9]] Porto, 14 de Junho de 2023 Maria Deolinda Dionísio Jorge Langweg Maria Dolores da Silva e Sousa ______________ [1] Versão final, apresentada na sequência de convite ao abrigo do disposto no art. 417º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal [2] A jurisprudência fixada foi no sentido de que: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.” [3] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Processo Penal, 3ª Ed. Actualizada, UCE, págs. 890/891, nota 3, e Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal, Comentado, 2014, Livraria Almedina, págs. 1114/1115, nota 3. [4] Neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STJ de 21/2/2007 e 15/12/2011, Procs. n.ºs 06P3932 e 17/09.5SELSB.L1.S1, e desta RP de 30/9/2015, Proc. n.º 775/13.7GDGDM, todos in dgsi.pt. [5] V., Ac. TC, n.º 198-04, DR, II Série, de 2/6/2004, pág. 8546. [6] Neste sentido, Enrico Altavilla, Psicologia Judiciária, II vol., pág. 12. [7] V., a propósito, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 215. [8] Cf. Acs. STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Tomo I, pág. 247, e de 29/4/2003, Proc. n.º 3566/03-5ª, rel. Simas Santos, in dgsi.pt. [9] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora. |