Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
944/22.9T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: REVELIA OPERANTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
CADUCIDADE DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FALTA DE PAGAMENTO DAS RENDAS
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP20230615944/22.9T8VCD.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nas situações de revelia operante, o processo passa de imediato à fase das alegações escritas, não tendo lugar os termos da restante fase dos articulados ou da gestão inicial do processo, tal como não se realizam a audiência prévia ou a audiência de julgamento, mas, por força dos princípios que norteiam o processo civil, isso não impede o tribunal de praticar alguns actos processuais prévios, como o convite ao esclarecimento de alguma dúvida manifesta ou lapso patente ou à junção de algum documento autêntico indispensável para julgar provados factos relevantes alegados.
II - A não dedução de um pedido, a título principal ou subsidiário, nunca é uma irregularidade do articulado, e, em regra, também não será uma insuficiência, uma vez que o que será sempre objecto de julgamento são os pedidos concretamente formulados e a procedência destes, em regra, não está dependente da formulação de outro.
III - Se o autor senhorio apenas formula o pedido de declaração da extinção do contrato de arrendamento por caducidade decorrente da sua oposição à renovação e a condenação do arrendatário na entrega do locado, o tribunal não pode decretar a resolução do contrato por falta de pagamento de renda e condenar na entrega, ainda que na petição inicial viesse alegada esta falta de pagamento e o réu não tenha contestado a acção.
IV - À partida, uma pessoa colectiva não está afectada de incapacidade para celebrar um contrato de arrendamento e o facto de este ser destinado à habitação não o torna, só por isso, contrário às finalidades da pessoa colectiva.
V - O n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, fixa um prazo imperativo mínimo de três anos de renovação do contrato, pelo que as partes de um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo podem acordar a sua não renovação, mas se acordarem a renovação não podem estipular que esta ocorra por prazo inferior a três anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃOECLI:PT:TRP:2023:944.22.9T8VCD.P1
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Sumário:

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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:

AA, divorciada, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Póvoa de Varzim, instaurou acção judicial contra a Associação ..., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Vila do Conde, pedindo que a ré seja condenada:1º- a reconhecer que o contrato de arrendamento que celebrou com a autora, cessou os seus efeitos jurídicos no dia 18 de Abril de 2022, em virtude de oposição à renovação apresentada pela senhoria.

2º- a entregar o locado, livre de pessoas e coisas, assim como os bens móveis que lhe foram dados de aluguer.

3º- a pagar uma indemnização à autora calculada desde Abril de 2022 até entrega do locado, a qual se computa já em €1.650,00.

Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que celebrou com a ré um contrato de arrendamento de uma fracção urbana, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável, com destino à habitação da arrendatária, que, entretanto, procedeu à denúncia do contrato, mas a ré recusa-se a entregar a fracção e continua a ocupá-la, sem pagar renda, estando já em dívida três meses de renda.

A ré foi citada e não apresentou contestação, no prazo legal.

Findos os articulados, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré absolvida dos pedidos.

Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

1ª O tribunal recorrido ao proferir a sentença final, ignorou que toda a matéria de facto alegada pela recorrente e constante da petição inicial está totalmente provada em conformidade com o teor do artigo 607/3 e 567º, ambos do NCPC;

2ª O tribunal recorrido ao dar como provado que a recorrente não pagou as rendas peticionadas e elencadas no artigo 22 da petição inicial, optando erroneamente pela manutenção do contrato de arrendamento urbano, teria que condenar a recorrida no pagamento daquelas e das demais que se vencessem, atento que a recorrente peticionou a entrega do locado.

3ª Acresce que do teor da sentença final nos autos lavrada consta que foi alegado e provado o não pagamento de rendas pela recorrida, mas o tribunal não condenou aquela no seu pagamento. Deveria, pois, o tribunal recorrido ter observado o disposto no artigo 590º nº2 alínea b) e 4 do NCPC, convidando a parte a aperfeiçoar o articulado, atenta a insuficiência na exposição da matéria de facto. Este poder atribuído ao Tribunal, é um poder-dever e não um poder discricionário;

4ª O convite ao aperfeiçoamento supõe que o articulado, tal como consta da petição inicial, revele um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso.

5ª A falta deste despacho judicial configura uma omissão de um acto que a lei prescreve e a situação é particularmente ostensiva e grave, porque o tribunal recorrido além de ter omitido aquele despacho de convite ao aperfeiçoamento, tirou uma ilação absolutamente errónea que conduziu á improcedência da acção.

6ª A omissão deste despacho judicial, sendo uma nulidade processual, influiu no exame e decisão da causa, posto que julgou improcedente o pedido formulado pela recorrente pela insuficiência de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do convite ao aperfeiçoamento, acabando por afectar com o vicio de nulidade a própria sentença. Ac. do Tribunal da Relação do Porto datado de 03/01/2023, processo 639/18.8T8PRD.P1 Joaquim Moura.

7ª Sem prescindir nem conceder, e caso assim se não entenda, o tribunal atento que a recorrente após ter sido citada, confessou os factos, deveria ter em consideração o efeito prático-jurídico pela recorrente pretendido e não a exta caracterização jurídico- normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo licito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente julgamento de objecto diverso do peticionado. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 842/10.9TBPNF.P2.S1, 7ª Secção, Lopes do Rego.

8ª Neste contexto, tendo sido dada como provada toda a matéria alegada na petição inicial, e constando do pedido que a recorrente fosse condenada na entrega do locado, e que fosse condenada no pagamento do que era devido até entrega da fracção, o tribunal recorrido deveria ter decretado o despejo da recorrida convolando o pedido, já que era este conforme resulta da petição inicial, o fim pretendido pela recorrente.

9º- Mal andou o tribunal recorrido ao afastar-se do elemento sistemático na interpretação da lei, ignorando que a mesma faz parte de uma unidade jurídica e por isso tem que estar em harmonia com a maior parte das leis.

10ª- Assim sendo, ignorando tal elemento necessário à interpretação e aplicação da lei, viria a atribuir uma finalidade ao contrato de arrendamento diversa da constante no mesmo.

11ª- Nenhuma pessoa colectiva pode tomar de arrendamento para si uma fracção destinada a habitação, se do teor do contrato não constar que se destina a alguma pessoa física.

12ª- Só as pessoas físicas podem tomar de arrendamento imóveis, porque só estas podem ter e fixar nos mesmos a sua habitação.

12- Nenhuma pessoa colectiva pode ter uma habitação num locado que nem licenciado para tal efeito foi, e muito menos destinada a habitação permanente.

13ª- Não se compreende onde o tribunal recorrente extraiu a conclusão que tal contrato se destinava a habitação permanente de uma pessoa colectiva.

14ª E em consequência de tal facto, começa por incluir a aplicação dos diferentes regimes jurídicos que desde 2006 têm regulado o arrendamento urbano, acabando por impor uma renovação automática de três anos ao contrato em preço, descurando o fim do contrato de arrendamento, e o interesse das partes na sua renovação.

15ª- A jurisprudência tem debatido a interpretação e aplicação das leis no tempo, nomeadamente no que à lei de 2019 concerne, mas se divergências existem as mesmas devem-se apenas à necessidade de especial protecção do arrendatário que se encontra numa situação de especial fragilidade e tem no mesmo fixado o seu lar, destinando a fracção a habitação permanente, o que não é o caso destes autos.

16ª – Nunca foi o caso destes autos. E o tribunal foi impondo renovações automáticas e sucessivas de três anos de renovação, sem atentar na violação do principio da liberdade contratual, contemplado na 1ª parte do artigo 1096/1 “salvo disposição em contrário”.

17ª- Já não era sequer a primeira renovação.

18ª- Unanimemente a jurisprudência considera que norma imperativa que se impõe a todos os interesses privados, é a constante do artigo 1095/1 do C.C. e não as demais tendo em consideração todos os elementos probatórios.

19ª- Podendo a mesma ser renovada apenas por mais um ano.

20ª A interpelação da recorrente junto da recorrida foi por esta recebida, atenta a ausência de qualquer oposição.

21ª- A não contestação da oposição à renovação do contrato de arrendamento, traduz a aceitação da recorrente, que o mesmo não se renovou e que estava consciente da obrigação da sua entrega.

22ª- Facto acentuado pela citação e não apresentação de qualquer defesa, implicando a confissão dos factos.

23ª- E que se impõe neste concreto caso, é a defesa dos interesses privados e não qualquer defesa de interesse público.

24ª- A renovação de três anos, há muito que se deu.

25ª A recorrida aceitou tacitamente e concludentemente aquela oposição à renovação do contrato de arrendamento.

Termos em que e nos demais de direito, e sempre com o douto suprimento de V.Exª deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente deve ser julgada nula a sentença final nestes autos lavrada, atenta a violação do poder-dever que recai sobre o tribunal, que não convidou a recorrente ao aperfeiçoamento do articulado inicial, podendo e devendo tê-lo feito, e deste modo, decretar o despejo da recorrida por não pagamento das rendas (conforme resulta da matéria confessada e provada, reconhecida pelo tribunal recorrido) com entrega do locado;

A violação daquele principio, constante dos artigos 590º nº2 alínea b) e nº4 do NCPC, atenta a sua natureza, que deixou de ser uma faculdade, mas um poder-dever atribuído ao tribunal no âmbito do principio do dispositivo, e concretamente no domínio da gestão processual, implica a nulidade da sentença final, com todas as legais consequências;

Caso assim se não entenda, deve a sentença final ser revogada e substituída por nova sentença que atento o princípio da economia processual, a confissão de toda a matéria de facto, ordene a entrega do locado, e pagamento das rendas comprovadamente não pagas.

A recorrida não respondeu a estas alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:

i. Se a sentença recorrida é nula por ter sido omitido o despacho prévio de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

ii. Se o tribunal podia convolar o pedido de declaração de caducidade do contrato por oposição à renovação, em pedido de resolução do contrato por falta de pagamento de renda.

iii. Se o caso não está subordinado ao regime jurídico do arrendamento para habitação.

iv. Se a aplicação das normas legais sobre a renovação do contrato violam a liberdade contratual, devendo aplicar-se sim o regime fixado no contrato.

v. Se a ré aceitou tacitamente a oposição à renovação do contrato e este deve, por isso, considerar-se extinto.

vi. Se de qualquer modo a ré deve ser condenada ao pagamento das rendas em falta.

III. Fundamentação de facto:

Estão provados por falta de contestação os seguintes factos:

1. Entre a autora e ré foi celebrado um «contrato de arrendamento», que teve como objecto a fracção autónoma pertencente à autora identificada pela letra “C” do prédio sito na Avenida ..., Vila do Conde.

2. O contrato foi celebrado pelo prazo de cinco anos, com início no dia 18 de Abril de 2012 e fim no dia 18 de Abril de 2017, considerando-se renovado por períodos iguais e sucessivos de um ano, nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes não for denunciado nos termos legais.

3. A «fracção ou parte dela» foi destinada à «habitação do arrendatário», ficando vedado à ré sublocar ou por qualquer meio ceder gratuita ou onerosamente a fracção em causa, sem o consentimento da autora.

4. As obras de conservação ficaram ao encargo da ré, sendo que eventuais benfeitorias que tenha executado com consentimento da autora, ficarão a fazer parte integrante do locado, não podendo a ré requerer qualquer indemnização pelas mesmas.

5. A fracção deveria ser entregue à senhoria findo o contrato, em bom estado de conservação e com todos os vidros, chaves e tudo o mais que nele se encontre, designadamente os bens móveis que foram alugados e que fizeram também parte daquele contrato de arrendamento, em adenda ao mesmo.

6. A ré começou a pagar a título de renda, um montante de 275,00€, renda que ainda se mantém.

7. O pagamento da renda é feito através de transferência bancária para a conta constante do contrato de arrendamento, mas a arrendatária paga sempre depois do dia 8 de cada mês e normalmente no final de cada mês.

8. Entre as obrigações impostas à arrendatária encontra-se o pagamento da água e da luz, e demais bens incorpóreos de que a mesma seja beneficiária.

9. O contrato não tem sido cumprido pela arrendatária, que tem usufruído do mesmo.

10. Face a um não cumprimento do contrato de arrendamento, a autora, no passado dia 31-12-2021, notificou a ré, através da sua legal representante, que procedia à denúncia do contrato de arrendamento, pelo que a mesma deveria entregar o locado no dia 18 de Abril de 2022.

11. A ré foi notificada.

12. A ré não sai da fracção.

13. A autora perante a irredutibilidade da ré em entregar a fracção em causa, concedeu-lhe mais trinta dias para a respectiva entrega, mediante notificação judicial avulsa.

14. A ré recebeu a notificação no dia 12 de Maio, mas até à presente data, vem-se recusando a entregar a fracção.

15. A ré encontra-se na fracção e não paga a prestação pecuniária pelo uso e fruição da mesma, estando vencidas e não pagas as rendas vencidas nos meses de Abril, Maio, e Junho, num total de 825,00€.

16. A autora foi informada que a ré ou alguém a seu mando, terá feito uma ligação ao contador da água comum do prédio, pelo que, os consumos domésticos de água, têm sido pagos pela autora, que até há bem pouco tempo desconhecia tal facto.

IV. Matéria de Direito:

A] da falta de convite ao aperfeiçoamento:

A recorrente insurge-se contra o facto de, antes de ter sido proferida a sentença recorrida, não ter sido convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial, defendendo que tal omissão constitui uma nulidade processual que torna a própria sentença nula.

Lido o corpo das alegações para compreensão do teor das respectivas conclusões, a recorrente parece ter em mente a possibilidade de dedução do pedido de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, a título subsidiário relativamente ao pedido concretamente deduzido de reconhecimento da cessão do contrato em dia 18 de Abril de 2022 por oposição do senhorio à renovação.

Sucede que se deu a circunstância nos autos de a ré ter sido citada e não ter apresentado contestação, sendo a revelia operante. Nesse circunstancialismo a tramitação processual possui uma configuração abreviada específica.

Nos termos do artigo 566.º do Código de Processo Civil cabe então ao juiz verificar se a citação foi feita com as formalidades legais e ordenar a sua repetição quando encontre irregularidades. Não sendo este o caso, nos termos do artigo 567.º, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e, de seguida, concede-se o prazo de 10 dias, primeiro ao mandatário do autor e depois ao mandatário do réu, para alegarem por escrito; feito isso é de imediato proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito, sendo que se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode mesmo limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.

Como resulta destes preceitos, produzindo-se uma situação de revelia operante, o processo passa de imediato à fase das alegações escritas a que se segue sem mais a prolação da sentença, o que significa que não têm lugar os termos da restante fase dos articulados, nem os termos da gestão inicial do processo, tal como não se realiza a audiência prévia, nem a audiência de julgamento.

Cremos, todavia, que por força dos princípios que norteiam o processo civil isso não obsta a que o tribunal não pratique alguns actos processuais prévios, havendo lugar a eles, como o convite ao esclarecimento de alguma dúvida manifesta ou lapso patente ou à junção de algum documento autêntico que seja indispensável para que algum dos factos relevantes possa ser julgado provado. Mas isso não conduz a que, ao arrepio do artigo 567.º, possam ou devam ser praticados todos os actos processuais previstos nos artigos 590.º a 598.º do Código de Processo Civil.

Como quer que seja, aquilo que a recorrente refere que pretenderia aperfeiçoar se lhe fosse dada oportunidade não se ajusta às finalidade e âmbito das possibilidades de aperfeiçoamento a convite do juiz.

Nos termos do artigo 590.º, o despacho pré-saneador destina-se, além do mais que aqui não releva, a convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa, ou a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. A norma acrescenta que as alterações à matéria de facto alegada, efectuadas pelo autor na sequência desse convite, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º que delimita os casos em que é possível a alteração do pedido e da causa de pedir (na falta de acordo das partes).

O campo de intervenção deste preceito que pode ser convocado para o caso é o do suprimento das irregularidades dos articulados (o outro campo não é para aqui chamado porque não se trataria de alterar a matéria de facto alegada).

Ora as irregularidades são distintas das insuficiências. Aquelas são falhas relativamente ao conteúdo que o articulado deve apresentar para estar conforme com as normas processuais (i.e., não reúne os requisitos do artigo 552.º); estas são carências relativamente àquilo que o articulado, ao nível dos fundamentos de facto, devia conter para o tribunal compreender o seu conteúdo e julgar procedente a pretensão do autor (i.e., a sua aptidão para obter ganho de causa).

A não dedução de um pedido, a título principal ou subsidiário, nunca é uma irregularidade do articulado, e, em regra, também não será uma insuficiência, uma vez que o que será sempre objecto de julgamento são os pedidos concretamente formulados e a procedência destes em regra não está dependente da formulação de outro. Excepcionalmente essa falta de um pedido será uma insuficiência do articulado, passível de ser mandada suprir, nos casos em que para o tribunal julgar procedente um dos pedidos é indispensável a dedução de outro pedido (v.g. os casos das acções de estado em que a modificação do estado depende da modificação, prévia ou contemporânea, do registo civil correspondente).

No caso, a dedução subsidiária de um pedido de resolução do contrato para o caso de improceder o pedido de declaração da respectiva caducidade nunca seria uma irregularidade ou, sequer, uma insuficiência da petição inicial e, por isso, este articulado não era passível de correcção ao abrigo do disposto no artigo 590.º do Código de Processo Civil, ainda que este estivesse, e já vimos que não está, compreendido na tramitação do processo.

Não se invoquem contra isso os princípios processuais, designadamente o da cooperação, porque estamos precisamente perante uma daquelas situações em que o princípio se encontra concretizado nas normas legais respeitantes à configuração do convite a formular pelo tribunal, as quais representam, portanto, o modo como a própria lei delimita o âmbito da cooperação exigível e possível ao tribunal.

Em suma, independentemente da qualificação do vício da falta (ilegal) do convite ao aperfeiçoamento do articulado, de que não necessitamos de nos ocupar aqui, a autora não podia, no caso concreto, usufruir desse convite para deduzir (ainda que a título subsidiário para evitar a ineptidão da petição inicial) um pedido (de resolução do contrato) que não deduziu.

Improcede esta questão.

B] da possibilidade de decretar a resolução do contrato por falta de pagamento de renda:

Nas conclusões 7 e 8 a recorrente defende que o efeito prático-jurídico da declaração da caducidade do contrato é o mesmo que o da resolução do contrato (a extinção deste e a obrigação de entrega do locado ao seu proprietário) e por isso o tribunal podia condenar nesse efeito por convolação do pedido.

Trata-se, contudo, de uma questão (a da possibilidade de convolação do pedido) que apenas surge mesmo nas conclusões das alegações, não havendo no corpo desta qualquer referência a essa questão ou desenvolvimento dos fundamentos pelos quais a mesma deve ser decidida favoravelmente à recorrente.

Tal circunstâncias corresponde à ausência de alegações sobre a questão em causa, uma vez que as conclusões são, por definição, a súmula conclusiva do que se abordou desenvolvidamente no corpo das alegações, pelo que se essa abordagem não foi feita não há alegações que suportem a conclusão, razão pela qual a questão não deve sequer ser tratada nesta sede.

De todo o modo sempre se dirá que esta questão não poderia ser acolhida.

Como ensinava Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 372, «o processo só se inicia sob o impulso da parte (…), mediante o respectivo pedido e não sob o impulso do próprio juiz: nemo judex sine actore; ne judex procedat ex-officio. A isto se chama, por vezes, o princípio do pedido. (…). As partes é que - através do pedido e da defesa - circunscrevem o thema decidendum. O juiz não tem de saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi. É a doutrina da máxima: ne eat judex ultra vel extra petita partium. Alguns (Calamandrei) falam aqui de correspondência entre o requerido e o pronunciado (cf. ainda Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2ª ed., página 52).

Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, página 163, escreve que «ao propor a acção, o autor formula o pedido, determinado formalmente pela providência requerida e materialmente pela afirmação duma situação jurídica, dum efeito querido ou dum facto jurídico, e fundado, de acordo com a imposição da substanciação, numa causa de pedir, assim conformando o objecto do processo», Já antes, na página 55, escrevera que « o processo inicia-se com a apresentação da petição inicial, na qual o autor solicita ao tribunal uma providência de tutela do seu direito ou interesse legalmente protegido, dirigida contra o réu, titular dum interesse em conflito com o seu. A esta solicitação deve o tribunal dar resposta, concedendo ou negando a tutela pretendida pelo autor …». E a página 64, que «a pretensão (ou pedido, como a nossa lei a usa chamar) apresenta-se duplamente determinada: no seu conteúdo, referido ao direito material, consiste na afirmação duma situação jurídica subjectiva actual ou, na acção constitutiva, da vontade dum efeito jurídico (situação jurídica a constituir) baseado numa situação subjectiva actual, ou ainda na afirmação da existência ou inexistência dum facto jurídico; na sua função, consiste na solicitação duma providência processual para tutela do interesse do autor. Pode assim falar-se duma determinação material e duma determinação processual da pretensão.»

O princípio do pedido está consagrado no artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil, que assinala que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes. Com esse desiderato, cabe ao autor a obrigação de na petição inicial «formular o pedido» (artigo 552.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil), ou seja, «dizer com precisão o que pretende do tribunal - que efeito jurídico quer obter com a acção» (cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 245, nota 2), qual a concreta tutela jurisdicional que pretende que o tribunal decrete e que considera ajustada à satisfação do seu direito. Ao autor incumbe, pois, formular e definir a sua pretensão, o que não é apenas um direito, é igualmente um ónus que sobre si impende e cuja insatisfação – total ou parcial – contra si reverte.

É o pedido assim deduzido, porventura alterado no momento processual adequado, que delimita o poder do tribunal quanto aos efeitos que pode decretar na sentença final. Como estabelece o artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir. É nesse sentido que Paula Costa e Silva, in Acto e Processo, afirma na página 263 que «constitui monopólio das partes a conformação da instância nos seus elementos objectivos e subjectivos» e na página 583 que o princípio do pedido «determina que o tribunal se encontra vinculado, no momento do proferimento da decisão, ao decretamento das consequências que o autor do acto postulativo lhe requerera. Não pode decidir-se por um maius, nem por um aliud

Esta vinculação do tribunal ao pedido formulado é ditada por razões de certeza e segurança jurídicas e tem subjacentes a ideia da disponibilidade da relação material e os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes e da auto-responsabilidade destas. Mas serve igualmente para proteger o demandado, permitindo-lhe saber exactamente do que se deve defender, qual a concreta tutela que lhe está a ser oposta e em relação à qual tem de reagir, o que assegura e cumpre o princípio do contraditório (cf. artigo 3º do Código de Processo Civil) sendo imprescindível para assegurar um processo justo.

Se o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido a sentença é nula nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil.

Como afirma o Supremo Tribunal de Justiça no AUJ n.º 9/2015, «apesar da significativa relevância que, sobretudo nas últimas reformas processuais, tem sido reconhecida ao princípio da cooperação, concorrendo para uma gradual desformalização do processo, o art. … 7º, nº 1 … limita-se a consagrá-lo como princípio geral: a cooperação tem em vista obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Mas, como tal, não é passível de aplicação imediata, carecendo de concretização. Isso significa que, com base nesse princípio, o tribunal "não pode adoptar uma qualquer conduta interventiva que seja imediatamente justificada pela justa composição do litígio". Essa intervenção tem de ser intermediada por norma que a permita ou imponha. Ora, dos múltiplos deveres em que tal princípio se desdobra, pareceria pertinente convocar aqui o dever de prevenção. Só que este dever não é concebido em termos genéricos ou como "cláusula geral", estando apenas previsto para a remoção de obstáculos de natureza formal ao fim substancial do processo e para o suprimento da insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto (cf. art. 590º, nºs. 3 e 4, do CPC). Está, assim, arredada a possibilidade de o tribunal sugerir a correcção ou o suprimento de deficiências ou omissões que afectem o conteúdo do pedido formulado. Quer dizer: ao longo do processo o juiz não pode, sponte sua, convidar o autor a suprir qualquer omissão que vislumbre no conteúdo do pedido; no caso, portanto, não poderia sugerir a inclusão do pedido de condenação em juros de mora que entendesse devidos. Mas, se assim é, parece que, por maioria de razão, não pode ele próprio suprir depois, oficiosamente, essa omissão no momento da decisão final».

Citado neste Acórdão, Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., página 265, depois de referir os termos "algo mitigados" em que o princípio da cooperação está consagrado, afirma: «não se prevê expressamente – como decorrência da cooperação do tribunal com as partes – a existência de um genérico dever de prevenção e esclarecimento das partes sobre quaisquer insuficiências e deficiências das peças processuais que apresentem em juízo, de modo a caber ao juiz sugerir-lhes os comportamentos processuais que repute mais adequados, incluindo – como sucede no sistema jurídico alemão – a própria alteração das pretensões deduzidas.»

Este pensamento tem vindo a ser atenuado no seu rigor. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2016, citado pela recorrente, afirma-se a propósito o seguinte:

« … o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido , ou seja , indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida .

Daqui decorre naturalmente um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

(…) Deverá … valer em sede de pedido um regime paralelo ao que sempre vigorou pacificamente quanto à causa de pedir, distinguindo-se a materialidade desta - expressa no conjunto de factos que a integram – da respectiva qualificação jurídica – para se concluir que tal qualificação jurídica, sem alteração da realidade ou materialidade dos factos, é – como sempre foi - facultada ao juiz? Ou seja: poderá também em sede de pedido – pretensão material ou processual – operar-se uma cisão entre a materialidade da pretensão formulada e a coloração ou qualificação jurídica desta?

Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respectivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correcção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efectivamente adequado à situação litigiosa ( vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).

(…) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da acção inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a acção correcta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal acção ser objectivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspectivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora …não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma acção reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exactamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…

(no Assento do STJ de 28/3/95) … entendeu-se (de forma, aliás, unânime) que quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº 1 do art. 289º do Código Civil. (…) Subjacente ao assento está … o reconhecimento de que é lícito ao tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. – no caso, como decorrência da inquestionável possibilidade de conhecimento oficioso das nulidades da acto jurídico – ma também a admissibilidade de uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar ( só assim se explicando que o tribunal possa atribuir o bem, valor ou montante pecuniário pedido, não em consequência ou a título de cumprimento do contrato em que se consubstanciava a causa de pedir, mas através da figura do dever de restituir tudo aquilo que se obteve em consequência de um negócio oficiosamente tido por nulo).

Esta mesma ideia é realçada – ainda com maior nitidez – no Ac. 3/2001, em que se uniformizou a jurisprudência no sentido de que tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC.

Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal , alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.

(…) o grupo de situações em que se pode admitir – e em que vem sendo mais frequentemente admitida - a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do acto jurídico: pretendendo o autor, em termos práticos e substanciais, a destruição dos efeitos típicos que se podem imputar ao negócio jurídico celebrado, ocorre uma deficiente perspectivação jurídica desta matéria, configurando a parte o efeito prático-jurídico pretendido – de aniquilação do valor e eficácia do negócio – no plano das nulidades quando, afinal, a lei prevê para essa situação um regime de ineficácia ou inoponibilidade; ou na invocação de um regime de anulabilidade quando o valor negativo do acto se situa no plano da nulidade, ou vice-versa. Sendo o objectivo prosseguido pela parte a aniquilação ou destruição dos efeitos produzidos pelo acto em causa, não deverá um simples erro de configuração normativa do valor negativo do acto e do particular regime que lhe corresponde ditar a injustificável improcedência da acção, com os custos de celeridade e economia processual a que atrás se aludiu, quando, com toda a certeza, o autor se conformaria inteiramente com a aplicação do regime que decorre da correcta caracterização normativa da pretensão deduzida.»

O Supremo Tribunal de Justiça tornou a esta questão mais recentemente no Acórdão de 18-01-2018, proc. n.º 1005/12.4TBPVZ.P1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, para afirmar o seguinte:

«(…) O objecto do processo é integrado pelo pedido e pela causa de pedir, sendo que o pedido consiste no efeito jurídico pretendido, ou seja, no efeito prático-jurídico que, na qualificação que seja permitida, se extrai da petição inicial …

A amplitude dos poderes do Tribunal no que concerne à qualificação jurídica exposta pelo autor relativamente a qualquer dos referidos elementos … foi objecto de debate em torno da norma que corresponde ao actual art. 609º, nº 1, do CPC, preceito que impede a prolação de uma decisão em divergência com o que foi pedido.

Sobre tal problemática eram percepcionadas duas correntes essenciais: uma em que se apostava numa visão de pendor mais formal ligada à qualificação jurídica proposta pelo autor; outra que privilegiava os aspectos de ordem material, relevando factores de natureza substancial ligados ao conteúdo da pretensão.

Tal polémica, ou parte dela, acabou por ser solucionada pelo Pleno das Secções Cíveis deste Supremo Tribunal de Justiça que produziu dois arestos com valor uniformizador da jurisprudência: - O Assento nº 4/95, segundo o qual, “quando o tribunal conhece oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no art. 289º do CC”. - O AUJ nº 3/01, de acordo com o qual, “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC” (de 1961).

A partir destes dois arestos ficou bem evidenciado que, mais importante do que a qualificação jurídica atribuída pelas partes, releva aquela que seja considerada ajustada pelo Tribunal, ao abrigo da regra da oficiosidade agora consagrada no art. 5º, nº 3, do CPC.

(…) existem outros limites legais que condicionam a actividade do juiz no momento em que aprecia o mérito da causa. Resultam, desde logo, da persistência do princípio do dispositivo no que concerne à alegação dos factos essenciais e à formulação da pretensão (condicionante de ordem adjectiva) e ainda da existência de certas normas de direito material que fazem depender determinados efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos de um impulso específico da parte interessada.

Sem esgotarmos as figuras a que se aplica esta segunda condicionante, constitui disso exemplo a norma do art. 436º, nº 1, do CC, que faz depender a declaração de resolução dos contratos de uma declaração da parte, o que, em termos judiciários, encontra correspondência na formulação de uma pretensão resolutiva por parte do autor. Outro exemplo, agora quanto a um efeito de natureza extintiva, é representado pelo art. 303º do CC, quanto ao ónus de invocação da prescrição (art. 303º do CC), ou pelo art. 333º, nº 1, a respeito da caducidade em matéria de direitos disponíveis. (…)

(…) Em tese, podemos concluir que numa acção cujo objecto seja unicamente integrado pela declaração de nulidade de um contrato, com um determinado fundamento (v.g. simulação), não cabe a apreciação da anulabilidade do mesmo contrato com outro qualquer fundamento jurídico (v.g. falta de consentimento dos demais filhos do vendedor).

O Tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos alegados e provados e, até, em certa medida, na qualificação jurídica do pedido, ajustando-o ao que emerge dos preceitos concretamente aplicáveis, mas, como se disse, com uma forte restrição no que respeita à anulação dos negócios jurídicos, atento o duplo condicionamento: um que atina com a necessidade de alegação dos factos reveladores do vício determinante da anulabilidade (art. 5º, nº 2, do CPC); outro que respeita à invocação desse efeito jurídico (art. 287º, nº 1, do CC).

Ainda que exista identidade quanto aos efeitos jurídicos que decorrem da figura da nulidade e da anulabilidade (art. 289º do CC), não existe neste campo a liberdade de o juiz optar pela declaração da anulabilidade quando apenas tenha sido peticionada a nulidade. E mesmo em relação à correcta qualificação do efeito jurídico o Tribunal não pode deixar de ponderar se em que medida foi assegurado o exercício do contraditório a respeito da figura jurídica resultante da convolação, no pressuposto de que os meios de defesa que ao réu é legítimo invocar num caso e noutro não são idênticos.»

Aplicando esta posição ao caso concreto, afigura-se-nos que a pretensão da recorrente não poderia ser acolhida.

Desde logo pela razão, também apontada no aresto citado por último, de que a resolução do contrato exige uma declaração da parte (operando a resolução extrajudicialmente) ou um requerimento no sentido de o tribunal a declarar (quando a resolução tenha de ser decretada pelo tribunal), o que, em termos judiciários, corresponde à formulação de uma pretensão resolutiva por parte do autor. Ora a autora não formulou qualquer pedido nesse sentido, nem alegou ter procedido extrajudicialmente, à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento da renda, como podia ter feito, nos termos do artigo 1084.º, n.º 2, do Código Civil.

Depois porque a demandada se tivesse sido confrontada com o pedido de resolução podia exercer meios de defesa que não eram necessários na acção tal como esta se encontra configurada. Temos em mente, por exemplo, a faculdade de fazer caducar a mora nos termos previstos no artigo 1041.º do Código Civil. Não tendo a demandada sido confrontada com esse pedido, constituiria uma violação flagrante do princípio do contraditório e da proibição das decisões-surpresa conhecer decretar agora a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas quando o que vem pedido é apenas o reconhecimento da extinção do contrato por caducidade decorrente da oposição à renúncia.

Finalmente, porque o que pode estar em causa no caso em apreço não é um erro na qualificação jurídica do instituto invocado para fundamentar a tutela jurisdicional requerida (incumprimento em vez de invalidade, invalidade em vez de ineficácia) é antes uma escolha clara da autora da figura jurídica invocada para fundamentar a sua pretensão.

No momento em que instaurou a acção a autora já sabia que podia invocar a caducidade do contrato pelo decurso do respectivo prazo (não renovado) ou proceder à resolução do mesmo (ou pedir judicialmente a declaração da resolução) e de facto provaram-se os factos jurídicos subjacentes a esses dois fundamentos jurídicos de cessação do contrato. A autora, bem ou mal, por responsabilidade sua a que não pode escapar, optou por pedir a declaração de caducidade, assumindo, portanto, que o contrato se tinha extinto por essa via (logo, sem incorrer em contradição, não podia ter-se extinguido mais tarde, por outro fundamento).

O tribunal não dispõe (e não pode dispor, sem violar os princípios processuais já mencionados) da faculdade de, ao arrepio dessa escolha do autor e sem sinal deste de que o pretende, conhecer de outro fundamento que permitiria julgar procedente a pretensão da autora e que esta não invocou, embora tenha alegado factos concretos que permitem colocar a questão do preenchimento desse outro fundamento, mas que, de todo o modo, não seriam suficientes para o apreciar e julgar.

Por tudo isso improcede também esta questão.

C] da subordinação do contrato ao regime do arrendamento para habitação:

A recorrente celebrou com a ré, pessoa colectiva (uma «Associação») um contrato que as partes intitularam «contrato de arrendamento para habitação» tendo por objecto um «apartamento», expressão que designa uma fracção autónoma para habitação, com a curiosidade de na cláusula 6.ª se estabelecer que «o prédio ou parte do prédio aqui arrendado (sic) destina-se a habitação do arrendatário».

Não obstante isso, vem a recorrente defender que o contrato não pode ter por finalidade a habitação porque a habitação é um uso das pessoas singulares e a ré, atenta a sua qualidade de pessoa colectiva, não habita onde quer que seja.

A recorrente não esclarece que consequências atribui a esse facto, designadamente para efeitos de validade do contrato. Ora sem questionar a validade do contrato não parece possível determinar o fim do arrendamento abstraindo do respectivo clausulado e ignorando-o, sendo certo que, de acordo com o seu texto, o contrato foi efectivamente celebrado «para habitação», no arrendado ou «em parte dele», e a autora não impugna nem contraria aquelas cláusulas (pelo que não é possível sequer especular se o apartamento foi afinal arrendado parcialmente para outra finalidade, designadamente religiosa, em violação da respectiva licença de utilização).

De todo o modo sempre se dirá que a doutrina e a jurisprudência convergem na aceitação da possibilidade legal de uma pessoa colectiva celebrar contratos de arrendamento para habitação.

Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1996, Almedina, página 286, afirma esse respeito o seguinte: «Dir-se-á, relativamente às pessoas colectivas, que, sendo a habitação, “inseparável da pessoa singular”, ex rerum natura, lhes faltará capacidade para adquirirem de arrendamento para esse fim. Na verdade, parece que se o contrato for, por hipótese, celebrado para habitação própria, faltará à pessoa colectiva, naturalmente, capacidade para nele intervir como arrendatária. Não devendo, porém, negar-se-lhe legitimidade negocial para realizar um arrendamento a favor de terceiro (v. infra no 43), tal incapacidade não afectará decerto a susceptibilidade de uma pessoa colectiva adquirir de arrendamento, para habitação, um prédio ou parte de prédio destinado a ser ocupado por indivíduos com ela relacionados e por determinação sua e como entre nós não estabelece a ordem positiva distinção entre o arrendatário pessoa singular e o arrendatário pessoa colectiva, parece que semelhante arrendamento deverá considerar-se vinculístico, à face da lei, como qualquer outro arrendamento para habitação

Aragão Seia, in Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 5.ª edição revista e actualizada, Almedina, página 88, defendeu igualmente que «Também as pessoas colectivas, com observância do princípio da especialidade – artigo 160.º do C.C. –, podem dar e tomar de arrendamento, por a sua capacidade abranger todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, com excepção dos direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da pessoa singular

Por sua vez no Acórdão da Relação do Porto de 11-11-1986, CJ, XI, 5, página 206, escreveu-se que «O princípio da especialidade, nos termos do qual a capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, exceptuados os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular, de forma alguma afasta a possibilidade de elas constituírem a favor de terceiro um arrendamento habitacional, no caso de isso ser do interesse ou conveniência aos fins que elas se propõem. Isto mesmo resulta inequivocamente dos termos expressos do preceito - artigo 160.º do C.C.- que inclui na capacidade das pessoas colectivas todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes aos seus fins.» No mesmo sentido pronunciou-se ainda o Acórdão da Relação do Porto de 30-06-2014, proc. n.º 3824/13.5TBSTS.P1, in www.dgsi.pt.

Na obra colectiva Comentário ao Código Civil: Parte Geral, coord. de Luís Carva1ho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, páginas 352/353, lê-se: «Uma pessoa colectiva não pode adquirir direitos ou obrigações inseparáveis da personalidade singular, ou seja, praticar actos de natureza estritamente pessoal ou reservados às pessoas singulares, como, por exemplo, adquirir um direito de uso e habitação, casar, perfilhar, adoptar, testar, adquirir a qualidade de detentor de poder paternal, tutor, curador, administrador de bens ou vogal do conselho de família. Por outro lado, e embora se venha a verificar uma tendência de alargar às pessoas colectivas certos direitos de personalidade (…), é certo que aquelas não poderão ser titulares de um direito à vida, à integridade física, à saúde, ao pseudónimo, à imagem ou à reserva sobre a intimidade da vida privada, para citar apenas alguns exemplos. Está aqui em causa a impossibilidade de praticar certos actos que pressupõem a natureza singular da pessoa que os pratica, relacionadas, designadamente, com situações jurídicas familiares ou sucessórias (passivas), a aquisição e exercício de alguns direitos de personalidade, a celebração de certos contratos (como a aquisição da qualidade de trabalhador) ou, ainda, a aquisição e exercício de certos direitos políticos (como o direito de votar) (…). Em suma, uma pessoa colectiva não pode praticar actos, exercer direitos ou obrigações que sejam incompatíveis com a sua natureza institucional

Por fim e especificamente para o caso das sociedades comerciais, escreve Coutinho de Abreu Curso de Direito Comercial, 2015, Volume II, 5ª edição, página 178/179, como prescreve o artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, «a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular. Por conseguinte, exceptuados os direitos e obrigações vedados por lei (v. g., os direitos de uso e habitação, que a nossa lei - arts. 1484º°, ss. do CCiv.- reserva para as pessoas humanas) e os inseparáveis, pela “natureza das coisas”, da personalidade singular (v.g., os direitos familiares fundados no casamento ou na adopção), entram na capacidade jurídica das sociedades todos os direitos e obrigações que se revelem, à partida, indispensáveis ou úteis à consecução do seu fim

Em suma, à partida (não está demonstrado o contrário e, em rigor, é desconhecido o verdadeiro «estatuto jurídico» da «associação» ré, vindo apenas assinalado que se trata de uma pessoa colectiva registada como tal), a ré não estava afectada de incapacidade de celebração do contrato de arrendamento e o facto de este ser destinado à habitação não o tornava, só por isso, contrário às finalidades da pessoa colectiva, caso em que seria inválido. Coisa diferente é a possibilidade de a ré cumprir as suas obrigações contratuais quanto à ocupação efectiva do arrendado, o que naturalmente só poderá fazer por intermédio de pessoa singular com ela directamente relacionadas e cuja habitação no arrendado fosse ou devesse ser conhecida da senhoria no momento da celebração do contrato. Mas isso é aspecto que não interessa para o caso.

Concluindo agora, também esta questão improcede.

D] da prevalência do acordo das partes sobre as normas legais atinentes ao prazo de renovação:

A questão que a recorrente coloca consiste em saber se após a entrada em vigor da lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, e da alteração que esta introduziu no artigo 1096.º do Código Civil, o contrato de arrendamento em apreço passou a renovar-se por períodos de três anos, por aplicação desta norma, ou continuou a renovar-se por períodos de um ano, por emprego da cláusula do contrato que estabelece a renovação por este período de tempo.

Aplicando a primeira solução, o contrato ter-se-á renovado em 18-04-2018 pelo período de um ano, mas por força da alteração legislativa esse período foi alargado para três anos, alargamento que se aplicou ao prazo em curso nos termos do n.º 2 do artigo 297.º do Código Civil, pelo que o termo do contrato passou a ser o dia 18-04-2021, altura em que se renovou de novo por três anos, atingindo o seu termo em 18-04-2024. Logo a comunicação de oposição à denúncia efectuada em 31-12-2021 para cessação do contrato em 18-04-2022 não é válida por nessa data não se atingir o termo da renovação em curso.

Aplicando a segunda, uma vez que as renovações seriam sempre feitas pelo período de um ano que se completa no dia 18-04, aquela oposição já seria válida porque no dia 18-04-2022 seria atingido o termo da renovação automática produzida por último.

Trata-se, portanto, de decidir se a redacção do n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil na redacção da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, prejudica ou impede as partes de estipular no contrato de arrendamento para habitação com prazo certo um período de renovação automática do contrato inferior a três anos, isto é, se o prazo (legal) de três anos é um prazo mínimo imperativo insusceptível de se alterado, para menos, pelas partes.

A questão coloca-se por causa da própria redacção da norma que é a seguinte:

1 - Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

A interpretação da ressalva inicial («salvo estipulação em contrário») tem consentido, como era expectável, a adopção das duas respostas possíveis.

Maria Olinda Garcia, in Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, Julgar Online, Março de 2019, página 11, afirma, referindo-se aos arrendamentos para habitação tendencialmente duradoura, que «quanto à renovação do contrato, a nova redacção do artigo 1096.º suscita alguma dificuldade interpretativa, nomeadamente quanto ao alcance da possibilidade de “estipulação em contrário” aí prevista. Por um lado, pode questionar-se se tal convenção poderá excluir a possibilidade de renovação do contrato ou apenas estabelecer um diferente prazo de renovação. Parece-nos que (na sequência do que já se verificava anteriormente) as partes poderão convencionar que o contrato não se renova no final do prazo inicial (o qual tem de ser de, pelo menos, um ano). O contrato caducará, assim, verificado esse termo. Mais delicada é a questão de saber se as partes podem estipular um prazo de renovação inferior a 3 anos (hipótese em que o prazo legal de 3 anos teria natureza supletiva). Atendendo ao segmento literal que diz que o contrato se renova “por períodos sucessivos de igual duração”, pareceria poder concluir-se que, se o período inicial pode ser de 1 ou de 2 anos, as partes também teriam liberdade para convencionar igual prazo de renovação. Todavia, ao estabelecer o prazo de 3 anos para a renovação, caso o prazo de renovação seja inferior, parece ser de concluir que o legislador estabeleceu imperativamente um prazo mínimo de renovação. Afigura-se, assim, que a liberdade das partes só terá autónomo alcance normativo se o prazo de renovação estipulado for superior a 3 anos

Ainda nesse sentido, Mascarenhas Ataíde e Ramalho Rodrigues, in Denúncia e oposição à renovação do contrato de arrendamento urbano, Revista de Direito Civil, Ano IV (2019), n.º 2, Almedina, 2019, página 303, ao escreverem «Quando aplicável, a renovação automática ocorre no termo do contrato e por períodos sucessivos de igual duração, ou de três anos se esta for inferior (artigo 1096.º, n.º 1), podendo qualquer das partes opor-se à renovação (artigo 1096.º, n.º 3), variando a antecedência necessária consoante a iniciativa parta do senhorio (artigo 1097.º, n.º 1) ou do arrendatário (artigo 1098.º, n.º 1). A inovação da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, consistiu na consagração da renovação automática pelo período mínimo de 3 anos, independentemente de duração inicial inferior. Na redacção anterior do preceito, conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, o contrato renovava-se no final do seu termo por períodos sucessivos de igual duração, os quais poderiam ser inferiores a 3 anos (recorde-se que não existia duração mínima do contrato de arrendamento urbano). A renovação automática (de natureza supletiva) pelo período mínimo de 3 anos (período mínimo imperativo de renovação) recupera a regra do RAU de 1990, reiterada no NRAU de 2006. Deve-se notar, contudo, que os prazos supletivos previstos no regime transitório do artigo 26.º/3 NRAU são mais permissivos do que os decorrentes da actual redacção do Código Civil, conferida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro.»

Jéssica Rodrigues Ferreira, in Análise das principais alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, Revista Electrónica de Direito, Fevereiro 2020, n.º 1 (vol. 21), DOI 10.24840/2182-9845_2020-0001_0005, afirma que: «A nova redacção do art. 1096.º suscita várias dúvidas interpretativas, desde logo relacionadas com o alcance da expressão “salvo estipulação em contrário”. Reportar-se-á apenas à possibilidade de as partes afastarem a renovação automática do contrato, ou permitirá também a estipulação de um prazo de renovação diferente do aí previsto? Neste último caso, poderão as partes estipular um prazo inferior a cinco anos? Parece-nos que o legislador pretendeu que as partes fossem livres não apenas de afastar a renovação automática do contrato, mas também que fossem livres de, pretendendo que o contrato se renovasse automaticamente no seu termo, regular os termos em que essa mesma renovação ocorrerá, podendo estipular prazos diferentes - e menores - dos supletivamente fixados pela lei, e não, conforme poderia também interpretar-se da letra do preceito em análise – cuja redacção pouco precisa gera estas dúvidas - um pacote de “pegar ou largar”, em que as partes estariam adstritas a optar entre contratos não renováveis ou, optando por um contrato automaticamente renovável no seu termo, com períodos sucessivos de renovação de duração obrigatoriamente igual à duração do contrato ou de cinco anos se esta for inferior, pois ainda que a ratio subjacente a esta alteração legislativa tenha sido reforçar a estabilidade dos contratos, se o legislador deixou ao critério das partes o mais - optar por renovar ou não o contrato - também se deve entender que lhes permite o menos - optando por renovar o contrato, regular os termos dessa renovação.»

Em nota, esta autora assinala que a sua posição é igualmente defendida por Isabel Rocha, Paulo Estima, in Novo Regime do Arrendamento Urbano – Notas práticas e Jurisprudência, 5.ª edição, Porto Editora, 2019, página 286 e por Pinto Furtado, in Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, 2019, página 579 (para o arrendamento habitacional), onde se lê, a jeito de conclusão, que se pode «validamente estabelecer, ao celebrar-se um contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações de dois, ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender»; e assinala ainda que a posição de Olinda Garcia é igualmente defendida por França Pitão, in Arrendamento Urbano Anotado, 2.ª Edição, Quid Iuris, 2019, página 376.

Na jurisprudência, a segunda posição foi seguida nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 17-03-2022, proc. n.º 1423/20.4T8GMR.G1, e de 10-01-2023, proc. nº 1278/22.4YLPRT.L1-7, e a primeira posição seguida nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 08-04-2021, proc. n.º 795/20.5T8VNF.G1, e de 11-02-2021, proc. n.º 1423/20.4T8GMR.G1, e da Relação de Évora, de 25-01-2023, proc. nº 3934/21.5T8STB.E1, todos in www.dgsi.pt

Também o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão 17-01-2023, proc. 7135/20.1T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt segui essa posição defendendo que «Por força do disposto no artigo 1080.º do Código Civil, são imperativas as normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano. O artigo 1096.º do Código Civil, conforme é entendimento dominante na doutrina, não tem carácter imperativo, pelo que é permitido às partes excluírem a renovação automática. Impõe imperativamente, porém, que, caso seja clausulada a renovação, esta tem como período mínimo uma renovação pelo período de 3 anos. Ou seja, o legislador permite às partes que convencionem um contrato de arrendamento urbano para habitação pelo período de um ou dois anos, não renovável. Mas, caso seja convencionada uma cláusula de renovação automática, terá de obedecer ao disposto neste normativo, ou seja, o contrato sofre uma renovação automática de 3 anos.»

Por fim cabe referir que esta Relação no Acórdão, inédito, de 04-05-2023, proc. n.º 1598/22.YLPRT.P1, relatado pela aqui 2.ª Adjunta e subscrito pelo aqui 1.º Adjunto, decidiu igualmente que «a expressão “salvo estipulação em contrário”, contida no nº 1 do art.º 1096º do CC, deve ser interpretada como reportando-se apenas à possibilidade de as partes afastarem a renovação automática do contrato, e já não a de poderem contratar períodos diferentes de renovação. Assim, não havendo oposição válida e eficaz, os contratos de arrendamento para habitação renovam-se por mínimos de 3 anos, ou por período superior, caso o período de duração do contrato seja superior a 3 anos».

Sendo essa também a nossa posição, não custa reparar que encontra no último Acórdão da Relação de Lisboa a mais valiosa argumentação em defesa da posição contrária. Os argumentos usados são três: i. Se a lei permite que as partes afastem, de todo, a renovação, então também permite que esta tenha uma vigência diferenciada em caso de renovação (argumento a maiori ad minus); ii. A tutela da posição do inquilino e da estabilidade do arrendamento, erigida como um dos propósitos da Lei nº 13/2019 não decorre neste circunspecto, em primeira linha, da nova redacção do nº 1 do artigo 1096º, mas sim do aditado nº 3 ao artigo 1097º; iii. Na lógica da tese referida em I, desde que as partes prevejam a renovação do contrato de arrendamento, este terá, inapelavelmente, uma duração sempre de quatro anos (mínimo imperativo de um ano, acrescendo renovação imperativa por mais três anos) e nesse caso o disposto no nº 3 do artigo 1097º não faria qualquer sentido porquanto os contratos de arrendamento, desde que as partes não afastassem expressamente a sua renovabilidade, teriam sempre uma duração mínima de quatro anos.

Cremos poder contra-argumentar.

O argumento a maiori ad minus não vale aqui porque uma coisa é o arrendatário saber à partida que o contrato não se renova e, portanto, saber antecipadamente de que vai ter necessidade de encontrar nova habitação para o final do prazo estipulado no contrato (i.e., sabe logo quando vai ter essa necessidade) e, outra coisa é ele saber que o contrato se renova mas estar nas mãos do senhorio decidir unilateralmente se a renovação ocorrerá realmente (por efeito da oposição à renovação), caso em que o arrendatário não só não tem a estabilidade de saber com o que conta, como pode, se a renovação for por curto período, encontrar-se perante a necessidade de arranjar nova habitação num curto espaço de tempo, o que pode ser difícil (como presentemente é público).

Sendo assim justifica-se que a lei deixe na disposição das partes acordar a renovação do contratou ou afastá-la, mas também se justifica que tendo havido acordo sobre a renovação a lei limite de algum modo o período de duração da renovação para impedir a instabilidade que advém para o arrendatário e os riscos que ele corre de se encontrar, por força do exercício do direito potestativo do senhorio de oposição à renovação, confrontado com a necessidade de num curto espaço de tempo arranjar nova habitação (e se ele é arrendatário, o normal será que necessite novamente de recorrer a esse mercado para arranjar habitação). O facto de se poder o mais não significa nessas circunstâncias que se possa o menos porque a situação criada não é afinal um menos, pode bem ser um mais de instabilidade.

Todas as normas que se ocupam dos períodos de duração do contrato e/ou das suas renovações, do direito de oposição à renovação, dos prazos para o exercício desse direito e dos prazos em que o contrato se extingue são normas que visam proteger a posição do inquilino e a estabilidade do arrendamento, conforme pretendia a Lei nº 13/2019, recordando-se que não é por acaso que ela é de 2019, momento em que no mercado imobiliário em Portugal se observava já uma preocupante falta de acesso ao comum dos cidadãos, face ao montante que atingiram os valores das rendas e os preços de aquisição. Nessa medida, não é por essa preocupação ter conduzido também à alteração do n.º 3 do artigo 1097.º que a alteração do n.º 1 do artigo 1096.º deixa de visar a mesma finalidade do legislador e de a tornar viável.

É verdade que a soma das duas normas faz com que o n.º 3 do artigo 1097.º do Código Civil seja aparentemente pouco útil, uma vez que se as partes estipularem a renovação do contrato de arrendamento, este terá, inapelavelmente, uma duração sempre de quatro anos (período mínimo inicial imperativo de um ano, mais a renovação imperativa de três anos). Todavia, se bem vimos, o que há aqui é uma falta de utilidade da norma, não uma contradição.

Com efeito, uma coisa é a renovação do prazo de duração, outra coisa é a oposição à renovação pelo senhorio. Aquela desde que esteja prevista no contrato opera de forma automática, excepto se o arrendatário não o desejar, e por isso, no momento da renovação o arrendatário fica a saber até que altura pode contar com aquela habitação, independentemente da vontade do senhorio. Já a oposição à renovação pelo senhorio é uma mera possibilidade que o arrendatário não controla; só quando recebe a comunicação de oposição do senhorio é que o arrendatário fica a saber que terá de arranjar nova habitação, colocando-se o problema do tempo de que ela passa a dispor para o fazer e das consequências pessoais, familiares e profissionais da eventualmente de ele só arranjar nova habitação noutro local e com outro custo.

Nessa medida, a fixação do período pelo qual o contrato se renova e a fixação do momento em que a oposição do senhorio à renovação produz efeitos são aspectos diferenciados e suscitam preocupações distintas, o que justifica que o legislador os tenha abordado em dois momentos separados (ainda que, concordamos, sem a técnica legislativa adequada que exigia a comparação do âmbito das normas para detectar os seus campos de sobreposição e os eliminar).

Logo, mesmo reconhecendo aquela falta de utilidade do n.º 3 do artigo 1097.º, não vemos que isso seja suficiente para recusar aquilo que o legislador consagrou no n.º 1 do artigo 1096.º: a existência de um período mínimo imperativo de (nova) duração do contrato no caso de renovação, desde que as partes tenham acordado essa renovação. Da mesma forma que não vemos como possível interpretar o n.º 3 do artigo 1097.º à contrário sensu e, a partir dessa interpretação, concluir que aquela imperatividade só vale para a primeira renovação ou cessa quando tiverem decorrido mais de três anos sobre a celebração do contrato (era um regime legal possível, mas não encontra consagração na letra da lei).

Em suma, e respondendo agora à questão colocada pela recorrente: não, a disposição contratual não prevalece sobre o disposto no n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil na redacção da Lei n.º 13/2019 e o contrato em apreço passou com esta alteração a estar sujeito a renovação pelo período de três anos. Logo, a oposição à renovação comunicada pela senhoria não é válida para a data para que foi comunicada (e a nova data em que isso é possível ainda não foi alcançada).

Improcede mais esta questão.

E] da extinção do contrato por aceitação tácita da não renovação:

A recorrente defende que a arrendatária aceitou tacitamente a não renovação do contrato.

Não cremos que essa interpretação seja aceitável. Estando alegado e provado que ela continua a ocupar o arrendado, mesmo não pagando renda, e afirmando a recorrente que ela tanto se mostra interessada nessa ocupação que inclusivamente se propôs comprar o arrendado, não vemos que se possa considerar que a actuação da ré demonstra concludentemente que ela aceitou a não renovação.

Acresce que a falta de contestação (relacionada com dificuldades na obtenção de apoio judiciário) só produz consequências intra-processuais, ou seja, implica a confissão dos factos, não das consequências jurídicas que a autora lhes atribui.

Improcede, sem mais, esta questão.

F] do pagamento das rendas:

Por fim, as conclusões das alegações de recurso colocam a questão de saber se estando provado o não pagamento de três rendas, a ré deveria e deve ser condenada a pagar o respectivo montante.

Esta questão obriga a prestar atenção ao que está pedido na acção. No artigo 25.º da petição inicial a autora refere que tem «direito a receber uma prestação pecuniária devida pela fruição e uso do locado, que nos termos do disposto no artigo 1045/2 do Código Civil, é devida a titulo de compensação … que se traduz no pagamento da prestação pecuniária em dobro até entrega do locado».

Em conformidade com essa alegação, a autora formulou o seguinte pedido: «ser a ré condenada no pagamento de uma indemnização à Autora, nos termos do disposto no artigo 1045/ 1 e 2 do Código Civil, que deve ser calculada desde Abril de 2022, até entrega do locado, sendo que à data da instauração da presente acção, se computa em 1650,00

É, pois, certo que a autora pediu a condenação a pagar-lhe o valor da renda, agora em dobro, mas na qualidade de indemnização pelo atraso na restituição do arrendado após a cessação do contrato.

Nos termos do artigo 1045.º do Código Civil, se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, ou o dobro desta, caso se constitua em mora.

Portanto, tendo a autora pedido o pagamento do montante das rendas em dívida, a título de indemnização, no pressuposto da extinção do contrato, apurando-se que o contrato não se extinguiu, a ré pode ser condenada a pagar o montante da renda em singelo a título de verdadeira prestação contratual?

A resposta é, quer-nos parecer, positiva.

Convocamos para o efeito o que acima se expôs a propósito da convolação do pedido. Aqui sim, o efeito prático-jurídico do pedido formulado pode ser concretizado, sem se exceder o pedido, não pela via da indemnização de natureza legal, mas pela via do dever contratual emergente do contrato.

Com isso não se excede a causa de pedir porque a factualidade jurídica concreta já vinha alegada na petição inicial e serve de fundamento a este pedido, nem se condena em coisa diferente do pedido desde que se interprete este (ou convole, tanto faz) não como um pedido estrito de indemnização, mas como um pedido de pagamento de uma determinada quantia correspondente à contrapartida devida pelo uso de coisa alheia, contrapartida que se mantém na pendência do contrato e, uma vez este extinto, enquanto a coisa não for devolvida ao seu proprietário.

Nesta parte, portanto, procede o recurso, sendo certo que o valor que está em causa é o valor da renda em singelo e, naturalmente, apenas compreende as rendas vencidas até à instauração da acção porque para as subsequentes está fixada uma data de vencimento que naquela data não estava decorrida, não sendo por isso, exigíveis nessa data, e a obrigação é duradoura, não é fraccionada. Acresce que não foram pedidos juros de mora, pelo que a ré não pode ser condenada a pagá-los (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça -AUJ- n.º 9/2015).

V. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, condenam a ré a pagar à autora o valor das rendas nos meses de Abril, Maio e Junho de 2022, no total de €825,00.

Custas do recurso pela recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento.


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Porto, 15 de Junho de 2023.

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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 754)
Paulo Duarte Mesquita Teixeira
Isabel Silva


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