Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1143/21.2T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
DESPACHO SANEADOR
FACTOS A CONSIDERAR ASSENTES
PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO DO RECORRENTE
Nº do Documento: RP202304171143/21.2T8PNF.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Não atendendo o tribunal de 1.ª instância ao regime que resulta da alínea c) do n.º 1 do artigo 131.º do CPT, incluindo nos temas de prova sujeitos a julgamento, em relação a facto que deveria ter sido considerado assente, em violação do que também resulta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, impõe-se ao tribunal de recurso ter tal facto como provada e eliminar a resposta que veio a ser dada.
II - O Tribunal, na prolação da decisão de fixação da incapacidade, não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, pois que, ao estar em causa a natureza e força probatória do laudo pericial enquanto meio probatório – a prova pericial tem por objeto, como resulta do artigo 388.º do Código Civil (CC) a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quando os factos relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial –, aos peritos médicos, por disporem para o efeito dos necessários conhecimentos médico-científicos, cabe-lhes a pronúncia sobre quais as sequelas que resultaram das lesões provocadas pelo acidente de trabalho, identificando-as e enquadrando-as nas regras estabelecidas na TNI, para depois concluírem pela atribuição ou não de uma determinada incapacidade.
III - Realizadas essas perícias, cabe então ao juiz proferir decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade, sendo que, estando em causa um meio de prova pericial, as considerações e as conclusões do exame, mesmo quando alcançadas por unanimidade, não vinculando é certo o juiz, ao estarem também sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova (artigos 389.º do CC e 607.º do CPC), no entanto, na decisão a proferir, deve a eventual divergência ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária”
IV - Impende sobre o recorrente, em sede de recurso, o ónus de invocar, também no domínio da aplicação da lei, os argumentos (jurídicos) que na sua ótica justificam o afastamento dos fundamentos constantes da decisão recorrida para sustentar o modo como interpretou e/ou aplicou a lei, de tal modo que o tribunal superior os possa apreciar, no sentido de lhes dar ou não sustentação – versando o recurso sobre matéria de direito, deve o Recorrente, para além de indicar nas conclusões as normas jurídicas violadas, referir também o sentido que, no seu entender, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (artigo 639.º, n.º 2, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação / processo n.º 1143/21.2T8PNF.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 2

Autora: AA
Ré: A..., S.A.
______
Nélson Fernandes (relator)
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão
_______



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
1. No seguimento de participação apresentada por AA, em que invocou que foi vítima de um acidente de trabalho, realizada na fase conciliatória a tentativa de conciliação, do respetivo auto fez-se constar nomeadamente o seguinte:
«(…) Sinistrado: AA
Entidade responsável: A..., S.A. e outro(s)....
PRESENTES
Sinistrado: AA, (…)
Entidade Responsável: A..., S.A. (…)
Legal Representante da entidade Responsável: BB (…)
Iniciada a diligencia todos os presentes foram notificados do teor do exame médico que antecede, que disseram ficar cientes os quais a instancias daquele Magistrado, declararam: -----
O SINISTRADO: -Que no dia 02 de Julho de 2020, pelas 16:00 horas, em Amarante, foi vítima de um acidente de trabalho, quando exercia as funções de empregada de limpeza, sofreu uma queda, de que resultou uma lesão ao nível do ombro esquerdo.
Auferia a retribuição anual de €635,00 x 14 + €104,94 x 11 (€10.044,34), trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de B..., Crl, Endereço: Rua ..., ... Amarante, cuja responsabilidade se encontrava integralmente transferida para a Seguradora; que do acidente resultaram as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 27 e seguintes, do qual resultou o coeficiente de desvalorização de 3,0000%; que foi dada alta definitiva em 10 de Novembro de 2020, que não se encontra pago de todas as indemnizações e demais despesas acessórias que lhe eram devidas até à data da alta; que reclama a quantia de €24,00 de despesas de deslocações para comparecer neste Tribunal NÃO CONCORDANDO COM O GRAU DE DESVALORIZAÇÃO QUE LHE FOI ATRIBUIDO PELO PERITO MÉDICO DO TRIBUNAL a que corresponderia o capital de remição da pensão calculada com base na retribuição anual x 70% x IPP de 3%, no valor de €210,93, nos termos do disposto no artº 48º, nº 3, al. c) da Lei 98/2009, de 04 de Setembro e devida a partir de 11 de Novembro de 2020. -----
Mais reclama a quantia de €477,59 de diferenças de incapacidades temporárias ainda não pagas. ------
Que, para pagamento do capital de remição, desde já indica o IBAN (…)
Pelo legal representante da Companhia de Seguros foi dito:
Aceita a transferência salarial de €635,00 x 14 + €104,94 x 11. -----
Aceita a existência de um acidente como de trabalho. ----
Aceita que à sinistrada foi dada alta em 17-07-2020, recaiu em 16-10-2020 voltando a ser atribuída alta em 10-11-2020, como curada sem qualquer grau de desvalorização. ---
Aceita que a sinistrada se encontra curada sem qualquer grau de desvalorização com pré existência (alterações degenerativas incipientes acrómio-claviculares). -----
Face ao exposto nada aceita pagar de pensão e/ou indemnização à sinistrada, pelo que não se concilia. -----
PELO(A) MAGISTRADO(A) DO MINISTÉRIO PÚBLICO, FOI DITO:
- Dada a posição assumida pelas partes, dava-as por não conciliadas e ordenava que fosse extraída certidão de fls. 2 a 7, 13 a 16 e 27 A 29 e deste auto, a fim de instruir PA com vista à instauração de acção de acidente de trabalho. -------
Do despacho logo os presentes foram notificados, declarando ficar bem cientes (…)”.

2. Apresentou a Sinistrada petição inicial, dando início à fase contenciosa, contra A..., S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe: 1) O capital de remição da pensão anual de €210,93, num total de €2429,49; 2) A quantia de €477,59, a título de diferenças de indemnização pelo período de incapacidade temporária sofrido; 3) A quantia de €24,00 gasta com deslocações obrigatórias a Tribunal e ao Gabinete médico-legal; 4) Juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias referidas e até integral pagamento.
Para tanto, em síntese, alegou: ter sofrido um acidente no dia 2 de Julho de 2020, em Amarante, quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização do B..., CRL, exercendo as funções de empregada de limpeza, mediante a retribuição anual ilíquida de €635,00 x 14 + €104,94 x 11, num total anula de €10.044,34, resultando para si daquele acidente lesões, que lhe determinam, como consequência direta e necessária, uma incapacidade parcial permanente de 3%, bem como períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial; na data do sinistro, a sua entidade empregadora havia transferido para a Ré a sua responsabilidade por acidentes de trabalho, através de contrato de seguro validamente celebrado, titulado pela apólice junta aos autos, pela totalidade da retribuição por ela auferida.

2.1. Devidamente citada, a Ré seguradora contestou, alegando, mais uma vez em síntese, que as sequelas apresentadas pela Autora não são consequência do acidente ocorrido, mas antes decorrentes de doença natural alheia ao sinistro, para concluir, em consequência, pela improcedência da presente ação, por não provada, com a sua absolvição de todos os pedidos contra si apresentados.

2.2. Foi proferido despacho saneador, após o que se fez constar o seguinte:
“Nos termos do disposto no artigo 131º, nº1, alínea c) do Código de Processo do Trabalho consigna-se que, por acordo das partes expresso nos articulados, resultam os seguintes:
I - FACTOS ASSENTES
A) No dia 2 de Julho de 2020, cerca das 16.00 horas, a Autora sofreu um acidente em Amarante.
B) Nessa ocasião a Autora exercia as funções de empregada de limpeza, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade empregadora B..., CRL.
C) Auferia a retribuição anual ilíquida de €635,00 x 14 meses + €104,94 x 11 (total anual de €10.044,34).
D) À data referida em A) encontrava-se transferida da entidade empregadora da Autora para a Ré seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., com base na totalidade da retribuição auferida pela Autora, ou seja, €635,00 x 14 meses + €104,94 x 11 (total anual de €10.044,34).
E) A Ré pagou à Autora a título de indemnização por incapacidades temporárias a quantia de €212,03.
F) A Autora nasceu no dia 11 de Novembro de 1961.
*
Nos termos do disposto no artigo 596º, nº1, do Código de Processo Civil ex vi artigo 131º, nº2, do Código de Processo do Trabalho, identifica-se o objecto do litígio (as questões jurídicas a apreciar e decidir na sentença) e enunciam-se os temas da prova (questões de facto a abordar na audiência de julgamento) nos seguintes termos:
II - OBJECTO DO LITÍGIO
1) Caracterização ou não do evento como «acidente de trabalho»
2) A proceder tal caracterização determinação do sujeito passivo ou dos sujeitos passivos da obrigação indemnizatória.
3) Fixação do quantum indemnizatório devido à Autora.
III - OS TEMAS DA PROVA
1) Apurar em que circunstância ocorreu o acidente sofrido pela Autora no dia 2 de Julho de 2020 e, em concreto, se aquele ocorreu quando a Autora, ao proceder a limpezas, sofreu uma queda
2) Se a Autora sofreu alguma lesão em consequência do acidente
3) Se a Autora ficou a padecer de algum grau de incapacidade permanente em consequência das lesões sofridas no acidente e na afirmativa qual
4) Se para a Autora resultaram alguns períodos de incapacidade temporária em consequência das lesões sofridas no acidente e na afirmativa quais
5) Determinar a data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora no acidente
6) Se a Autora suportou despesas em transportes com deslocações obrigatórias a este Tribunal e ao Gabinete médico-legal e, na afirmativa, qual o seu montante
7) Se as sequelas que a Autora apresenta no ombro esquerdo não são contemporâneas ou consequentes ao acidente nem foram agravadas por este, sendo antes de origem degenerativa
*
Dado serem também controvertidos o grau de incapacidade que adveio à Autora, os períodos de incapacidade temporária e a data da alta, a fixação dessas questões correrá por apenso, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 131º, n.º 1, al. e) e 132º, nº1, do Cód. Proc. Trab. ordeno o desdobramento dos autos. (…)”

2.3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi após proferida sentença, de cujo dispositivo consta o seguinte:
“Decisão:
Nesta conformidade:
I) Julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência condeno a Ré A..., S.A. a pagar à Autora AA a quantia de €477,59 (quatrocentos e setenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 10 de Novembro de 2020 até efectivo e integral pagamento
II. Absolvo a Ré dos demais pedidos contra ela formulados na presente acção pela Autora.
Diligencie-se pelo pagamento dos exames médico-legais realizados, sendo os honorários devidos ao Sr. Perito do IML e ao nomeado pelo Tribunal fixados em conformidade com a tabela legal.
Valor da acção: €477,59.
Custas pela Companhia Seguradora.
Registe e notifique.”

2.3.1. Dizendo-se inconformada, apresentou a Ré requerimento de interposição de recurso, formulando no final das alegações as conclusões que se seguem (transcrição):
“1ª) As declarações de parte não têm, por si só, a força probatória para que o Tribunal dê como provado um facto controvertido cujo ónus probatório recaia sobre a parte declarante, pela evidente razão que, essa versão da parte já está espelhada no articulado da causa;
2ª) A Mmª Juiz a quo, como resulta da sentença, estribou-se exclusivamente nas declarações de parte da A. para considerar provados os pontos de facto 7 e 8, concretamente relativos ao alegado evento lesional e a uma lesão de contusão do ombro, sem que tenha sido produzida qualquer outra prova;
3ª) Além do mais, do depoimento da A. em declarações de parte, nas passagens de minutos 1:26 a 2:44 de minutos 3:23 a 3:32, de minutos 6:19 a 6:51 e de minutos 8:37 a 9:31, resultou tudo menos um depoimento credível e convincente, desde logo, porque descreve o evento de forma confusa e sem aludir a qualquer embate com o ombro ao cair para poder sofrer uma contusão;
4ª) Por outro lado, desse depoimento segundo a A. existiriam colegas de trabalho no local e que poderiam testemunhar não se descortinando como, estando onerada com a prova dos factos em causa, não quis arrolas as mesmas como testemunhas que confirmassem a sua versão;
5ª) E nem mesmos a prova pericial ajuda à comprovação de um evento lesional quando responde negativamente à existência de elementos objectivos de lesão, limitando-se à admissibilidade de uma contusão que não tem suporte, nem nos elementos clínicos, nem na própria descrição do evento pela
6ª) Daí que, a falta de prova para além das declarações de parte, e os concretos meios de prova documental de fls. 5 a 7, 15 a 21 conjugados com o resultado do auto de exame por junta médica de ortopedia fls. 6 e esclarecimentos de fls. 11, do apenso A), bem como as passagens de minutos 1:26 a 2:44 e minutos 6:19 a 6:51, e de minutos 8:37 a 10:42 das declarações de parte da Sinistrada [1] impõem que os concretos pontos de facto 7 e 8 dados como provados sejam julgados não provados;
7ª) Consequentemente, e com base nos mesmos meios de prova, não se provando o evento com a contusão dele decorrente, devem ainda ser eliminados dos factos provados os pontos 9, 10 e, 11, sendo aditados ao elenco dos factos dados como não provados, com base nos mesmos meios de prova;
8ª) Consequentemente, e com base nos mesmos meios de prova, não se provando o evento com a contusão dele decorrente, devem ainda ser eliminados dos factos provados os pontos 9, 10 e, 11, sendo aditados ao elenco dos factos dados como não provados, com base nos mesmos meios de prova;
9ª) Com a alteração que se espera da decisão quanto à matéria de facto, resulta não estarem provados os elementos de facto essenciais para que se pudesse considerar ter ocorrido um acidente de trabalho, e bem assim, que dele resultou uma lesão de contusão do ombro que nenhum médico ou exame revelou;
10ª) Não estando provados o evento e a lesão dele resultante, não se pode considerar pela verificação de um acidente de trabalho e da consequente obrigação da recorrente de reparar as suas consequências;
11ª) Violou a sentença recorrida, o disposto nos o normativo constante dos artigos 10.º da LAT , artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e artigos 5.º, 6.º, 410.º, 411.º, 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPCiv.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDO INTEGRAL PROVIMENTO À PRESENTE APELAÇÃO, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA, ALTERANDO AS DECISÕES QUANTO À MATÉRIA DE FACTO NOS PONTOS INDICADOS E, CONSEQUENTEMENTE, ABSOLVENDO A RÉ DOS PEDIDOS CONTRA ELA FORMULADOS, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”

2.3.2. Contra-alegou a Autora, patrocinada pelo Ministério Público, formulando, a afinal, as conclusões seguintes:
“1. Na tentativa de conciliação, realizada na fase conciliatória dos autos, a legal representante da Ré declarou que “Aceita a transferência salarial de €635,00 x 14 + €104,94 x 11. Aceita a existência de um acidente como de trabalho. Aceita que à sinistrada foi dada alta em 17-07-2020, recaiu em 16-10-2020 voltando a ser atribuída alta em 10-11-2020, como curada sem qualquer grau de desvalorização. Aceita que a sinistrada se encontra curada sem qualquer grau de desvalorização com pré-existência (alterações degenerativas incipientes acrómio-claviculares). Face ao exposto nada aceita pagar de pensão e/ou indemnização à sinistrada, pelo que não se concilia.”, o que assume relevância face ao disposto no art. 112º, nº1, do Código do Trabalho;
2. Desta forma, as questões a discutir, na fase contenciosa dos autos, prendiam-se apenas com a existência ou não de sequelas de carater permanente para a Autora e os períodos de incapacidade temporária sofridos, motivo pelo qual a Autora não arrolou prova testemunhal da existência do acidente de trabalho ocorrido no dia 2 de julho de 2020, quando esta se encontrava a proceder a limpeza de uma borda do parque de campismo da entidade empregadora B..., CRL.
3. Contudo, a Ré/recorrente contestou o pedido realizado pela Autora, impugnado a verificação de um acidente e a sua consideração como de trabalho, para além de contestar as consequências médico-legais de tal acidente, nos termos que resultavam do exame médico realizado na fase conciliatória dos autos;
4. Realizada a audiência de julgamento, a Autora prestou declarações no sentido de afirmar a verificação do acidente, no local e tempo de trabalho, nos moldes descritos nos autos, em concordância com as lesões registadas pelos serviços clínicos e o tratamento médico efetuado, o que fez de forma objetiva, credível, clara e coerente, descrevendo o acidente nos exatos termos que o Tribunal deu como provados;
5. A Ré/recorrente não aditou qualquer meio de prova que contraditasse, sequer colocasse em dúvida, a verificação dos factos ocorridos a 2 de julho de 2020, no tempo e local de trabalho da Autora;
6. Quanto ao demais pretendido pela recorrente, apenas se afirma que não está em causa a falta de fundamentação da perícia realizada nos autos, por junta médica da especialidade de ortopedia, mas apenas a discordância das suas conclusões, que consentem apenas o reconhecimento que a sinistrada sofreu “um agravamento temporário da sintomatologia dolorosa e regresso ao estado anterior ao evento participado”;
7. Assim, tendo os peritos médicos afirmado o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão sofrida pela sinistrada, ali descrita como tendo sido contusão do ombro esquerdo, e com atribuição de um período de incapacidade temporária absoluta desde 3 de Julho de 2020 até ao dia 14 de Julho de 2020 e de um período de incapacidade temporária parcial de 20% desde 15 de Julho de 2020 até ao dia 10 de Novembro de 2020, em contexto de agravamento temporário da sintomatologia dolorosa decorrente do sinistro, bem andou o Tribunal recorrido ao condenar a recorrente A..., S.A. a pagar à Autora a quantia de €477,59 a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
Pelo exposto, entendemos que a douta decisão recorrida deve ser mantida, nos termos enunciados, e assim se fazendo inteira justiça.”

2.3.3. O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

3. Subidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer por o Ministério Público patrocinar a Autora.
*
Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir:

II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC – aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas questões que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) Impugnação da matéria de facto; (2) O Direito do caso: saber se a sentença recorrida aplicou adequadamente a lei e o direito sobre saber se estamos perante um acidente de trabalho.
*
III - Fundamentação
A) Fundamentação de facto
Da sentença resulta ter sido considerada provada a factualidade seguinte (transcrição):
“1) No dia 2 de Julho de 2020, cerca das 16.00 horas, a Autora sofreu um acidente em Amarante (alínea A) dos factos assentes).
2) Nessa ocasião, a Autora exercia as funções de empregada de limpeza, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade empregadora B..., CRL (alínea B) dos factos assentes).
3) Auferia a retribuição anual ilíquida de €635,00 x 14 meses + €104,94 x 11 (total anual de €10.044,34) (alínea C) dos factos assentes).
4) À data referida em 1) encontrava-se transferida da entidade empregadora da Autora para a Ré seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., com base na totalidade da retribuição auferida pela Autora, ou seja, €635,00 x 14 meses + €104,94 x 11 (total anual de €10.044,34) (alínea D) dos factos assentes).
5) A Ré pagou à Autora a título de indemnização por incapacidades temporárias a quantia de €212,03 (alínea E) dos factos assentes).
6) A Autora nasceu no dia 11 de Novembro de 1961 (alínea F) dos factos assentes).
7) O acidente ocorreu quando a Autora, ao proceder à limpeza de uma borda no parque de campismo de Amarante, escorregou, e a fim de evitar a queda agarrou-se com o braço esquerdo a um cabo de ligar a eletricidade às roulottes, mas não aguentou e acabou por cair por uma rampa abaixo cheia de mato (resposta ao ponto 1) dos temas da prova).
8) Em consequência do acidente a Autora sofreu como lesão contusão do ombro esquerdo (resposta ao ponto 2) dos temas da prova).
9) Da lesão sofrida no acidente – contusão do ombro esquerdo – a Autora encontra-se curada, sem sequelas, não padecendo de qualquer grau de incapacidade permanente (resposta ao ponto 3) dos temas da prova).
10) Em consequência da lesão sofrida no acidente – contusão do ombro esquerdo – a Autora sofreu um período de incapacidade temporária absoluta desde 3 de Julho de 2020 até ao dia 14 de Julho de 2020 e um período de incapacidade temporária parcial de 20% desde 15 de Julho de 2020 até ao dia 10 de Novembro de 2020 (resposta ao ponto 4) dos temas da prova).
11) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora no acidente ocorreu no dia 10 de Novembro de 2020 (resposta ao ponto 5) dos temas da prova).
12) À data de 2 de Julho de 2020 a Autora padecia no ombro esquerdo de alterações degenerativas, sem relação com o acidente (resposta ao ponto 7) dos temas da prova).”
*
B) - Discussão
1. Impugnação da matéria de facto
Dirigindo a Recorrente o recurso também à matéria de facto, importa dizer, desde já, porque prévio à apreciação, que consideramos terem sido suficientemente cumpridos os ónus legais de impugnação.
Começando por dirigir o recurso aos pontos 7.º e 8.º da factualidade provada, defendendo que devem ser considerados não provados – indicando a prova em que sustenta a alteração –, sustenta de seguida a Recorrente que, “consequentemente, e com base nos mesmos meios de prova, não se provando o evento com a contusão dele decorrente, devem ainda ser eliminados dos factos provados os pontos 9, 10 e, 11, sendo aditados ao elenco dos factos dados como não provados”.
Nas contra-alegações, começa a Apelada por defender que a Recorrente aceitou na tentativa de conciliação a existência do acidente de trabalho, “pelo que as questões a discutir, na fase contenciosa dos autos, prendiam-se apenas com a existência ou não de sequelas de carater permanente para a Autora e os períodos de incapacidade temporária sofridos”, após o que, pronunciando-se sobre o que resultaria da prova, sustenta também a adequação do julgado.
Cumprindo-nos apreciar, importa que nos debrucemos sobre o primeiro dos argumentos avançados nas contra-alegações, pois que em caso de procedência acaba por se assumir como prejudicial à apreciação do demais.
Para o efeito começaremos por introduzir algumas notas explicativas sobre o processo especial por acidentes de trabalho, nos termos que se seguem.
Compreendendo o processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos artigos 99.º a 150.º do CPT, duas fases distintas, a primeira delas, obrigatória, denominada conciliatória[2], decorre sob a direção do Ministério Público, visando-se na mesma, como aliás a sua própria denominação o indica, alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho através de uma composição amigável – muito embora sujeita necessariamente a regras legais imperativas, pela natureza indisponível dos direitos, atendendo aos interesses de ordem pública que estão envolvidos[3].
Verificando da importância, face à sua finalidade, da tentativa de conciliação, constata-se que essa tanto pode vir a determinar o termo do processo, assim em caso de acordo quanto à discussão do acidente de trabalho e ao reconhecimento dos direitos para a sua reparação – pois que, homologado esse acordo, o processo conclui-se com a efetivação dos direitos aí reconhecidos –, como pode, diversamente, na falta desse acordo, no todo ou em parte, prosseguir para a fase contenciosa, razão pela qual, face ao regime assim estabelecido, o conteúdo do respetivo auto acaba por assumir importância determinante.
Por essa razão se justifica a necessidade sentida pelo legislador de especificar os requisitos a que esse auto deve obedecer, num ou noutro dos casos, como resulta dos artigos 111.º e 112.º do CPT.
Limitada no caso a nossa análise ao regime aplicável nos casos em que não se logre obter o acordo na fase conciliatória, em resposta, dispõe-se no artigo 112.º do CPT que, frustrando-se a conciliação, no respetivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, sendo que, porém, aí não se prevendo um dever de consignação dos factos que fundamentam o desacordo quando esse resultar da posição da entidade a quem é imputada a responsabilidade[4], no entanto, quanto à delimitação que os beneficiários devem fazer no ato de tentativa de conciliação das questões que pretendam suscitar, a questão assume-se como distinta, pois que a lei processual laboral impõe aos intervenientes no processo especial de acidentes de trabalho um especial dever de, aí, se pronunciarem, caso estejam em condições de o fazer, sobre todas as questões antes mencionadas, pelo que, em presença do acordo que esteja a ser proposto pelo Ministério Público, devem tomar posição acerca do que lhes é proposto – factos e direitos daí emergentes (sendo que, caso se recusem a tomar posição, estando já habilitado a fazê-lo, são a final condenados como litigantes de má-fé (artigo 112º, nº 2 do CPT).
Ainda nos casos de falta de acordo, avançando na análise, a respeito da fase contenciosa, dispondo-se no n.º 1 do artigo 117.º que essa tem por base de acordo com a alínea a) a petição inicial (em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos) ou de acordo com a alínea b) o requerimento a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º (do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho), no que diz respeito à petição inicial, única que importa no caso, estipula depois o n.º 1 do artigo 126.º que “no processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso”, sendo que, agora em face do artigo 131.º, sob a epígrafe “despacho saneador”, resulta do seu n.º 1, alínea c), que são considerados “assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”. Em face do regime que resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do referido artigo 112.º, importa porém salientar que os direitos reclamados e sobre os quais terá de existir pronúncia das partes no sentido da sua aceitação ou não deverão assentar em factos previamente expostos e consignados no auto[5].
Importa ainda esclarecer, sabendo-se que a resposta dada pela jurisprudência nem sempre tem sido coincidente[6], que, não obstante dizer-se frequentemente que o auto de tentativa de conciliação delimita o objeto do processo, relativamente às questões em apreciação, no entanto, em face desde logo da atual redação do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT– no saneador consideram-se assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação –, como aliás já o referimos anteriormente, quer o acordo como o desacordo verificado na tentativa de conciliação deve incidir ou versar sobre factos, sendo que a questão de saber se esses factos, num ou noutro caso, deverão integrar / concretizar ou não o evento como acidente de trabalho é já um problema de qualificação jurídica, que apenas ao julgador compete resolver – conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são atividades que transcendem a vontade das partes. Daí que, por essa razão, no que também importa para o caso que se decide, o que deve constar do auto não é propriamente uma mera manifestação de acordo ou desacordo das partes acerca da existência e caracterização do acidente ou acerca do nexo de causalidade, por se tratar de conceitos jurídicos, e sim, diversamente, o respetivo acordo ou desacordo acerca dos elementos de facto que definem e caracterizam o acidente e o nexo causal.
Neste contexto, sem esquecermos o regime que antes enunciámos, importa então verificar se ocorreu ou não aceitação pela Ré / aqui recorrente na tentativa de conciliação da existência do evento enquanto acidente de trabalho, visto o que consta do auto de não conciliação, desse resulta expressamente, por um lado, que a Sinistrada alegou “que no dia 02 de Julho de 2020, pelas 16:00 horas, em Amarante, foi vítima de um acidente de trabalho, quando exercia as funções de empregada de limpeza, sofreu uma queda, de que resultou uma lesão ao nível do ombro esquerdo”, e, por outro lado, que pelo legal representante da Companhia de Seguros foi dito que “aceita a existência de um acidente como de trabalho”, esta declaração, porque feita no seguimento da invocação antes feita pela Sinistrada em que mencionara o dia e hora em que teria ocorrido o acidente, que exercia as funções de empregada de limpeza e que sofreu uma queda, de que resultou uma lesão ao nível do ombro esquerdo, pode e deve ser vista como de aceitação desses factos, nos termos e para os efeitos de aplicação do regime estabelecido na antes citada alínea c) do n.º 1 do artigo 131.º do CPT, ou seja, diversamente do que o Tribunal a quo considerou aquando do saneamento dos autos, deveria ter sido levada à factualidade provada e, em conformidade, para além do que se fez constar da alínea A) dos factos assentes em cumprimento desse normativo (assim que “no dia 2 de Julho de 2020, cerca das 16.00 horas, a Autora sofreu um acidente em Amarante”), também, pois que foi claramente objeto de acordo, independentemente da posição que tenha assumido a Ré na contestação, que a Autora sofreu uma queda, e, por consequência, tratando-se de facto assente por acordo, não deveria ter sido incluído nos temas de prova tudo o que se fez constar do seu ponto 1.º (“Apurar em que circunstância ocorreu o acidente sofrido pela Autora no dia 2 de Julho de 2020 e, em concreto, se aquele ocorreu quando a Autora, ao proceder a limpezas, sofreu uma queda”).
Por decorrência do exposto, altera-se oficiosamente o ponto 1.º da factualidade provada, que passa a ter a redação seguinte: “No dia 02 de julho de 2020, pelas 16:00 horas, em Amarante, a Autora, quando exercia as funções de empregada de limpeza, foi vítima de um acidente, que consistiu numa queda”.
Importando então agora verificar das consequências que decorrem do que antes se afirmou, havendo ainda que ter presente que, resultando do n.º 4 do artigo 607.º do CPC, no que aqui importa, que “o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo”, resulta depois do seu n.º 5, que “a livre apreciação não abrange os factos (…) que estejam plenamente provados (…) quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes, do que decorre que, tendo no caso havido instrução e depois pronúncia sobre facto já assente, que esta pronúncia não pode / deve ser considerada.
Do exposto resulta, em conformidade, que se impõe que eliminemos, mais uma vez oficiosamente, o que decidimos, tudo o que se fez constar do ponto 7.º da factualidade provada.
Por último, precisamente em face do que antes se afirmou, importa salientar que o presente recurso, dirigido é certo ao ponto agora eliminado, improcede, porém, na parte em que pudesse contender com o que, constando desse ponto eliminado, passou a constar, nos termos também decididos antes, do ponto 1.º da factualidade provada, precisamente porque, nesta parte, se trata de facto assente por aplicação do regime estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 131.º do CPT.

Vejamos agora, então, do demais que é objeto de impugnação em sede de recurso no âmbito da matéria de facto.

Ponto 8.º da factualidade provada
Este ponto tem a redação seguinte: “8) Em consequência do acidente a Autora sofreu como lesão contusão do ombro esquerdo (resposta ao ponto 2) dos temas da prova)”.
Desde logo, valendo as razões e regime que antes afirmámos sobre o deverem ser tidos como assentes os factos sobre os quais tenha havido acordo na tentativa de conciliação, afigurar-se-nos ser esse também de aplicar quanto ao ponto agora analisado, na consideração de que, em face da posição das partes que resulta do auto de não conciliação, não se pode afirmar que as mesmas tenham impugnado o facto em causa, ou seja, que em consequência do acidente a Autora sofreu como lesão contusão do ombro esquerdo.
Na verdade, quanto à Autora, fazendo a mesma expressamente alusão ao que resultada da perícia médica singular realizada antes nos autos, assim expressamente que “do acidente resultaram as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 27 e seguintes, do qual resultou o coeficiente de desvalorização de 3,0000%”, apenas manifesta divergência sobre o grau de desvalorização que lhe naquele foi atribuído pelo perito médico, afirmando que com esse não concordava, sendo que, por sua vez, no que diz respeito à posição assumida então de seguida pelo legal representante da Companhia de Seguros, se refere, no que aqui importa, que “aceita que à sinistrada foi dada alta em 17-07-2020, recaiu em 16-10-2020 voltando a ser atribuída alta em 10-11-2020, como curada sem qualquer grau de desvalorização”, ou seja, referindo apenas, e só, que à sinistrada foi dada alta em determinada data, que teria existido recaída e nova alta em data que indica mais tarde, está subjacente / implícito que estaria a aceitar a ocorrência das lesões, assim as que foram mencionadas no exame médico.
Não obstante o que se referiu anteriormente, sempre se esclarecerá que, mesmo que desse modo não se pudesse considerar – por estar em causa um juízo implícito –, a verdade é que não encontraríamos razões, na consideração da prova que foi atendida pelo Tribunal de 1.ª instância e da que foi expressamente indicada pela Recorrente[7], para afastarmos a convicção a que se chegou em 1.ª instância, que, como consta da motivação que se inseria na sentença, foi fundada do modo seguinte: “No que respeita aos factos constantes dos pontos 8), 9), 10), 11) e 12) foram essenciais os documentos juntos a fls. 5 a 7, 15 a 21 conjugados com o resultado do auto de exame por junta médica de ortopedia fls. 6 e esclarecimentos de fls. 11, do apenso A), no âmbito da qual os Srs. Peritos médicos, por unanimidade, afirmaram o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão sofrida pela sinistrada, ali descrita como tendo sido contusão do ombro esquerdo. Mais concluíram, por unanimidade, que das lesões sofridas no acidente a Autora encontra-se curada, sem sequelas, tendo apenas resultado para a mesma um agravamento temporário de sintomatologia dolorosa, justificativo da atribuição de um período de incapacidade temporária absoluta desde 3 de Julho de 2020 até ao dia 14 de Julho de 2020 e de um período de incapacidade temporária parcial de 20% desde 15 de Julho de 2020 até ao dia 10 de Novembro de 2020. Mais consideraram os Srs. Peritos que à data de 2 de Julho de 2020 a Autora já padecia no ombro esquerdo de alterações degenerativas, sem relação com o acidente, mas tal conclusão não afasta o entendimento ali também plasmado de um agravamento temporário da sintomatologia dolorosa decorrente do sinistro. Não tendo este Tribunal elementos que lhe permitam sustentar um entendimento diferente do subscrito por unanimidade pelos Srs. Peritos Médicos que subscreveram a junta médica da especialidade de ortopedia realizada no âmbito do apenso A) e considerando devidamente fundamentada essa posição unânime, considerou este Tribunal ser de aderir àquele entendimento. Por isso, deu como provados os factos acima referidos.”



Desde logo, sendo evidente que o Tribunal recorrido se socorreu expressamente da pronúncia dos Senhores peritos em sede de junta médica, em particular nas respostas que foram dadas aos quesitos que haviam sido formulados, a Recorrente, ao referir-se ao que teria resultado dessa junta médica, acaba por se focar apenas na resposta que foi dada aos quesitos 1.º a 3.º que pela mesma haviam sido formulados – como refere nas alegações: “Ademais, no auto de junta médica, na resposta ao quesito 1º formulado pela R. na contestação: 1) Há elementos objectivos concludentes de que a A. tenha sofrido um evento traumático com lesão no ombro esquerdo em 2/7/2020? Se sim quais? A resposta da junta médica foi: Quesito 1º: Não. Objectivamente. A sinistrada refere uma queda com traumatismo do ombro esquerdo. Ou seja, além de reconhecerem os Senhores Peritos a ausência de elementos clínicos que comprovem objectivamente uma lesão traumática, reproduzem o discurso (subjectivo e interessado) da autora. Em seguida, no quesito 2º onde se perguntava: 2) A A. à data padecia já de alterações degenerativas desse ombro, sem relação com nenhum evento de 1)? Respondem afirmativamente. E finalmente, na resposta ao quesito 3º (com a redação 3) O exame de RMN de 16/10/2020, revela com rigor médico-legal alguma lesão traumática relacionável com evento na datas em 1)? Voltam a responder de forma negativa, mas, adiantando um juízo de possibilidade. Não. Mas admite-se um agravamento temporário da sintomatologia dolorosa por contusão do ombro esquerdo” – para avançar de seguida que “além de nem sequer se achar fundamentada tal decisão, a referida conjectura não pode traduzir a comprovação da ocorrência de uma lesão de que não há o menor rastro, nem clínico, nem imagiológico, apenas se sustentando numa suposição ou admissibilidade”, que “não nos importa o que os peritos possam “admitir”, que “importa o que possam concluir afirmativamente quando está do lado do sinistrado a prova da ocorrência de uma lesão”. Esquece, assim, que os Senhores peitos, na mesma junta, em resposta aos quesitos indicados pelo Tribunal aquando do saneador, ao 1.º destes quesitos, em que se perguntava precisamente “quais as lesões sofridas pela sinistrada em consequência do acidente”, responderam “contusão do ombro esquerdo”, sendo que, em resposta aos pedidos de esclarecimento que formulou, reunida de novo a junta, tais esclarecimentos foram dados, constando nomeadamente o seguinte:

O que se referiu anteriormente visa salientar que, de resto em face das razões invocadas pelo Tribunal recorrido ao ter atendido nomeadamente ao que resultou da pronúncia dos Peritos médicos, a relevância que essa pronúncia assume neste âmbito, assim que o julgador, na prolação da decisão de fixação da incapacidade, não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, quer adira ou não ao laudo médico maioritário ou unânime, sendo que, ao estar em causa a natureza e força probatória do laudo pericial enquanto meio probatório – a prova pericial tem por objeto, como resulta do artigo 388.º do Código Civil (CC) a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quando os factos relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial –, aos peritos médicos, por disporem para o efeito dos necessários conhecimentos médico-científicos, cabe-lhes a pronúncia sobre quais as sequelas que resultaram das lesões provocadas pelo acidente de trabalho, identificando-as e enquadrando-as nas regras estabelecidas na TNI, para depois concluírem pela atribuição ou não de uma determinada incapacidade. Por sua vez, realizadas essas perícias, cabe então ao juiz proferir decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade”, sendo que, como o temos também afirmado, estando em causa um meio de prova pericial, as considerações e as conclusões do exame, mesmo quando alcançadas por unanimidade, não vinculando é certo o juiz, ao estarem também sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova (artigos 389.º do CC e 607.º do CPC), no entanto, na decisão a proferir, deve “a eventual divergência ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária”[8].
Ora, no que ao caso que se decide releva, aplicando o afirmado regime, estando agora aqui apenas em causa a questão de saber se a Autora / aqui recorrida sofreu contusão do ombro esquerdo, a verdade é que a pronúncia dos Senhores peritos foi unânime, resposta essa que mantiveram também na resposta aos esclarecimentos solicitados, fazendo aliás referência ao que teria resultado de elementos clínicos / exame a que aludiram, pelo que, estando em causa pronúncia sobre uma questão eminentemente técnica, como antes o dissemos, serão afinal os peritos médicos, pelos conhecimentos e experiência que detêm nesse âmbito, que estarão em melhores condições para emitirem um juízo avalizado. Aliás, retirando suporte a parte substancial das críticas avançadas pela Recorrente, sendo naturalmente admissível que possa divergir da solução a que se chegou, essa divergência não se traduz em necessária consideração das razões que invoca, quando não procedentes como ocorre no caso, importando ainda acentuar, a respeito de referência a uma qualquer não adequada fundamentação do laudo, que sequer é esse o caso, precisamente em face dos esclarecimentos que se vieram a dar, para além de que, acrescente-se, quanto às exigências de fundamentação, que essas variam afinal em face das questões que são suscitadas em cada caso concreto, sendo que no caso dos exames por junta média tais exigências resultam então, desde logo e em primeira linha, precisamente dos quesitos que forem colocados à apreciação dos peritos e da respetiva pronúncia, sendo que, justificando-se naturalmente maiores exigências de fundamentação no caso de ocorrer divergência entre os Peritos, sequer é este o caso.
Por decorrência do exposto, sem necessidade de maiores considerações, improcede o recurso nesta parte.

Pontos 9.º, 10.º e 11.º da factualidade provada:
Estes pontos têm a redação que se transcreve:
“9) Da lesão sofrida no acidente – contusão do ombro esquerdo – a Autora encontra-se curada, sem sequelas, não padecendo de qualquer grau de incapacidade permanente (resposta ao ponto 3) dos temas da prova).
10) Em consequência da lesão sofrida no acidente – contusão do ombro esquerdo – a Autora sofreu um período de incapacidade temporária absoluta desde 3 de Julho de 2020 até ao dia 14 de Julho de 2020 e um período de incapacidade temporária parcial de 20% desde 15 de Julho de 2020 até ao dia 10 de Novembro de 2020 (resposta ao ponto 4) dos temas da prova).
11) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora no acidente ocorreu no dia 10 de Novembro de 2020 (resposta ao ponto 5) dos temas da prova).”
Socorrendo-nos do corpo das alegações, a Recorrente limita-se a referir o seguinte:
“Estes pontos de facto, ficam prejudicados com a alteração acima requerida nos pontos 7 e 8, já que, não resultando provado um evento e lesão dele, logicamente, se tem que alterar com base nos mesmos meios de prova, os pontos referentes às consequências da lesão: períodos de incapacidade temporária e data de consolidação. Consequentemente, os concretos meios de prova documental de fls. 5 a 7, 15 a 21 conjugados com o resultado do auto de exame por junta médica de ortopedia fls. 6 e esclarecimentos de fls. 11, do apenso A), bem como as passagens de minutos 1:26 a 2:44 e minutos 6:19 a 6:51, e de minutos 8:37 a 10:42 das declarações de parte da Sinistrada 2 impõem que, também, os concretos pontos de facto 9, 10 e 11 dados como provados sejam julgados não provados.”
Ora, em face do conteúdo dos pontos agora analisados, valem aqui em absoluto as razões e fundamentos antes mencionados quanto ao ponto 8.º da factualidade provada, assim a respeito da natureza da prova a que então se aludiu e que está do mesmo modo em causa nos pontos 9.º a 11.º provados, assim em termos de se acompanhar, sem necessidade de outras considerações (por se remeter para o que antes dissemos), a convicção a que se chegou em 1.ª instância com base na prova que indicou.
Improcede assim o recurso também nesta parte.
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Por decorrência do anteriormente apreciado e decidido, a base factual a atender, para dizermos de Direito, é aquela que, enquanto tal, foi firmada em 1.ª instância.

2. O Direito do caso
Das conclusões apresentadas pode retirar-se que a Recorrente, baseando-se afinal apenas no pressuposto de eu lograria alcançar a alteração que sustentou e defendeu em sede de matéria de facto, se limita a referir que, com base nessa alteração, “resulta não estarem provados os elementos de facto essenciais para que se pudesse considerar ter ocorrido um acidente de trabalho, e bem assim, que dele resultou uma lesão de contusão do ombro que nenhum médico ou exame revelou” – “não estando provados o evento e a lesão dele resultante, não se pode considerar pela verificação de um acidente de trabalho e da consequente obrigação da recorrente de reparar as suas consequências”, referindo de seguida “violou a sentença recorrida, o disposto nos o normativo constante dos artigos 10.º da LAT , artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e artigos 5.º, 6.º, 410.º, 411.º, 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPCiv”.
Sendo assim, baseando-se os argumentos apenas na alteração da matéria de facto por que pugnou, mas cujo objetivo não conseguiu alcançar, sem necessidade de outras considerações, o recurso terá de improceder também no âmbito da aplicação do direito. De facto, salvo o devido respeito, visto o teor da sentença, não cuidou afinal a Recorrente, nomeadamente para o caso de não lograr alcançar a alteração da matéria de facto por que pugnou, de dirigir à sentença, nessa eventualidade, no que à aplicação do direito diz respeito, qualquer efetivo argumento jurídico tendente a infirmar essa aplicação do direito, assim nomeadamente erro na interpretação ou aplicação da lei, no sentido de explicar a razão por que a decisão deveria ter sido outra, quando, como é comummente afirmado, impende sobre o recorrente, em sede de recurso, o ónus de invocar, também no domínio da aplicação da lei, os argumentos (jurídicos) que na sua ótica justificam o afastamento dos fundamentos constantes da decisão recorrida para sustentar o modo como interpretou e/ou aplicou a lei, de tal modo que o tribunal superior os possa apreciar, no sentido de lhes dar ou não sustentação – versando o recurso sobre matéria de direito, deve o Recorrente, para além de indicar nas conclusões as normas jurídicas violadas, referir também o sentido que, no seu entender, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (artigo 639.º, n.º 2, do CPC).
Improcede, pois, o recurso no âmbito da aplicação do direito.

No que se refere a responsabilidade pelas custas, por decaimento, essa impende sobre a Recorrente (artigo 527.º do CPC).
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC), da responsabilidade exclusiva do relator:
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Social da Relação do Porto, alterando oficiosamente em parte a matéria de facto, em declarar improcedente o recurso, confirmando o decidido na sentença.

Custas pela Recorrente.

Porto, 17 de abril de 2023
(assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão
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[1] Prestadas em sessão de julgamento de dia 02/11/2022, constantes de gravação acessível através do sistema digital, como em formato físico (CD), com início pelas 14:43:30 horas, fim pelas 14:54:29 horas, e de duração total de dez minutos e cinquenta e nove segundos.
[2] A tramitação desta fase, tendo em vista alcançar tal objetivo, compreende três fases, a primeira de instrução (tendo em vista a recolha e fixação de todos os elementos necessários à definição do litígio, de modo a indagar sobre a “(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo suscetível de ser homologado – artigos 104.º, n.º 1, 109.º, e 114.º do CPT), uma segunda que se consubstancia na realização do exame médico singular (devendo o perito médico “indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” – artigos 105.º e 106.º do CPT) e, finalmente, uma última, com a realização da tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, com o objetivo primordial de ser obtido acordo suscetível de ser homologado depois pelo Juiz – artigo 109.º, do CPT) – Seguindo-se de muito perto o Acórdão desta Relação e Secção de 18 de Dezembro de 2018 (APELAÇÃO n.º 3992/16.4T8AVR.P1, relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção do aqui relator e 1.ª adjunta), que por sua vez faz apelo a João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts..
[3] A segunda fase, que ao caso que se aprecia não importa, de natureza contenciosa, não já obrigatória, decorre perante o juiz/tribunal.
[4] De facto, nos casos de falta de acordo, face ao estatuído nesse preceito, deve constar nos autos o seguinte: Consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída
[5] Como nota Alberto Leite Ferreira, “com o deflagrar do evento reativa-se, desde logo, a responsabilidade, até então dormente, da entidade patronal e da seguradora. Se assim é está naturalmente indicado que o responsável, sempre que para isso esteja habilitado, tome posição definida e concreta perante aqueles factos, com o que se alcança um duplo objetivo:
1º - Reduz-se o litígio àquelas questões acerca das quais não foi possível obter o acordo das partes, isto é, àqueles pontos que hão-de ser objeto da ação propriamente dita (fase contenciosa) … 2º - Fornece-se ao juiz os elementos necessários à fixação de pensões ou indemnizações provisórias sempre que seja caso disso…”[5]. O que se diz para o responsável é válido para os beneficiários
[6] A título meramente exemplificativo, refere-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 06-03-2002, que, “se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais, não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade patronal, não pode agora o recorrente, pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-ré patronal numa quantia a titulo de danos morais.” – Acórdão da Relação do Porto de 07.09.2015, proc. 628/14.1TTPRT.P1.
[7] Como indica nas alegações: “prova documental de fls. 5 a 7, 15 a 21 conjugados com o resultado do auto de exame por junta médica de ortopedia fls. 6 e esclarecimentos de fls. 11, do apenso A), bem como as passagens de minutos 1:26 a 2:44 e minutos 6:19 a 6:51, e de minutos 8:37 a 10:42 das declarações de parte da Sinistrada”.
[8] Entre muitos, veja-se o acórdão desta Secção de 30.05.2018, Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho.