Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7519/16.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
EXECUÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DE CONTRIBUIÇÕES
CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
Nº do Documento: RP201804117519/16.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 672, FLS 320-328)
Área Temática: .
Sumário: As relações jurídicas estabelecidas entre a Caixa de Previdência B... e os seus associados constituem relações de natureza administrativa, sendo competente para promover as execuções, com base em certidão de divida emitida por tal entidade, por falta de pagamento de contribuições, os Tribunais Administrativos e Fiscais, ao abrigo do art. 4º/1 /o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: CompMat-CPAS7519-16.0T8PRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Instância Central – 1.ª Secção de Execução – Juiz 6
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente processo de embargos à execução em que figuram como:
- EXEQUENTE: Caixa de Previdência B..., com sede ..., .. - .º, Lisboa, ...-... LISBOA; e
- EXECUTADO: C..., com domicílio profissional na Rua ..., .. - .º, Porto, ....-... Porto,
veio o executado opor-se à execução, defendendo-se por exceção e impugnação.
Por exceção suscita a prescrição da divida e por impugnação, contesta, por desconhecimento, o valor apurado a título de juros.
Termina por pedir o arquivamento da execução.
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Admitidos liminarmente os embargos, veio a exequente contestar.
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Em sede de saneador proferiu-se o despacho que se transcreve:
“A CAIXA DE PREVIDÊNCIA B... deduziu a presente execução contra Dr. C..., apresentando como título executivo a certidão de dívida emitida pela Direção da mesma relativamente ao aqui executado.
Dispõe o artigo 66º do Código de Processo Civil que são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A Constituição define o âmbito da justiça administrativa por referência aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
São de incluir no contencioso administrativo as relações jurídicas administrativas externas, ou seja, entre as organizações administrativas e os cidadãos (ditas relações gerais de direito administrativo) que possam ser qualificadas como públicas, ou seja, as que são reguladas por normas de Direito Administrativo.
A determinação do domínio material da justiça administrativa passa, portanto, pela distinção material entre o direito público e o direito privado.
Têm de se considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios), aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou um particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
Por força do art. 99°, n° 1, do mesmo Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho), a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.
Importa saber se esta Secção de Execução da Instância Central da Comarca do Porto é materialmente competente para tramitar a presente execução que se baseia em certidão de dívida referente ao aqui executado, advogado de profissão, e respeitante à Caixa de Previdência B... - aqui exequente.
Tendo presente o normativo acima citado, previsto no art. 129°, n° 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, que define a competência das Secções de execução, em matéria cível, de forma residual e por apelo às competências previstas no Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho), verifica-se que esta execução escapa a esse domínio normativo.
Com efeito, urge ter em atenção o plasmado no art. 1°, n° 2, do D.L. n° 11912015, de 29 de Junho (Regulamento da Caixa de Previdência B...), que prevê que a Caixa de Previdência, ora exequente, se rege, para além do citado regulamento, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação daí decorrente, com as necessárias adaptações.
Ou seja, estamos completamente fora do domínio das normas do Código de Processo Civil, mas em sede de legislação avulsa, da segurança social. Assim sendo, a competência para a execução em apreço terá de ser tramitada em sede dos tribunais administrativos/tributários, por essa a sede em que é aplicada e decidida qualquer litígio que envolva as bases gerais da segurança social (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, 1ª Secção de 8-05-2015, in www.dgsi.pt).
Assim sendo, e estando afastada a aplicação de qualquer norma de competência prevista em sede de Código do Processo Civil (diferentemente do que sucede quando está em causa a aplicação de normas do Estatuto da Ordem dos Advogados, máxime em sede de penhora em escritório de advogado por apelo para as normas contidas nos arts. 736° e seguintes do CPC), também terá de ser afastada a competência, em razão da matéria, das Secções de Execução para a tramitação deste tipo de execução. E isto tendo presente que o título executivo se funda na certidão prevista no art. 81°, nº 5, do Regulamento da aqui exequente. Aliás, desse normativo resulta expressamente que essa certidão, com força executiva, tem de obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário. Logo, mais uma razão para que sejam afastadas normas do CPC e feito apelo para o C.P.P. Tributário.
Em conclusão, é este tribunal incompetente, em razão da matéria, para tramitar a presente execução, competindo ao Tribunal Administrativo/Tributário tal tramitação.
Por outro lado, por força do supra citado art. 96°, al. a), do CPC, a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância, já que a exceção de incompetência em razão da matéria constitui exceção dilatória insuprível - vide arts. 99°, n°1, 100°, 577°, al. a) e 726°, nº 2, al. b), do C.P.Civil.
Por outro lado, tal exceção é de conhecimento oficioso (vide art. 578º do mesmo código).
Pelo exposto, julgo procedente a incompetência em razão da matéria deste Tribunal, pelo que absolvo o embargante/executado da instância executiva, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 99°, n° 1, 100°, 577°, al. a), 578° e 726°, n° 2, al. b), do C.P.CiviI.
Custas a cargo da exequente embargada - art. 527°, nºs 1 e 2, do CPC.
Registe e notifique, sendo a exequente embargada para, querendo, requerer o que tiver por conveniente nos termos do art. 99º, nº 2 do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho)”.
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O exequente veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
1.ª O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.
2.ª Pois a B..., não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
3.ª A B... «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospetiva”).
4.ª A B... não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspetiva.
5.ª A B... não faz parte da administração direta ou indireta do Estado.
6.ª Os seus membros diretivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias B1... e dos associados B2...».
7.ª Mas além disso a B... não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.
8.ª Pelo que a B... não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”.
9.ª As contribuições para a B... não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.
10.ª As contribuições para a B... assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.
11.ª A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.
12.ª Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.
13.ª Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas coletivas de direito público que devam ser pagas por força de ato administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
14.ª No novo regulamento da B..., aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à B... sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças
15.ª O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da B..., pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direção da B.... (doc.1)
16.ª E porque “não há direito sem ação”, não resta à B... outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efetiva para o apontado propósito.
17.ª Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…».
18.ª Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a B... e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro “beco sem saída” pois a B... ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.
19.ª Pois, as dívidas à B... não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.
20.ª A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do RCPAS; a alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termina por pedir a revogação da sentença e sua substituição por outra que julgue o tribunal a quo, como competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação executiva.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em determinar se os tribunais comuns têm competência para promover a execução das certidões de divida emitidas pela Caixa de Previdência B..., por falta de pagamento das contribuições dos seus beneficiários.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório e ainda, que:
- A Caixa de Previdência B... veio instaurar execução alegando para o efeito:
“1.º O executado, sendo advogado de profissão, encontra-se obrigatoriamente inscrito na Caixa de Previdência B..., doravante designada B..., nos termos do disposto no art.º 28.º, n.º 1 do D.L. n.º 115/2015, de 29 de Junho, e anteriormente nos termos do art.º 5.º, n.º 1 da Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril.
2.º E estando inscrito na B..., o executado tem de pagar mensalmente as contribuições para a Caixa, a que se refere o art.º 79.º e seguintes do D.L. n.º 115/2015, de 29 de Junho (e anteriormente art.º 72.º e seguintes da Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril, com a redação introduzida pela Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro).
3.º Sucede que o executado não tem pago as contribuições para a B..., a que está obrigado, devendo, neste momento, a quantia de 76.555,93 € (setenta e seis mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e noventa e três cêntimos), sendo 38.111,90 € (trinta e oito mil, cento e onze euros e noventa cêntimos) de contribuições em dívida e 38.444,03 € (trinta e oito mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros e três cêntimos) a título de juros, conforme certidão de dívida emitida pela Direção da B..., de 15 de Março de 2016 (Doc. 1).
4.º O executado devidamente interpelado pela B... a efetuar o pagamento das contribuições em dívida, não o fez.
5.º Pelo que a B... se viu forçada a recorrer aos meios judiciais para cobrar a dívida de contribuições.
6.º Assim, com a presente execução, a B... pretende haver do executado a quantia de 76.555,93 € (setenta e seis mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e noventa e três cêntimos), acrescida dos juros moratórios, sobre o valor das contribuições em dívida, contados à taxa de 5,168% (em 2016), e nos anos subsequentes à taxa de juros que for fixada nos termos do disposto no art.º 81.º, n.º 4 do D.L. n.º 115/2015, de 29 de Junho, até ao integral e efetivo pagamento”.
- Apresentou como título executivo certidão de dívida emitida pela Direção da B..., de 15 de Março de 2016, nos termos do art.º 81.º, n.º 5 do D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho.
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3. O direito
- Da competência em razão da matéria -
Nas conclusões de recurso insurge-se a apelante contra a decisão recorrida, por entender por um lado, que a Caixa de Previdência B... não reveste a natureza de entidade pública e por outro lado, não prevendo o Regulamento o tribunal competente para promover a execução das certidões de divida, verifica-se um vazio legal, por falta de norma habilitante, considerando, por isso, competentes para promover a execução os Tribunais Comuns.
Entendemos que os fundamentos invocados não merecem provimento e que a decisão recorrida não merece censura, seguindo aqui a posição que tem sido defendida neste Tribunal da Relação, entre outros, no Ac. Rel. Porto 21 de fevereiro 2018, Proc. 16878/17.6T8PRT.P1; Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2018, Proc. 17311/17.9T8PRT.P1; Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2018, Proc. 785/17.5T8OVR.P1; Ac. Rel. Porto 20 de junho 2016, Proc. 6988/16.2T8PRT.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt (este último subscrito pela aqui relatora na qualidade de segunda-adjunta), pelos motivos que se passam a expor.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[2].
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[3].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[4].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Nos termos do art. 213º Constituição da República Portuguesa compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Este mesmo conceito - “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas” - foi transposto para o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[5], como critério, para determinar a competência dos tribunais administrativos.
Desta forma, no art. 1º/1 do citado diploma, sob a epígrafe: “Jurisdição administrativa e fiscal” passou a prever-se que:
“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Com as alterações introduzidas pelo DL 214-G/2015 de 02 de outubro, o preceito passou a ter a seguinte redação:
“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
Nas alterações introduzidas pelo DL 214-G/2015 de 02 de outubro, a previsão do art. 1º passou a constar da alínea o) do nº1 do art. 4º, eliminando-se a alínea m) deste preceito.
A competência dos tribunais administrativos passa, assim, pela interpretação do conceito: “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Gomes Canotilho e Vital Moreira[6], em comentário ao artigo 212.º da CRP, referem: “a competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excecional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A letra do preceito constitucional parece não deixar margem para exceções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais. Nesta conformidade pode dizer-se que os tribunais administrativos passaram a ser verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa”.
Freitas do Amaral[7], por sua vez, defende que “relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Este tipo de relação jurídica pressupõe, assim, a intervenção da Administração Pública investida do seu poder de autoridade “jus imperium”, impondo aos particulares restrições que não têm na atividade privada. É para dirimir os conflitos de interesses surgidos no âmbito destas relações e com vista à garantia do interesse público que se atribui competência específica aos tribunais administrativos”.
Vieira de Andrade[8] considera que o conceito de “relação jurídica administrativa“ consagrado na Constituição passa “pela distinção material entre o domínio público e o direito privado”.
Seguindo um critério estatutário que combina sujeitos, fins e meios defende o mesmo autor que “relações jurídicas públicas [são] aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”[9].
A “ordem jurídica administrativa”, de acordo com um critério material, resultará da existência de “um regime de administração executiva, em que se define um domínio de atividade, a função administrativa, e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração, é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”[10].
Os litígios emergentes de relações criadas neste contexto seriam assim “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”, que justificam a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos tribunais judiciais.
Mário Aroso de Almeida[11], na interpretação do art. 1º/1 ETAF[12] defende que: “a atribuição de prerrogativas de autoridade ou a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público são os traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas“. O Direito Administrativo para este Autor, «“não regula apenas a atuação da administração pública em sentido orgânico”, mas regula para além disso, a atuação de todos os sujeitos jurídicos, ainda que não integrantes daquela, que exerçam a função administrativa, e ainda a atuação de todo e qualquer sujeito jurídico, quando e na medida em que se interseccione com o exercício da função administrativa (…) com o que assume um âmbito regulatório que ultrapassa em muito o da mera definição do estatuto da administração pública”».
A atual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta atua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma atividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal[13].
Neste contexto, o art. 4º do ETAF[14], funciona como critério de interpretação no sentido de densificar o conceito de “relação jurídica administrativa” e desfazer dúvidas sobre a extensão da jurisdição administrativa a certas matérias[15].
Neste preceito não deixa de se prever a competência residual dos Tribunais Administrativos, quando no art. 4º/o) se determina:“[c]ompete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Aroso de Almeida defende, assim, que:“pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no art. 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance”[16].
Nesta conceção ampla de relação jurídica administrativa, os tribunais administrativos são competentes para julgar e decidir os litígios emergentes de relações jurídicas ou atos que sejam praticados por particulares ao abrigo de normas de Direito Administrativo que lhes confiram poderes de definição jurídica unilateral[17], como ocorre em relação aos atos praticados pela Caixa Previdência B... a respeito da execução de certidão de divida, por falta de pagamento das contribuições dos seus beneficiários.
Como se prevê no art. 1º/1 do DL 119/2015 de 29 de junho (Regulamento da Caixa de Previdência) a Caixa de Previdência B..., é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de proteção social B1... e dos associados B2....
De acordo com o art1º/2 a Caixa rege-se pelo presente Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações.
Em conformidade com o art. 81º/5 a certidão da dívida de contribuições emitida pela direção constitui título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Nos termos do art. 97º do Regulamento a Caixa está sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social.
Face ao disposto no art. 98.º a Caixa goza das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência e das estabelecidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
Por outro lado, de acordo com o art.100.º, os requerimentos e comunicações previstos no Regulamento, dirigidos pelos beneficiários à Caixa, devem ser apresentados através do portal da Caixa, na sua área privativa, ou através de qualquer das formas previstas no artigo 104.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 5/2015, de 7 de janeiro.
As notificações e outras comunicações dirigidas pela Caixa aos beneficiários no âmbito do presente Regulamento devem ser realizadas através das formas previstas no artigo 112.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 5/2015, de 7 de janeiro.
Da conjugação destes preceitos decorre que a Caixa de Previdência B... exerce uma função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público - visa fins de previdência e de proteção social B1... e dos associados B2... - levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, no âmbito de uma atividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal – rege-se pelas normas do Regulamento e subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações, Código do Procedimento Administrativo (no tocante a notificações) e Código de Procedimento e Processo Tributário (requisitos da certidão de divida por falta de pagamento das contribuições).
Por outro lado, o Regulamento da Caixa de Previdência não atribui competência aos tribunais comuns para executar as certidões de divida por falta de pagamento das contribuições dos seus beneficiários.
Desta forma, independentemente de se qualificar a Caixa de Previdência B... como “entidade pública” decorre do regime legal a que está subordinada que os litígios emergentes da relação entre a Caixa e os seus beneficiários, como a presente execução, são da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais por configurarem “uma relação jurídica administrativa” e por isso, a objeção suscitada a respeito da aplicação do regime do n.º 2 do art.º 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário[18] não se verifica.
Acresce como se refere no Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2018[19]: “[p]or força da aplicação subsidiária das regras aplicáveis à Segurança Social, a dívida por quotizações à recorrente é uma dívida à Segurança Social (artigo 185º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e artigo 2º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro). Tais dívidas podem ser regularizadas mediante pagamento voluntário, nos termos previstos no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, no âmbito de execução cível (por força da convocação na fase do concurso de credores, por exemplo) ou no âmbito de execução fiscal (artigo 186º, nº 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social).
Assim, ao contrário do que afirma a recorrente, existe norma expressa, aplicável subsidiariamente à recorrente, que expressamente prevê o recurso à execução fiscal para regularização dos seus créditos.
Também da conjugação do artigo 81º, nº 5, do decreto-lei nº 119/2015, de 29 de junho, com a alínea a), do nº 2, do artigo 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário se chega à conclusão que é em execução fiscal que deve ser coercivamente realizada a pretensão da recorrente, pois que é inquestionável que a certidão que constitui o título exequendo é um ato administrativo.
Neste circunstancialismo, não se verifica a violação do direito fundamental de acesso ao direito, pois a recorrente tem um meio processual próprio para fazer valer a sua pretensão executiva”.

Argumenta o apelante que a Autoridade Tributária já se pronunciou no sentido de não aceitar a competência para a instauração de execuções, com base em certidão de divida emitida pela Caixa de Previdência B..., juntando cópia de tal informação/parecer.
Entendemos tratar-se de mera informação administrativa, sem valor de lei, que não pode ser aqui aplicada, atenta a interpretação por nós perfilhada do regime legal.
Como se anota no Ac. Rel. Porto 21 de fevereiro de 2018[20] “[…]não vem demonstrado que a apelante tenha reagido, através dos meios processuais próprios do processo de execução fiscal, contra o entendimento da AT.
E só se estivesse comprovado o insucesso dessa reação é que se poderia colocar a questão da inconstitucionalidade que a apelante atribui ao entendimento ora defendido”.
Conclui-se, assim, que não merece censura a decisão recorrida, quando concluiu por julgar o tribunal de execução incompetente em razão da matéria para promover a presente execução.
Improcedem as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto, 11 de abril de 2108
(processei e revi – art 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
[2] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[3] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[5] Lei 13/2002, de 19-02, mas alterado e pelos seguintes diplomas: Declaração de Retificação nº 14/2002, de 20 de Março; Declaração de Retificação nº 18/2002, de 12 de Abril; Lei n° 4-A/2003, de 19 de Fevereiro; Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei nº 1/2008, de 14 de Janeiro; Lei nº 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 26/2008, de 27 de Junho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto-Lei nº 166/2009, de 31 de Julho – com entrada em vigor a partir de 1 de Janeiro de 2010; Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, com início de vigência em 15 de Maio de 2012 e DL 166/2009, de 31-01, entrado em vigor a 01-01-2010 e que foi alterado pelo DL 214-G/2015 de 02 de outubro
[6] GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA Constituição da República Portuguesa Anotada, pag. 814 - citação obtida a partir do Ac. Rel. Porto 15.11.2011- Proc. 425824/10.1YIPRT.P1- endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[7] FREITAS DO AMARAL Direito Administrativo, III vol., 423 e segs,; citação obtida a partir do Ac. Rel. Porto 15.11.2011- Proc. 425824/10.1YIPRT.P1- endereço eletrónico: www.dgsi.pt
[8] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, 12ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, pag. 49.
[9] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob. cit., pag. 49 – itálico no texto original.
[10] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob.cit., pag. 49-50 - itálico no texto original.
[11] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Edições Almedina, SA, 2013, pag. 175.
[12] Na versão inicial da Lei 13/2002 de 19 de fevereiro, mas cuja interpretação se mantém atual, apesar das alterações introduzidas na redação do art. 1º, em conjugação com o art. 4º alínea o) pelo DL 214-G/2015 de 02 de outubro
[13] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16.02.2012, Proc. 021/11 e Acórdão do Tribunal de Conflitos de 21.02.2013, Proc. 027/12, ambos no endereço eletrónico: http://www.dgsi.pt.
[14] Lei 13/2002 de 19 de fevereiro, na redação do DL 214-G/2015 de 02 de outubro;
[15] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob.cit., pag. 100.
[16] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA Manual de Processo Administrativo, ob.cit., pag. 157.
[17] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA Manual de Processo Administrativo, ob.cit., pag. 161, 274-275.
[18] DL 433/99 de 26 de outubro
[19] Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro 2018, Proc. Proc. 785/17.5T8OVR.P1, acessível em www.dgsi.pt
[20] Ac. Rel. Porto 21 de fevereiro 2018, Proc. 16878/17.6T8PRT.P1, acessível em www.dgsi.pt