Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2087/14.0JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
LEITURA DE DECLARAÇÕES EM AUDIÊNCIA
PROVA PROIBIDA
Nº do Documento: RP201609142087/14.0JAPRT.P1
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 689, FLS.48-61)
Área Temática: .
Sumário: As declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial pelo arguido, após ter sido advertido do disposto no art.º 141.º 4 b) CPP, porque integradas no processo, consideram-se examinadas em audiência e não têm de ser ali lidas para serem valoradas pelo tribunal na decisão final.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2087/14.0JAPRT.P1

O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 2087/14.0JAPRT.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 14 de setembro de 2016, o seguinte
ACÓRDÃO
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 2087/14.0JAPRT, da 2ª Secção Criminal (J3) – Instância Central de Santa Maria da Feira, Comarca de Aveiro, em que são demandantes civis B… e C… e é arguido demandado civil D…, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos [fls. 632-633]:
«A) julgar a acusação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
A.1) condenamos o arguido D…, em autoria material e concurso real, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto pelo art. 152º/1 b), 2 e 4 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de um crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto pelo art. 272º/1 b) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
A.2) absolver o arguido do mais que lhe vinha imputado na acusação pública;
B) julgar inteiramente procedentes os pedidos de indemnização civis deduzidos pelas Demandantes C… e B…, assim se condenando o arguido a pagar-lhes:
B.1) à ofendida C… a quantia de € 12.750,00 (doze mil, setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, neste momento de 4% (quatro por cento), desde a notificação da dedução do pedido e até efectivo e integral pagamento;
B.2) à ofendida B…, a quantia de € 4.600,00 (quatro mil e seiscentos euros).
(…)»
1. Inconformado, o Ministério Público recorre, extraindo da respetiva motivação um texto que designa por “conclusões” e em que, no essencial, (i) impugna a decisão proferida sobre matéria de facto e, com base na alteração pretendida, pugna pela condenação do arguido (também) pela prática de um crime de detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro e pelo consequente agravamento da pena única [conclusões 1 a 7, 20 e 22]; e (ii) argui o erro notório na apreciação da prova [conclusões 17 e 18] [fls. 702-719].
2. Na resposta, o arguido suscita, como questão prévia, a “rejeição ou não admissibilidade” do recurso por as conclusões se limitarem “praticamente e com pontuais alterações, a copiar integralmente as respetivas motivações” [fls. 730]. No mais, considera que as declarações prestadas não podem ser valoradas pelo tribunal uma vez que não foram lidas e audiência [fls. 730-734].
3. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-geral Adjunta, acompanhando a motivação, emite parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso [fls. 751-753].
4. Em decisão de 16 de julho último, o Supremo Tribunal de Justiça declarou nulo o anterior acórdão desta Relação, por omissão de pronúncia quanto à oposição da valoração das declarações prestadas pelo arguido no 1º interrogatório judicial.
5. Colhidos os vistos, realizou-se nova conferência.
6. O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [fls. 598-613]:
«(…) 2.1 Factos provados
1) Com interesse para a decisão consideramos provados os seguintes factos: 1) O Arguido passou a partilhar cama e mesa com C… desde momento não concretamente apurado do ano de 2007, no domicílio comum sito na rua …, nº …, ….-… …, Santa Maria da Feira.
2) No dia 24 de Outubro de 2014, a hora não concretamente apurada da tarde, sempre antes das 18h00, no interior do quarto de ambos, após conversar com C… sobre o fim da relação, fim por esta pretendido, nomeadamente por ter conhecido outro homem há cerca de três meses por quem se enamorara, o arguido fechou as janelas e agarrou-lhe o pescoço com uma mão, deitando-a na cama, ao mesmo tempo lhe disse: “não te vou largar um palmo hoje quem manda sou eu”.
3) A ofendida C… conseguiu esquivar-se e ambos saíram do quarto.
4) Já na cozinha, o arguido agarrou-a por um dos braços e levou-a até à garagem do domicílio comum, dizendo que tinha uma coisa para lhe mostrar.
5) Uma vez chegados ao interior da garagem do domicílio comum, o arguido, continuando a segurar a ofendida C… por um dos braços, dirigiu-se ao seu veículo automóvel, abriu a porta do mesmo, pegou numa vela de explosivo, escorvada, de dimensões não concretamente apuradas, constituído à base de nitrato de amónio, revestida em plástico de cor clara e exibiu-lhe tal objecto.
6) Tendo-lhe parecido esse objecto ser constituído por dinamite, a ofendida C… perguntou «para quê?» ao arguido, ao que este respondeu que «não ia brincar com ele, que ia acabar com tudo».
7) De forma não concretamente apurada, o arguido e a ofendida C… regressaram então ao primeiro piso e aí continuaram a conversar.
8) Uma vez regressados ao interior do quarto de dormir, a ofendida C… tentou abrir as janelas, no que foi impedida pelo arguido, o qual, dirigindo-se-lhe, disse-lhe por palavras não concretamente apuradas que a iria violar, e para que tirasse a roupa.
9) C… negou-se a tirar a roupa que vestia e ambos dirigiram-se para a cozinha do domicílio comum e, uma vez aí chegados, o arguido empunhou uma faca que lá se encontrava, dizendo-lhe que já não havia outra solução e que teria de ir até ao fim, dando-lhe a entender que a iria matar.
10) Seguidamente, o arguido levou a ofendida C…, puxando-a por um braço, até à sala do rés-do-chão do domicílio comum e fechou as janelas.
11) Em momento não concretamente apurado, naqueles instantes, o arguido fechara já a porta de saída para a rua a partir desse piso e retirara a chave do canhão da fechadura.
12) Instantes depois o arguido manifestou a C… o desejo de que ambos se deslocassem de novo à garagem.
13) C… recusou acompanhar o arguido até àquela dependência do domicílio comum, por suspeitar que aquele fosse detonar o explosivo.
14) Nesse momento o arguido agarrou-lhe ambos os pulsos e, tendo a ofendida C… dirigido o olhar para as fotos de familiares que se encontravam naquela divisão do domicílio comum, o arguido disse-lhe: «olha bem para as fotos que será a última vez».
15) Em seguida o arguido puxou a C…, levando-a até à sobredita garagem.
16) Aí chegados, o arguido largou um dos pulsos da ofendida C…, pegou num isqueiro e em seguida, largando o outro pulso da ofendida C…, segurou na tal vela de explosivo, e simulou o movimento de atear fogo a tal engenho explosivo.
17) Nesse momento o arguido, dirigindo-se à ofendida C…, perguntou-lhe se queria que terminasse com a vida de ambos naquele instante.
18) Então, a ofendida C…, aproveitando um momento de distracção do arguido, fugiu da garagem, subiu ao primeiro piso, trancou a porta de acesso da garagem ao interior do resto do domicílio comum e, posteriormente, fechou a porta da cozinha.
19) Quando C… subia as escadas de acesso ao primeiro piso do domicílio comum, o arguido partiu o vidro da porta da garagem.
20) Seguidamente a ofendida C… conseguiu fugir para o exterior do domicílio comum.
21) Após, o arguido chegou também a vir ao exterior da habitação, regressou ao interior e passado alguns minutos accionou o engenho explosivo à base de nitrato de amónio, ligando-o ao detonador eléctrico constituído por uma cápsula de alumínio, com as dimensões aproximadas de 6,3 centímetros de comprimento e 0,74 centímetros de diâmetro, fazendo detonar o sobredito engenho.
22) Em resultado da detonação do engenho no interior da garagem do domicílio comum, a habitação, de valor superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros), sofreu:
a) rebentamento de paredes, tecto e portas da garagem;
b) rebentamento das caixilharias exteriores do domicílio comum;
c) fissuras nas paredes do restante domicílio comum;
d) rebentamento da parede da lareira do domicílio comum;
e) rebentamento das caixilharias interiores do 1º piso do domicílio comum.
23) Os referidos danos afectaram a estrutura e a integridade do edifício, ocasionando estragos de valor não concretamente apurado.
24) Em resultado da detonação do engenho explosivo, a habitação contígua, sita na Rua …, nº …, lugar …, ….-… …, Santa Maria da Feira, pertencente a B…, e de valor superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros), sofreu fissuras nas paredes interiores e exteriores, gerando estragos em valor não inferior a € 4.600,00 (quatro mil e seiscentos euros), nos termos descritos no orçamento de fls. 433 (aqui dado por reproduzido).
25) O arguido adquiriu a sobredita vela explosiva de modo e em momento não concretamente apurados.
26) O arguido soubera em Agosto de 2014 que a ofendida C… encetara relacionamento amoroso com outro indivíduo de identidade não apurada.
27) O arguido bem sabia que o que exibiu à ofendida C… era um engenho explosivo civil.
28) O arguido quis e conseguiu molestar física e psicologicamente C…, nos termos atrás descritos, no interior do domicílio comum, bem sabendo que era a pessoa com quem vivia em condições análogas às dos cônjuges, e fê-lo porque aquela pretendia pôr fim à relação amorosa que mantinham.
29) O arguido quis e conseguiu provocar explosão, mediante a utilização de engenho explosivo civil, no interior do domicílio comum, bem sabendo que dessa forma criava, como sucedeu, perigo para a estrutura e integridade de tal domicílio, de valor superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros), e suas partes integrantes, ocasionando danos de valor não concretamente apurado.
30) O arguido quis e conseguiu provocar explosão, mediante a utilização de engenho explosivo civil, no interior do domicílio comum, bem sabendo que, dessa forma, criava, como sucedeu, perigo para a estrutura e integridade da habitação contígua ao domicílio comum, de valor superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros), e suas partes integrantes, pertencente a B…, nessa habitação contígua ocasionando danos na cozinha, nos quartos, na sala, na casa de banho e nas paredes exteriores, no valor de € 4.600,00 (quatro mil e seiscentos euros), conforme documento de fls. 433 (aqui dado por reproduzido).
31) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
*
Mais se provou o seguinte no que toca à situação do arguido, mormente no plano sócio-económico:
32) Cresceu junto do agregado familiar de origem, constituído pelos pais e por um irmão mais novo, de condição económica humilde, em que os rendimentos disponíveis eram quase exclusivamente resultantes do exercício laboral do pai, enquanto decapador…;
33) …a mãe era doméstica e realizava agricultura de subsistência e criação de gado e existia entre todos sentimentos de respeito e solidariedade…;
34) …foi a mãe quem, no dia a dia, se dedicou de forma mais efectiva ao processo educativo dos filhos, assumindo uma atitude mais permissiva em relação à do pai, mais rígido e autoritário…;
35) …frequentou a escolaridade em idade própria até ao 6º ano, que não concluiu, apresentando algumas dificuldades de aprendizagem, reduzido investimento, traduzido em várias retenções, e abandonou a escola aos 16 anos…;
36) …iniciou nessa altura uma vida profissional activa, numa oficina de mecânica automóvel, onde trabalhou durante 4/5 anos, actividade que não apreciou, pelas tarefas que lhe foram destinadas (lavagem de viaturas) e pelo baixo vencimento que auferia…;
37) …conseguiu posteriormente trabalho na empresa «E…», em Estarreja, local onde também exercia funções o pai…;
38) …nas fases da adolescência e da juventude constituiu uma rede de amigos bem integrados e laboralmente activos, com quem frequentava cafés, bares e outros locais de diversão nocturna, ocasiões em que passou a consumir pontualmente haxixe e álcool, consumo visto pelo arguido como moderados, hábitos dos quais se afastou há cerca de 5 anos, por insistência da companheira, a aqui Demandante C……;
39) …é visto no meio de residência dos pais como um indivíduo tranquilo, pacato, educado, que preserva as relações familiares, e junto de quem passava grande parte do tempo livre, ajudando a família nas tarefas agrícolas…;
40) …a partir de 2007 passou a viver em situação de «união de facto» com a Demandante C…, ocupando a título gratuito a casa do irmão da companheira, sita na Rua …, nº…, …, Santa Maria da Feira…;
41) …devido à sua actividade profissional, o arguido estava ausente de casa de segunda a sexta-feira, o que levava a que aquele sentisse ciúmes da companheira, por passar grande parte do tempo sozinha…;
42) …no período que antecedeu os factos em discussão nestes autos, o Arguido e a Demandante C… decidiram adquirir uma casa própria, uma moradia a necessitar de obras, em zona próxima do local onde viviam…;
43) …além das poupanças aforradas, necessitaram de contrair crédito bancário, pelo qual assumiram a prestação mensal de € 320,00 (trezentos e vinte euros), verba elevada para o orçamento familiar, apesar de o casal estar laboralmente activo…;
44) …à data dos factos aqui em discussão o Arguido trabalhava ainda na «E…», desenvolvendo actividade que reconhece como gratificante e bem remunerada…;
45) …devido aos compromissos financeiros assumidos, isolou-se aos fins-de-semana em casa, procurando não despender economias com coisas supérfluas…;
46) …em contexto prisional tem beneficiado do suporte afectivo dos pais e irmão, através de visitas regulares…;
47) …admite a ruptura da relação com a Demandante C…, apesar de a sentir ainda com penosidade e desgosto, o que lhe tem causado grande instabilidade emocional…;
48) …anteriormente à reclusão, esteve internado na Unidade de Cuidados do Hospital F…, no …;
49) …aquando da sua entrada no Estabelecimento Prisional G…, e por força do seu estado clínico e emocional (sofre de uma depressão grave), foi integrado na enfermaria, onde ainda se encontra, sendo acompanhado pela especialidade de psiquiatria…;
50) …em meio livre dispõe de suporte junto da família de origem (pais e irmão), que continua a ter fortes laços de coesão e solidariedade, a residir na Rua …, nº …, …, …, Oliveira de Azeméis, em habitação térrea, propriedade dos pais, que reúne condições de habitabilidade…;
51) …o grupo familiar dispõe de condições económicas equilibradas, asseguradas através dos proventos auferidos por pai e irmão, num total de € 1.100,00 (mil e cem euros)…;
52) …tem a expectativa de vir a recuperar o seu posto de trabalho na «E…»…;
53) …no meio social onde residia com a Demandante C… não se notam sentimentos de alarme ou rejeição à sua presença.
*
54) O arguido não tem antecedentes criminais.
*
55) A Demandante C… passou na ocasião em apreço por momentos de agonia e desespero…;
56) …temeu pela sua vida e pela sua integridade física…;
57) …em consequência directa e necessária da descrita actuação do Arguido, a Demandante C… sentiu-se diminuída e terrivelmente amargurada, humilhada e envergonhada, tendo tido que recorrer a apoio psicológico, sendo acompanhada a esse nível pelo H…, promovido pelo Município I……;
58) …durante os dias seguintes a Demandante não conseguia dormir tranquilamente, não conseguia trabalhar nem sair de casa e chorava compulsivamente.
59) Tal a vergonha e angústia que sentia e ainda sente, passou a evitar a frequência de locais públicos, e nomeadamente cafés e restaurantes.
60) Em resultado da detonação do engenho explosivo acima referido, a viatura da Demandante C…, marca Seat, modelo …, matrícula ..-…-MN, que se encontrava no interior da garagem do domicílio comum, ficou quase totalmente destruída, tornando a reparação inviável, o que levou a que fosse abatida, sendo que para a sua substituição é necessária a quantia mínima de € 2.750,00 (dois mil, setecentos e cinquenta euros).
*
2.2 Factos não provados
Com interesse para a decisão não considerámos provados quaisquer outros factos e designadamente os seguintes:
a) que a casa em que arguido e ofendida C… viviam pertencia a J…;
b) que o engenho explodiu pelas 16h40;
c) que o objecto que o Arguido exibiu à ofendida C… tinha a inscrição de explosivo em cor rosa claro;
d) que o arguido pediu à ofendida C… para não chorar nem gritar, e que o tenha feito enquanto fechava as janelas do quarto;
e) que quando fez deflagrar o engenho explosivo, o arguido pensava que a ofendida C… ainda se encontrava no interior da habitação;
f) que ao provocar a explosão o arguido sabia que criava perigo para a vida ou, pelo menos, para a integridade física de C…, e que esse perigo não se concretizou apenas por mero acaso das circunstâncias e por motivos alheios à vontade daquele;
g) que os estragos causados no imóvel em que arguido e ofendida C… viviam ascendem a valor não inferior a € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros);
h) que com a explosão foi criado um perigo para a vida ou pelo menos para a integridade física da ofendida C…;
i) que o arguido adquiriu a vela de explosivo depois de ter sabido que a ofendida C… encetara um relacionamento amoroso com outro indivíduo e que andou entretanto, até ao dia 24 de Outubro de 2014, com tal vela no interior do seu veículo automóvel.
*
Consigna-se que não demos como provado (nem como não provado) que o arguido ameaçou a ofendida C…, nem que tenha tentado matá-la, por se tratar de conceitos jurídico-conclusivos; para além disso, acrescente-se a título de esclarecimento que temos como não provado que o arguido tenha querido matar a ofendida.
*
2.3 Motivação
A nossa convicção resulta do conjunto da prova produzida, lida e conjugada à luz das regras da experiência comum.
Dito isto, cumpre-nos naturalmente especificar de modo um pouco mais desenvolvido as razões da nossa convicção.
Vejamos.
Que no dia em apreço teve lugar uma explosão na garagem da habitação em causa, que essa explosão foi ocasionada pelo deflagrar do engenho identificado, e que a detonação do mesmo foi realizada pelo arguido, tudo isto constituem aspectos que se nos aparecem como indiscutíveis, posto que todos os meios de prova existentes a este propósito são nesse sentido convergentes.
E que no interior da garagem e da habitação ocorreram os factos dados como provados, entre arguido e ofendida, é algo que se extrai essencialmente das declarações desta, conjugadas com os demais meios de prova.
Desenvolvendo um pouco estes aspectos, merece naturalmente um primeiro destaque o relato feito pela ofendida C….
De uma forma que nos pareceu inteiramente genuína, sincera, consistente, empenhada num relato fiel à verdade e a tudo respondendo de forma aberta e convincente, C… deu conta de todo o enquadramento e da dinâmica dos factos: por um lado, o estado em que se achava a relação com o arguido, seu então ainda companheiro, a dificuldade que este manifestava em aceitar o fim de tal relação e o encetar, por parte da declarante, de um novo relacionamento amoroso, de que o Arguido já tinha conhecimento desde Agosto; e por outro lado, o que se passou no dia em apreço, desde o momento em que, chegada a casa, deparou com o arguido, até que daí conseguiu escapar, refugiando-se numa barbearia próxima, donde, pela montra da mesma, ainda chegou a observar o arguido, já no exterior da habitação, até onde se dirigira em sua perseguição, a regressar para o interior, minutos antes da explosão.
Não temos qualquer relato que contrarie ou fragilize minimamente as declarações da ofendida C…, que nos merecem em si mesmas toda a credibilidade, seja pelo já dito, seja ainda porque tais declarações são congruentes com a demais prova disponível.
A este nível justifica-se que se sublinhem:
- as fotografias de fls. 103 a 109, 116 a 138, 139 a 142, 149 e 151 a 158, colhidas no âmbito do exame ao local efectuado pela Polícia Judiciária logo no dia 24 de Outubro de 2014, pelas 18h00, conforme decorre de fls. 95 e seguintes, fotografias essas que bem documentam o estado em que ficaram o imóvel e as viaturas que se encontravam na garagem, obviamente compatível com a explosão de que se trata;
- a ficha de registo automóvel relativa ao veículo de matrícula ..-..-AZ, a fls. 39, que documenta que o mesmo se encontrava em nome do arguido, o que sugere que seria este quem o utilizava, veículo esse que se achava no interior da garagem em causa, como se verifica nomeadamente pela análise das já mencionadas fotografias, e nomeadamente pelas de fls. 124 e 125, que permitem ainda perceber, entre o mais, que a viatura que se sabe estar registada em nome da ofendida C… (cfr. fls. 38) foi a última a chegar à garagem;
- o auto de apreensão de fls. 69, aqui se destacando o facto de ter sido encontrado no local, por um lado, um detonador eléctrico, de resto retratado a fls. 159 e 160, instrumento previsivelmente vocacionado para fazer a ligação necessária em ordem a deflagrar o explosivo, e por outro lado um segmento de chapa do veículo já referido como registado em nome do arguido, que continha uma «cratera», com isso se sugerindo que fora em tal veículo, cujos mecanismos de abertura decerto o arguido dominaria, que fora alojado o engenho;
- o relatório do exame pericial de fls. 311 e seguintes, que dá conta da presença no local de substâncias compatíveis com um explosivo à base de nitrato de amónio, bem assim como do já referido detonador, aí se descrevendo ainda, na medida do que se revelou possível, o seu modo habitual de funcionamento;
- os depoimentos da testemunha K…, então barbeiro, que deu conta da repentina entrada no local da ofendida C…, da explosão instantes depois havida e do facto de terem sido dois vizinhos quem, ocorrida a dita explosão, de lá tiraram o arguido (e apenas este); e da testemunha L…, que se assumiu como um desses vizinhos que entrou na garagem e de lá retirou o arguido – não temos nenhuma razão para duvidar da seriedade destes relatos, nem tão pouco, nas indicadas medidas, da sua correspondência com a verdade material, tanto mais que nenhuma destas testemunhas manifestou qualquer espécie de inimizade ou antipatia para com o arguido, ou algum tipo de interesse no desfecho do Processo,
*
Tudo quanto vimos de dizer seria já suficiente para termos como assentes os factos acima enunciados, porque demonstrados para além de toda a dúvida razoável.
Ainda assim, outros elementos complementares surgiram, a pretexto embora da questão estritamente civil, que corroboram a credibilidade das declarações da ofendida e que além do mais permitem-nos o desenho do sofrimento pela mesma sentido em resultado da actuação do arguido: referimo-nos, por um lado, ao relatório psicológico de fls. 514 a 517, cujo teor foi mantido e esclarecido em audiência, de forma tecnicamente irrepreensível e convincente, pela Dra. M…, que o subscrevera; e por outro lado ao depoimento da testemunha N…, colega de trabalho e amiga da ofendida, que de um modo que nos não mereceu reservas deu conta do sofrimento que lhe vê e da diferença de postura em relação ao que antes lhe conhecia.
Ademais, o apontado sofrimento, nos termos que se deram como provados, é congruente com o que seria expectável em face da gravidade objectiva da situação pela qual a ofendida passou, bem sinalizada aliás no estado de aparente pânico em que foi vista pela testemunha K.., antes e depois da explosão, e pelas testemunhas L… e O…, estes depois da explosão.
No que respeita à natureza e alcance dos danos causados no veículo que sabemos ser da Demandante C… (cfr. fls. 38) e ao destino que lhe foi dado, tivemos em atenção, para além do estado geral em que ficou, evidenciado pelas fotografias constantes dos autos, e nomeadamente a fls. 156 a 158, o abate certificado a fls. 472 e o valor de mercado, que se aceita como razoável, atendendo ao tipo e antiguidade do veículo, documentado a fls. 473.
*
Quanto à circunstância de a casa de B…, contígua àquela em que viviam ofendida e arguido, ter sofrido estragos no valor total de € 4.600,00, tivemos em atenção a convergência de vários meios de prova: (a) as declarações da própria Demandante, B…, que deu resumida conta dos danos que emergiram na sua habitação por ocasião do evento; (b) o depoimento da testemunha P…, filho daquela, que corroborou a existência de tais danos; (c) o documento de fls. 433, que se traduz numa aparente orçamentação do custo de reparação dos mesmos, orçamentação esta efectuada na sequência da ida ao local, acompanhada pelo mencionado P…, do autor daquele orçamento.
*
Que o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente e sendo sabedor do carácter proibido das suas condutas, são elementos que consideramos assentes por via de uma presunção judicial, apoiada na factualidade objectiva de que partimos e nas regras da experiência comum.
*
Que quer o domicílio comum de arguido e ofendida C…, quer a habitação contígua, tinham valor superior a € 5.100,00, constitui um dado que inferimos da natureza e do aspecto geral de um e de outra, que inculcam a percepção de que assim seria (e será), de acordo com o que é público e notório em matéria de quantificação venal dos imóveis deste jaez.
*
No que concerne à matéria que demos por não provada, a nossa posição resulta, para além do já dito, da ausência de prova com suficiente consistência.
Desenvolvendo um pouco esta dimensão, ocorre deixar consignadas algumas considerações.
Demos como não provado que o arguido, ao despoletar a explosão, soubesse que criava um perigo para a vida ou pelo menos para a integridade física da ofendida C….
Afigura-se-nos que quanto a este aspecto a prova não tem o suficiente grau de consistência que se exigiria.
Cumpre aliás realçar que as declarações da ofendida levam-nos à convicção de que é altamente provável que o arguido soubesse que aquela não estava em casa aquando da detonação do engenho explosivo: note-se que a ofendida disse (e não temos razões para duvidar das suas afirmações, como atrás enunciámos) que escapou de casa quando perseguida, que se refugiou na barbearia e que desta viu o arguido a regressar para o interior do domicílio de ambos.
A partir daqui, estamos em crer que podemos concluir, como adiantado, com elevada dose de probabilidade, que o arguido, tendo inequivocamente chegado a sair de casa em perseguição da ofendida, terá percebido que aquela já de lá saíra.
E se assim é, quando o arguido regressa ao interior da habitação, onde vem a deflagrar o engenho, sabe já de antemão que a ofendida provavelmente não seria atingida pela explosão.
Do que vimos de dizer afigura-se-nos pois como mais que razoável supor que o arguido, no momento em que acciona o engenho, não sabia que criava um perigo para a vida ou para a integridade física da ofendida C…, pois sabia que esta já não estava sob o alcance da sua acção; e nessa lógica, no fundo o seu objectivo directo e imediato, nesse instante, em termos de lesões pessoais, terá sido «apenas» o suicídio.
E antes desse instante, leia-se, enquanto arguido e ofendida estavam no interior da habitação: terá o arguido tido a intenção de matar a ofendida?
Pese embora a gravidade e a seriedade da situação, não nos parece que a prova permita, com suficiente segurança, dar uma resposta afirmativa a esta interrogação: por um lado, tivesse o arguido uma tal intenção e teria muito provavelmente conseguido ir bem mais longe na sua concretização, pois teve a oportunidade e os meios para o efeito; por outro lado, de acordo com o que extraímos do relato da ofendida C…, a intenção do arguido passaria essencialmente por pressioná-la a ficar consigo, ameaçando-a, coagindo-a, assustando-a, molestando-a em suma.
Poderá o arguido ter em algum momento formado no seu espírito uma real intenção de matar a ofendida? É possível que sim, mas a prova não nos permite afirmá-lo com a segurança que se nos exige (para além de que, note-se, isto que vimos de dizer surge em complemento acessório do antes frisado, num esforço de explicitação da nossa convicção, na medida em que em bom rigor não está na acusação pública escrito que o arguido quis matar a ofendida C….
*
No que diz respeito às condições sócio-económicas do arguido, a nossa posição estriba-se no relatório social junto a fls. 535 a 539.
*
A ausência de antecedentes criminais do arguido deriva do certificado de registo criminal de fls. 542.
(…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Questão prévia. Diz o arguido que as conclusões de recurso se limitam a “copiar” o que consta da motivação, o que significa que há “falta de conclusões” a impor a “rejeição ou não admissibilidade” do recurso.
2. Não tem razão. As conclusões formuladas, apesar de repetirem em larga escala a motivação, não são uma mera reprodução desta. Isto é: apesar de prolixas, não inviabilizam a identificação das questões suscitadas. Por isso, nem sequer formulámos convite à sua correção – condição necessária para que o recurso pudesse vir a ser rejeitado [artigo 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal].
Improcede, pois, a questão prévia suscitada.
3. Do recurso. O recorrente [Ministério Público] impugna a decisão de dar como não provado o facto constante da alínea i) – correspondente à alegação do art. 25º da acusação. Para tanto, invoca as declarações prestadas pelo arguido no 1º interrogatório judicial, em passagens que transcreve [conclusões 1 a 7].
4. Coloca-se desde logo a questão suscitada na resposta à motivação, atinente à valoração pelo tribunal de recurso da prova produzida nos autos, a saber, as declarações prestadas no 1º interrogatório judicial de arguido detido, indicadas pelo Ministério Público na acusação. Está em causa o facto de não terem sido lidas em audiência o que, no entender do arguido, impede que as mesmas possam ser valoradas pelo tribunal sob pena de violação do disposto nos artigos 355.º e 125.º, do Cód. Proc. Penal.
5. Entendemos que a objeção do arguido não tem cobertura na lei. Na verdade, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, o artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Cód. Proc. Penal [primeiro interrogatório judicial de arguido detido], passou a prever que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que [o arguido] prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova. No caso dos autos, o arguido foi expressamente informado dessa possibilidade.
6. Por outro lado, nada na Lei obriga a que tais declarações devam ser lidas em audiência para poderem ser valoradas pelo tribunal. O artigo 355.º, do Cód. Proc. Penal, estabelece:
1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.
7. Por seu lado, o artigo 357.º, prevê:
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior.
8. Resulta claro destas disposições que, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida, a prova produzida em momento anterior à audiência de julgamento e integrada no processo (p. ex., documentos, declarações para memória futura e declarações do arguido no 1º interrogatório judicial) não têm de ser lidos em audiência de julgamento, considerando-se os mesmos examinados. Em nenhum momento a Lei obriga a que tais provas produzidas sejam lidas em audiência para poderem ser valoradas pelo tribunal. O que se compreende: a prova foi produzida com respeito pelo princípio do contraditório, as exigências de imediação e de oralidade não são satisfeitas pelo facto de se proceder à leitura de uma prova já constituída e o respeito pelo princípio da publicidade em nada sai afetado dada a natureza pública do processo e das provas constituídas.
9. Mal se compreenderia que uma prova produzida e realizada ao abrigo da Lei com a observância plena do contraditório, integrada nos autos, indicada pela acusação em momento próprio e cuja leitura não é proibida visse, posteriormente, a sua valoração pelo tribunal condicionada à realização de um ato formal de “leitura” na audiência. É esse, parece-nos, o sentido útil da alteração legislativa protagonizada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, que deu nova redação ao artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Cód. Proc. Penal.
10. Como refere, com superior clareza e objetividade, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 367/2014, relatado pelo Senhor Conselheiro José Cunha Barbosa e em que, sem poupança de transcrição, se lê:
“8. Da obrigatoriedade da leitura das declarações em audiência de julgamento
8.1. Porém, como decorre da delimitação do objeto do recurso já ensaiada, a questão de constitucionalidade em causa nos presentes autos não tem que ver com a admissibilidade das declarações para memória futura, no quadro das garantias de defesa do arguido, mas antes com a não obrigatoriedade da leitura, em audiência de julgamento, dos autos em que as mesmas se encontram transcritas ou reproduzidas. Acrescente-se, ainda, que não é tarefa deste Tribunal controlar o iter hermenêutico percorrido pelo tribunal recorrido, à luz das regras gerais sobre a interpretação jurídica e das suas especificidades no direito penal e no processo penal, nem tampouco indagar da bondade da solução legislativa subjacente à interpretação normativa sufragada nos autos.
Ressalvados estes aspetos, tudo está em saber se a obrigatoriedade de leitura em audiência decorre de algum dos princípios constitucionais supra excogitados, e, em caso afirmativo, se a compressão decorrente da opção legislativa contrária é suscetível de encontrar arrimo bastante noutros princípios ou interesses constitucionalmente protegidos.
8.2. A questão tem recebido tratamentos diferenciados por parte da jurisprudência (cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª ed., 2009, p. 650) e da doutrina penalista.
No sentido da obrigatoriedade da leitura das declarações, invocam-se, desde logo, os princípios da oralidade e da publicidade, porquanto a prática de dar por lidos os autos de declaração impede o público em geral de acompanhar a produção de prova e prejudica o respetivo convencimento sobre a justiça da decisão (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2008, p. 223), lançando desconfianças sobre o exercício da justiça penal (cfr. Maria João Antunes, “O segredo de justiça...”, p. 1241, e Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 221). Argumenta-se, ainda, que “só os meios de prova adquiridos no processo podem ser valorados”, aquisição essa que apenas se dá com a leitura dos protocolos em audiência de julgamento (Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., p. 246), ou seja, respeitando as exigências decorrentes dos princípios fundamentais em matéria de produção de prova (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29 de outubro de 2008, processo n.º 0814505, e de 17 de novembro de 2004, processo n.º 0414002, disponíveis em www.dgsi.pt).
Na jurisprudência constitucional, a conclusão tem sido a de que não constitui violação dos princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência o facto de o tribunal se servir, para formar a sua convicção, de documentos não lidos, explicados ou apresentados em audiência de julgamento. No acórdão n.º 87/1999 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal sustentou, com relevo para os presentes autos, que:
«(…)
Tratando-se de documentos que foram juntos aos autos com a acusação e depois se mantiveram durante a instrução e acompanharam a pronúncia do arguido, teve este todas as possibilidades de o questionar, podendo ainda, na própria audiência, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entendesse que isso seria necessário e, assim, pedir a leitura de qualquer desses documentos.
(…)»
Posteriormente, no acórdão n.º 110/11 (disponível em www.tribunalconstitucional), estando em causa a não leitura de um documento contendo o consentimento para a recolha de amostra de sangue com vista à realização de exame para determinação do estado de influenciado pelo álcool, o Tribunal sublinhou, quanto à prova documental, que:
«(…)
A lei processual adota uma noção ampla de documento, considerando como tal toda a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico nos termos da lei penal (artigo 164.º do CPP).
(…)
Porém, documentos há, como aquele cuja valoração está em causa, que se limitam a conter a narrativa de atos processuais ou do inquérito (…). Não são incorporados no processo para comprovar um facto externo, mas sim elaborados e integrando necessariamente o processo como instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os atos processuais ou de inquérito. Não deixando de ser em sentido genérico documentos, pelo menos quando a narrativa do que ocorreu em determinada diligência está indissoluvelmente ligada a um resultado que se destinou a preparar e que é expressamente invocado como meio de prova, o sujeito processual não pode ignorar a sua existência e aptidão probatória. A invocação probatória do resultado consequente é suficiente para assegurar que o arguido, patrocinado pelo advogado, possa defender-se do auto que documenta uma diligência que é um antecedente necessário à determinação desse resultado contra ele invocado, em termos de dispor e poder usar todos os instrumentos processuais necessários e adequados para defender a sua posição e contrariar a acusação.
(…)»
Este juízo de não inconstitucionalidade também vem tendo algum acolhimento, especificamente no que concerne a leitura das declarações para memória futura, por parte do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., entre outros, os acórdãos de 7 de novembro de 2007, processo n.º 07P3630, e de 25 de março de 2009, processo n.º 09P0486, também disponíveis em www.dgsi.pt,).
8.3. Apesar de a jurisprudência constitucional supra transcrita se reportar, fundamentalmente, a prova pré-constituída (prova documental), não se vislumbram, no que concerne os presentes autos, boas razões para a afastar.
Estando em causa declarações do ofendido – rectius, provas constituendas, ainda que documentadas em auto – o contraditório deve realizar-se aquando da respetiva aquisição, isto é, durante o interrogatório previsto nos n.ºs 3 e 5 do artigo 271.º, do CPP. Apesar de este interrogatório não seguir os ditames do artigo 348.º, do CPP (cross-examination), certo é que é nesse momento que se revela mais importante conferir ao arguido, em cumprimento dos imperativos constitucionais, a possibilidade efetiva de contribuir para as bases da decisão.
Obviamente que, integrando os autos (de declaração) os meios de prova elencados pela acusação, nada impede o arguido de, já na fase de audiência de discussão e julgamento, exercer o seu direito subjetivo público de audiência, requerendo a leitura das declarações e a sua reapreciação individualizada, e atacando a sua eficácia persuasiva. O uso efetivo deste direito, como é bom de ver, é algo que já não interessa ao princípio do contraditório nem ao seu recorte constitucional.
Por outro lado, a previsão de prestação de declarações para memória futura – obrigatória, no caso dos crimes contra a autodeterminação sexual de menor – constitui, per se, uma compressão dos princípios da imediação e da oralidade, limitação essa que, apesar de constitucionalmente justificada (v. supra o ponto 7.2), não é mitigada pela obrigatoriedade de leitura daquelas declarações em audiência de julgamento.
Na verdade, requerendo a oralidade que a atividade processual seja exercida na presença dos sujeitos processuais, por oposição a um “processo escrito”, é no mínimo estéril argumentar que a leitura – necessariamente “oral” – dos autos de onde constam as declarações ainda é reclamada por aquele princípio. Com efeito, os benefícios impulsionados pela oralidade, uma vez subtraídos ao “usufruto” do juiz do julgamento, estão, à partida, perdidos, e só poderão ser recuperados caso este entenda ser necessário para a descoberta da verdade material, possível e não atentatório da saúde física e psíquica da vítima menor a prestação de novo depoimento em sede de julgamento (cfr. os artigos 271.º, n.º 8, e 340.º, do CPP).
Finalmente, alçam-se vários obstáculos à argumentação de que a leitura obrigatória das declarações decorre do princípio da publicidade da audiência, enquanto “trave-mestra” de um processo acusatório. Desde logo porque, nos crimes contra a autodeterminação sexual, a concordância prática dos interesses em presença já impõe, por si mesma, evidentes compressões ao princípio da publicidade, as quais encontram consagração, no direito infraconstitucional, nos artigos 87.º, n.º 3 e 88.º, n.º 2, alínea c), do CPP.
Acresce que a leitura das declarações em audiência não tem arrimo na teleologia normativa inerente ao princípio da publicidade, que é a de “dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 222). Aquela, por ressonância da jurisprudência do TEDH, reclama não só uma justiça efetiva, como também uma “aparência de justiça”, pois, como se enfatizou no acórdão n.º 279/01 (já mencionado), “a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao administrarem a justiça atuem de facto em nome do povo”.
Contudo, o princípio (fundamental) da publicidade basta-se, neste capítulo, com a leitura da sentença (cfr. artigo 87.º, n.º 5, do CPP) e com a “disponibilidade pública das razões da decisão” (José António Mouraz Lopes, A fundamentação da sentença no sistema penal português – Legitimar, diferenciar e simplificar, Almedina, Coimbra, 2011, p. 101), algo que só de per se já permite ao público a fiscalização da decisão e possibilita à comunidade o conhecimento daqueles elementos tidos por fundamentais e decisivos para a formação da convicção do julgador (cfr. o acórdão n.º 27/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
9. Tanto basta para concluir que o presente segmento normativo não comporta violação dos princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência, nem dele resulta qualquer compressão das “garantias de defesa” do arguido a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º, da CRP (…)” [Ac. TC n.º 367/2014].
11. Concluímos, assim, que o tribunal (neste caso o tribunal de recurso) pode e deve valorar as declarações prestadas pelo arguido no 1º interrogatório judicial.
12. Nesse ato, depois de expressamente informado de que as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, o arguido, acompanhado do seu defensor, prestou declarações e referiu, entre outras coisas, que encontrou a vela perto de casa, numa entulheira, guardou-a uns dias no telheiro, pensou que era fogo-de-artifício mas depois viu na net que era utilizada para rebentar pedra [ver transcrição]. A acusação indicou estas declarações como meio de prova [ver Acusação].
13 Apesar do silêncio do arguido na audiência, o detalhe, a espontaneidade e a precisão das informações prestadas associados à verificação do evento e à falta de qualquer outra explicação para a obtenção e detenção da vela de explosivo permitem-nos afirmar, à luz das regras da experiência [artigo 127.º, do Cód. Proc. Penal] que ele deteve e guardou, desde data não apurada e até 24 de outubro de 2014, a referida vela de explosivo – facto descrito no ponto 25 da acusação.
14. Há, assim, razões para, ao abrigo do disposto no artigo 431.º, alínea b), do Cód. Proc. Penal, modificar a decisão do tribunal de 1ª instância, aditando aos Factos Provados o seguinte: “25-A) O arguido guardou a vela de explosivo durante uns dias”.
15. O que não faz sentido é aditar o conjunto de outros factos que o recorrente agora requer [“a. O arguido encontrou, dentro de uma saca, a vela explosiva, numa lixeira em …, Oliveira de Azeméis, nas imediações da sua residência, sita na Rua …, …. – … …, Oliveira de Azeméis, em momento não concretamente apurado. b. O arguido quando tomou conhecimento de que a vela explosiva se destinava a rebentar pedra, decidiu continuar a mantê-la guardada. c. Uma vez transportada tal vela explosiva, o arguido guardou-a, durante uns dias, no interior de uma garagem. d. O arguido transportou tal vela explosiva para o domicílio de C…, sito na Rua …, n.º…, …. – … …, Santa Maria da Feira. e. O arguido deteve tal vela explosiva desde o momento não concretamente apurado em que a encontrou, enquanto a transportou para a garagem do seu domicílio, enquanto a guardou, durante uns dias, no interior de tal garagem, enquanto a transportou para o domicílio de C… e até a ter usado no interior do domicílio comum. f. O arguido quis e conseguiu adquirir, deter, transportar e guardar a sobredita vela explosiva, bem sabendo que se tratava de engenho explosivo civil” – conclusão 7]. Não só porque o Ministério Público tinha conhecimento do elemento de prova relevante e não os descreveu na Acusação, limitando-se à menção atrás referida, mas sobretudo porque se trata de matéria meramente circunstancial e portanto, não essencial à decisão da causa.
16. Face ao quadro factual descrito, segundo o qual o arguido adquiriu e guardou engenho explosivo [pontos 25) e 25-A)] impõe-se reconhecer que se mostram preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de Detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
17. Para a determinação concreta da pena pondera-se que o grau de ilicitude não é elevado (apenas uma vela de explosivo que, ao que se apurou, veio à posse do arguido de forma casual) e é forte a intensidade do dolo (revelada pela modo de atuação do arguido). No mais, levam-se em consideração as circunstâncias que rodearam e motivaram o incidente bem como as condições pessoais e situação económica do arguido descritas e valoradas no acórdão recorrido (que aqui assumimos por inteiro). Tudo ponderado, decidimos aplicar ao arguido a pena de 2 anos e 6 meses de prisão [artigo 71.º, n.º 2, do Cód. Penal].
18. Procedendo à reelaboração da pena conjunta do concurso [antes fixada em 6 anos de prisão face às penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão (pela prática do crime de violência doméstica) e 5 anos de prisão (pela prática do crime de Incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas)], atenta a assinalável gravidade do ilícito global e a ausência de elementos da personalidade do arguido que evidenciem uma tendência criminosa [como bem refere o acórdão recorrido: “(…) importa aqui sublinhar o contexto específico em que se insere a atuação do arguido, a circunstância de esta ter tido lugar numa única ocasião e o seu bom comportamento anterior, tudo nos levando a pensar que, bem orientada a execução da pena de prisão, mormente no capítulo do acompanhamento psiquiátrico e psicológico do arguido, estaremos diante uma pessoa que cometeu factos muito graves, é certo, mas num momento que poderá ter sido episódico na sua vida (…)” – fls. 628] consideramos como justa e adequada a pena única de 6 anos e 6 meses anos de prisão.
19. Fica prejudicado o conhecimento do segundo fundamento do recurso.
A responsabilidade pela taxa de justiça.
Sem tributação – procedência do recurso e isenção do Ministério Público [artigo 522.º, do Cód. Proc. Penal].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Conceder provimento ao recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e, na sequência do aditamento aos Factos Provados do ponto definido no § 12, decidem condenar o arguido D…, como autor material de um crime de Detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 [dois] anos e 6 [seis] meses de prisão – elevando a pena conjunta do concurso para 6 [seis] anos e 6 [seis] meses de prisão.
Sem tributação.

Porto, 14 de setembro de 2016
Artur Oliveira
José Piedade