Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7882/16.2T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
NULIDADE
Nº do Documento: RP201803227882/16.2T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 127, FLS.106-112)
Área Temática: .
Sumário: Após os Pareceres do Administrador da Insolvência e do M.P. e antes de decidir sobre a qualificação da insolvência, devem todos os interessados (nomeadamente o credor cujas alegações deram início ao incidente de qualificação de insolvência) ser previamente ouvidos, sob pena de ocorrer uma irregularidade que, por poder influir na apreciação da causa, constituir nulidade, nos termos do artigo 195º, nº1 do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 7882/16.2T8VNG - B.P1
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de incidente de qualificação de insolvência a credora “G..., S.A.” veio requerer a qualificação como culposa da insolvência “B…, S.A.”, sendo afetados os requeridos C… e D….
Para tanto alegou, em síntese, que, os requeridos, em Abril e Maio efetuaram pagamentos indevidos às sociedades de que são os únicos sócios - gerentes, apesar de, em 31 de Março de 2016, terem assinado um Acordo de Revogação de tais pagamentos, com expressa menção de que as suas sociedades unipessoais nada mais tinham a receber a partir da aludida data. Alegou ainda que a insolvente não concretizou uma série de negócios, os quais geraram perdas de € 425.871,34, sendo que os motivos geradores das citadas perdas apenas podem ser consideradas da única e exclusiva responsabilidade dos requeridos.
Alega também que relativamente a tais perdas os requeridos não terão atuado de forma a responsabilizar terceiros, concluindo que a responsabilidade pelas perdas de €425.871,34 apenas pode ser imputada aos requeridos, os quais não terão agido com os deveres de zelo e diligência que se impunham a administradores.
Por outro lado, alega que se verifica uma similitude preocupante de valores pagos aos requeridos pela insolvente a título de km, não sendo minimamente credível que dois administradores no mesmo período de tempo tenham efetuado idêntico número de km ao serviço da insolvente. Os requeridos, com a sua conduta, causaram à sociedade prejuízos superiores a €450.000,00 por virtude de terem omitidos os mais elementares deveres de cuidado, zelo e diligência, gerindo a insolvente de forma descuidada e leviana e permitindo que a mesma acumulasse mensalmente cerca de €25.000,00 de prejuízos mensais durante o primeiro semestre de 2016, o que agravou os prejuízos da insolvente também a sua situação de insolvência, sendo esse facto do conhecimento dos requeridos desde, pelo menos, Julho de 2016.
O Sr. administrador da insolvência apresentou parecer de qualificação da presente insolvência como fortuita. Para tanto alega que não verificou que a administração da devedora tenha disposto de bens da devedora em proveito próprio ou de terceiros, tendo os pagamentos feitos às empresas E… Unipessoal, Lda. e F… Unipessoal, Lda. e à requerente G…, S.A. sido realizados com base em contratos de prestação de serviços, sendo que os mesmos mostram-se devidamente autorizados e contabilizados nas contas de devedora, e dizem respeito a valores devidos pelos serviços prestados nos meses de Fevereiro e Março de 2016. Acrescenta que a requerente também recebeu os juros dos suprimentos, no valor de 2.325,00€, referentes ao mês de Março e pagos em 11 de Abril de 2016, não tendo recusado tais pagamentos. Quanto aos pagamentos das despesas de deslocação em viatura própria ao serviço da devedora feitos aos administradores os mesmos foram devidamente autorizados e contabilizados, estando em consonância com os que foram pagos desde início da atividade e de acordo com o estipulado pelo conselho de administração. Diz ainda que a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que se refere o nº 1 do artigo 129º do CIRE não foi objeto de qualquer impugnação por parte dos credores, com exceção da credora e ex-trabalhadora da devedora, H…. Mais alega que com a alteração de modelo negócio da devedora, iniciada no mês de Julho de 2016, tem-se verificado uma redução enorme nos custos, tendo os administradores da insolvente tomado diversas decisões com vista a inverter a situação da devedora, algumas das quais com prejuízo para os próprios. De entre essas medidas destaca a renúncia ao recebimento, por parte da administração da devedora, de qualquer retribuição, situação que se mantém até a presente data. Conclui dizendo que em sua opinião, a situação de insolvência deveu-se a diversos fatores, dos quais destaca o modelo de sociedade adotado (sociedade anónima) com custos acrescidos no seu funcionamento, os elevados custos com a administração e com pessoal; a insuficiência de capitais próprios e recurso ao crédito, com custos elevados; o investimento de cerca de um terço do capital social na aquisição de viaturas automóveis, em vez do recurso a outras modalidades; perspectivas de negócios nos EUA que não se concretizaram e que se traduziram em gastos para a devedora no valor de 46.906,75€; negócios que correram mal, nomeadamente por incumprimento de prazos e devoluções por defeitos de fabrico nos produtos confeccionados, que acarretaram custos para a devedora no montante estimado de 93.92,50€; instabilidade societária com a renúncia ao cargo de presidente do conselho de administração, Senhor I…; o não cumprimento do plano de negócio acordado entre os sócios, previsto para cinco anos, com apoio financeiro do accionista Senhor I…, no valor global de 600.000,00€; pedido de reembolso de 100.000,00€ do empréstimo que a G…, S.A., fez à devedora no montante de 500.000,00€, facto que obrigou a accionista E… Unipessoal, Lda a fazer um empréstimo à devedora, no valor de 45.000,00€, pelo qual nunca foi remunerada, face à exigência do administrador da accionista G…, S.A.
* * * *
O Ministério Público pronunciou-se, igualmente, no sentido de ser qualificada a presente insolvência como fortuita alegando, em síntese, não dispõe do conhecimento de circunstâncias factuais concretas que sobrelevem o teor do parecer do administrador da insolvência ou que militem a favor das alegações iniciais do presente incidente, sendo certo que a instância se iniciou a impulso da devedora, que assim aparentaria ter cumprido um seu legal ónus face ao avolumar das dificuldades económicas para que apontam os elementos trazidos ao processo por devedor e credores. Por outro lado ao Ministério Público foi comunicada certidão negativa, de 2016-10-19, pelo serviço de finanças local, pelo que se sabe da ausência de créditos fiscais. Acrescenta que poderá impressionar o montante do passivo, excedente a um milhão de euros mas, no seu contexto, os suprimentos representam cerca de 1/3 do passivo. Ademais, em sede de alegação verifica-se uma preponderância de circunstâncias alheias à qualificação da insolvência e mais adequadas em ordem à aferição do – aparentemente mau – relacionamento entre administradores e sócios, dentro da própria devedora, que atos desvaliosos da devedora em contexto de insolvência.
Estes parecer e promoção não foram notificados ao recorrente- requerente do presente incidente de qualificação da insolvência.
De seguida foi proferida a 6-03-2017 sentença que qualificou a insolvência como fortuita.
Notificada da sentença a credora “G…, S.A.” apresentou requerimento, pelo qual, arguiu que a sentença padece de nulidades, alegando que o presente incidente de qualificação da insolvência teve início por sua iniciativa, sendo certo que depois da apresentação dos pareceres apresentados pelo Sr. administrador da insolvência e pelo Ministério Público a requerente não foi notificada do seu teor, tendo-lhe sido negado o seu direito ao contraditório. Mais alega que no requerimento que apresentou e que deu início ao presente incidente alegou factualidade que não foi considerada na sentença proferida.
De seguida foi proferida decisão a 25-05-2017, a qual, desatendeu a arguição das referidas nulidades e cujo teor é o seguinte:
“G…, SA veio, a fls. 135 e seguintes, arguir nulidade alegando que o presente incidente de qualificação da insolvência teve início por sua iniciativa, sendo certo que depois da apresentação dos pareceres apresentados pelo Sr. administrador da insolvência e pelo Ministério Público a requerente não foi notificada do seu teor, tendo-lhe sido negado o seu direito ao contraditório.
Mais alega que no requerimento que apresentou e que deu início ao presente incidente alegou factualidade que não foi considerada na sentença proferida.
Apreciando.
Nos termos do artigo 188.º do C.I.R.E.
“1 - Até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2 – (…)
3 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.
4 – O parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias.
5 - Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso” (sublinhámos).
Resulta claramente deste preceito legal que após algum interessado apresentar o requerimento no qual alega o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa o juiz, se o considerar oportuno, declara aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Após, o Sr. administrador da insolvência apresenta o seu parecer, sendo que o mesmo vai depois com vista ao Ministério Público para que este se pronuncie.
Estabelece, também, esse normativo que se tanto o Sr. administrador da insolvência, como o Ministério Público, propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode de imediato proferir decisão nesse sentido.
Ora, foi assim que aconteceu nos presentes autos.
A lei é clara ao prever que o juiz pode decidir de imediato, não prevendo que deva ser dado qualquer contraditório ao interessado que apresentou requerimento inicial.
Assim, é manifesto que não se verifica qualquer nulidade porquanto não se verifica a preterição de qualquer formalidade que a lei preveja.
Salientamos que a lei prevê claramente quando é que o contraditório pode operar no incidente em apreço; veja-se que no n.º 7 desse preceito legal se refere que “o administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no número anterior”.
Aliás, veja-se no sentido defendido o acórdão da Relação de Évora de 14/4/2016, processo 526/13.6TBPTG-M.E1, disponível em www.dgsi.pt que refere que “a invocada falta de notificação do parecer do administrador não releva para o pretendido pelo reclamante - a qualificação da insolvência como culposa -, porquanto da sua apresentação não resultam quaisquer efeitos para os interessados, designadamente para se pronunciarem. Na verdade, o n.º 3 do artigo 188.º estabelece que o referido parecer apenas vai com vista ao Ministério Público para que se possa pronunciar quanto à qualificação proposta pelo administrador, não se referindo aqui aos eventuais interessados. E não o faz porque o momento legalmente consagrado para que os interessados aleguem o que tiverem por conveniente para efeitos de eventual qualificação da insolvência como culposa, é o da realização da assembleia de apreciação do relatório”.
Por outro lado, diz a requerente que a sentença é nula por omissão de pronúncia já que havia alegado factos no seu requerimento inicial que não foram considerados.
Também quanto a essa nulidade consideramos que não assiste qualquer razão à requerente.
E isto porque nos casos em que o Administrador da insolvência e o Ministério Público apresentarem parecer de qualificação fortuita o tribunal não tem que estar a fazer constar da sentença quaisquer factos que o requerente tenha alegado, dando-os como provados ou como não provados visto que sobre eles não incidiu qualquer meio de prova.
O que tem que analisar é se foram trazidas aos autos circunstâncias que permitam, em abstrato, qualificar a insolvência como culposa apesar dos pareceres apresentados pelo administrador da insolvência e pelo Ministério Público.
Ora, no caso em apreço isso foi feito.
Veja-se que na sentença proferida são claramente referidos argumentos pelos quais os factos e alegações da requerente não permitiriam qualificar a insolvência como culposa.
Ante todo o exposto, indeferem-se as nulidades invocadas.
Notifique.“
Inconformada a credora – requerente veio recorrer desse despacho
Esse despacho foi objecto de recurso apresentado pela credora-requerente, o qual, na sequência de reclamação interposta contra o despacho que não o admitiu, veio a ser admitido neste Tribunal da Relação do Porto por decisão de 20-12-2017, tendo sido pedida a requisição do processo relativo ao incidente de qualificação da insolvência ao tribunal recorrido.
No recurso apresentado a recorrente formula as seguintes Conclusões:
I - O requerente do incidente de qualificação de insolvência tem o direito a exercer o contraditório antes de ser proferida a sentença, quando o tribunal entende que deve seguir os pareceres do Administrador de Insolvência e do Ministério Público que pugnam pela qualificação fortuita da mesma.
II - No CIRE inexiste qualquer norma a afastar a aplicação do princípio do contraditório no âmbito do incidente de qualificação de insolvência previsto no nº3 do artº.3º do Cód. Proc. Civil, sendo que tal princípio tem efectiva dignidade constitucional.
III - O preceito constante do nº5 do artº.188º do CIRE – anteriormente nº4, com uma redacção diferente – refere expressamente que na sequência dos pareceres do Administrador de Insolvência e do Ministério Público que pugnam pela qualificação fortuita da insolvência o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido.
IV - Porque os referidos pareceres trazem ao processo elementos novos, que ainda não foram passíveis de serem analisados e, se for caso disso, contraditados pela parte requerente do incidente, caso o juiz entenda que deve proferir sentença que vai contra o requerido pelo requerente do incidente de qualificação de insolvência, deverá dar a este a possibilidade de se pronunciar sobre os referidos elementos, por força do disposto no nº3 do artº.3º do Cód. Proc. Civil, ex vi artº.17º do CIRE.
V - Não o fazendo, o juiz estará a proferir uma decisão com base em elementos que podem nem sequer ser conhecidos do requerente, caindo-se então naquilo que se pode considerar uma verdadeira decisão surpresa.
VI - In casu, a recorrente invocou matéria passível de ser enquadrada nas alíneas d) f) e g) do artº.186º, nº2 do C.I.R.E., e indicou prova concreta que deveria ser produzida com vista à comprovação da referida matéria, sendo que o Meritíssimo Tribunal a quo não estava impedido de ordenar a produção da mesma, ou de outras diligências probatórias que tivesse por convenientes, com vista à comprovação, ou não, de tal matéria, ou outra que entendesse relevante.
VII - Tendo entendido que não devia realizar tais diligências, nem as requeridas pela recorrente, nem outras que tivesse por conveniente, face ao teor dos referidos pareceres, antes de proferir a sua decisão, o Meritíssimo Tribunal a quo deveria ter permitido à recorrente exercer o seu direito ao contraditório, uma vez que a sua decisão iria ser proferida com base em matéria constante dos ditos pareceres, que não tinham sido notificados à recorrente.
VIII - Ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal a quo o disposto nos artº.3º, nº3, do Cód. Proc. Civil, ex vi artº.17º do CIRE e também os artºs.11º e 186º, nº2, alíneas d) f) e g) também do CIRE.
IX - Inexiste em todo o CIRE qualquer norma que refira que as sentenças proferidas no âmbito de tal processo, quer nos autos principais, quer nos respectivos apenas, não tenham que obervar as regras da fundamentação das mesmas previstas no artº.607º do Cód. Proc. Civil.
X - A base de fundamentação de uma sentença proferida num incidente de qualificação de insolvência obedece a todos os princípios de qualquer sentenção, por imposição do próprio legislador, o qual, para além de não ter previsto qualquer regra específica que afaste tais princípios no CIRE, ainda remete, a título subsidiário, para uma lei – Cód. Proc. Civil – que impõe expressamente que as regras de fundamentação de tais sentenção são, com as necessárias adaptações, as constantes do artº607º do Cód. Proc. Civil – cfr. artº.295º do Cód. Proc. Civil ex vi artº.17º do CIRE -.
XI - Na situação sub judice a recorrente enumerou uma série de factos e juntou diversos documentos comprovativos dos mesmos que, no seu entender, são passíveis de serem subsumidos nas alíneas d) f) e g) do artº.186º, nº2 do C.I.R.E., os quais não foram todos objecto de análise na fundamentação da douta sentença que julgou a insolvência fortuita.
XII - A materialidade constante dos pontos 10 e 17 a 23 do requerimento de arguição de nulidade – toda ela constante do requerimento inicial, com excepção da constante do esclarecimento da materialidade relativa aos artºs.47º, e 52º a 55º do requerimento inicial, que só ocorreu posteriormente à entrada do mesmo em juízo -, não foi devidamente analisada e valorada, sendo a douta sentença praticamente omissa nos seus fundamentos de facto e de direito relativamente à mesma, tendo-se limitado a seguir, e a dar como válidos, os teores dos pareceres do Administrador de Insolvência, os quais também não se pronunciaram sobre diversas situações concretamente indicadas pelas recorrente.
XIII - Se quanto aos pareceres do Administrador de Insolvência e do Ministério Público as regras de fundamentação são “livres” no caso do Meritíssimo Tribunal a quo as regras de fundamentação são as constantes do artº.607º do Cód. Proc. Civil, ex vi artº.17º do CIRE.
XIV - A violação das regras da fundamentação constituem vício de nulidade, nos termos do disposto nas alíneas b) e d), do nº1, do artº.615º do Cód. Proc. Civil, nulidade essa que desde já aqui se argui para todos os devidos e legais efeitos.
Conclui pela procedência do presente recurso e consequente revogação da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra – alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - DELIMITAÇÃO OBJECTO DO RECURSO.
Porque o objecto do presente recurso está delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil), o objecto deste recurso restringe-se apenas à questão de saber se a falta de notificação à Credora/Requerente do incidente de qualificação de insolvência do teor dos pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público e da não audição por qualquer outro meio daquela quanto ao teor dos mesmos, constitui irregularidade processual e, na afirmativa, se essa nulidade é susceptível de inquinar todo o processado ulterior.
III- FUNDAMENTAÇÃO:
3.1 - Os factos com relevo jurídico processual constam do relatório.
3.2- Do Mérito da Decisão Recorrida:
Nos termos estabelecidos pelos artigos 185ºe seguintes do CIRE, a insolvência é qualificada com culposa ou fortuita, dispondo o artigo 186º sobre os casos em que deve ser qualificada como culposa.
De facto, dispõe o artigo 186º, n 1, do CIRE que «A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência»,
Estatuindo o nº 2 do mesmo preceito sobre os casos em que a insolvência é sempre considerada culposa em virtude da prática, pelos seus administradores, de actos ali identificados.
Por seu turno, no nº 3 do artigo 186º do CIRE consagra-se a presunção de existência de culpa grave: «Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor (...) tenham incumprido: a) o dever de requerer a declaração de insolvência».
Resulta, assim, da exegese do normativo transcrito constituírem requisitos da insolvência culposa: i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ii) a ilicitude desse comportamento; iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
E, para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais, sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
Deste modo, em relação às presunções estabelecidas nas várias alíneas do nº 2, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.
Logo, aquele identificado nº2 prevê situações que, a verificarem-se, impõem que se qualifique, necessariamente, a insolvência como culposa, sem necessidade de efectuar juízo casuístico para efeitos de qualificação da insolvência.
E por relevar refira-se ainda que: «No incidente de qualificação da insolvência estamos perante interesses que se relacionam com o comportamento dos responsáveis da insolvente perante a declarada insolvência e que são tutelados por normas de carácter imperativo. Tais interesses, que, a serem violados, fundamentarão a aplicação de uma sanção civil aos responsáveis, estão excluídos do âmbito de disponibilidade das partes. Ou seja, estamos perante factos relativos a direitos acerca dos quais a vontade das partes é ineficaz ou para os constituir ou para os extinguir, ou para constituir ou extinguir uma situação equivalente à do seu exercício». Vide Ac TRLisboa de 3-10-2017, Proc. 2774/15.5T8FNC-B 7ª Secção, disponível in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/.
Por força do referido artigo 188, nº1, a lei atribui a «qualquer interessado» a legitimidade para intervir no incidente de qualificação de insolvência, deduzindo-o, munido de informação que permita a indagação e apuramento dos pressupostos da procedência do incidente.
E seria no mínimo, ilógico que apenas conferisse tal legitimidade de dedução do incidente, retirando-lhe em momento posterior tal legitimidade deixando-o, conhecedor de factos com que fundamentadamente ocasionou a abertura do incidente, à margem do seu apuramento, concretamente, omitindo a notificação dos pareceres a que alude o nº 5 do artigo 188º CIRE. Vide Ac TRLisboa de3-10-2017, Proc. 2774/15.5T8FNC-B 7ª Secção, disponível in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/.
Conforme resulta do disposto no artigo 188.º, n.º 5, do C.I.R.E. “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso”.
Ora, no caso em apreço, o tribunal recorrido, considerando que o administrador da insolvência e o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, proferiu de imediato decisão nesse sentido, tendo sido omitida qualquer notificação à Recorrente do teor desses pareceres.
Conforme resulta do relatório deste acórdão o tribunal recorrido não admitiu o recurso interposto relativamente ao despacho que indeferiu a nulidade arguida, traduzida na alegada violação do princípio do contraditório, aplicando –lhe o regime previsto nos arts 615º, nº4 e 617º, nº6, do CPC, que dispõem que em caso de nulidade da sentença arguida perante o tribunal que a proferiu, por tal decisão não admitir recurso atento o disposto no art. 188º, nº 5, do CIRE, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada.
Todavia, conforme resulta do apenso D deste incidente este Tribunal da Relação julgou procedente a reclamação apresentada relativamente ao despacho que não admitiu o recurso, importando, nesta sede apreciar e decidir a questão colocada.
Ora a este propósito, e como também já foi referido na decisão que decidiu a reclamação do despacho de não admissão de recurso, “A restrição imposta pelo legislador no artigo 188º, nº5 do CIRE relativamente ao regime geral de recursos previsto no CPC, e ao próprio regime especial de recursos previsto no artigo 14.º do CIRE, não viola qualquer preceito constitucional, designadamente os artigos 20.º e 202.º, da Constituição da República Portuguesa”.[1]
Sem embargo dos casos em que as nulidades são de conhecimento oficioso, devem ser arguidas pelos interessados, perante o juiz- arts 196º e 197º do CPC), e a decisão que vier a ser proferida é que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a limitação constante do nº2 do artigo 630º do CPC, segundo o qual “ não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º e das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios”.
Assim, do n.° 2 do art. 630º do CPC , se extrai a seguinte regra: todas as decisões judiciais relativas à simplificação ou agilização processual, ou à adequação formal, ou às regras gerais da nulidade dos actos processuais admitem recurso quando contendam quer com os princípios da igualdade ou do contraditório, quer com a aquisição processual de factos, quer com a admissibilidade de meios probatórios.
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Feitas estas considerações, as quais, recuperam, em parte, aquelas feitas em sede de decisão da reclamação, desde já adiantamos que não concordamos com a decisão recorrida quando afirma que não foi preterida qualquer formalidade.
Efectivamente, no respeito dos princípios contidos nos artigos 20º da CRP e artigos 3º, nº3 e 17º do CIRE, deve ser assegurado o princípio do contraditório, ouvindo-se todos os interessados sobre a matéria e, no caso, conforme já foi adiantado, deveria o Tribunal recorrido notificar a ora Recorrente do teor daqueles pareceres dando a esta a oportunidade de refutar o alegado nesses pareceres.
Acresce que, conforme refere Rui Estrela Oliveira[2], as alegações a que se refere o artigo 188º do CIRE integrarão necessariamente matéria de facto: os factos que o interessado julgar relevantes para a decisão de qualificação e que, no seu entender, se poderão subsumir às normas contidas no artigo 186º do CIRE.
Estes factos devem ser alegados com um grau de concretização adequado ao exercício do direito de contraditar que é conferido aos restantes intervenientes, designadamente aos visados pelo incidente. Daí que não repugne que possa ser proferido despacho de aperfeiçoamento a convidar o interessado a concretizar os factos deficientemente alegados, sob pena de não se poder considerar, em sede de selecção de matéria de facto (arts 188º7 e 136º, nº3, do CIRE) as alegações em causa como contendo matéria de facto relevante para a decisão da causa (artigos 17º do CIRE, 5º e 590º, nº4 do CPC).
Apresentadas as alegações, o apresentante passa a ser considerado parte processual e, como tal, deve ter personalidade judiciária, capacidade judiciária, legitimidade e deve fazer-se representar por advogado. Ou seja, devem estar preenchidos os pressupostos processuais relativamente às partes, tal e qual qualquer parte civil em processo declarativo civil (conforme o disposto nos artigos 17º do CIRE, 5º a 13º e 21 º a 26º do CPC).
Todavia, conforme resulta do nº5 do artigo 188º do CIRE as peças processuais centrais deste incidente são aquelas que o administrador da insolvência e o Ministério Público estão obrigadas a apresentar, nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 188º do CIRE, sem prejuízo de os interessados ao alegarem apresentarem os seus meios de prova e do disposto nos artigos 302º e 303º do CPC, por força da remissão do artigo 188º, nº7, para o artigo 134º, nº1, do CIRE e deste para o disposto no artigo 25º, nº2, todos do CIRE.
De resto, não obstante os pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público constituírem, como resulta dos nºs 5 e 6 do artigo 188º do CIRE elementos relevantes na decisão do incidente de qualificação de insolvência- e na sua tramitação- é nosso entendimento, que na hipótese de coincidirem os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal não fica vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.
Este entendimento sai reforçado pela actual redacção do nº5 do artigo 188º do CIRE, (anterior nº 4), porquanto, aí se refere que “ coincidindo os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal pode proferir decisão de imediato nesse sentido”, enquanto na anterior redacção, uma vez coincidentes os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, estatuía-se o proferimento pelo juiz de decisão nesse sentido. Agora esse aparente imperativo foi convolado para uma simples faculdade - Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, artigo 188º CIRE.
Não obstante, não se ignora que se o juiz decidir em conformidade essa decisão é irrecorrível.
E também não podemos deixar de ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no artigo 11º do CIRE, do qual, decorre que no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes, o que, significa que o juiz, por sua iniciativa pode investigar livremente esses factos, bem como, recolher provas que entender convenientes. Tudo isto, sem prejuízo de certos efeitos cominatórios fixados imperativamente na lei.
E, a propósito, urge assinalar que o juiz, também na qualificação da insolvência, deve atender a todos os elementos assentes no processo, ainda que não tenham sido alegados ou atendidos nos pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público - neste sentido, consultar AC. Rel. Lx., de 27-11-2007, in CJ, V, pág 104, citado na anotação ao artigo 188º do CIRE, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda.
Consequentemente, no caso dos autos a falta de notificação à Recorrente do teor do parecer do Senhor Administrador da Insolvência e da promoção do Ministério Público e a falta de audição por qualquer outro meio da Recorrente quanto ao teor dos mesmos, traduz uma omissão de um acto susceptível de inquinar todo o processado ulterior, incluindo a sentença proferida, porquanto, impediu a ora recorrente de refutar, querendo, o conteúdo desses pareceres e na medida em que, a eventual posição da ora recorrente sobre aqueles pareceres não foi ponderada pelo juiz.
Por último, refira-se que sempre que um despacho não se pronuncia expressamente sobre uma infracção processual anterior não se pode/deve dizer que considerou indirecta e implicitamente que não existia tal infracção processual; mas antes e apenas, pura e simplesmente, que não se pronunciou sobre tal questão e objecto processual, pelo que, em conclusão, até ao trânsito do despacho – que “parece” cobrir a infracção processual – pode a infracção ser suscitada e conhecida, não estando o seu conhecimento, nestes estritos termos, vedado pelo esgotamento do poder jurisdicional, nem representando uma violação de caso julgado formal anterior (lembra-se, a infracção/nulidade tem que ser suscitada até ao trânsito do despacho que “parece” cobrir a infracção processual).Neste Sentido e citando Lebre de Freitas, ver Ac. Relação de Coimbra, Processo nº 1507/11.0TBPBL-A.C1, Relator:Barateiro Martins, data do Acordão:25-02-2014
É justamente o caso dos autos: a nulidade, respeitante a uma infracção processual anterior não foi expressamente apreciada na decisão que qualificou a insolvência, limitando-se o Tribunal recorrido a referir que os argumentos da requerente não permitiriam qualificar a insolvência como culposa, sem se referir concretamente a esses factos em sede de decisão sobre a questão de facto.
Concluindo: após o parecer do administrador da insolvência e a promoção do M.P. concordantes no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, deve ser assegurado o princípio do contraditório, ouvindo-se os interessados processuais sobre a matéria, após o que caberá ao juiz do processo proceder a um juízo crítico sobre a legalidade desses parecer e promoção, nomeadamente tendo em conta a posição sobre a matéria dos diversos interessados processuais, e consequentemente decidir sobre a qualificação da insolvência. (neste sentido, ver também Ac TR Évora de 10-02-2010, Proc nº 1086/08.5TBSLV-B.E1)
Em face das considerações expostas, procede assim a arguida nulidade de omissão de notificação dos interessados nos autos, do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., omissão essa que pode influir na apreciação da causa (art.°195º do CPC), pelo que, se revoga o despacho recorrido e se anulam os actos praticados no Incidente de Qualificação da Insolvência, após a junção aos autos do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., nomeadamente a decisão de qualificação do incidente.
Sumário.
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IV - Decisão
Face ao exposto, revoga-se o despacho recorrido e, considerando procedente a nulidade de omissão de notificação à recorrente, interessada processual, do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., anulam-se os actos praticados no Incidente de Qualificação da Insolvência após a junção aos autos desses parecer e promoção, nomeadamente a decisão do incidente de qualificação da insolvência.
Sem custas.
Registe e notifique.

Porto, 23-03-2018
Francisca da Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
Teles de Menezes
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[1] Assim, relativamente a esta norma já o Tribunal Constitucional se pronunciou pela sua constitucionalidade (Ver: Acórdão n.º 340/2011/Diário da República n.º 191/2011, Série II de 2011-10-04/Data de Publicação:2011-10-04/Tipo de Diploma: Acórdão/Número:340/2011, Páginas:39570 – 39573/Parte:D - Tribunais e Ministério Público/SUMÁRIO/Não julga inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 4, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas quer no segmento em que estabelece que, se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere decisão nesse sentido mesmo que haja interessados que tenham manifestado posição diversa quer no segmento em que considera tal decisão irrecorrível).
[2] Trabalho final do curso de pós - graduação em Direito das Empresas, do IDET- Instituto de direito das empresas e do Trabalho, da Faculdade de Direito de Coimbra, apresentado em Dezembro de 2008 perante o mestre João Labareda.