Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
374/16.1T8ESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE RECTIFICAÇÃO DO REGISTO PREDIAL
DUPLICAÇÃO TOTAL DE DESCRIÇÕES
DUPLICAÇÃO PARCIAL DE DESCRIÇÕES
REPARTIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20180322374/16.1T8ESP.P1
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 128, FLS 50-60)
Área Temática: .
Sumário: I - O recorrente insurge-se não contra o excesso da sentença, antes o excesso da decisão da Senhora Conservadora. Ora, só o excesso de pronúncia da sentença recorrida poderia caber no âmbito desta apelação. O trecho posto em causa pelo apelante não é da sentença, antes da decisão daquela Senhora oficial pública.
II - O Sistema Registal Português, desde a Lei Hipotecária de 1863, é - como todos os sistemas registais mais desenvolvidos - um sistema de fólio real, ou seja, é organizado em torno do imóvel – que deve ser individualizado com a máxima exactidão, de acordo com o princípio da especialidade física - e não pelo nome dos proprietários, como ocorre nos sistemas de fólio pessoal.
III - Havendo repetição da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, obviamente, a fiabilidade do sistema de registo é posta em causa pois, como é evidente, o verdadeiro problema que existe por detrás da dupla descrição trata-se da publicidade por parte do Registo de uma situação contraditória acerca da propriedade de um imóvel: publicita-se que duas pessoas distintas são proprietárias do mesmo imóvel no mesmo momento.
IV - No caso de duplicação (total ou parcial) de descrições e consequente incompatibilidade de situações tabulares, a resolução do conflito não pode ser atingida mediante recurso aos princípios da prioridade do registo e do trato sucessivo, antes apenas pela aplicação dos princípios e regras de direito substantivo, em acção própria.
V - No processo especial de rectificação do registo predial deveriam ter sido feitas as diligências de prova conduzentes à decisão do pedido- artºs 410º ss e 608º, nº 2 do NCPC-e o ónus da alegação dos factos essenciais constitutivos do pedido da requerente Junta de Freguesia de Silva a ela cabia- artºs 3º e 5º, nº 1, do NCPC. À requerente cabia, ainda, o ónus da prova dos factos constitutivos do seu pretenso direito- artº 342º, nº 1, Código Civil de 1966-contra ela se resolvendo a prova da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, nos termos do artº 414º NCPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº 374/16.1T8ESP.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
José Manuel de Araújo Barros
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Sumário:
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I-Relatório:
MUNICÍPIO ..., pessoa colectiva pública e contribuinte discal n.º ........., com sede no ..., cidade e concelho de Espinho, em 06.07.2016, apresentou impugnação judicial da decisão de 20 de Junho de 2016, da Exma. Senhora Conservadora do Registo Predial de Espinho, constante de fls. 61/66, que deferiu parcialmente o pedido de rectificação de registo apresentado, em 25.05.2016, pela JUNTA DE FREGUESIA ..., “averbando-se em ambos os prédios a sua eventual duplicação, após a decisão se tornar definitiva”, concluindo no sentido que deveria a Senhora Conservadora ter mantido o registo predial sob o nº 4041, da freguesia ..., efectuado a favor do impugnante.
Respondeu a JUNTA DE FREGUESIA ..., pessoa colectiva pública, concluindo pela improcedência da impugnação judicial.
O Ministério Público não emitiu o parecer a que alude o artigo 146.°, n.° 1, do Código de Registo Predial, apesar de lhe ter sido concedido, por despacho judicial, o prazo de quinze dias para o efeito.
Foi proferida a sentença, exarada de fls. 142 a 149, em 14.12.2016, que julgou improcedente o recurso de impugnação apresentado pelo MUNICÍPIO ..., mantendo, nos seus exactos termos, a decisão da Exma. Conservadora do Registo Predial de Espinho datada de 20 de Junho de 2016.
A sentença recorrida tem a seguinte Fundamentação de Facto:
Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.º
Encontra-se descrito, a favor do Município ..., com o n.º4041/20151130, um prédio urbano denominado Escola ..., com a área total de 6950 m2 (área coberta de 750 m2 e descoberta de 6.200 m2), inscrita na matriz sob o artigo 1748, composto por edifício destinado a estabelecimento de ensino, composto por um pavilhão de dois andares, destinado a serviços.
2.º
Tal averbamento a favor do Município ... resultou da ap. 1910 de 2015/11/30, tendo como causa: “transferência de património nos termos do art. 26.º do D.L. n.º 7/2003, de 15 de janeiro (modo de direito público de constituição de domínio privado indisponível, bem afeto a fins de utilidade pública do Município).”
3.º
Encontra-se descrito a favor da Junta de Freguesia ..., na Conservatória de Registo Predial de Espinho, com o n.º 1911/20040914, um prédio urbano denominado ..., sito em ..., Rua ..., n.º . e Rua ..., com a área total de 17059 m2 (área coberta de 838 m2 e área descoberta de 16221,5 m2), inscrito nas matrizes urbanas sob os artigos 1219 e 2694, composto por prédio destinado a outros (escola), edifício de dois pisos e prédio destinado a campo de futebol.
4.º
Tal prédio encontra-se averbado a favor da Junta de Freguesia ... pela ap. 4 de 2004/09/14, tendo como causa doação de B..., S.A.
Com interesse para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, designadamente não se provou que exista duplicação do solo e da construção averbada no prédio da freguesia ... com a descrição aberta a favor do Município ....
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O MUNICÍPIO ..., em 12.01.2017 apelou para esta Relação, nos termos constantes de fls. 142 a 149, focando apenas matéria de direito.
São as seguintes as conclusões do recurso do apelante:
I. Decidiu a Exma. Senhora Conservadora que “(…) não tendo sido possível apurar, face à documentação apresentada se, efectivamente, estamos perante o mesmo solo, será anotada a eventualidade dessa duplicação, pois que tendo sido instaurado processo especial de rectificação visando a eliminação da duplicação, a prova da existência da duplicação constitui condição do deferimento do pedido. E provada que seja a mesma e face ao título (voluntário ou judicial) assim se averiguará os antepossuidores e se restabelecerá ou não o trato sucessivo. (…) ao abrigo dos artigos 18º, 79º, 86º, 88º e 120 e seguintes do C.R.P., defiro parcialmente o pedido, averbando-se em ambos os prédios a sua eventual duplicação, após a decisão se tornar definitiva”,
II. E o tribunal a quo mal andou ao julgar a impugnação judicial da decisão improcedente, aderindo à fundamentação da Exma. Senhora Conservadora, mantendo a decisão nos seus exactos termos.
III. Decisão essa que é, em si, contraditória, quando se comparam os factos provados em 1.º e 3.º, da fundamentação, mormente as áreas de um e de outro artigos.
IV. Para além de não se ter pronunciado sobre a nulidade, por excesso de pronúncia, invocada pelo recorrente.
V. Ora, não poderia a Exma. Senhora Conservadora, bem como o tribunal a quo, olvidar que “o título que serviu de base” ao pedido de registo pelo ora recorrente é, nem mais nem menos, que a lei (vide o artigo 26º do Decreto-Lei n.º 7/2003, de 15.01, na esteira da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, e, outrossim, o plasmado no artigo 94º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).
VI. Assim como que dispõe a lei, nos artigos 86º e 88º, ambos, do CRPredial, que há, antes do mais, que determinar a duplicação de descrições, em termos precisos e que não suscitem dúvidas sobre a identidade do objecto, o que não se vislumbra que tenha sido demonstrado no caso,
VII. É sobre o requerente da rectificação que impende o ónus da prova que dê arrimo ao seu pedido, prova que não foi, minimamente, realizada, como (e aí bem) concluiu a Exma. Senhora Conservadora em III - DECISÃO, quando refere que “(…) não tendo sido possível apurar, face à documentação apresentada se, efectivamente, estamos perante o mesmo solo (…)”;
VIII. Desse modo, constata-se que a decisão está em perfeita contradição com os seus fundamentos, o que, por aplicação subsidiária do artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC, determina a sua nulidade, factualidade que o tribunal a quo também omite na sua decisão;
IX. Outrossim, ainda em III – DECISÃO, a Exma. Senhora Conservadora teceu considerações que extravasam o âmbito do que lhe foi pedido pelas partes, bem como os seus próprios poderes, quando refere o seguinte: “Deixo por fim a minha preocupação quanto ao destino a dar às escolas primárias, após a desactivação, como é o caso, considerando a sua natureza indisponível, e não encontrei até ao momento solução legal para o efeito”;
X. Sendo que a pronúncia por excesso, uma vez mais, é causa de nulidade da decisão — artigo 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC;
XI. Pelo que a Exma. Senhora Conservadora não poderia, até por contradição, ter decidido deferir (sequer) parcialmente o pedido in casu, e o tribunal a quo não poderia ter julgado, como julgou, o recurso de impugnação improcedente.
XII. Tal imóvel é um prédio urbano, constituindo um edifício incorporado no solo, com superfície coberta e descoberta, e cuja construção foi integralmente realizada pelo Município, por administração directa e com financiamento estatal.
XIII. Após a sua construção, o Município procedeu à entrega das instalações à Direcção Escolar de Aveiro por “Auto de Entrega do Edifício”, tendo aquela passado a ser a proprietária.
XIV. Certo é que por força do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 77/84, de 08.03, ocorreu a transferência de competências do Governo para as autarquias, e o património bem como equipamentos eventualmente afectos aos centros de educação pré-escolar e as escolas do 1º ciclo do ensino básico, passaram a constituir património do Município por aplicação directa – e bastante – desta disposição e diploma legal.
XV. Esta lei veio a ser alterada e revogada pela Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, e posteriormente pelo artigo 26º do Decreto-Lei n.º 7/2003, de 15.01, e, presentemente, a lei transfere essa propriedade dos edifícios escolares do pré-primário e 1º ciclo com dispensa da celebração de protocolo ou qualquer outra formalidade, constituindo a lei título bastante para o efeito, mais prevendo que apresentação deve ser efectuada por simples requerimento.
XVI. É certo que a escola em causa, como todo o seu equipamento mobiliário, maquinaria, material didáctico e demais bens necessários ao seu funcionamento, sempre foram utilizados, de forma pública e à vista de todos, como escola do 1º ciclo, com administração única, directa e exclusiva, do Município ... e nunca, em momento algum, com qualquer tipo de interferência da Junta de Freguesia, ora recorrida.
XVII. Trata-se de um edifício escolar, usado como escola primária, desde a sua edificação, de forma ininterrupta e até à sua desactivação, o que veio a suceder com a recente abertura dos novos centros escolares, e à semelhança de todos os outros edifícios do pré-escolar e 1º ciclo existentes no concelho de Espinho, este património sempre foi propriedade do Município, após a entrada em vigor da sobredita legislação.
XVIII. O ora recorrente sempre teve a posse de tais imóveis, pese embora o facto notório de que o funcionamento das escolas incumbia ao Ministério da Educação.
XIX. O registo predial deste prédio a favor do Município, pese embora apenas realizado no ano de 2015, não consubstancia, em si, qualquer constituição de um direito, mas apenas e tão-só a exteriorização desse direito que já existia desde o ano de 1987, ano em que foi participado à matriz predial.
XX. O imóvel sempre esteve inventariado e integrado no património do Município, sujeito a referendo municipal e correspectivas votações.
XXI. É claro, ao abrigo da lei, qual o legítimo proprietário e possuidor do edifício escolar em causa, motivo pelo qual não se suscitaram quaisquer dúvidas à Exma. Sra. Conservadora na elaboração do seu registo, ao abrigo dos princípios legais que regem o direito registral.
XXII. O princípio do trato sucessivo pretende assegurar a continuidade do registo, e garantir a quem possui uma inscrição de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido a certeza de que não pode haver nova inscrição definitiva lavrada sem a sua intervenção e tem consagração expressa no artigo 34º, n.ºs 1 e 2, do CRPredial e contempla-se, assim, tanto o ingresso no registo, como o que tipicamente constitui trato sucessivo, a continuidade do registo com a garantia que lhe é inerente.
XXIII. Mesmo neste entendimento que a lei consagra, e que revela grande amplitude, só estará abrangida dentro da noção de trato sucessivo a coerência registral entre as várias inscrições que se sucedem relativamente a cada prédio.
XXIV. Desde logo, e como se vê pela análise dos prédios em questão, não só a Junta de Freguesia nunca foi proprietária de qualquer edifício escolar destinado a escola do 1º ciclo (escola Primária) como não existe identidade entre os prédios.
XXV. Assim sendo, e após melhor pesquisa de documentos, bem se pode constatar que, na sequência da construção edificada pelo recorrente e posterior entrega à Direção Escolar de Aveiro, os segundos antepossuidores mais não são do que o próprio Município;
XXVI. Ainda que, hipoteticamente, se pretenda considerar que os prédios em questão constituam a mesma realidade física, o que não se verifica, e face à indubitável prova da propriedade do registo da escola a favor do Município, sempre se diria que o registo a cancelar ou a inutilizar seria aquele que falsamente foi declarado pela Junta de Freguesia.
XXVII. A inscrição na matriz de um prédio urbano, com as características que, posteriormente, a então requerente Junta de Freguesia levou a registo, não constitui qualquer presunção de propriedade, sendo a matriz mero cadastro dos prédios com incidência fiscal.
XXVIII. A então requerente e ora recorrida ao pedir a rectificação do registo com a descrição n.º 4041, por duplicação de registos, não logrou, como era seu dever, realizar prova cabal de que o solo é seu, não conseguiu sequer pôr em causa a identidade de objectos, quer na sua dimensão, quer nos seus confinantes;
XXIX. O prédio da escola é um Edifício incorporado no solo, neste se incluindo o logradouro e muros de vedação;
XXX. A então requerente Junta de Freguesia ..., ao longo desses trinta anos, teve conhecimento de que o prédio integrava o inventário do Município ora recorrente e nunca o reclamou como seu;
XXXI. O trato sucessivo mostra que o antepossuidor era o Estado central e não a então requerente e ora recorrida como essa alegou e o Município ... requereu a inscrição a seu favor com o título que a lei determina ser bastante para que se proceda à inscrição.
XXXII. Destarte, nunca a Exma. Senhora Conservadora poderia ter decidido deferir parcialmente o pedido da ora recorrida Junta de Freguesia ... e o tribunal a quo deveria ter julgado procedente o recurso de impugnação da decisão da Exma. Senhora Conservadora.
NESTES TERMOS, DEVE A DECISÃO PROLATADA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR UMA OUTRA QUE, JULGANDO O PRESENTE RECURSO PROCEDENTE, MANDE REVOGAR A DECISÃO DA EXMA. SENHORA CONSERVADORA, MANTENDO, SEM QUAISQUER ALTERAÇÕES, O REGISTO PREDIAL SOB O N.º 4041 DA FREGUESIA ..., EFECTUADO A FAVOR DO RECORRENTE MUNICÍPIO ..., SÓ ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.
Responderam a JUNTA DE FREGUESIA ... e o Ministério Público, no sentido da manutenção do julgado.
Recebido o recurso na primeira instância e pelo ora relator e colhidos os vistos legais dos senhores Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.
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II.1-Do recurso:
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal superior apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e no recurso não se apreciam razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º e 639º, nºs 1 e 2, NCPC, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26.06.2013, aplicável ao presente processo por força do disposto no artº 8º do diploma preambular - neste sentido são a jurisprudência e doutrina correntes (a título de exemplo Acórdão do STJ de 28.05.2009, in www.DGSI.pt, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Conselheiro Abrantes Geraldes, Almedina, p. 84 e 118.
Isto posto, in casu o objeto do recurso é a decisão recorrida e que apenas abrange as seguintes questões de direito:
-a decisão está em contradição com os seus fundamentos, o que, por aplicação subsidiária do artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC;
- a sentença padece de excesso de pronúncia, quando em “III – DECISÃO, a Exma. Senhora Conservadora teceu considerações que extravasam o âmbito do que lhe foi pedido pelas partes, bem como os seus próprios poderes, quando refere o seguinte: “Deixo por fim a minha preocupação quanto ao destino a dar às escolas primárias, após a desactivação, como é o caso, considerando a sua natureza indisponível, e não encontrei até ao momento solução legal para o efeito”, que é causa de nulidade da decisão — artigo 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC;
-revogação da decisão recorrida.
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Vejamos os normas do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 6 de julho, até às alterações do Decreto-Lei n.º 201/2015, de 17 de setembro, com início de vigência a 1 de Novembro de 2015, que importa chamar à colação para a decisão do recurso, face às entrada do pedido de retificação do registo apresentado pela JUNTA DE FREGUESIA ..., em 25.05.2016.
“Artigo 1.º
Fins do registo
O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.
Artigo 2.º
Factos sujeitos a registo
1 - Estão sujeitos a registo:
a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão;
(...)
Artigo 6.º
Prioridade do registo
1 - O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.
(...)
Artigo 7.º
Presunções derivadas do registo
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Artigo 8.º-A
Obrigatoriedade do registo
1 - É obrigatório submeter a registo:
a) Os factos referidos no artigo 2.º, exceto:
(...)

Artigo 9.º
Legitimação de direitos sobre imóveis
1 - Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo.
(...)
Artigo 18.º
Inexatidão do registo
1 - O registo é inexato quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade.
2 - Os registos inexatos são retificados nos termos dos artigos 120.º e seguintes.
Artigo 34.º
Princípio do trato sucessivo
1 - O registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os onera.
2 - O registo definitivo de aquisição de direitos depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite, quando o documento comprovativo do direito do transmitente não tiver sido apresentado perante o serviço de registo.
(...)
Artigo 43.º
Prova documental
1 - Só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem.
(...)
Artigo 46.º
Declarações complementares
1 - Além de outros casos previstos, são admitidas declarações complementares dos títulos:
a) Para completa identificação dos sujeitos, sem prejuízo das exigências de prova do estado civil;
b) Para a menção dos elementos que integrem a descrição, quando os títulos forem deficientes, ou para esclarecimento das suas divergências, quando contraditórios, entre si, ou com a descrição, em virtude de alteração superveniente.
2 - Os erros sobre elementos da identificação do prédio de que os títulos enfermem podem ser retificados por declaração de todos os intervenientes no ato ou dos respetivos herdeiros devidamente habilitados.
Artigo 79.º
Finalidade
1 - A descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios.
2 - De cada prédio é feita uma descrição distinta.
3 - No seguimento da descrição do prédio são lançadas as inscrições ou as correspondentes cotas de referência.
4 - Sempre que se cancelem ou caduquem as inscrições correspondentes, ou se transfiram os seus efeitos mediante novo registo, as inscrições ou as cotas de referência devem publicitar que a informação deixou de estar em vigor.
Artigo 80.º
Abertura de descrições
1 - As descrições são feitas na dependência de uma inscrição ou de um averbamento.
2 - O disposto no número anterior não impede a abertura da descrição, em caso de recusa, para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 69.º e, se a descrição resultar de desanexação de outro prédio, deve ser feita a anotação da desanexação na ficha deste último.
3 - O registo das operações de transformação fundiária e das suas alterações dá lugar à descrição dos lotes ou parcelas que já se encontrem juridicamente individualizados.
Artigo 86.º
Descrições duplicadas
1 - Quando se reconheça a duplicação de descrições, reproduzir-se-ão na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes fichas, cujas descrições se consideram inutilizadas.
2 - Nas descrições inutilizadas e na subsistente far-se-ão as respetivas anotações com remissões recíprocas.
Artigo 88.º
Alteração da descrição
1 - Os elementos das descrições podem ser alterados, completados ou retificados por averbamento.
2 - As alterações resultantes de averbamentos não prejudicam os direitos de quem neles não teve intervenção, desde que definidos em inscrições anteriores.
Artigo 120.º
Processo de retificação
O processo previsto neste capítulo visa a retificação dos registos e é regulado pelos artigos seguintes e, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, pelo Código de Processo Civil.
Artigo 121.º
Iniciativa
1 - Os registos inexatos e os registos indevidamente lavrados devem ser retificados por iniciativa do conservador logo que tome conhecimento da irregularidade, ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito.
2 - Os registos indevidamente efetuados que sejam nulos nos termos das alíneas b) e d) do artigo 16.º podem ser cancelados com o consentimento dos interessados ou em execução de decisão tomada neste processo.
3 - A retificação do registo é feita, em regra, por averbamento a lavrar no termo do processo especial para esse efeito previsto neste Código.
4 - Os registos nulos por violação do princípio do trato sucessivo são retificados pela feitura do registo em falta quando não esteja registada a ação de declaração de nulidade.
5 - Os registos lançados em ficha distinta daquela em que deviam ter sido lavrados são oficiosamente transcritos na ficha que lhes corresponda, anotando-se ao registo errado a sua inutilização e a indicação da ficha em que foi transcrito.
Artigo 122.º
Efeitos da retificação
A retificação do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiros de boa fé, se o registo dos factos correspondentes for anterior ao registo da retificação ou da pendência do respetivo processo.
Artigo 123.º
Pedido de retificação
1 - No pedido de retificação devem ser especificados os fundamentos e a identidade dos interessados.
2 - O pedido de retificação é acompanhado dos meios de prova necessários e do pagamento dos emolumentos devidos.
(…)
Artigo 125.º
Casos de dispensa de consentimento dos interessados
1 - A retificação que não seja suscetível de prejudicar direitos dos titulares inscritos é efetuada, mesmo sem necessidade do seu consentimento, nos casos seguintes:
a) Sempre que a inexatidão provenha da desconformidade com o título, analisados os documentos que serviram de base ao registo;
b) Sempre que, provindo a inexatidão de deficiência dos títulos, a retificação seja requerida por qualquer interessado com base em documento bastante.
2 - Deve entender-se que a retificação de registo inexato por desconformidade com o título não prejudica o titular do direito nele inscrito.
(…)
Artigo 127.º
Indeferimento liminar
1 - Sempre que o pedido se prefigure como manifestamente improcedente, o conservador indefere liminarmente o requerido, por despacho fundamentado de que notifica o requerente.
2 - A decisão de indeferimento liminar pode ser impugnada nos termos do artigo 131.º
3 - Pode o conservador, face aos fundamentos alegados no recurso interposto, reparar a sua decisão de indeferir liminarmente o pedido, mediante despacho fundamentado que ordene o prosseguimento do processo, do qual é notificado o recorrente.
4 - Não sendo a decisão reparada, são notificados os interessados a que se refere o artigo 129.º para, no prazo de 10 dias, impugnarem os fundamentos do recurso, remetendo-se o processo à entidade competente.
Artigo 129.º
Notificação dos interessados não requerentes
1 - Os interessados não requerentes são notificados para, no prazo de 10 dias, deduzirem oposição à retificação, devendo juntar os elementos de prova e pagar os emolumentos devidos.
(…)
Artigo 130.º
Instrução e decisão
1 - Recebida a oposição ou decorrido o respetivo prazo, o conservador procede às diligências necessárias de produção de prova.
2 - A prova testemunhal tem lugar mediante a apresentação das testemunhas pela parte que as tiver indicado, em número não superior a três, sendo os respetivos depoimentos reduzidos a escrito por extrato.
3 - A perícia é requisitada pelo conservador ou realizada por perito a nomear nos termos previstos no artigo 568.º do Código de Processo Civil, aplicável com as necessárias adaptações.
4 - O conservador pode, em qualquer caso, proceder às diligências e produção de prova que considerar necessárias.
5 - [Revogado].
6 - A decisão sobre o pedido de retificação é proferida no prazo de 10 dias.
Artigo 131.º
Recurso hierárquico e impugnação judicial
1 - A decisão sobre o pedido de retificação pode ser impugnada mediante interposição de recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da comarca da área da circunscrição a que pertence o serviço de registo, nos termos dos números seguintes.
2 - A interposição da impugnação judicial por algum dos interessados faz precludir o seu direito à interposição de recurso hierárquico, e equivale à desistência deste, quando por si já interposto.
3 - A interposição da impugnação judicial por algum dos interessados determina a suspensão do processo de recurso hierárquico anteriormente interposto por qualquer outro interessado, até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo àquela impugnação.
4 - Têm legitimidade para recorrer hierarquicamente ou impugnar judicialmente a decisão do conservador qualquer interessado e o Ministério Público.
5 - O recurso hierárquico e a impugnação judicial previstos no n.º 1 têm efeito suspensivo e devem ser interpostos no prazo de 10 dias, por meio de requerimento onde são expostos os respetivos fundamentos.
6 - A interposição de recurso hierárquico ou de impugnação judicial considera-se feita com a apresentação do respetivo requerimento no serviço de registo onde foi proferida a decisão impugnada.
Artigo 131.º-A
Tramitação subsequente
1 - Apresentada a impugnação, são notificados os interessados para, no prazo de 10 dias, impugnarem os seus fundamentos.
2 - Não havendo lugar a qualquer notificação ou findo o prazo a que se refere o número anterior, o processo é remetido à entidade competente.
Artigo 131.º-C
Impugnação judicial
1 - Tendo o recurso hierárquico sido julgado improcedente o interessado pode ainda impugnar judicialmente a decisão sobre o pedido de retificação.
2 - Tendo o recurso hierárquico sido julgado procedente, pode qualquer outro interessado, na parte que lhe for desfavorável, impugnar judicialmente a decisão nele proferida.
3 - A impugnação é proposta mediante apresentação do requerimento no serviço de registo competente, no prazo de 10 dias a contar da data da notificação da decisão.
4 - O processo é remetido ao tribunal no prazo de dois dias, instruído com o processo de recurso hierárquico.
Artigo 132.º
Decisão da impugnação judicial
1 - Recebido em juízo e independentemente de despacho, o processo vai com vista ao Ministério Público, para emissão de parecer.
(…).
Artigo 132.º-A
Recurso para o tribunal da Relação
1 - Da sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância podem interpor recurso para o tribunal da Relação os interessados, o conservador e o Ministério Público.
2 - O recurso, que tem efeito suspensivo, deve ser interposto no prazo de 30 dias.
(…)
Artigo 132.º-B
Devolução do processo
Após o trânsito em julgado da sentença ou do acórdão proferidos, o tribunal devolve à conservatória o processo de rectificação”.
Destas normas jurídicas do CRP resulta que a tramitação da impugnação das decisões do conservador encontra-se regulamentada nos artigos 140° a 149°do C.R.P.
Encontramo-nos em sede de recurso contencioso.
O artigo 156.° do C.R.P. estipula que, "salvo disposição legal em contrário, aos actos, processos e respectivos prazos previstos no presente código é aplicável, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil".
Assim, este diploma legal prevê processos especiais com uma tramitação muito específica e em caso de verdadeiras lacunas será lançada mão do CPC.
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Sendo este o enquadramento geral legal para a decisão do recurso, entremos na apreciação das questões que constituem o seu âmbito:
II.1.1-Nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os seus fundamentos:
Na interpretação e aplicação da Lei aos factos provados de acordo com o disposto no artº 607º, nº 3, NCPC, a sentença recorrida limitou-se a considerar que:
“De harmonia com o disposto no art. 131.º, n.º 1, do Cód. Registo Predial, “a decisão sobre o pedido de retificação pode ser impugnada mediante interposição de recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. ou mediante impugnação judicial para o tribunal da comarca da área da circunscrição a que pertence o serviço do registo…”
No caso “sub judice”, o recorrente Município ... apenas coloca em causa a decisão de averbar nos prédios aludidos em 1.º e 3.º dos Factos Provados a sua eventual duplicação.
Ora, quanto a esta matéria, por razões de economia processual e por concordamos integralmente com o que ali é dito, reproduzimos integralmente a argumentação expendida, pela Exma. Conservadora do Registo Predial de Espinho, na decisão em crise (segue-se a transcrição da parte decisória do despacho impugnado da Senhora Conservadora do Registo Predial, Comercial e Automóvel de espinho, de 20.06.20116 (fls 61 a 66 vº).
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do artº 615º do CPC.
Nos termos daquele preceito, é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada[1].
A sentença é nula por oposição dos fundamentos com a decisão nos termos da 1ª parte da al. c) do nº 1 do citado artº 615º do CPC quando os fundamentos invocados devessem logicamente conduzir a uma decisão diferente da que a sentença expressa, ou seja, quando os fundamentos apontam num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente[2].
Já a oposição entre fundamentos de facto constitui uma nulidade processual, de conhecimento oficioso, suprível pelo tribunal de recurso, caso o processo tenha todos os elementos que permitam a alteração da matéria de facto, ou determinante da anulação do decisão da matéria de facto, no caso contrário: é o que resulta do disposto no artº 662º, nºs 1 e 2, al. c) do CPC.
Como se vê, a sentença só enferma do vício referido na 1ª parte da al. c) do nº 1 do citado artº 615º do CPC o mencionado preceito quando ocorre oposição entre os fundamentos de direito e a decisão.
A oposição entre fundamentos de facto e fundamentos de direito, a oposição entre fundamentos de facto e a decisão e a oposição entre fundamentos de direito constituem erros de julgamentos, susceptíveis de conduzir à revogação ou alteração da sentença em sede de recurso, mas não a viciam formalmente.
Ora, a decisão contida na sentença recorrida, constitui o corolário lógico dos fundamentos, pelo que a sentença recorrida não padece do mencionado vício de oposição dos fundamentos com a decisão.
O que o apelante invoca é a existência de uma contradição entre os factos provados na sentença sob os números 1 e 3 e a decisão, ou seja, invoca a oposição entre fundamentos de facto e a decisão, o que, como vimos, constitui erro de julgamento que, a verificar-se, poderá levar a que a sentença seja alterada ou revogada, em sede de recurso, mas não a vicia formalmente.
Conclui-se, assim, pelo indeferimento dessa nulidade da sentença por contradição da decisão com os seus fundamentos de facto.
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II.1.2- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia:
A sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artº 615º, nº1, al. d) CPC- “o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Também é nula se o juiz condenar em objecto diverso ou em quantidade superior ao pedido, nos termos dos artºs 615º, n1, al. e) e 609º, nº1, NCPC.
O apelante invoca essa causa de nulidade da sentença, na seguinte conclusão do recurso “IX. Outrossim, ainda em III – DECISÃO, a Exma. Senhora Conservadora teceu considerações que extravasam o âmbito do que lhe foi pedido pelas partes, bem como os seus próprios poderes, quando refere o seguinte: “Deixo por fim a minha preocupação quanto ao destino a dar às escolas primárias, após a desactivação, como é o caso, considerando a sua natureza indisponível, e não encontrei até ao momento solução legal para o efeito”.
Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis:
«(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.
(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.
Ora, a sentença conheceu da única questão de que deveria conhecer (de direito) e que era que nunca a Exma. Senhora Conservadora do Registo Predial de Espinho poderia ter decidido deferir parcialmente o pedido (de rectificação de registo) da recorrida Junta de Freguesia ..., antes deveria ter mantido sem quaisquer alterações o registo predial sob o n.º 4041 da freguesia ..., efectuado a favor do recorrente Município ....
A sentença recorrida na sua parte decisória (é essa que interessa para aqui) julgou improcedente o recurso de impugnação apresentado pelo MUNICÍPIO ..., mantendo, nos seus exactos termos, a decisão da Exma. Conservadora do Registo Predial de Espinho datada de 20 de Junho de 2016.
Não o fez de forma excessiva, nem conheceu de outra questão que importasse conhecer e decidir, não estando aqui em causa a bondade da decisão.
O recorrente, no fundo insurge-se não contra o excesso da sentença, antes o excesso da decisão da Senhora Conservadora. Ora, só o excesso de pronúncia da sentença recorrida poderia caber no âmbito desta apelação. O trecho posto em causa pelo apelante não é da sentença, antes da decisão daquela Senhora oficial pública.
Conclui-se, assim, pelo indeferimento dessa nulidade da sentença que não existe.
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II.1.2- Mérito da sentença recorrida:
Conforme se refere no acórdão da Relação do Porto de 19-12-2012 (no processo n.º 196/12.9TBLSD.P1, acessível in www.dgsi.pt), «com a conjugação dos referidos art. °s 8°-A e 36°, na redacção introduzida pelo Decreto-lei n° 116/2008, de 4 de Julho, o legislador, na prossecução do interesse ou finalidade subjacente ao registo predial (conforme prescreve o artigo 1.° do respectivo Código: "O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário"), afectou à obrigação de promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos, pessoas e entidades que, por via das suas funções privadas ou públicas, de algum modo tenham tido intervenção nos actos sujeitos a registo obrigatório. O que se enquadra, aliás, na previsão do art.° 41° ao mencionar que o registo se efetua mediante o pedido de quem tenha legitimidade, salvo os casos de ofícios idade previstos na lei.»
Doutra perspectiva, cumpre-nos lembrar que a finalidade do registo é proclamada no artigo 1.° do Código de Registo Predial, nos seguintes termos: "o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário".
Daqui podem retirar-se duas ideias essenciais: a da publicidade e a da segurança.
Efectivamente, o registo predial prossegue fins de natureza privada, bem como fins de natureza caracteristicamente pública.
Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real (segurança do comércio jurídico imobiliário, globalmente considerado), facilita o tráfico e o intercâmbio de bens e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais (cfr. José de Oliveira Ascensão, in "Direito Civil, Reais", 5a edição, 1993, p. 335, e Isabel Pereira Mendes, Enunciação Esquemática dos Fins e Princípios Registais, in Regesta, Revista de Direito Registrai, Ano XII, n° 4, Outubro- Dezembro de 1991, p. 19 e ss.).
Prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado [cfr. J. A. Mouteira Guerreiro, in "Noções de Direito Registrai (Predial e Comercial)", 2a edição, 1994, pág. 73].
Assim, o registo predial tem essencialmente por escopo dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis: pretende-se patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até à actualidade {vide Oliveira Ascensão, in Direitos Reais, 4ª ed. refundida, Coimbra Editora, 1983, pág. 337). Por conseguinte, o registo destina-se em primeira linha à tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado.
Por outro lado, a actividade registal situa-se também na área da gestão pública do Estado e a legitimidade do notário assenta no interesse público presente não apenas no processo de registo propriamente dito, mas também na impugnação de decisões registais desfavoráveis que neste processo forem proferidas (vide José Alberto Gonzalez, in "Direitos Reais e Direito Registai Imobiliário", 4ª ed., págs. 171 e 172).
O Sistema Registal Português, desde a Lei Hipotecária de 1863, é - como todos os sistemas registais mais desenvolvidos - um sistema de fólio real, ou seja, é organizado em torno do imóvel – que deve ser individualizado com a máxima exactidão, de acordo com o princípio da especialidade física[3] - e não pelo nome dos proprietários, como ocorre nos sistemas de fólio pessoal.
Porque assim é, naturalmente, as duplicações de descrições foram sempre muitíssimo criticadas, pois frustram os fins de certeza e segurança do registo, uma vez que sobre o mesmo prédio podem afinal vir a incidir diversas e opostas situações jurídicas[4].
Havendo repetição da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, obviamente, a fiabilidade do sistema de registo é posta em causa pois, como é evidente, o verdadeiro problema que existe por detrás da dupla descrição trata-se da publicidade por parte do Registo de uma situação contraditória acerca da propriedade de um imóvel: publicita-se que duas pessoas distintas são proprietárias do mesmo imóvel no mesmo momento.
Ora, tendo em conta que só pode existir um ius in re sobre determinada coisa na medida em que seja compatível com outro direito real que a tenha por objecto, ou na medida em que não seja excluído por força de um prevalecente ou pré-existente ius in re4 e, ainda, a impossibilidade de sobre a mesma coisa incidirem dois diversos direitos de propriedade, ocorrendo a duplicação da descrição de um mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, repetimos, não pode assumir relevância o princípio da prioridade registal nem o princípio do trato sucessivo e as presunções registais não prevalecem.
O conflito deve ser resolvido por via judicial, em acção judicial própria.
Sobre esta questão jurídica “perante o caso de duplicação de descrições prediais e linhas de registo incompatíveis, qual o valor a atribuir ao registo derivado do acto mais antigo?”, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 1/2017, de 23-02-2016, publicado no Diário da República n.º 38/2017, Série I, de 2017-02-22, pronunciou-se, por UNANIMIDADE, uniformizando jurisprudência nos seguintes termos:
Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.
Deste modo, o Aresto sufragou a tese do acórdão recorrido e afastou-se da posição adoptada pelo acórdão fundamento - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/02/2012 -, nos termos da qual: “constatando-se uma concorrência de presunções derivadas do registo predial, deve prevalecer a que derivar do acto de registo mais antigo, valendo para o efeito a data de apresentação a registo ou, tendo a mesma data, o respectivo número de ordem.” Concordamos na generalidade com o Aresto e respectiva fundamentação, uma vez que, em caso de duplicação (total ou parcial) de descrições e consequente incompatibilidade de situações tabulares, não temos dúvidas que a resolução do conflito não pode ser atingida mediante recurso aos princípios da prioridade do registo e do trato sucessivo, antes apenas e só, pela aplicação dos princípios e regras de direito substantivo, em acção própria.
No caso dos autos, face aos factos considerados provados na sentença sob os pontos 1 e 3 e o facto de que não se provou que exista duplicação do solo e da construção averbada no prédio da freguesia ..., com a descrição aberta a favor do Município ..., matéria que não foi impugnada por via de recurso e que este Tribunal da Relação acolhe, não vemos como o pedido de rectificação de registo formulado pela Junta de Freguesia ... pudesse ter procedido parcialmente pelo despacho da Exma. Senhora Conservadora do Registo Predial de Espinho, de 20.06.2016, nos termos em que o foi, ou seja o deferimento parcial da rectificação requerida, averbando-se em ambos os prédios a sua eventual duplicação, após a decisão se tornar definitiva.
O referido despacho e a sentença recorrida que o confirmou, no fundo não decidiram do pedido de rectificação de registo por duplicação requerido por aquela Junta de Freguesia, fazendo as seguintes considerações: “Porém dada a existência de dois artigos matriciais (de cuja duplicação foi dado conhecimento ao Serviço de Finanças pela freguesia) e a diferente área (nos dois artigos e alteração do loteamento, sendo divergente em todos os lados), embora a construção em si apresente as mesmas características e a situação muito semelhante, não pode haver certeza absoluta de que é o mesmo solo e a mesma construção, como também não é possível ter a certeza que não é, em face de toda a documentação apresentada (em fotocópia)”(…) “Porém, não tendo sido possível apurar, face à documentação apresentada se, efectivamente, estarmos perante o mesmo solo será anotada a eventualidade dessa duplicação, pois que tendo sido instaurado processo especial de rectificação visando a eliminação da duplicação, a prova da existência da duplicação constitui condição do deferimento do pedido. E provada que seja a mesma e face ao título (voluntário ou judicial) assim se averiguará os antepossuidores e se restabelecerá ou não o trato sucessivo.”
Ora, no processo especial de rectificação do registo predial deveriam ter sido feitas as diligências de prova conduzentes à decisão do pedido- artºs 410º ss e 608º, nº 2 do NCPC-e o ónus da alegação dos factos essenciais constitutivos do pedido da requerente Junta de Freguesia ... a ela cabia- artºs 3º e 5º, nº 1, do NCPC. À requerente cabia, ainda, o ónus da prova dos factos constitutivos do seu pretenso direito- artº 342º, nº 1, Código Civil de 1966-contra ela se resolvendo a prova da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, nos termos do artº 414º NCPC.
Não foi o que ocorreu, como vimos, face aos factos provados 1 e 3 não provados na sentença.
Da matéria provada nos autos resulta que os prédios descritos sob os números 1 e 3 dos factos provados são realidades físicas diferentes e encontram-se inscritos, respectivamente, a favor do Município ... sob o artigo matricial urbano 1748, de ..., Espinho, desde 2015-11-30 e a favor da Junta de Freguesia ..., sob os artigos matriciais urbanos 1219 e 2694, de ..., Espinho, desde 2014-09-14.
Nenhuma prova foi feita de que haja eventual duplicação parcial ou total das descrições dos dois referidos prédios e esse ónus da prova cabia à requerente do pedido de rectificação, Junta de Freguesia ....
Por tudo o exposto, o referido pedido deveria ter sido indeferido pela Senhor Conservadora do registo Predial de Espinho, deveria a sentença que conheceu do recurso de impugnação judicial dessa decisão administrativa ter julgado procedente esse recurso e não confirmar ipsis verbis aquela decisão administrativa e, impõe-se agora, fazer JUSTIÇA revogando a sentença do Tribunal ad quem, DESTA FORMA se julgando procedente a apelação.
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III- Decisão:
Nestes termos, acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida com as legais consequências, nomeadamente a consequente revogação da decisão da Senhora Conservadora do Registo Civil de Espinho, que havia sido judicialmente impugnada pelo Município ....
Custas pela recorrida Junta de Freguesia ....

Porto, 22/03/2018
Madeira Pinto
Carlos Portela
José Manuel de Araújo Barros
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[1] Abílio Neto, CPC Anotado, 22ª ed., pág. 948.
[2] Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, pág. 141 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 690
[3] O fólio de cada prédio é uma espécie de «conta corrente» do mesmo, onde se pode recolher, para além dos dados físicos do imóvel, as suas diversas transmissões, bem como os direitos reais, diversos da propriedade, que sucessivamente se constituam.
[4] As principais causas das duplicações totais ou parciais estão, há muito, perfeitamente identificadas.
- a forma insuficiente como são feitas as descrições, em virtude do modo como se inscrevem e alteram prédios nos serviços de finanças (quer na matriz rústica quer urbana), que em conjunto com a declaração do interessado serve de base ao conteúdo da descrição, sem que se proceda a um controlo sobre a existência efectiva do imóvel e suas características;
- a facilidade com que se admite a abertura de novas descrições sempre que se pretenda inscrever uma penhora, uma acção judicial, a aquisição por via sucessória ou a aquisição com base na invocação de usucapião.
Acresce que, a inexistência ou insuficiência do cadastro dos bens, o fim da competência territorial dos serviços de registo, a recente reorganização administrativa das freguesias com a substituição de matrizes, etc., agravaram a possibilidade de duplicação.