Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
358/19.8GEGMR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RP20211110358/19.8GEGMR.P1
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É manifestamente infundada a acusação que omite os concretos factos ilícitos e apenas imputa conceitos vagos
II- Deve ser rejeitada, nos termos do artigo 311.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal, uma acusação pela prática de crime de condução em estado de embriaguez onde se afirma que o arguido conduzia um veículo automóvel «com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida», sem especificar essa taxa.
III - A factualidade típica não se encontra aí descrita de forma a que saibamos qual a taxa de alcoolémia com que conduzia o arguido; falta, pois, um elemento essencial para a gradação da ilicitude e da culpa e, consequentemente, da pena que possa vir a ser aplicada.
IV - Tal impede a cabal defesa do arguido, que é, antes de mais, relativa aos factos que lhe são imputados e não à qualificação jurídica que deles possa resultar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal. n.º 358/19.8GEGMR.P1
Comarca do Porto
Instância Local de Santo Tirso.

Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório.

No Processo Comum Singular n.º 358/19.8GEGMR do Juízo Local Criminal de Santo Tirso, Juiz 2, foi proferido o seguinte Despacho [fls. 114 a 115vº], datado de 19.01.2021 (transcrição):
«(…)
O arguido B… veio arguir a nulidade da acusação, alegando que a mesma não contém a indicação da percentagem de alcoolemia imputada ao arguido que é elemento essencial obrigatório dessa peça processual, nos termos que melhor constam do requerimento de fls.103.
Vejamos.
Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra B… imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º, nº1 do Código Penal, a que corresponde a pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal.
Ora, ao descrever os factos que imputa ao arguido, o Ministério Público limita-se a alegar que:
No dia 14 de Outubro de 2019, pelas 02h00m, na Rua …, em …, concelho de Santo Tirso, área desta comarca, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matricula ..-HA-.., com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida por lei.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe poderia afectar a condução de veículos automóveis e que, por isso, a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”
Acontece que a expressão “taxa de álcool superior à legalmente permitida por lei” pode remeter, desde logo, para a proibição de conduzir sob influência de álcool prevista no art. 81º do Código da Estrada com as taxas de 0,2, 0,5 ou 0,8 g/l consoante as circunstâncias nesse tipo legal sancionador enumeradas ou ainda a uma qualquer taxa superior a essas (tendo em conta também as possíveis margens de erro aplicáveis ao resultado de equipamento por ar expirado quantitativo ou análise sanguínea e que segundo o princípio do “favor rei” devem ser consideradas em benefício do arguido, inclusive para descriminalizar a conduta).
Afigura-se-nos, portanto, que tal lacuna frustra, de forma irremediável, a acusação sob análise.
Dispõe o art. 311º, nº. 2, al. a) do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada.
A expressão manifestamente infundada respeita à indiciação dos pressupostos de punibilidade.[1]
Assim, acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, sendo manifesta a sua improcedência.
Caso típico é o de os factos descritos na acusação não integrarem qualquer infracção criminal - cfr. art. 311º, nº. 3, al. d) do CPP[2]
É efectivamente o caso, porquanto a acusação é omissa quanto à taxa de álcool de que o arguido seria portador na data e hora referidas impedindo que se conclua estarmos perante comportamento com significado penal.
Em consequência, não se pode concluir que o arguido tenha praticado a acção típica da norma incriminadora em questão, pelo que a sua conduta, não preenchendo os elementos objectivos do tipo de condução de veículo em estado de embriaguez, não tem qualquer relevância criminal.
Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação do arguido, na medida em que não lhe imputa a prática do concreto acto material (de execução e/ou de determinação), não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitem a condenação.
Como se refere no Ac. R. Guimarães de 31.3.2014, proferido pelo Des. Fernando Monterroso, no processo nº250/12.7IDBRG.G1, disponível nas Bases de Dados Jurídico-Documentais do IGFEJ: “a acusação fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32º, nº 5, da Constituição, estrutura o processo penal. Deverá conter a “narração” de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – art.283º, nº3, al. b) do CPP.
Finalmente, os arguidos defendem-se duma acusação e não do “processo”. Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos essenciais à condenação com a prova dos mesmos. A circunstância de determinado facto resultar da prova arrolada na acusação, não dispensa a sua alegação.
E continua o supra citado acórdão da Relação do Porto de 9.11.2016: “(…) Por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (art.35º, n.º 2 , da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos pela acusação. É esta que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objecto do processo penal.”
No despacho de acusação em causa não se mostram, deste modo, descritos todos os elementos objectivos do tipo-de-ilícito em causa, porquanto não se faz menção à concreta taxa de álcool de que o arguido seria portador no exercício da condução de veículo motorizado na data e hora nela referidas.
Em face do exposto e por ser manifestamente infundada, REJEITO a acusação pública aduzida nos autos.
Notifique.»
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Inconformada a Digna Magistrada do MP veio interpor recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1.- O Tribunal a quo que a acusação pública proferida era manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime nos termos do artigo 311° n.° 2 al. a) e n.° 3 al. d) do Código de Processo Penal,
2.- Fundamenta a sua posição alegando que apenas é dito que o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida por iei, não indicando em concreto qual a taxa que foi detectada no respectivo alcoolímetro, e sob pena de violação do princípio do acusatório, não pode saber se a violação da Lei era uma violação penal ou contraordenacional.
3.- Basta uma mera leitura da acusação pública proferida para se verificar que tal afirmação proferida pelo Tribunal a quo não está de acordo com a realidade factual e processual.
4.- Expressamente em sede de libelo acusatório é dito que o arguido sabia que a "sua conduta era proibida e punida pela lei penal,
5.- Ainda que não seja dito expressamente a taxa em concreto que foi detectada ao arguido enquanto conduzia, é expressamente referido que essa taxa teria que ser superior a 1,2 g/l, pois,
6.- Apenas taxa superior a 1,2 g/l é considerada para efeitos do ilícito criminal e da sua punição enquanto crime.
7.- A medida em concreto da Taxa de álcool no sangue (superior a 1,2 g/l) é perfeitamente conhecível pelo arguido (que dela já tinha tido conhecimento aquando da sua constituição e interrogatório como arguido) e perfeita e facilmente apurada pelo Tribuna! a quo, em julgamento pela mera prova documental, não havendo sequer e quanto a nós, qualquer alteração não substancial dos factos, uma vez que a medida exacta da taxa de álcool do sangue acima de 1,2 g/l, é relevante para efeitos da medida de pena a aplicar ao arguido, em sede de sentença condenatória.
8.- O conceito de acusação manifestamente infundada é assente na atipicidade da conduta imputado ao arguido, o que implica um juízo de mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
9.- No entanto consideramos que a alínea d) do n.° 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório
10.- O Tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for MANIFESTAMENTE infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
11.- O que não é o caso.
12.- Pois a acusação é por si suficiente para proceder para julgamento e sendo dado como provados todos os factos ai constantes, sem rebuço afirmamos que o arguido teria de ser condenado no crime de condução de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.292°, n° l do Código Penal, a que corresponde a pena acessória prevista no art. 69° do Código Penal.
Por conseguinte, deve o presente recurso merecer provimento, e, em consequência, deverá a decisão recorrida ser declarada nula, revogada e substituída por outra que se limite a cumprir o plasmado no artigo 311.º do Código de Processo Penal e proceda ao recebimento da acusação pública proferida e designado dia para a realização de julgamento.
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O recurso foi admitido por despacho datado de 17.05.2021, sem que o recorrido tenha oferecido resposta.
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Nesta Relação o Exmo. PGA emitiu parecer onde, em resumo, concluiu com o entendimento que apesar de a acusação não conter os requisitos técnicos que o Ministério Público deve fazer constar das peças que apresenta para julgamento, não existe fundamento para a sua rejeição por ser manifestamente infundada e não se verifica qualquer nulidade.
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Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.- Questões a resolver
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões decidir:
- Narração dos factos que constituem os elementos do crime.
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2. Reprodução da acusação.
«(…)
No dia 14 de Outubro de 2019, pelas 02h00m, na Rua …, em …, concelho de Santo Tirso, área desta comarca, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matricula ..-HA-.., com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida por lei.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe poderia afectar a condução de veículos automóveis e que, por isso, a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Cometeu, assim, em autoria material, 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, n.º 1, do Cód. Penal, a que corresponde a pena acessória prevista no artigo 69º do Código Penal.»
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3.- Apreciação do mérito do recurso.
3.1. Narração dos factos que constituem os elementos do crime.
Dispõe o artigo 311º do CPP:
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) se os factos não constituírem crime».
O artigo 292º, n.º 1 do CP dispõe:
«Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O facto ilícito típico punível pelo artigo 292º do CP, é a condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l.
Apesar de poder falar-se de sobreposição entre as causas de rejeição da acusação previstas nas alíneas a), b) e c) do nº3 do art. 311º do CPP e a nulidade da acusação (pública ou particular por (…) via da remissão operada pelo art. 285º nº3 do CPP) por falta dos elementos respectivos, de acordo com o disposto no art. 283º nº3, corpo, do CPP, a rejeição da acusação não se confunde com nenhuma daquelas nulidades.[3]
O processo penal português tem por força do art. 32º, n.º 5 da CRP estrutura acusatória. Tal significa uma clara separação entre quem acusa (o MP ou o assistente) e quem julga.[4]
Os princípios jurídico-constitucionais da autonomia do MP perante a magistratura judicial (arts. 202º, 1 e 2, 219º, 2 e 220º, 1 CRP) e da sua competência para exercer a ação penal (art. 219º, 1 da CRP) «resulta, como consequência inevitável, que a estrutura acusatória que o processo penal assume por imperativo constitucional se realiza por divisão de funções processuais entre o juiz ou tribunal, de um lado, e o MP, do outro, e não qualquer outra forma nomeadamente por divisão entre o juiz do julgamento e o juiz de instrução»[5]
Sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador de 1998 – lei n.º 59/98, de 25.08 -, elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência e definiu-os taxativamente no n.º 3, do art. 311º do CPP. Entre eles considera-se a acusação manifestamente infundada “quando não contenha a narração dos factos”.
E que factos são estes?
Dada a tendencial sobreposição entre o artigo 311º e o artigo 283º do CPP, a narração dos factos aparentemente deve obedecer à alínea b) do n.º 3 do artigo 283º, do CPP[6].
A acusação cumpre três funções essenciais: i) uma função de promoção processual, introduz o facto em juízo, permitindo que um terceiro, independente e imparcial, decida o caso. Sem ela o juiz não pode conhecer e julgar, daí que a falta de acusação é causa de nulidade insanável – art. 119º, b) -; ii) cumpre uma função informativa. O arguido fica a saber os factos que lhe são imputados, podendo preparar a sua defesa e exercer o contraditório; iii) em terceiro lugar, a acusação tem uma função delimitativa. O objeto do processo fica, em princípio fixado, devendo haver uma certa identidade entre a acusação e a sentença.[7]
Para tanto, a acusação tem de informar o arguido dos factos que lhe são imputados.
O facto, o acontecimento histórico, aquele «pedaço de vida» deve ser assim descrito do ponto de vista naturalístico, evitando conceitos conclusivos e qualificativos. Os juízos de valor e os conceitos de direito devem ser banidos do texto da acusação.[8]
Mostra-se necessário que a descrição nela feita evidencie de uma maneira precisa e imediatamente inteligível aquilo que é imputado ao arguido.[9]
Portanto, há uma certa unanimidade em considerar que «a acusação há de ser concisa, clara e rigorosa» e conter uma mensagem clara e acessível a todos, não podendo ser tão reduzida que não contenha informação nenhuma, impossibilitando a defesa do arguido.
A narração há de compreender os factos que sustentam a aplicação de uma pena (o seu quantum incluído) ou de uma medida de segurança ao arguido.[10]
Para que a acusação seja válida «não basta fazer-se uma afirmação conclusiva e genérica, concretizando-se um ou dois factos, há que descrevê-los. sob pena de se violar claramente o direito de defesa do arguido consagrado no art. 32º, da CRP.[11]
Na «narração dos factos há que descrever o circunstancialismo de tempo, de modo e lugar capazes de caraterizar o crime (…) e não de forma conclusiva e genérica».[12]
Na tarefa de identificar aquilo que é importante o tipo legal de crime em causa assume especial relevo. A indicação dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime constitui o núcleo essencial da descrição dos factos imprescindíveis à validade da acusação. Se faltar algum deles, a conduta descrita não constitui crime e a acusação não pode ser recebida.[13]
Refere Paulo Pinto de Albuquerque[14]: “O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”
E dá exemplo de acusação manifestamente infundada por inexistência de crime, a acusação fundada em “factos conclusivos”, que omite os concretos factos ilícitos e apenas imputa factos vagos.
Importa referir que a análise da acusação se faz sem recurso a qualquer outro elemento externo, sendo com base no seu texto que se deve concluir ou não se os factos narrados pelo MP poderão levar à aplicação duma pena.
Como se refere no acórdão do TRE de 10/10/2006[15], a acusação destina-se «a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento” embora não deixe de “ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar».
Posto isto, atendendo à narração dos factos constantes da acusação, e à expressão usada” o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula ..-HA-.., com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida por lei”, verificamos que a expressão usada não permite saber qual é a taxa de álcool com que conduzia o arguido, porquanto são várias as taxas de alcoolemia que são superiores às legalmente permitidas por lei.
Na presente situação, resulta do confronto entre o tipo legal imputado e a factualidade descrita, que é manifesta a insuficiência dos factos narrados para fundamentarem a condenação do arguido pelo crime concretamente imputado, com efeito a factualidade típica não se encontra descrita de forma suficiente para que de imediato saibamos qual a taxa de alcoolemia acusada pelo arguido. E, não sabendo a taxa de alcoolemia acusada e desconhecendo o erro máximo admissível a descontar não conhecemos o elemento mais importante para aferir da gravidade da ilicitude e culpa do arguido com o seu comportamento e, portanto, falta a descrição de um elemento essencial para a graduação da culpa do arguido, para averiguar da gravidade do ilícito praticado e graduação da pena em caso de condenação.
Entendemos, por isso, que a falta detetada é causa de rejeição da acusação prevista na al. b) do nº 3, do art. 311º do CPP.
Com efeito, não é possível perante os factos acusados e tendo em atenção que a acusação é uma peça destinada a bastar-se a si própria para introduzir o processo em juízo e fixar o objecto do processo, saber qual a taxa de álcool com que circulava o arguido ou sequer se a taxa com que conduzia era superior a 0,2, 0,5, 0,8, ou 1,2 g/l, visto que todas estas taxas são superiores à legalmente permitida por lei.
Assim, a acusação do MP é manifestamente infundada por não conter a narração dos factos relatados necessários para caracterizar o crime imputado, já que só estaríamos perante um facto ilícito típico, se a taxa de alcoolemia fosse superior a 1,20 g/l e tal não decorre dos factos descritos.
Através da «narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia é fornecido ao arguido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase do julgamento - destinando-se esta à sua comprovação – e é em função dele que o arguido organiza a respetiva defesa».[16]
A defesa do arguido é relativamente aos "factos que lhe são imputados e não das qualificações jurídicas que deles se fazem".[17]
A subsunção dos factos ao direito, para que aponta a acusação faz-se através da narração dos factos que correspondem a um específico crime e não ao contrário, como se pretende na alegação de recurso.
Por outro lado, quando a acusação passa para a sua apreciação no momento do artigo 311º do CPP, a eventual nulidade da acusação deixa de estar sobre a alçada do artigo 283º do CPP e passa a estar sobre a alçada do artigo 311º do CPP, momento em que a falta de narração dos factos tem como consequência a rejeição da acusação.
É, portanto, de improceder o recurso interposto.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso interposto pelo MP.
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Sem custas, por o MP delas estar isento.
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Notifique.
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Observou-se o disposto no artigo 94º, n.º 2, do CPP.

Porto, 10 de Novembro 2021
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Ramos Soares
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[1] cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 1994, p.218.
[2] Maia Gonçalves, in CPP Anot, 6ª ed., p. 468
[3] Cf. Ac. do TRE de 10.12.2009, acessível aqui: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/F7BBC55DAB3B801E80257DE100574F82
[4] Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra, Almedina, 2016, pp 71,72.
[5] Figueiredo Dias, “Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal”, AA. VV., Jornadas de Direito Processual- O Novo Código de processo Penal, Coimbra Almedina, 1988, p. 3 e ss, especificamente p. 23.
[6] A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma pedida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
[7] Cf. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1141 e autores aí citados, bem como o Ac. do STJ de 25.01.2007, Rel. Conselheiro Pereira Madeira.
[8] Cf. Conde Correia, Questões práticas Relativas ao Arquivamento e á acusação e á sua Impugnação, Porto, 2007, PUC, pág. 112.
[9] Cf. António Leones Dantas, “Os factos como matriz do objecto do processo”, RMP, 18, pág. 117.
[10] Cf. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1149
[11] Obra e autor citado anteriormente.
[12] Cf. Eduardo Maia Costa, “Habeas Corpus: passado, presente, futuro”, Julgar, 29,2016, pág. 950.
[13] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1149 e 1150.
[14] Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da CEDH, UCE, 4ª edição atualizada, pág. 817, citando o Ac. do TRC de 13.10.2010, CJ, XXXV, 4, 49.
[15] http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6f12e77d8d15485180257de1005748eb?OpenDocument
[16] Ac. do TC 279/95, acessível aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19950279.html
[17] Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra 1992, pág. 103.