Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4682/17.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: UNIÃO DE FACTO
REGULAÇÃO DE ASPECTOS DA UNIÃO POR ACORDO DOS UNIDOS
DISSOLUÇÃO DA UNIÃO
DIREITO A ALIMENTOS
Nº do Documento: RP202106224682/17.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A união de facto não foi equiparada ao casamento e as normas respeitantes a este instituto jurídico não devem, em princípio, ser aplicadas à união de facto por via da analogia.
II - Não existe entre os membros da união de facto um dever de assistência, sendo que as suas relações patrimoniais estão sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.
III - Do regime da união de facto não resulta a obrigação de prestação de alimentos para os membros da união, em caso de separação e não tendo a autora demonstrado que esse direito a alimentos tenha sido pactuado com o réu, não o pode exigir com essa fonte convencional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4682/17.6T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AUTORA
B…, solteira, residente na Rua …, …, ….-… Vila Nova de Gaia
RÉU
C…, solteiro, residente em …, …, …, ….-… … Gondomar
A autora intentou a presente acção de Processo Comum alegando que viveu com o réu em comunhão de cama, mesa e habitação, primeiramente em casa da mãe do réu (desde 2000/2) e, desde Março de 2008, numa fracção adquirida por ambos com recurso a crédito bancário, celebrando um contrato de coabitação, e que o réu, em Abril de 2015, abandonou a casa, sendo que a autora abdicou de uma carreira profissional para se dedicar à vida doméstica, vivendo actualmente da prestação do rendimento social de inserção, que se revela insuficiente para fazer face a todas as despesas, uma vez que é somente ela quem suporta, com a ajuda de familiares e amigos, as prestações do crédito bancário, que o réu, desde que deixou a casa, nunca mais pagou, as despesas de electricidade, de condomínio, etc. Mais alega que o réu emigrou, auferindo um salário de mais de € 2.000,00, o qual lhe permite, sem grande esforço, prestar a seu favor uma pensão de alimentos.
PEDIDO
A) que seja declarado que autora e réu tiveram, nos quinze anos que viveram em comum, a economia doméstica conjunta;
B) que seja decretado o valor de € 300,00 a título de pensão de alimentos à autora, nos termos do nº 1 do artigo 2014.º do C. Civil, a ser prestada pelo réu;
C) que seja declarada judicialmente a dissolução da união de facto que existiu entre autora e réu, e que lhe atribuído à autora o direito à titularidade da casa de morada de família.

Notificada a autora para se pronunciar sobre a excepção de incompetência do Juízo Local para apreciar o pedido deduzido em C) quanto à atribuição da casa morada de família, veio a mesma declarar que não pretendia ver tal pedido apreciado no processo, pelo que o réu foi absolvido da instância.

Citado, o réu apresentou contestação, invocando as excepções de incompetência absoluta e de litispendência com acção de divisão de coisa comum, aceitando que viveu com a ré como se de marido e mulher se tratasse, nomeadamente na fracção adquirida com recurso a crédito bancário, sustentando, porém, que foi de sua iniciativa tal aquisição, que a autora só figura no contrato a fim de poder beneficiar de condições mais favoráveis por causa da deficiência de que padecia, tendo sido apenas ele quem suportou todas as despesas inerentes, pois só ele tinha disponibilidade financeira, visto que a ré optou por não ter uma carreira profissional, e alegando que não tem possibilidades económicas de pagar a pensão de alimentos que a autora peticiona, até porque esta não aufere rendimentos porque optou por não trabalhar.

Proporcionou-se o contraditório quanto às excepções deduzidas na contestação e a autora nada disse.

Realizou-se a audiência prévia e nela foi proferido despacho saneador, assim como despacho identificando o objecto do litígio e fixando os temas de prova, ao qual não foi apresentada reclamação.

Procedeu-se ao julgamento com observância das formalidades legais e foi proferida sentença a julgar acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, a absolver o réu C… do pedido.

A autora B… veio interpor recurso, concluindo:
A – OS PONTOS DA MATÉRIA DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS
1. Pelas razões supra expostas e por força dos elementos de prova acima referidos, entende a recorrente, salvo o devido respeito, que o julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal “a quo” foi incorreto, por errada valoração das provas produzidas em audiência de julgamento, em violação da norma constante no artigo 607º, n.º 5 do CPC, pelo que deverá ser alterada a matéria de facto dada como provada e como não provada em conformidade, nos termos do disposto no artigo 662º do CPC.
2. Por força da sua discordância em relação ao julgamento da matéria de facto, a recorrente entende dever a mesma ser alterada nos termos, em resumo, se expõem:
3. Como Provado:
a. Pelo menos nos anos 2012, 2013 e 2014, ambos entregaram em conjunto a declaração modelo nº 3 de IRS.
b. A Autora sofre de uma deficiência com um grau de 65%. (artigo 16.º petição inicial).
c. Com a saída do Réu de casa, ficou a cargo da Autora o pagamento da prestação mensal de condomínio, bem como as despesas de água e eletricidade/gás da mesma fração. (artigo 17.º da petição inicial).
d. Com a saída do Réu de casa, ficou a cargo dos fiadores o pagamento da prestação do mútuo contraído para aquisição da fração identificada nos autos.
e. A Autora não consegue arranjar trabalho, devido a sua idade, à deficiência de que padece, e à crise laboral que atravessa o país. (artigo 19.º).
f. Na vigência da união de facto, bem como, após a sua dissolução, o Réu comprometeu-se e acordou com a Autora uma obrigação de alimentos, em que lhe pagava a este título o valor de € 300,00.
4. Alterando-se em conformidade os factos dados como não provados constantes da sentença.
5. Em razão da alteração do julgamento da matéria de facto que a recorrente entende dever ser efectuada, a pretensão da Autora passa a ter suporte fáctico.
6. Assim sendo, por força disso deve ser julgada totalmente procedente a ação intentada pela Autora, e, em consequência que seja decretado o valor de € 300,00 a título de pensão de alimentos à autora, nos termos do nº 1 do artigo 2014.º do CCivil, a ser prestada pelo aqui Réu;
B – A MATÉRIA DE DIREITO
7. Sem prescindir do supra alegado e em via subsidiária, a recorrente entende que na sentença recorrida, salvo o devido respeito, não se fez uma integralmente correta aplicação do direito aos factos.
8. A sentença recorrida assentou num erro crasso ao ignorar a existência do contrato de coabitação, na pendência da união de facto ocorrida entre a Autora e o Réu entre a data de 2000/2002 até ao mês de Junho de 2015, período em que viveram juntos, em que a Ré cozinhou os alimentos, preparou as refeições, tratou da roupa, providenciou pela limpeza e arrumação da habitação de ambos, viviam como se de marido e mulher se tratasse.
9. E ainda, ao ignorar que a Autora vive, desde a data da separação, de ajudas de familiares e amigos, e de que a autora provou que durante o tempo em que durou a união de facto, viveu exclusivamente dos rendimentos que o Réu auferia.
10. As exigências de auxílio e assistência ao ex-convivente mais necessitado fazem-se sentir ainda com mais evidência na ruptura das uniões de facto duradouras pois nestas, fruto da convivência estável e prolongada no tempo, os deveres informais de assistência, cooperação, respeito, coabitação e fidelidade – informais porque não decorrem da lei – manifestam-se com mais intensidade uma vez que muito dificilmente o seu desrespeito viabilizaria a perduração da relação. E à semelhança do que ocorre com o divórcio, a ruptura da união de facto pode originar uma situação de carência para o membro que, na vigência daquela relação, abdicou de uma carreira profissional em detrimento do trabalho doméstico e que, por esse motivo, pode não ter, aquando da ruptura daquela relação, possibilidade de prover à sua subsistência. Mais admissibilidade deste direito em virtude da dissolução da união de facto por vontade de um dos seus membros.
11. O artigo 2014.º do CCiv prevê, no seu n.º1, a obrigação de alimentos convencional – a resultante de negócio jurídico –, mandando-lhe aplicar, com as necessárias adaptações, as disposições do Capítulo I do Título V do Código Civil.
12. Os membros da união de facto têm ampla liberdade para modelar a sua convivência em comum, nomeadamente no domínio das relações patrimoniais, através da celebração de contratos de coabitação. Ora, será também ao abrigo da autonomia negocial geral que os conviventes poderão estipular – na vigência da união de facto ou após a sua dissolução –, no contrato de coabitação, por exemplo, uma obrigação de alimentos, recíproca ou não, e de sujeitá-la a uma condição suspensiva ou resolutiva (artigos 270.º e ss., do CCiv) ou a um termo (artigos 278.º e ss., do CCiv), respeitados que sejam os requisitos gerais do negócio jurídico.
13. A obrigação de alimentos convencional é um instrumento profícuo de que os conviventes podem lançar mão para suprir a desprotecção inerente à união de facto em matéria de alimentos.
14. Fez-se prova, que ao abrigo da autonomia negocial geral que os conviventes, autora e réu, estipularam – na vigência da união de facto ou após a sua dissolução – por meio de contrato de coabitação, uma obrigação de alimentos do Réu para com a Autora.
15. A autora, provou, portanto, a obrigação de alimentos convencional prevista no artigo 2014.º do CCiv, no seu n.º1, que o Réu não conseguiu afastar.
16. A decisão recorrida violou o indicado n.º 1 do art.º 2014.º do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a ação.
17. Ora, a Autora cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia, quanto à obrigação de alimentos do Réu para com a Autora, outro destino não poderia a acção ter que não a sua procedência.
18. Ao decidir de forma diversa, como decidiu, o tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 2014º, n.º 1 do CC, devendo, em consequência ser revogada a sentença proferida, substituindo-se por decisão que julgue totalmente procedente a acção intentada pela Autora, e, em consequência que seja decretado o valor de € 300,00 a título de pensão de alimentos à autora, nos termos do nº 1 do artigo 2014.º do CCivil, a ser prestada pelo aqui Réu;
Nestes termos e nos melhores de Direito que serão sempre doutamente supridos, deve o presente recurso merecer provimento, proferindo-se Acórdão que acolha a alegação ora efectuada.
Assim decidindo, Venerando Desembargadores, farão, como habitualmente, inteira e sã JUSTIÇA!

C… apresentou contra-alegações, concluindo:
I - A decisão recorrida é douta e mostra-se exímia e exaustivamente fundamentada, quer em termos científicos, quer mesmo pedagógicos, cumprindo o dictat consignado no art. 607.º do Cód. de Proc. Civil e interpretando e aplicando, de forma irrepreensível, o direito substantivo, e.g. o n.º 1 do art. 2014.º do Cód. Civil, não merecendo, por isso, qualquer censura.
II - A recorrente não cumpriu o ónus de especificação e indicação previsto na al. b) do n.º 1 e na al. a) do n.º 2, ambos do art. 640.º do Cód. de Proc. Civil - não é ao tribunal ad quem que cabe perscrutar as doze páginas de transcrições e duas horas de gravações e adivinhar em que parte destas a recorrente baseia a sua impugnação - assim se impondo a imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto constante nas als. c) a f) do n.º 3 das suas conclusões, sem lugar a convite para aperfeiçoamento.
III - A recorrente não cumpriu o ónus consagrado no n.º 1 do art. 639.º do Cód. de Proc. Civil, de formular conclusões sobre a matéria de direito, limitando-se a transcrever, ipsis verbis, nos n.ºs 7 a 17 das suas conclusões, todo o corpo das alegações de direito, situação que se equipara à falta total de apresentação de conclusões e consequentemente implica a rejeição do recurso nesta parte, nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 do art. 641.º do aludido diploma.
IV - A impugnação que a recorrente faz da decisão de facto, mormente a que recaiu sobre a factualidade elencada nas als. a) a f) do n.º 3 das suas conclusões, peca por vaguidade e inexactidão, consubstanciando-se na mera indicação de meios de prova, sem especificação das respectivas partes relevantes e ausência de análise crítica, falhando na demonstração da existência de erro de julgamento.
V - Em face da absoluta ausência de prova, o tribunal a quo andou bem ao dar por não provado o facto indicado na al. f) do n.º 3 das conclusões da recorrente, tendo a própria reconhecido que o demandado não se comprometeu a pagar-lhe qualquer quantia uma vez finda a relação, aliás, a hipótese da separação jamais foi sequer equacionada pelas partes, que assim nunca poderiam ter celebrado um acordo de alimentos para vigorar nessa eventualidade.
Termos em que deve o recurso ser rejeitado, quer na parte de facto, quer na parte de direito, por inadmissível. Assim não se entendendo,
Deve o mesmo ser julgado totalmente improcedente.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se o réu deve ser condenado a pagar à autora o valor de € 300,00 mensais, a título de pensão de alimentos.

II – Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou:
A) FACTOS PROVADOS
Da Petição Inicial
1) Em data não concretamente apurada situada entre os anos de 2000 e 2002, a Autora e o Réu decidiram passar a viver juntos, na residência da mãe deste. (artigo 1.º)
2) Por escritura lavrada no Cartório Notarial da Notária Drª D…, no dia 25 de Março de 2008, Autora e Réu declararam comprar, pelo preço de cento e treze mil euros, a fração autónoma designada pelas letras “AF”, correspondente habitação T-dois, na …, piso sete, designada por 7º esquerdo traseiras, com entrada pelo nº … da Rua …, arrumo e lugar de garagem no piso menos dois, assinalados com a respetiva letra e entrada pelos nºs … e … da referida Rua, e … da Rua …, inscrita na matriz sob o artigo 9007-AF e descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número três mil e vinte e cinco, da freguesia de Vila Nova de Gaia (…), concelho de Vila Nova de Gaia, para o que contraíram um mútuo com hipoteca e fiança. (artigos 10.º e 11.º)
3) Desde essa data, essa foi a casa onde Autora e Réu passaram a viver partilhando a mesma cama, tomando juntos as refeições, auxiliando-se mutuamente nos eventos do dia a dia, amparando-se e protegendo-se um ao outro. (artigos 3.º e 6.º)
4) E é o local onde ainda hoje a Autora habita. (artigo 3.º)
5) Em data não concretamente apurada do mês de junho de 2015, o Réu decidiu sair dessa casa e separar-se da Autora. (artigo 5.º)
6) Durante o período em que viveram juntos, a Ré cozinhou os alimentos, preparou as refeições, tratou da roupa, providenciou pela limpeza e arrumação da habitação de ambos. (artigo 9.º)
7) Durante o período em que viveu na casa da mãe do Réu, a Autora trabalhou na Junta de Freguesia …. (artigo 12.º)
8) A Autora aufere como rendimento unicamente a prestação de RSI no valor, em 01 de janeiro de 2017, de € 183,84. (artigo 18.º)
9) O Réu, em abril de 2015, trabalhou na Holanda como soldador e auferiu um vencimento base de € 2 294,20. (artigo 20.º)
10) A Autora vive, desde a data da separação, de ajudas de familiares e amigos. (artigo 25.º)
Da Contestação
11) A Autora apenas ficou a constar como comproprietária da fração adquirida por ambos porque, sendo portadora de deficiência, conseguiam melhores condições para o crédito que então foi necessário contrair junto do Banco K…, S.A. (artigo 26.º)
12) A Autora utiliza o imóvel em proveito exclusivo e próprio. (artigo 36.º)
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Da Petição Inicial
13) No ano de 2000, por volta dos meses de Fevereiro/Março; (artigo 1.º)
14) e contribuindo ambos para as despesas domésticas; (artigo 6.º)
15) abandonar; (artigo 5.º)
16) No dia 10 de Junho de; (artigo 5.º)
17) A partir da data em que começou a viver na casa adquirida por ambos, a Autora deixou de exercer qualquer tipo de profissão, passando ambos a entregar em conjunto a declaração modelo nº 3 de IRS; (artigo 13.º)
18) A Autora sofre de uma deficiência com um grau de 65%. (artigo 16.º)
19) Com a saída do Réu de casa, ficou a cargo da Autora o pagamento da prestação do mútuo contraído para aquisição da fração supra identificada, e ainda a prestação mensal de condomínio, bem como as despesas de água e eletricidade/gás da mesma fração. (artigo 17.º)
20) A Autora não consegue arranjar trabalho, devido a sua idade, à deficiência de que padece, e à crise laboral que atravessa o país. (artigo 19.º)
21) de esmolas ; (artigo 25.º)
Da Contestação
22) A Autora, em toda a sua vida, trabalhou somente dois meses, entre 01.06.2007 e 31.07.2007, auferindo a importância mensal de € 250,00. (artigo 27.º)
23) O Réu insistia para que a Autora arranjasse emprego e auferisse rendimentos, de modo a contribuir para o pagamento das despesas, mas esta sempre arranjava desculpas para não trabalhar. (artigo 29.º)
24) O Réu saiu de casa quando a relação chegou ao fim, em Abril de 2015, de comum acordo com a Autora, a fim de ambos refazerem a sua vida livres de constrangimentos. (artigo 33.º)
25) O Réu mora no estrangeiro, em país onde o salário mínimo é no montante aproximado de € 1.550,00 e o vencimento líquido que aufere fica-se pela importância de € 1 791,90. (artigo 49.º)
26) O Réu suporta, a título de encargos mensais, a renda de casa, despesas de eletricidade, água, alimentação, deslocações para o trabalho, serviço de telefone e internet, vestuário, calçado, seguros obrigatórios e impostos municipais. (artigo 50.º)

III- Do mérito do recurso
Sustenta, desde logo, a recorrente que devia ter sido dado como provado:
“a. Pelo menos nos anos 2012, 2013 e 2014, ambos entregaram em conjunto a declaração modelo nº 3 de IRS.
b. A Autora sofre de uma deficiência com um grau de 65%. (artigo 16.º petição inicial).
c. Com a saída do Réu de casa, ficou a cargo da Autora o pagamento da prestação mensal de condomínio, bem como as despesas de água e eletricidade/gás da mesma fração. (artigo 17.º da petição inicial).
d. Com a saída do Réu de casa, ficou a cargo dos fiadores o pagamento da prestação do mútuo contraído para aquisição da fração identificada nos autos.
e. A Autora não consegue arranjar trabalho, devido a sua idade, à deficiência de que padece, e à crise laboral que atravessa o país. (artigo 19.º).
f. Na vigência da união de facto, bem como, após a sua dissolução, o Réu comprometeu-se e acordou com a Autora uma obrigação de alimentos, em que lhe pagava a este título o valor de € 300,00.”
***
Devemos começar por referir que o facto para o Direito é todo o acontecimento natural, embora juridicamente relevante. É a norma jurídica que, ao actuar sobre os factos, lhes atribui consequências específicas, chamadas de efeitos jurídicos.
A realidade fáctica é a essência do direito porque são os acontecimentos ou condutas que ocorrem no mundo que, no mínimo pela operação subsuntiva da norma ao facto, serão qualificados de jurídicos. E o acto para ser jurídico tem de produzir efeitos. A incidência é o efeito da norma jurídica de transformar em facto jurídico a parte do suporte fáctico que o direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico. O facto é juridicamente relevante porque mais do que repercutir-se na esfera jurídica das pessoas, constitui, modifica e extingue direitos.
Por isso, para aferir da relevância da alteração da matéria de facto pretendida, necessitamos de traçar o quadro normativo em que o dito circunstancialismo fáctico se move.
Há unanimidade na doutrina e na jurisprudência em considerar que na lei portuguesa a união de facto juridicamente relevante, embora considerada como uma relação análoga à dos cônjuges, não é equiparada ao casamento.
Quer dizer, a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, sobre a protecção das uniões de facto (LUF), veio reconhecer a existência de uma forma de economia doméstica (cfr. artigos 4º, 5º, 6º da LUF, artigos 496º, nº3 e 2020º do CC) que carecia de protecção, e, com as suas sucessivas alterações, foi resolvendo muitas das questões prementes que iam surgindo nesta forma de economia conjunta.
Mas a união de facto não foi equiparada ao casamento e as normas respeitantes a este instituto jurídico não devem, em princípio, ser aplicadas à união de facto por via da analogia.
Existe na união de facto uma semelhança com o que ocorre na relação conjugal mas mantém um regime jurídico próprio específico e autónomo do regime do matrimónio, do qual salientamos:
– os efeitos favoráveis previstos na LUF dependem de invocação por um ou por ambos os membros da união de facto;
– a união de facto juridicamente relevante não constitui impedimento a que um dos membros celebre casamento com outrem;
– não está previsto um regime de bens nem um regime de responsabilidade por dívidas;
– não gera obrigações de solidariedade pós-ruptura para além da (eventual) protecção relativamente à casa de morada comum;
– em caso de morte, o sobrevivo não é herdeiro legal do falecido: a lei prevê apenas os direitos de habitação da casa de morada comum e de uso do respectivo recheio, a (eventual) transmissão do direito de arrendamento relativo à casa de morada comum, a (eventual) pensão de sobrevivência, o (eventual) direito a exigir alimentos da herança do falecido.
- Os membros da união de facto podem ser beneficiários das técnicas de Procriação Medicamente Assistida e podem adoptar conjuntamente (cfr. artigo 6.º da Lei n.º 32/2006, de 26/7). No caso de filhos comuns, não existe uma presunção legal de paternidade como a que decorre o artigo 1826.º do Código Civil no caso de filho nascido ou concebido na constância do casamento (presunção pater is est quem nuptias demonstrant).
- Não existe entre os membros da união de facto um dever de assistência, no entanto eles podem fixar a contribuição de cada um para as despesas da casa, o que influirá no montante das suas despesas individuais.
- As suas relações patrimoniais estão sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais, podendo, no entanto, os companheiros regular os efeitos patrimoniais da sua relação através dos chamados “contratos de coabitação”, incluindo, por exemplo, cláusulas a inventariar os bens levados para a união, a estabelecer regras de divisão dos bens adquiridos na vigência da união, a fixar presunções relativas à titularidade dos bens adquiridos ou às quantias depositadas em contas bancárias, a regular a contribuição de cada um dos conviventes para as despesas do lar.
Efectivamente, os institutos têm diferentes géneses, importando realçar que a união de facto não se constitui por acto de autoridade pública ou com a intervenção de pessoa investida de autoridade pública, ou mediante qualquer formalidade. A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que vivem em comum por mais de dois anos (artigo 1.º da LUF), exceptuadas as situações previstas no artigo 2.º, mas não origina um vínculo jurídico entre ambas, não gera um estado civil, nem relações de afinidade. Os membros da união de facto não assumem deveres jurídicos recíprocos, não se vinculando a nenhum dos deveres conjugais previstos no artigo 1672.º do Código Civil, não podendo também acrescentar os apelidos do outro, nos termos do artigo 1677.º do Código Civil. A união de facto é livremente dissolúvel apenas por vontade de um dos membros, por isso, não pode afirmar-se que seja duradoura, não sendo sujeita a registo.
Quanto à divisão do património adquirido durante a vida em comum, existe uma corrente jurisprudencial que recorre à figura do enriquecimento sem causa para fundar a obrigação de restituição de um dos membros da união de facto, sendo a dissolução da união de facto que extingue a causa justificativa em que se baseavam as atribuições patrimoniais dos conviventes, pelo que poderá recorrer-se ao instituto do enriquecimento sem causa, na modalidade de causa finita (n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil), pois tratar-se-á de um enriquecimento em virtude de uma causa que deixou de existir.
Outra posição resolve a divisão dos bens adquiridos durante a vida em comum com a aplicação das regras da compropriedade (artigos 1403.º e ss. do Código Civil), o que implicará, em regra, a intervenção de ambos os membros da união de facto no acto de aquisição da coisa, sendo que quando se trate de actos de aquisição não sujeitos a forma e de bens não registáveis, a prova da compropriedade será bastante difícil. Também será possível a prova da contribuição de ambos os membros da união de facto para a aquisição de um determinado bem que ficou a ser propriedade exclusiva de um deles, com recurso a qualquer meio de prova, para efeitos de exigir a restituição do que foi prestado.
Ainda se defende, nesta matéria, que as contribuições dos conviventes para o património constituído durante a união de facto, nomeadamente no que diz respeito à partilha de despesas, como o cumprimento de uma obrigação natural (artigos 402.º a 404.º do Código Civil). Nesta medida, tudo o que foi prestado no contexto da união de facto seria insusceptível de repetição, por força do artigo 403.º do Código Civil, uma vez que se tratou do cumprimento de deveres de ordem moral e social.
Esta exposição teve em conta, designadamente O “ESTATUTO PRIVADO” DOS MEMBROS DA UNIÃO DE FACTO, Rita Lobo Xavier, RJLB, Ano 2 (2016), nº 1 no sítio:
https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/1/2016_01_1497_1540.pdf.
Neste panorama legal, verifica-se que a lei só consagra o direito a alimentos ao unido de facto, em determinadas condições, mas sempre apenas em caso de morte de um dos companheiros.
Vejam-se agora os denominados “contratos de coabitação” em que a recorrente assenta essencialmente o fundamento da sua pretensão.
A nossa ordem jurídica não prevê expressamente o contrato de coabitação, ao contrário do sistema jurídico brasileiro, francês e espanhol, nos quais se estabelece a possibilidade de os conviventes regularem, com uma maior ou menor autonomia, alguns aspectos da sua união de facto. Na Holanda, nos Estados Unidos e no Canadá os conviventes podem mesmo dirigir-se aos serviços notariais para celebrar estes contratos.
Mas tal não impede que os unidos de facto não possam contratar os aspectos que bem entendam no âmbito da celebração de contratos do direito comum em que pontua o princípio da autonomia privada, ou da autonomia da vontade, como um dos princípios basilares do Direito Civil.
Os membros da união de facto podem, deste modo, celebrar contratos de direito comum com o intuito de criarem eles próprios uma disciplina jurídica reguladora dos vários aspectos em que se desenrola a sua convivência, como forma de suprir as omissões decorrentes da LUF, sobretudo ao nível patrimonial.
Serão contratos atípicos de auto-regulamentação da comunhão de vida entre os membros de uma união de facto e que, dada a ampla autonomia privada existente, poderão assumir a configuração de uma união de contratos ou de um contrato misto.
Aliás, a Recomendação n.º R (88) 3 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, sobre a validade de contratos e disposições testamentárias entre pessoas que têm uma convivência more uxório, exorta à aceitação, por parte dos Estados membros, de contratos que tenham por objecto a propriedade de bens, celebrados entre os conviventes na vigência ou aquando da dissolução da sua convivência, sem esquecer a obrigação constitucional de “conferir o devido relevo jurídico às uniões familiares «de facto».”- vide Tiago Nuno Pimentel Cavaleiro, A UNIÃO DE FACTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS, Análise de alguns aspectos de índole patrimonial, no sítio https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28646/1/A%20uniao%20de%20facto%20no%20ordenamento%20juridico%20portugues.pdf
Estes contratos podem ser celebrados a qualquer momento, seja antes do início, na vigência ou após a dissolução da união de facto, com a óbvia limitação de que as cláusulas que os integrem não contrariem o disposto no artigo 280º do C. Civil.
Pretende a recorrente que se dê como provado:
“Na vigência da união de facto, bem como, após a sua dissolução, o Réu comprometeu-se e acordou com a Autora uma obrigação de alimentos, em que lhe pagava a este título o valor de € 300,00.”
Não foi formalizado por escrito tal acordo mas isso não impede a sua existência e validade já que a regra em matéria contratual é a da liberdade de forma, nos termos do disposto no artigo 219.º do C. Civil.
Assim importa atentar na prova testemunhal produzida em audiência.
A autora, B…, em declarações de parte, disse que viveu com o réu primeiro em casa da mãe deste e depois começaram a pensar em comprar um apartamento. Como a declarante tem uma incapacidade de 65% adquiriram o apartamento em seu nome e até compraram um carro para usufruírem dos benefícios que tem a nível fiscal e das taxas de juros. Tem trabalhado em estágios na Junta de Freguesia …, Na E… e na F…, no âmbito de programas de apoio a deficientes. Fazia os trabalhos domésticos em casa e estiveram algum tempo França, na Normandia, quando o réu lá esteve a trabalhar. Depois de estarem a viver no apartamento, o réu decidiu dar-lhe uma pensão de 300 ou 400 euros por mês para as “suas coisas”. Esclareceu depois que podia usar o cartão do banco em cerca de 300 euros para as suas despesas. Passou a fazer o IRS em conjunto com o réu para usufruírem dos benefícios e, por isso, perdeu uma pensão que tinha. Começou por referir que réu sempre lhe disse que acontecesse o que acontecesse ele sempre lhe iria entregar uma quantia de cerca de 300 euros e depois clarificou que o que ele dizia era que acontecesse o que acontecesse ele nunca a ia desamparar.
Quando o réu saiu de casa, o irmão ajudou-a a pagar as prestações da carrinha, sendo que a pessoa que lhes tinha vendido e que tem um Stand acabou de pagar as prestações e ficou com o carro. Está a viver no apartamento e ficou a pagar as despesas de condomínio, a água, a luz e a sua alimentação. A irmã e o cunhado, que foram fiadores do empréstimo, estão a pagar a amortização mensal. Actualmente está fazer uma formação e recebe um subsídio de 270 euros por mês.
A testemunha G…, irmã da autora, relatou que a irmã perdeu um subsídio quando começou a fazer o IRS com o réu e desde que este saiu de casa, em Junho de 2015, é ela, depoente e o marido que suportam a prestações do empréstimo. A irmã sempre lhe disse que o réu combinou com ela que podia gastar do cartão 300 ou 400 euros e viu muitas vezes a irmã a fazer compras e a utilizar o cartão.
As testemunhas H… e I…, amigos do réu, sobre o alegado compromisso do réu para com a autora, referiram nada saber.
A testemunha J…, irmão do réu, contou que este constituiu nova família na Holanda e nunca ter ouvido dizer que o irmão tinha prometido ou decidido pagar à autora qualquer quantia.
Desta análise se observa, com clareza, não haver a mínima prova de que o autor tenha prometido ou pactuado com a autora pagar-lhe uma pensão de alimentos, em caso de separação.
Como se mencionou, do regime da união de facto não resulta a obrigação de prestação de alimentos para os membros da união, em caso de separação.
Só em caso de morte de um dos unidos de facto o outro pode pedir alimentos a suportar pela herança do falecido.
Portanto, não tendo a autora demonstrado, como se viu, que esse direito a alimentos tenha sido pactuado com o réu, não o pode exigir com essa fonte convencional.
Assim, não pode dar-se como provado que “Na vigência da união de facto, bem como, após a sua dissolução, o Réu comprometeu-se e acordou com a Autora uma obrigação de alimentos, em que lhe pagava a este título o valor de € 300,00.”
Quantos aos restantes factos, para além de não assumirem relevância jurídica como decorre do quadro jurídico expendido, não assumem consistência probatória, como se refere na motivação da matéria de facto exarada na sentença.
Reforçando, a irrelevância da dita factualidade se faz notar que tem sido entendimento jurisprudencial maioritário que o trabalho doméstico no âmbito da união de facto deve ser visto, em regra, como uma participação, livre, para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos, não ocasionando um enriquecimento sem causa.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
De acordo com o disposto dos n.º 1 (1.ª parte) e nº 2 do artigo 527.º do CPC, tendo a apelante ficado vencida no recurso, competia-lhe suportar as custas do recurso. Dado, porém, que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo não se condena a mesma no pagamento das custas por a elas não haver lugar.

Porto, 22 de Junho de 2021
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5.

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria).