Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
896/17.7T8PFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: REVELIA
SENTENÇA
Nº do Documento: RP20190107896/17.7T8PFR.P1
Data do Acordão: 01/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º687, FLS.159-162)
Área Temática: .
Sumário: I - Na situação de revelia, a sentença pode ser constituída apenas pela identificação das partes, fundamentação sumária e dispositivo.
II - A norma do art. 576.º/3 do CPC afasta a dos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC quando a causa revista manifesta simplicidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 896/17.7T8PFR.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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I - RELATÓRIO
B…, solteira, residente no …, nº .., freguesia de …, concelho de …, instaurou a presente ação declarativa contra C…, casado, residente na Estrada Nacional …, numero …, …, freguesia de …, concelho de Paredes, e D…, residente na Rua …, n.º …, …, freguesia e concelho de …, pretendendo ver declarada/confirmada a resolução do contrato e, consequentemente, ser decretado o despejo, condenando-se o réu a restituir de imediato à autora, livre e desocupado, o objeto locado e ainda a pagar-lhe as rendas vencidas e as que se vencerem até à restituição; a condenação da segunda ré ao pagamento das rendas vencidas e não pagas e as que se vencerem até á restituição atenta a sua qualidade de fiadora no contrato.
Para tanto alegou ter cedido ao R., em locação, o gozo de uma fração destinada à habitação, pela renda mensal de €287, 00, ficando a segunda Ré por fiadora.
O R. não procedeu ao pagamento das rendas devidas, desde Setembro de 2016 até à data da propositura da ação, o que constitui fundamento de resolução do contrato, tendo a A. comunicado ao R. essa circunstância.

O Réu C…, regularmente citado, não deduziu qualquer oposição, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer forma no processo, e a defesa apresentada pela Ré D… foi declarada ineficaz, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 567.º do Código de Processo Civil, foram considerados confessados os factos articulados na petição inicial.

Posteriormente, tendo a A. declarado haver sido entregue o locado, foi julgada extinta a acção quanto ao pedido de declaração/confirmação da resolução do contrato e condenação do Réu à restituição imediata do locado.
Quanto ao pedido de rendas, foi proferida sentença condenando os RR., solidariamente, no pagamento das rendas vencidas entre setembro de 2016 (inclusive) e dezembro de 2017 (inclusive), com juros calculados à taxa legal, desde as datas de vencimento de cada uma das rendas.

Desta sentença foi apresentado recurso pelos RR. que formularam as seguintes conclusões:
1. Mesmo na acção judicial não contestada, a sentença deve discriminar os factos que formam os fundamentos de facto da decisão (sentença). A sentença judicial, ao normar um caso concreto da vida, em que este é um ente singular, não pode prescindir dessa especificação dos factos, nem substituí-la por qualquer remissão, porque é por ela que se identifica o caso e a norma com que foi regulado. A especificação dos elementos de facto que dão corpo ao caso concreto é imposta, pelo disposto nos arts. 607.º, 3 e 4 e 615.º, 1, b), 1.ª parte do C.P.C, sob pena de nulidade da sentença. Como, na sentença, não foram cumpridos estes comandos legais, a sentença é nula.
2.ª Por força do alegado nos artigos 8, 9, 10 e 11 da petição inicial, e do disposto na cláusula 15.ª do contrato de arrendamento, o contrato de arrendamento dos autos vigorou entre 18/06/2014 e 17/06/2015, não tendo sido renovado, vez alguma, por acordo das partes e por escrito (artigo 10 da petição). Ora a alegada violação ao contrato, por falta de pagamento de rendas, respeita a rendas alegadamente devidas desde Setembro de 2016, quando o contrato estava extinto há mais de 14 meses. Como as rendas só são devidas quando existe um contrato de arrendamento, e como esse contrato não existia a decisão sob recurso violou o disposto nos arts. 1022.º e 1038.º, a) do C.C.
3.ª A sentença recorrida também condenou indevidamente a recorrente D…, porque, como se colhe do disposto na cláusula 15.º do contrato, ela não assumiu qualquer responsabilidade pessoal por qualquer renovação do contrato – que nunca foi renovado. Esse contrato extinguiu-se em 17/06/2015, e as dívidas reclamadas respeitam a Setembro de 2016 a Setembro de 2017.
A condenação da recorrente D… viola assim o disposto nos arts. 651.º e 655.º do C.C.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi recebido nos termos legais e, já nesta Relação, os autos correram Vistos.
Cumpre conhecer do mérito da apelação.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil:
Da nulidade da sentença por violação do disposto nos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC.
Da vigência do contrato de arrendamento e da responsabilidade da fiadora.
II- FUNDAMENTAÇÃO
De Facto
Os factos dados como provados em primeira instância foram todos os constantes da petição inicial que ali se deram por reproduzidos, acrescendo a circunstância de o locado ter sido restituído à Autora em 13 de dezembro de 2017.
Compulsando tal articulado, extraem-se daí com interesse para a decisão os seguintes factos:
1- A A. é dona e legítima possuidora de uma fração autónoma, designada pela letra “ CY”, sita na Rua …, n.º…, …, freguesia e concelho de …, inscrito na matriz predial sob o art.º 2675 da freguesia de …, com a licença de Utilização n.º … emitida em 23/09/1992, pela Câmara Municipal E….
2- A A. deu de arrendamento ao reu a dita fração autónoma, para habitação com início em 18/06/2014.
3- A segunda Ré D… assumiu a qualidade de fiadora do arrendatário, com renúncia ao benefício de excussão prévia, conforme consta do mencionado contrato de arrendamento.
4- O contrato foi celebrado pelo período de um ano, renovando-se apenas se as partes nisso concordassem por escrito.
5- A renda mensal cifra-se em €287,00 paga até ao dia oito do mês a que disser respeito.
6- O réu não pagou as rendas desde setembro de 2016 (inclusive).
De Direito
Os recorrentes consideram que a circunstância de a sentença não ter elencado, um por um, os factos que constituem fundamento da decisão torna nula a mesma peça por força das normas dos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC, normativos que respeitam à discriminação dos factos provados.
Contudo, as normas relativas à elaboração da sentença cível não são exactamente aplicáveis aos casos em que, não sendo a ação contestada, a resolução da causa se apresenta como simples.
É isso que dispõe o art. 576.º/3 do CPC, norma que deflui de uma perspectiva de simplificação que constitui um dos vectores atuais do processo civil. Na situação de revelia, a sentença pode ser constituída apenas pela identificação das partes, fundamentação sumária e dispositivo. A norma do art. 576.º/3 do CPC afasta a dos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC.
Na verdade, sendo os factos confessados os que constam da petição inicial e não outros, ainda que este articulado contenha descrição que não seja factual, é evidente que não existem outros factos provados ou não provados, como sucede com a sentença que é proferida após realização de julgamento. Nesta última situação, apenas se o julgador discriminar, após inquirição das testemunhas e análise da restante provada, quais os factos que considera, no seu juízo, provados ou não provados, é que podemos conhecer a narrativa que interessa para a decisão.
É exatamente porque, depois da realização de julgamento, se segue um momento de íntima convicção do julgador que pode ser objeto de sindicância, que o art. 607.º/3 impõe a discriminação dos factos (e, em retas contas, a descrição do raciocínio evolvido na demonstração ou não de cada um dos factos).
No caso da confissão ficta, não ocorre tal labor judiciário posto que os factos provados são os que constam da petição inicial e não outros, mormente os que resultem de outros articulados ou da instrução probatória dos autos.
De modo que, apesar da redação clara e explícita do art. 567.º/ 3 CPC e da simplicidade da sua teleologia, não se vê como fazer tábua-rasa do mesmo e blindá-lo com o recurso a norma construída manifestamente para a situação de sentença com que se conclui julgamento de fato.
Não pode, por isso, aceitar-se a interpretação formalista e serôdia da lei que, ignorando por completo o argumento literal, lhe retira toda utilidade e desvirtua a intenção clara do legislador de há mais de duas décadas[1],
Pode suceder – e isso é distinto – que a petição inicial seja extensa e equívoca. Nessa situação, então, a causa não reveste manifesta simplicidade, sendo que causa não é apenas a questão de direito, mas também a questão de facto e, na verdade, quando um articulado contém uma narrativa extensa, misturando de forma complexa matéria de facto, conceitos conclusivos, explicações desnecessárias, etc…, exorbita do previsto no n.º 3 do art. 567.º e, por isso, não lhe aplicável a solução processual simplificada nele constante. Não pode é afirmar-se que, em todas as situações de revelia, a sentença tem que operar a discriminação prevista no art. 607.º/3 CPC[2].
De facto, continuar a pugnar pela aplicação legalista da regra do n.º 3 do art. 607.º do CPC às situações de manifesta simplicidade, como sucede quando o articulado introdutório da lide se limita, em meia dúzia de artigos, a afirmar a vigência de um contrato de arrendamento, a falta de pagamento de rendas e a co-assunção da responsabilidade emergente da fiança, é ignorar por completo as linhas estruturais da reforma do Código de Processo Civil que se vêm delineando há já mais de duas décadas.
Não se verifica, por isso, a repontada nulidade.
Quanto aos factos provados e relativos à vigência do contrato, a matéria alegada na petição inicial e acima descrita é inequívoca: tendo sido celebrado inicialmente pelo prazo de um ano, o contrato renovou-se, necessariamente, pois se assim não fosse, não estaria afirmado e provado que não foram pagas rendas desde setembro de 2016. Não existiria direito a receber rendas caso o contrato tivesse terminado em junho de 2015, mas a A., de forma manifesta, afirma que o contrato se renovou, por isso peticiona rendas. A não se ter renovado, caberia aos RR. ter impugnado essa matéria, o que não fizeram. Aliás, a posição da Ré a este respeito é, afinal, impertinente e reveladora de ausência de boa-fé, pois que, a 31.10.2017, apresentou nos autos um requerimento por si subscrito, afirmando que “desde o dia 14 de Junho do presente ano, tenho pretendido entregar a casa”. Apesar de não poder ser considerado este requerimento para efeitos de contestação da ação, o que ali expôs contrasta nitidamente com o que afirma agora em sede de recurso e retira qualquer sentido pretende neste último.
Do mesmo jeito, quanto à sua posição de fiadora no contrato que, como se vê, esteve vigente até dezembro de 2017, de modo que não se verificou qualquer extinção da sua obrigação, não tendo sido desrespeitadas as regras dos arts. 651.º a 655º CPC.
O recurso improcede, pois, integralmente.
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a apelação improcedente e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Porto, 7.1.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
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[1] O n.º 3 do actual art. 567.º e anterior 484.º foi introduzido pelo diploma intercalar de 1985
[2] Razão por que discordados, por ex., ac. RG, de 3.7.2014, Proc. 4215/13.3TBBRG .G1, posto que ali de confunde a ausência de manifesta simplicidade com a norma do art. 607.º/3 CPC.