Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4658/18.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
SEGURANÇA JURÍDICA
ARRENDAMENTO URBANO
Nº do Documento: RP201909234658/18.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 702-A, FLS 63-85)
Área Temática: .
Sumário: I - É inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático contido no artigo 2º da Constituição, a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, no artigo 26º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano), ao desconsiderar o direito do arrendatário à permanência no arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela Lei n.º 31/2012.
II - É Inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, a norma extraída dos artigos 30º e 31º, n.º 6 do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/20006, de 27 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4658/18.6T8VNG.P1

Origem: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – J3.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Fernanda Almeida
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. B…, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra “C…, Lda. “, pedindo a sua condenação a ver declarado e reconhecer que o contrato de arrendamento relativo à D…, na Rua …, no Porto, de que é titular passiva, não transitou para o NRAU e, consequentemente não pode esse contrato de arrendamento ser livremente denunciado pelo senhorio, pelo que a oposição deste à sua renovação carece de fundamento legal.
Fundamenta a sua pretensão no facto de ser a arrendatária da casa . do D…, situado na Rua …, não saber ler, nem escrever e não se recordar de ter recebido do senhorio comunicação para transição do contrato de arrendamento para o NRAU. Recentemente recebeu uma carta do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento e, se houve comunicação de transição para o NRAU assistia-lhe o direito de não aceitar essa transição, o que só por total ignorância poderia ter dado resposta que a Ré interpreta como permitindo-lhe fazer cessar sem motivo o contrato de arrendamento, pois que fê-lo na certeza de que, por ter mais de 80 anos, não corria qualquer risco de lhe vir a ser tirada a casa.
Conclui que o ajuizado contrato de arrendamento não transitou validamente para o NRAU em 2013, pelo que à Ré não assiste o direito de se opor à respectiva renovação.
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2. A Ré contestou, invocando, em síntese, que a anterior proprietária do imóvel comunicou à Autora a sua intenção de transição do contrato de arrendamento para o NRAU, a qual foi recepcionada a 22 de Abril de 2013, na qual propôs que o contrato passasse a ser do tipo de prazo certo com a duração de cinco anos, renovável por três anos, bem como um aumento de renda para 91€, tudo no cumprimento da lei então vigente.
A Autora não respondeu à comunicação, pelo que aceitou a transição para o NRAU, com a duração e demais condições contratuais e legais de tal transição.
Por carta de 22 de Fevereiro de 2018, a Ré comunicou à Autora a oposição à renovação do contrato de arrendamento, com o aviso prévio legal de 120 dias, pelo que o mesmo contrato cessou os seus efeitos a 30 de Junho de 2018, data em que a Autora deveria ter procedido à entrega do locado.
Concluiu, assim, pela improcedência da acção.
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3. Proferiu-se despacho saneador no qual se julgou válida e regular a instância.
Foi, ainda, proferido despacho a dispensar a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova, o que não mereceu reclamação.
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4. Procedeu-se a julgamento, sendo proferida sentença que julgou não provada e improcedente a acção, absolvendo-se a Ré do pedido contra si formulado. [1]
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5. Inconformada, veio a Autora interpor recurso de apelação em que ofereceu alegações e deduziu a final as seguintes
CONCLUSÕES
A douta sentença recorrida,
1.- ao decidir pela improcedência da ação sem atender a que a aplicação retroativa de disposições do NRAU - especialmente as do artigo 26.º-4-a), ex vi os artigos 27.º e 28.º - que eliminam a proteção da Autora decorrente do seu direito de oposição a denúncia do contrato de arrendamento por permanecer ininterruptamente no locado há mais de 60 anos, é inconstitucional por não respeitar os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, violou a Constituição da República, especialmente o seu artigo 2.º;
2.- por perfeita identidade de razões, ao proclamar a improcedência da ação não valorizando que a aplicação retroativa do NRAU, designadamente os seus artigos 26.º-1, 30.º e 31.º-6, desabriga a recorrente da proteção de não poder o seu contrato de arrendamento ser denunciado pelo facto de ter mais de 65 anos de idade desde 7 de junho de 1996, agride os referidos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança estabelecidos na Constituição da República, especialmente no seu artigo 2.º
Nestas circunstâncias, impõe-se considerar a sentença de que se recorre proferida aplicando normas inconstitucionais, por clara violação, sobretudo, da previsão do artigo 2.º da Constituição da República, anulando-a e substituindo-a por outra que, reconhecendo a proteção da recorrente pela sua permanência ininterrupta no arrendado há mais de 30 e, ademais, ter mais de 65 anos de idade à data da pretendida transição para o NRAU, declare a ação procedente e acolha o pedido nela formulado.
Tanto se não entendendo, sem conceder,
3.- ao não considerar a ineficácia da declaração constante da carta da senhoria que anunciava a intenção de fazer transitar o contrato para o NRAU, dada que a avançada idade da recorrente e o seu analfabetismo lhe não permitiam, sem culpa sua, conhecê-la, violou, em especial, o previsto no n.º 3 do artigo 224.º do Código Civil;
Sem prescindir,
4.- ao não atender que a recorrente só por manifesta falta de consciência de estar a emitir uma declaração negocial - o que a torna inexistente - é que se teria abstido de contestar a transição do seu contrato de arrendamento para o NRAU, assim aceitando desproteger clamorosamente a sua condição de arrendatária, desrespeitou, sobretudo, o disposto na primeira parte do artigo 246.º do Código Civil;
Não concedendo,
5.- ao não valorizar que, ainda que ao seu silêncio pudesse ser atribuído o significado de uma declaração negocial da recorrente no sentido de concordar com a transição do contrato para o NRAU, tal sentido, por ser absurda a aceitação de desproteger a sua condição de arrendatária, o que a senhoria não podia deixar de saber - tanto mais que manifestamente violou o princípio da boa-fé negocial previsto no artigo 227.º do Código Civil ao não a alertar para as consequências da sua eventual omissão de pronúncia -, jamais poderia corresponder à sua vontade real, o que lhe consente a sua anulação, agrediu o teor do artigo 247.º do mesmo Código.
Sempre sem prescindir
6.- Igual solução se impõe à luz das regras que regulam o instituto do abuso de direito, pois o senhorio aproveitou-se da ignorância e fragilidade da inquilina para procurar obter a transformação do contrato de arrendamento que entre ambos vigora, de contrato estável e “vitalício” em contrato precário, bem sabendo que essa não poderia ser a vontade da A. e que a estava a enganar, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, em grosseira violação do disposto no artigo 334º do C.C..
7.- A procedência da ação impõe-se igualmente pelo disposto no nº 10 do artigo 36º da Lei 6/2006, na redação que lhe foi dada pela Lei 12/2019 de 12 de fevereiro.
Termos em que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que considere a ação procedente, por provada, e condene a Ré no pedido.
Sem transigir, se assim não se entender, no que se não concede e apenas por hipótese de cautela se admite;
8.- a sentença em causa ao, por um lado, dar por assente que a recorrente recebeu a comunicação da senhoria sem prova nem fundamento para tal bastantes e, por outro, ao conceder em que a recebeu e, ao mesmo tempo, dar por não provado que dela tivesse tomado conhecimento, incorreu na consequência prevista na alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil, pelo que deve ser declarada a sua nulidade.
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6. A Recorrida apresentou contra-alegações nas quais pugnou pela improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.
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7. Mostrando-se observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos prescrito na lei adjectiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação da decisão proferida. [2]
Neste enquadramento e no seguimento de tais princípios, em função das conclusões do recurso, as questões a dirimir são as seguintes:
i). Impugnação da decisão de facto;
ii). Nulidade da sentença;
iii). Se a aplicação/interpretação dos artigos 26, n.º 4, al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º ou, ainda, se a aplicação/interpretação dos artigos 26º, n.º 1, 30º e 31º, n.º 6, todos do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012 de 14.08, confronta os princípios constitucionais da segurança jurídica e protecção da confiança que emergem do conceito de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP.
iv. Da ineficácia da declaração da senhoria de transmissão do contrato de arrendamento para o NRAU e violação do disposto no artigo 224º, n.º 3, do Cód. Civil.
Subsidiariamente,
v. Da falta de consciência da arrendatária de estar a emitir uma declaração negocial na sequência da declaração da senhoria antes referida – o que torna inexistente a sua declaração – e consequente violação do preceituado no artigo 246º do Cód. Civil.
vi. Da violação do princípio da boa-fé negocial da senhoria, ao não alertar para as consequências da sua eventual omissão de pronúncia, o que permite a anulação da declaração nos termos do artigo 247º do Cód. Civil.
vii. Da alegada actuação em abuso de direito da senhoria ao proceder à transmissão do contrato de arrendamento para o regime do NRAU.
vii. Da aplicação ao caso dos autos do artigo 36º, n.º 10 da Lei n.º 6/2006 (NRAU), na redacção que foi introduzida pela Lei n.º 12/2019 de 12.02.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A autora é arrendatária habitacional da casa . do D…, situado na Rua …, ….-… Porto, por nessa qualidade ter sucedido a seu marido E…, falecido em 2005, que tomara de arrendamento essa casa há mais de 60 anos ao então proprietário com destino a habitação da sua família.
2. Actualmente a Autora paga à Ré a renda mensal de 102,69€.
3. A autora nasceu em 7 de Junho de 1931.
4. Não sabe ler nem escrever, apenas sabendo desenhar as letras do seu nome.
5. A Autora afirma não se recordar de ter recebido do proprietário comunicação para transição do contrato de arrendamento para o NRAU, à luz do regime jurídico estabelecido pela Lei 31/2012 de 14 de agosto,
6. Com data de 22 de Fevereiro de 2018, a Autora recebeu da Ré uma comunicação nos termos da qual esta declarava a oposição à renovação do contrato de arrendamento para o dia 30 de Junho de 2018, nos termos constantes do documento de fls. 5 verso/6 que, no mais, se dá por integralmente reproduzido.
7. Comunicação a que a Autora respondeu por carta datada de 13 de Março de 2018, invocando, em suma, que devido à sua idade tem direito a manter-se no arrendado, não aceitando entregar a casa no dia indicado - cfr. documentos de fls. 6 verso/7, que se dão por integralmente reproduzidos.
8. Ao que a Ré respondeu conforme carta de 20 de Abril de 2018, invocando que a idade deveria ter sido invocada pela Autora até 30 dias após a comunicação de transição para o NRAU, pelo que não tendo sido oportunamente invocada, o contrato transitou para o NRAU nos termos propostos pela carta de 19 de Abril de 2013 - cfr. documento de fls. 7 verso/8, que se dá por integralmente reproduzida.
9. Por contrato de compra e venda celebrado a 18 de Dezembro de 2015, a “F…, Lda. “, vendeu à Autora o imóvel, casa n.º ., inscrito na matriz urbana sob o artigo 1442, da União de Freguesias …, …, …, …, … e …, concelho do Porto, o qual faz parte do denominado D…, sito na Rua …, n.º … - cfr. documento de fls. 30 a 35, que se dá por integralmente reproduzido.
10. Por comunicação datada de 19 de Abril de 2013, remetida por carta registada com aviso de recepção, a anterior proprietária do sobredito imóvel comunicou à AUTORA a intenção de transição do respectivo contrato de arrendamento para o NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nos termos constantes do documento de fls. 36/37, que se dão por integralmente reproduzidos.
11. Tal comunicação foi recebida pela Autora no dia 22 de Abril de 2013 - cfr. documentos de fls. 38.
12. Em tal comunicação, a então senhoria propôs à Autora que o contrato de arrendamento passasse a ser do tipo de prazo certo com a duração de cinco anos, renovável por períodos de três anos, bem como um aumento da renda de 91,00€ (noventa e um euros), para 100,00€ (cem euros) - cfr. documentos de fls. 36.
13. A Autora não respondeu à comunicação.
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Por seu turno, o Tribunal de 1ª instância, no que ora releva, julgou como não provada a seguinte factualidade:
- A Autora passou, desde a data de recepção da aludida comunicação (referida em 10. dos factos provados), a pagar o novo valor da renda que lhe foi fixado, o que demonstra que tomou conhecimento da comunicação que efectivou a transição para o NRAU e o correspondente aumento de renda. (artigo 12º da contestação da Ré)
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Impugnação da decisão de facto:
A primeira questão que, de um ponto de vista lógico, nos cumpre dirimir refere-se à impugnação da decisão de facto.
Tendo em vista esse objectivo, a primeira referência que se impõe fazer refere-se à discordância evidenciada pela Recorrente em sede de alegações quanto à matéria de facto constante dos pontos 10 e 11 do elenco dos factos provados da sentença recorrida.
Com efeito, nas alegações refere a Recorrente que a partir dos “ depoimentos das testemunhas o que se pode retirar é que, tendo terceiros recebido cartas semelhantes à que teria sido enviada à Autora, não terão respondido por não lhes conferirem importância, pelo que “ acham que a Autora deve ter feito a mesma coisa.
Por outro lado, ainda, refere ainda a Recorrente nas suas alegações que “ Dos documentos somente é possível concluir que alguém assinou um aviso de recepção com uma rubrica onde se pode ler “… I…” (…) dentro de cujo envelope alegadamente estaria uma carta (…) manifestando a intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU.
E nada mais.
Ou seja, nenhuma evidência é possível extrair quer dos documentos dos autos, quer dos depoimentos das testemunhas que, alguma vez, a Autora tenha recebido a pretensa comunicação da então senhoria.
E, ainda, “Assim, embora de modo implausível, o tribunal tenha dado como adquirido que tal comunicação foi recebida pela Autora no dia 22 de Abril de 2013, não se demonstrou que a Autora tenha tomado conhecimento da referida comunicação.
Porém, já em sede de conclusões, refere a Recorrente sob o n.º 3 o seguinte: “ao não considerar a ineficácia da declaração constante da carta da senhoria que anunciava a intenção de fazer transitar o contrato para o NRAU, dada que a avançada idade da recorrente e o seu analfabetismo lhe não permitiam, sem culpa sua, conhecê-la, violou, em especial, o previsto no n.º 3 do artigo 224º do Código Civil.”
E, ainda, sob o n.º 8 das conclusões escreve a Recorrente o seguinte: “a sentença em causa ao, por um lado, dar por assente que a recorrente recebeu a comunicação da senhora sem prova nem fundamento para tal bastantes e, por outro, ao conceder em que a recebeu e, ao mesmo tempo, dar como não provado que dela tivesse conhecimento, incorreu na consequência prevista na alínea c) do n.º 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil.”
Estas afirmações são claramente confusas e até contraditórias!
Se não, vejamos.
Desde logo, pugnar-se pela ineficácia da declaração constante da carta da senhoria que anunciava a intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU significa, do ponto de vista lógico, que essa declaração existiu, isto é, foi emitida pelo declarante e chegou ao poder da arrendatária (declaratário), pois que, estando em causa uma declaração receptícia, se ela não foi emitida sequer ou não chegou às mãos ou ao poder do declaratário, em condições de o mesmo dela conhecer, é evidente que essa declaração não pode produzir efeitos; Como assim, carece de verdadeiro sentido útil pugnar-se pela ineficácia de uma tal declaração quando, ao mesmo tempo, se põe em causa a existência de tal declaração e/ou a sua recepção pelo declaratário…
Por outro lado, só colhe sentido invocar-se a alegada nulidade da sentença por contradição entre os factos provados em 10 e 11 e o facto não provado alegado pela Ré no artigo 12º da sua contestação se se aceitar, previamente, que os ditos factos 10 e 11 estão provados; Na verdade, como é consabido, não existe contradição entre factos não provados, pois que deles não resulta a prova do facto contrário, tudo se passando como se não tivessem sido sequer alegados. [3]
Como assim, é manifestamente contraditório pugnar-se pela contradição entre os factos provados em 10 e 11 e o facto não provado acima referido e, ao mesmo tempo, sustentar-se, ainda que de forma genérica, que os factos 10 e 11 foram julgados como provados sem prova bastante para tal, ou seja, sustentando-se que os mesmos deveriam ser julgados como não provados!
Significa isto que, confrontado este Tribunal com o presente recurso – e tendo em vista o julgamento seguro e consciencioso das questões suscitadas pelas partes -, fica o mesmo com sérias dúvidas se, de facto, a Recorrente impugna os pontos 10 e 11 do elenco dos factos provados.
E essas dúvidas mais se adensam quando, analisadas as alegações e, em particular, as conclusões do recurso, que definem o objecto do recurso, em parte nenhuma a Recorrente diz, de forma clara ou inequívoca, que impugna os pontos 10 e 11 da matéria de facto antes referidos e qual a resposta que propõe para os mesmos (ainda que seja possível interpretar que a Recorrente entende que os mesmos deviam ter sido julgados não provados), sendo certo, ainda, que, mesmo quanto aos meios probatórios que sustentam a sua divergência quanto à decisão de facto dos pontos impugnados, a Recorrente se limita a referir, em sustento da sua posição, aos “documentos juntos aos autos” - sem especificar quais exactamente - e aos “depoimentos das testemunhas” - sem especificar quais e sem indicar sequer qualquer passagem, por mínima que seja, da gravação desses depoimentos.
Como assim, neste contexto, em nosso ver, o recurso em apreço quanto à impugnação da decisão de facto – se é que ela existe … - não cumpre, em termos minimamente aceitáveis, os ónus legais consignados no artigo 640º, do CPC, o que deve conduzir à sua rejeição liminar, com a consequente improcedência da impugnação da decisão de facto.
Porém, ainda que assim não se entenda, cabe dizer que não assiste razão à Recorrente quando alega que o Tribunal de 1ª instância deu como provado os factos 10 e 11 “sem prova bastante para tal”, ou, ainda, quando sustenta que a única coisa que resulta do documento de fls. 36/37 (aviso de recepção) e do depoimento das testemunhas (G… e marido H…) é que alguém assinou o dito aviso de recepção com a rubrica “I…”.
Desde logo, resulta dos documentos de fls. 36/37 que a dita carta foi enviada para a residência da arrendatária, que a mesma ali – na residência da arrendatária - foi entregue pelo funcionário dos correios e, ainda, que ali – nessa residência - alguém subscreveu/assinou no dia 22.04.2013 o respectivo aviso de recepção com a rubrica “I…”.
Mais acresce que, à luz dos depoimentos das testemunhas G… e H… resulta que também outros vizinhos da Autora receberam uma carta em tudo semelhante à que ora está em causa nos autos e também não responderam a essa carta por suporem que daí não lhes adviria qualquer problema quanto à manutenção do contrato de arrendamento, pois que de outro modo, teriam, segundo disseram as testemunhas, respondido a tais cartas; Referem, assim, neste contexto, as mesmas testemunhas que a Autora assim fez, ou seja, como os demais vizinhos, recebeu também a carta que aqui está em causa, mas não lhe respondeu por supor que daí não lhe adviria qualquer prejuízo ou problema quanto ao contrato de arrendamento que existia.
Ou seja, resulta da conjugação e apreciação crítica destes meios de prova, à luz das regras da experiência e da lógica, que é, de todo, plausível, por um lado, que a senhoria tenha enviado a carta em apreço à ora Recorrente, como consta do documento de fls. 36/37 dos autos (como, aliás, enviou aos demais vizinhos e arrendatários), e que essa comunicação tenha sido recebida pela Autora no dia 22 de Abril de 2013, como consta do dito aviso de recepção, pois que é de partir, segundo as regras da experiência e da normalidade, do pressuposto que uma carta enviada para a morada correcta de certo destinatário e que nessa morada é recebida/aceite e assinado o respectivo aviso de recepção foi, de facto, recebida por esse destinatário, ainda que, eventualmente, por meio de outra pessoa que ali também resida e, portanto, tenha proximidade com o destinatário de molde a entregar-lhe essa carta.
Trata-se, pois, de aplicar ao caso uma presunção natural ou judicial, em conformidade com o preceituado no artigo 349º, do Cód. Civil, presunção que, no caso, face ao antes exposto, é perfeitamente sustentável e razoável segundo as regras da experiência e da normalidade, ou seja, à luz de uma apreciação crítica dos meios de prova.
Destarte, mesmo a admitir-se, apenas por dever de raciocínio e à cautela, que a Recorrente cumpriu os ónus de impugnação previstos no artigo 640º, do CPC, sempre essa impugnação teria que improceder, não se vislumbrando nesta instância qualquer fundamento ou razão séria para divergir quanto à demonstração dos pontos 10 e 11 do elenco do elenco dos factos provados.
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IV.II. Nulidade da sentença:
Aqui chegados, coloca-se, naturalmente, a questão da nulidade da sentença invocada pela Recorrente e em função da alegada contradição entre os factos provados em 10 e 11 (cuja decisão antes se manteve) e o facto não provado e acima referido.
Como já antes escrevemos em repetidas ocasiões, as hipóteses de nulidade da sentença (ou despacho) encontram-se taxativamente previstas no artigo 615º, n.º 1, do CPC. Significa isto que apenas os vícios que colham previsão no dito normativo integram a hipótese de nulidade da sentença e, logicamente, os demais vícios do acto decisório não consubstanciam esse vício, embora possam traduzir-se num erro de julgamento (de facto ou de direito) a sindicar nessa sede.
Ora, dito isto, prevê a alínea c) do citado artigo 615º que é nula a sentença quando os fundamentos invocados pelo juiz estejam em oposição com a decisão proferida ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
A contradição entre a fundamentação e a decisão ocorre quando o juiz segue no acto decisório um determinado raciocínio ou fundamentação jurídica e acaba por chegar a uma decisão surpreendente ou inesperada por contrária ou oposta à fundamentação que antes expôs no acto decisório; Trata-se de um vício lógico ostensivo que se detecta pela simples leitura e interpretação da sentença (ou do despacho), segundo os critérios da impressão do destinatário.
Ora, nada disto está em causa nos autos, pois que a Recorrente não identifica minimamente qualquer contradição entre a fundamentação exposta pelo juiz e a decisão de improcedência da causa, antes invoca uma contradição entre factos provados e factos não provados, o que é coisa completamente distinta e não preenche, como se vê, a hipótese do n.º 1 da alínea c) do artigo 615º.
Também não se vê onde esteja a ambiguidade ou obscuridade da sentença, que, aliás, a Recorrente não concretiza minimamente…
O Tribunal de 1ª instância deu como provado em 10 e 11 que a senhoria enviou à Recorrente uma determinada carta com certo conteúdo (ponto 10) e que essa carta foi recebida pela Recorrente (ponto 11) no dia 22 de Abril de 2013.
Por seu turno, o mesmo Tribunal deu como não provado que a Recorrente tenha tido conhecimento do teor dessa carta em que se comunicava a transição do contrato de arrendamento para o NRAU e se actualizava a renda em vigor.
Ora, como já antes se referiu, desta resposta do Tribunal quanto a esta factualidade não resulta, ao contrário do que parece sugerir a Recorrente, a prova de que a arrendatária não teve conhecimento da carta em causa e do seu conteúdo. Ao invés, o que resulta é que o Tribunal não sabe – em face dos meios de prova produzidos sobre essa matéria – se esse facto ocorreu ou não, ou seja, se a Recorrente teve conhecimento ou não da comunicação da transferência do arrendamento para o NRAU e da actualização da renda. Daí a resposta negativa a tal matéria de facto; Repare-se que a carta, não obstante ter sido recebida pelo destinatário, estando, pois, em seu poder e em condições de o mesmo se inteirar do seu conteúdo, pode não ser lida ou sequer aberta pelo mesmo. Logo, não há contradição lógica entre os factos em causa.
É certo que, em tal hipótese, naturalmente, o desconhecimento do conteúdo da carta só pode ser imputado a título de negligência ou imprevidência ao declaratário (artigo 224º, n.º 1, do Cód. Civil), não deixando, por isso, a declaração (receptícia) de ser eficaz. Todavia, isso só releva em sede de mérito da causa e não em sede de nulidade da sentença.
Por conseguinte, à luz do exposto, não existe, ao contrário do que invoca a Recorrente, qualquer contradição entre este ponto da factualidade não provada e os pontos 10 e 11 da factualidade provada, nem, ainda, se vislumbra qualquer obscuridade ou ambiguidade que torne a sentença ininteligível e que exija o seu esclarecimento.
Improcede, assim, sem mais considerandos, a nulidade da sentença invocada pela Recorrente.
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IV.III. Da aplicação ao caso dos autos do n.º 10 do artigo 36º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2019 de 12.02.2019:
Como resulta das conclusões do recurso (conclusão 7.) coloca a Recorrente, a título subsidiário, a questão da procedência da presente acção por mor da aplicação do n.º 10 do artigo 36º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2019 de 12.02.
Justificar-se-ia, assim, à partida, atenta a natureza subsidiária da pretensão em causa, que se conhecesse desta matéria numa outra sequência, ou seja, após o conhecimento das demais questões suscitadas, nomeadamente das questões colocadas a título principal.
Sucede, no entanto, que a vingar a posição da Recorrente, isto é, se a redacção introduzida em 2019 no n.º 10 do artigo 36º do NRAU for imediatamente aplicável ao caso dos autos, dela decorre, desde logo, a procedência da causa, o que justifica, pois, em nosso ver, que, desde já, se passe a conhecer dessa matéria, pois que a mesma pode, nesse contexto, prejudicar o conhecimento das demais questões suscitadas, mesmo a título principal.
A Lei n.º 13/2019 de 12.02 (que entrou em vigor a 13.02.2019 – cfr. artigo 16º da citada Lei) introduziu significativas alterações à Lei n.º 6/2006 (antes alterada, ainda, pelas Lei n.º 31/2012 de 14.08, pela Lei n.º 79/2014 de 19.12., pela Lei n.º 42/2017 de 14.06, pela Lei n.º 43/2017 de 14.06 e pela Lei n.º 12/2019 de 12.02.), alterações que, segundo o próprio legislador, visaram «corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, reforçar a segurança e estabilidade do arrendamento urbano e proteger arrendatários em situação de especial fragilidade
Como assim, além do mais, no artigo 36º, n.º 10, da citada Lei n.º 13/2019 estabelece-se que «Em caso de transição de contrato para o NRAU nos termos do artigo 30º e seguintes (…), se o arrendatário residir há mais de 15 anos no locado e o demonstrar mediante atestado emitido pela junta de freguesia da sua área de residência, e tiver, à data da transição do contrato, idade igual ou superior a 65 anos de idade ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60%, o senhorio apenas pode opor-se à renovação do contrato com o fundamento previsto na alínea b) do artigo 1101º do Código Civil, aplicando-se com as devidas adaptações os requisitos estabelecidos no artigo 1102º do mesmo Código
Em suma, como decorre deste normativo, tendo o contrato de arrendamento sido transferido para o regime do NRAU e passando ele a vigorar com um prazo certo – o que consente, em tese geral, ao senhorio opor-se à sua renovação no termo do prazo previsto, mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência legal (artigos 1096º e 1097º, do Cód. Civil, na redacção da Lei n.º 31/2012) -, o legislador passou a exigir, a partir da entrada em vigor desta Lei n.º 13/2019, quando o arrendatário resida há mais de 15 anos no locado e tenha 65 anos ou mais à data da transição do contrato para o NRAU ou, ainda, sofra de uma deficiência que importe uma incapacidade igual ou superior a 60%, ao senhorio que a oposição à renovação do contrato seja motivada à luz do preceituado no artigo 1101º, al. b) [isto é, que a oposição à renovação tenha por finalidade a demolição ou realização de obras de remodelação/restauro profundo do locado que obriguem à sua desocupação e desde que não resulte local com características equivalentes ao locado e onde seja possível a manutenção do arrendamento].
Deixou, pois, nessas novas circunstâncias – que tem de ser comprovadas pelo arrendatário - de ser possível ao senhorio deduzir oposição à renovação do contrato sem motivação ou «ad nutum», como ora sucedeu pela carta de 22.02.2018, referida sob o ponto 6 do elenco dos factos provados e constante de fls. 5/6 dos autos.
Significa isto que, ocorrendo aquelas hipóteses atinentes à pessoa do arrendatário (residência no locado há mais de 15 anos e 65 anos à data da transição do contrato ou residência no locado há mais de 15 anos e 60% de incapacidade) e não sendo invocada a situação prevista na alínea b) do artigo 1101º, do Cód. Civil, o senhorio não pode opor-se à renovação do contrato, que será automaticamente renovado pelo prazo previsto na lei ou no contrato.
No caso dos autos, sustenta a Recorrente que ocorre esta situação, pois que a Recorrente habitava há mais de 15 anos no arrendado à data da transição do contrato para o NRAU e tinha também mais de 65 anos, sendo certo que a oposição à renovação do contrato levada cabo pela senhoria não preenche a hipótese da alínea b) do citado artigo 1101º.
Como assim, a oposição à renovação por parte da senhoria do ajuizado contrato de arrendamento não pode ter-se como válida, como peticionado, antes se impondo a renovação do contrato pelo prazo de 3 anos.
Sucede que, independentemente de ocorrerem as circunstâncias previstas na Lei n.º 13/2019 como factos impeditivos do direito do senhorio à oposição da renovação do arrendamento, como se refere na sentença recorrida – partindo do pressuposto da legalidade da transição do ajuizado contrato de arrendamento para o NRAU e do estabelecimento do seu prazo em 5 anos, renovável pelo período de 3 anos -, à data da entrada em vigor da citada Lei n.º 13/2019 (13.02.2019), o contrato de arrendamento já se mostrava extinto por oposição à sua renovação e com efeitos a partir de 1.07.2018, em conformidade com o disposto no artigo 31º, n.ºs 1 e 6 do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012 de 14.08, conjugado com o preceituado nos artigos 1096º, n.º 1 e 1097º, n.º 1 al. b), do Cód. Civil, na redacção da mesma Lei.
Ora, sendo assim, na ausência de qualquer norma específica de direito transitório que, no âmbito da Lei n.º 13/2019, conduza à aplicação retroactiva daquele seu normativo (artigo 36º, n.º 10) aos factos pretéritos, vale, de pleno a regra geral de aplicação das leis no tempo prevista no n.º 1 do artigo 12º, do Cód. Civil, qual seja a de que «A lei só dispõe para futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular
Como assim, tendo a senhoria, antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, posto termo ao contrato de arrendamento por oposição à renovação do seu prazo (por 3 anos), termo esse que ocorreu também antes do início da vigência da última Lei (a 1.07.2018), daí emerge que esta nova Lei não atinge, nem altera os efeitos antes produzidos ao abrigo da lei (antiga) sob cuja égide foram praticados, ou seja, dito de modo mais simples, a nova Lei não prejudica ou afecta a anterior extinção do contrato por força da sua não renovação a 1.07.2018, nem lhe é, portanto, aplicável.
Como assim, ao caso sub judice e como se decidiu em 1ª instância, não é aplicável o n.º 10 do artigo 36º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2019, mas antes o NRAU, na redacção anterior e, portanto, à luz deste último quadro legal (independentemente da questão da sua conformidade constitucional, matéria que oportunamente se conhecerá), o contrato de arrendamento em apreço teve o seu termo a 1.07.2018 por força da ausência de resposta da arrendatária à transmissão do arrendamento para o NRAU e ao tipo e prazo propostos pela senhoria na sua carta de Abril de 2013 e da posterior oposição à sua renovação – cfr. artigo 31º, n.º 6, do NRAU e artigos 1096º e 1097º, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012.
Improcede, assim, a conclusão 7 do recurso.
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IV.IV. Se a aplicação/interpretação dos artigos 26, n.º 4, al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º ou, ainda, se a aplicação/interpretação dos artigos 26º, n.º 1, 30º, n.º 1 31º, n.º 6, todos do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012 de 14.08, confronta os princípios constitucionais da segurança jurídica e protecção da confiança que emergem do conceito de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP.
Dirimidas as questões antes expostas, resulta dos termos do recurso que, a título principal e em primeiro lugar, invoca a Recorrente que a aplicação e interpretação dos artigos 26º, n.º 4 al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º e 26º, n.º 1, 30º e 31º, nº 6, todos do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27.02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14.08), ao eliminarem a protecção da Autora/arrendatária decorrente do seu direito de oposição à denúncia do contrato de arrendamento por permanecer ininterruptamente no locado há mais de 60 anos e ter mais de 65 anos, é inconstitucional por não respeitar os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, violando a Constituição da República, especialmente o seu artigo 2º (Estado de Direito Democrático).
Por seu turno, a Recorrida sustenta que a questão ora em apreço não foi suscitada pela Recorrente perante o Tribunal de 1ª instância e, portanto, sendo uma questão nova, não deve ser apreciada nesta instância de recurso.
Por outro lado, invoca que, no caso concreto, não está em causa a denúncia do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1101º, do Cód. Civil, mas antes uma hipótese de oposição à sua renovação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1097º, n.º 1, al. b), ambos do Cód. Civil (na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08), sendo certo que cumpriu ela os ditames exigidos por esta última Lei.
Como assim, a questão de inconstitucionalidade tal como suscitada pela Recorrente não tem aplicação ao caso, pois que não está em causa uma denúncia do contrato de arrendamento e o alegado direito de a arrendatária a ela se opor por permanecer no arrendado há mais de 60 anos ou por ter mais de 65 anos, mas antes de oposição à sua renovação por parte da senhoria, sendo certo que o contrato de arrendamento em causa, atenta a sua transmissão para o regime do NRAU e a sua sujeição a um prazo certo (5 anos), pode não ser renovado em razão dessa oposição do senhorio.
Cumpre decidir, conhecendo, previamente, da possibilidade de conhecimento nesta instância da questão da constitucionalidade suscitada pela Recorrente.
Como já antes se realçou, o nosso sistema de recursos tem em vista a reapreciação da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância nas mesmas condições em que o mesmo usufruiu, ou seja, mediante a reapreciação das questões que foram submetidas à sua apreciação, no pressuposto de que essas questões têm de ser colocadas por iniciativa das partes (princípio do dispositivo ou da iniciativa processual – cfr. artigos 3º, n.º 1 e 5º, n.º 1, do CPC) perante aquele órgão judicial e este tem o dever de conhecer de todas elas e decidir em termos fundamentados – cfr. artigos 154º, n.º 1, 607º, n.º 2 e 613º, n.º 3, do CPC.
Neste sentido, como tem sido recorrentemente afirmado pela nossa jurisprudência, os recursos não se destinam ao conhecimento de novas questões e à prolação de novas decisões.
Como salienta nesta matéria A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 27, “Os recursos ordinários destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas.
Na fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação.”
Todavia, para além disso, como é pacífico, é possível ao Tribunal Superior, independentemente da iniciativa das partes, suscitar e apreciar questões de conhecimento oficioso, nomeadamente a questão da inconstitucionalidade das normas que forem aplicáveis ao caso submetido a juízo.
Na verdade, como salienta a doutrina constitucional, em termos gerais, a competência para exercer a fiscalização concreta da constitucionalidade é atribuída a todos os tribunais que, por iniciativa das partes ou oficiosamente pelo próprio juiz, apreciam da eventual inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicáveis aos casos concretos (artigo 204.º, da Constituição da República Portuguesa – adiante CRP).
Não se ignora que essas decisões dos tribunais relativamente à questão de inconstitucionalidade são sempre susceptíveis de recurso para o Tribunal Constitucional – recurso que é, por vezes, obrigatório para o Ministério Público –, cabendo, assim, a este último Tribunal a decisão definitiva da questão e com efeitos limitados ao caso concreto subjacente ao recurso de constitucionalidade interposto (art.º 280.º, n.º 1, da CRP)
Nesta perspectiva, como salienta a mesma doutrina, o regime de fiscalização concreta da constitucionalidade apresenta-se como «difuso na base e concentrado no topo» [4], ou, «difuso na origem e eventualmente concentrado no fim» [5], na medida em que, na senda da tradição republicana do constitucionalismo português, todos os juízes são competentes para conhecer
e decidir da constitucionalidade das normas aplicáveis aos casos concretos submetidos a julgamento, embora o monopólio da «última palavra» nessa matéria caiba, por princípio, ao Tribunal Constitucional.
Esta solução traduz, como é consabido, o «carácter misto» do regime de fiscalização concreta da constitucionalidade actualmente consagrado na nossa Constituição e que o distingue de outros modelos de fiscalização concreta da constitucionalidade das normas aplicáveis ao caso concreto. [6] [7]
Dito isto, estando, assim, em causa matéria de conhecimento oficioso, não constitui obstáculo ao conhecimento de tal questão por este Tribunal a circunstância de a mesma não ter sido suscitada pela Recorrente na pendência do processo em 1ª instância e de este Tribunal dela não ter conhecido, sendo certo, ademais, que em razão do preceituado no artigo 5º, n.º 3, do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, em particular quanto às regras que emergem da Lei Fundamental que, na hierarquia legal, ultrapassa, como é consabido, os actos legislativos, sejam estes do órgão executivo (Governo), sejam do próprio órgão legislativo (Assembleia da República).
Por conseguinte, desde que dos autos resultem os factos indispensáveis ao conhecimento da concreta questão da constitucionalidade, cabe ao órgão jurisdicional, qualquer que ele seja, conhecer dessa questão, independentemente da iniciativa das partes e até do próprio enquadramento jurídico por elas convocado nos autos em sustento da sua posição quanto a tal matéria.
Cumpre, pois, nestes termos, conhecer da questão de constitucionalidade suscitada pela Recorrente.
Ao nível da aplicação no tempo do NRAU rege o preceituado no artigo 59º, n.º 1, segundo o qual «O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas leis transitórias.»
Destarte, subsistindo o contrato de arrendamento em causa à data de entrada em vigor do NRAU, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012 [8], daí decorre que está o mesmo contrato sujeito à regulamentação prevista no Código Civil e no dito NRAU e, em particular, às suas normas transitórias, ou seja, às normas dos artigos 26º a 58º do NRAU, nesta última redacção.
Neste enquadramento, o contrato de arrendamento para habitação em causa foi celebrado há cerca de 60 anos, o que significa que foi celebrado antes da entrada em vigor do DL n.º 321-B/90 de 15.10. (RAU), sendo-lhe aplicável o preceituado no artigo 27º e 28º, do NRAU, este último com a redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012.
Este último normativo dispõe no seu n.º 1 o seguinte: «Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30º a 37º e 50º a 54º.»
Por outro lado, o n.º 2 do mesmo normativo prevê ainda que «Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil.»
No caso em apreço, a senhoria, aproveitando da faculdade introduzida pelo artigo 30º do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, ex vi do artigo 28º, n.º 1, notificou a arrendatária, por carta registada com a/r, da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, indicando o valor da renda (€ 100,00), o tipo de contrato (prazo certo), a sua duração (5 anos, renovável por períodos de 3 anos), o valor do locado, avaliado nos termos do CIMI, constante da caderneta predial (€ 17.670,00), juntando, ainda, cópia desta caderneta – cfr. carta de fls. 36/37 e artigo 30º, n.º 1 als. a), b) e c) do NRAU, na redacção já referida.
Perante a aludida comunicação, em conformidade com o n.º 1 do artigo 31º do mesmo NRAU, deve o arrendatário responder à intenção e proposta do senhorio no prazo de 30 dias a contar da recepção da carta do mesmo, podendo na mesma resposta:
a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33º;
c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio;
d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 34º - cfr. n.º 3 do citado artigo 31º do NRAU.
Por outro lado, ainda, como prescreve o n.º 4 do mesmo artigo 31º, deve o arrendatário, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias:
a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35º e 36º;
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36º.
Neste contexto, para além de outras hipóteses – que não relevam ao caso -, se o arrendatário responder à carta em apreço do senhorio e nela alegar e demonstrar que tem 65 anos ou mais, ou, em alternativa, independentemente da sua idade, que sofre de uma incapacidade superior a 60%, o contrato só fica sujeito ao NRAU por acordo das partes (artigo 36º, n.º 1, do NRAU), podendo apenas verificar-se uma actualização do valor da renda nos termos previstos nos n.ºs 2 a 10 do artigo 36º, do mesmo diploma.
Trata-se, pois, de procurar proteger os arrendatários em situação de maior fragilidade, em função da sua idade e das suas limitações físicas geradoras de significativas limitações ao nível da angariação de rendimentos que lhe possam permitir aceder ao mercado de arrendamento.
Como assim, respondendo o arrendatário nos termos antes expostos e comprovando aquelas circunstâncias, nomeadamente que tem 65 anos (ou mais), o contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU (de duração indeterminada e vinculístico) mantém-se em vigor “sem alteração do regime [quanto à sua duração] que lhe é aplicável; portanto, mantém o cariz vinculístico, não podendo o senhorio denunciá-lo à luz do art. 33º, n.º 5, al. a), do NRAU” [9], nem, ainda, opor-se à sua renovação, pois que a oposição à renovação só é aplicável aos contratos de arrendamento com prazo certo – cfr. artigos 1096º, n.º 1 e 1097, n.º 1, ambos do Cód. Civil, na redacção introduzida pela mesma Lei n.º 31/2012.
Na verdade, como é consabido, a denúncia corresponde uma forma de extinção dos contratos de duração indeterminada e que pode ser exercida a todo o tempo, ao passo que a oposição à renovação é apenas aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado (por acordo das partes ou ex lege) um prazo renovável, visando a oposição, precisamente impedir que, no termo do prazo, o contrato se renove automaticamente por igual período. [10]
No entanto, não obstante as suas diferenças, certo é que ambas as figuras - denúncia e oposição à renovação - têm em vista a extinção do contrato, constituindo, por isso, como é pacífico, duas modalidades da extinção do contrato de arrendamento. [11]
Prosseguindo, se, ao invés, o arrendatário – como foi o caso – tiver sido notificado pelo senhorio nos termos do artigo 30º do NRAU e nada disser no prazo de 30 dias a contar da recepção da respectiva carta, em conformidade com o disposto no n.º 6 do artigo 31º do NRAU, «A falta de resposta vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.»
Em suma, na ausência de resposta do arrendatário em face da proposta do senhorio, a lei, a título cominatório, presume iuris et iure (isto é, sem possibilidade de prova em contrário por parte do arrendatário – artigo 350º, n.º 2, do Cód. Civil) que o arrendatário aceita a renda, o tipo de contrato e a duração propostos pelo senhorio, ocorrendo a transição do contrato antigo para o NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo de 30 dias a que alude o n.º 1 do citado artigo 31º e passando o contrato a vigorar nos moldes propostos pelo senhorio.
Como assim, no caso dos autos, atenta a ausência de resposta da arrendatária à missiva da então senhoria (datada de 19.04.2013 e recebida pela arrendatária a 22.04.2013) em que a mesma propunha a renda mensal de € 100,00, propunha que o arrendamento passasse a ser de prazo certo (ao invés de prazo indeterminado, como antes) e, ainda, propunha que esse prazo passasse a ser de 5 anos, renovável por 3 anos, o aludido contrato de arrendamento passou a reger-se pelo NRAU a partir de 1.07.2013 (1º dia do 2º mês após o termo do prazo de resposta, ou seja, 22.04.2013 + 30 dias de resposta = 23.05.2013), passou a ser devida a renda de € 100,00 mensais, passou para um contrato de prazo certo de 5 anos, sendo automaticamente renovável, no termo desses 5 anos por mais 3 anos (artigo 1096º, n.º 1), salvo se o senhorio se opusesse a essa renovação, em conformidade com o disposto no artigo 1097º, n.º 1, devendo este último, para tanto, comunicar essa sua intenção de não renovação do contrato (oposição à renovação) com a antecedência mínima de 120 dias em relação ao termo do prazo inicial do contrato (5 anos), em conformidade com o disposto no artigo 1097º, n.º 1 al. b) e 2, ambos do Cód. Civil, na redacção introduzida pela citada Lei n.º 31/2012.
E também, no caso dos autos, em função da ausência de resposta da arrendatária e em razão da aplicação dos normativos antes referidos a que ficou submetido o contrato de arrendamento para habitação, a senhoria exerceu esse seu direito de oposição à renovação do contrato no termo dos aludidos 5 anos (30.06.2018), mediante comunicação desse seu propósito de não renovação do contrato, comunicação realizada sob a forma legal (carta registada com a/r) e com a antecedência exigível de quatro meses, ou seja, a 22.02.2018, para produzir efeitos a 30.06.2018.
Foi, portanto, este enquadramento legal que se perfilhou na sentença proferida e que conduziu à improcedência da acção instaurada pela arrendatária tendo em vista pôr em causa a validade da transição do arrendamento para o NRAU levada a cabo pela senhoria e a sua conversão num contrato a prazo certo com a consequente possibilidade de a mesma lhe colocar termo mediante oposição à sua renovação.
Serve isto para dizer que, no caso sub judice, foi posto termo ao contrato de arrendamento não por via de denúncia (cfr. artigo 1101º, do Cód. Civil) – aplicável apenas aos contratos de arrendamento de duração indeterminada, como resulta do proémio do aludido normativo -, mas antes por oposição à sua renovação, sendo certo que, como já se referiu, o contrato de arrendamento em causa por força do n.º 6 do artigo 31º do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, e da ausência de resposta da arrendatária, se transformou, a partir do dia 1.07.2013, num contrato de prazo certo de 5 anos, sujeito a renovação automática por mais 3 anos (em caso de não oposição do senhorio) ou não sujeito a renovação (em caso de oposição à renovação do senhorio, a exercer na forma e no prazo legais).
Já em sede de denúncia do contrato de arrendamento para habitação celebrado em data anterior à entrada em vigor do RAU, preceitua o artigo 1101º do Cód. Civil, na redacção da Lei n.º 31/2012, o seguinte:
«O senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes:
a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1º grau;
b) Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado;
c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.»
As condições do exercício da denúncia motivada ou justificada nas hipóteses contempladas nas alíneas a) e b) decorrem do previsto nos artigos 1102º e 1103º do Cód. Civil, na redacção da citada Lei n.º 31/2012.
Por seu turno, a alínea c) prevê uma hipótese de denúncia imotivada ou «ad nutum», em que o senhorio pode, sem carecer de justificar a sua opção, proceder à denúncia do contrato de arrendamento, denúncia que operará os seus efeitos dois anos após a respectiva comunicação do senhorio ao arrendatário. [12]
Esta última possibilidade está, no entanto, vedada ao senhorio por expressa limitação consignada no artigo 28º, n.º 2, do NRAU, na redacção da mesma Lei n.º 31/2012, o que significa que o senhorio não pode, quanto aos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU (como é o caso dos autos), denunciar «ad nutum» ou de forma imotivada o contrato de arrendamento com um aviso prévio de 2 anos (ou de 5 anos, em conformidade com a nova redacção de tal normativo introduzida pela Lei n.º 13/2019). [13]
Essa denúncia, neste tipo de contratos de arrendamento anteriores ao RAU, só pode, pois, ter lugar nas hipóteses das alíneas a) e b) do artigo 1101º, do Cód. Civil e antes referidas.
Mas, mesmo nas hipóteses de denúncia motivada previstas no citado artigo 1101º, alíneas a) e b), do Cód. Civil e de que o senhorio pode, em regra, lançar mão, por força do n.º 4 al. a) do artigo 26º ex vi do artigo 28º, n.º 1, ambos do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, o senhorio também não pode denunciar o contrato de arrendamento (que assim se mantém vinculístico) se ocorrerem as hipóteses da alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, ou seja, se no momento em que a denúncia deva produzir efeitos, o arrendatário tenha 65 anos ou mais, ou, independentemente desta, se o arrendatário se encontrar na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, factos estes que lhe incumbe demonstrar.
Resulta, assim, do regime antes exposto, em primeiro lugar, que a arrendatária e ora Recorrente poderia, na sequência da notificação da senhoria para efeitos de transição do contrato de arrendamento para o NRAU, opor-se, no prazo legal de 30 dias, a essa transição e ao tipo de contrato que lhe era proposto, invocando e demonstrando que tinha mais de 65 anos; Se o tivesse feito – como devia -, o contrato em causa só seria transferido para o NRAU, com prazo certo de 5 anos, se ambas as partes acordassem nesse sentido; Ou seja, não dando a Recorrente o seu acordo e comprovando a sua idade superior a 65 anos, o contrato de arrendamento em apreço manter-se-ia sob o regime vinculístico anterior, com prazo indeterminado, sem prejuízo da actualização de renda (cfr. artigo 36º, n.º 1, do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012).
Nesta hipótese, mostrar-se-ia, pois, plenamente assegurado o direito da ora Recorrente a permanecer no locado, sem prejuízo da actualização da renda nos termos legais.
Por outro lado, em segundo lugar, se a senhoria tivesse optado pela denúncia motivada do contrato de arrendamento ao abrigo do preceituado no artigo 1101º, alíneas a) e b), do Cód. Civil (o que não foi o caso dos autos, pois que a senhoria optou antes pela transição do contrato para o NRAU nos termos do artigo 30º do NRAU), também aqui a arrendatária poderia invocar (e comprovar) a sua idade superior a 65 anos (artigo 107º, alínea a) do RAU ex vi dos artigos 26º e 28º do NRAU), o que inviabilizaria a denúncia imotivada do contrato de arrendamento em apreço por parte da senhoria.
Dito de outro modo, também aqui à arrendatária e ora Recorrente a lei conferia meios para salvaguardar a sua permanência no arrendado e para manter a natureza vinculística do mesmo, impedindo a posterior denúncia imotivada do contrato de arrendamento em apreço.
Todavia, a despeito do que antes se expôs, certo é também que a denúncia do contrato de arrendamento ou a própria transição do contrato de arrendamento para o NRAU como contrato a prazo certo (com a subsequente oposição à sua renovação) podem vir a culminar, como, aliás, o demonstra o caso dos autos, com a cessação do contrato de arrendamento para habitação que foi celebrado muito antes da entrada em vigor do RAU, ou seja, num quadro legal em que o contrato tinha caracter vinculístico, colocando-se, pois, nesse contexto, em causa as expectativas dos arrendatários, sendo certo que estes podem, como é o caso dos autos, serem pessoas já com alguma idade (65 anos ou mais), sujeitas a alguma vulnerabilidade e com dificuldades em obter no mercado de arrendamento uma alternativa compatível com os seus rendimentos, sabendo-se, como se sabe, que muitas destas pessoas auferem pensões de reforma ou apoios sociais de reduzido valor.
Ora, neste contexto, sucede que, como decorre do citado artigo 26º, n.º 4, al. a) do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, e ao contrário do que sucedia na redacção original do NRAU (Lei n.º 6/2006 – artigo 26º, n.º 4, al. a), no próprio RAU (artigo 107º, al. b) e, antes deste, decorria já do preceituado no artigo 2º, al. b), da Lei n.º 55/79 de 15.09, deixou, a partir da entrada em vigor daquela Lei n.º 31/2012, de ser aplicável a previsão da alínea b) do artigo 107º do RAU, ou seja, deixou de constituir facto impeditivo à denúncia do contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU, a circunstância de o arrendatário, à data em que a denúncia produziria os seus efeitos, se manter no arrendado há mais de 30 anos, nessa qualidade, qualidade que era extensível ao cônjuge (do arrendatário) a quem tal posição se tivesse transferido, como é o caso da Recorrente, sendo considerado a seu favor o tempo de que o transmitente já beneficiasse (artigo 107º, n.º 2, do RAU).
Dito de outro modo, como se refere no AC TC n.º 297/2015, publicado no DR, II série de 7.07.2015, da alteração do artigo 26º, n.º 4 al. a), introduzida pela Lei n.º 31/2012 (eliminação da remissão para a alínea b) do artigo 107º do RAU) e da sua aplicação retroactiva aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes do RAU por força do preceituado nos artigos 26º e 28º, n.º 1, do NRAU, «resulta, a contrario, que passou a ser desconsiderada a circunstância de o arrendatário permanecer no local arrendado continuamente por período superior a trinta anos», mesmo nos casos «em que já tivesse decorrido integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, o tempo de permanência do arrendatário no local arrendado», ou seja, mesmo quando, à data de entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, os arrendatários já tivessem adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei em vigor.
De facto, como se refere no AC TC n.º 297/15, em moldes que julgamos ser aplicável à própria transição do contrato de arrendamento para o NRAU – pois que esta transição consente, em certas circunstâncias, como as que ora ocorrem, que seja posto termo ao contrato de arrendamento por oposição à sua renovação pelo senhorio -, «o que está em causa é, verdadeiramente, a retroactividade da alteração legislativa, sendo sobre ela que que há-de recair o juízo de desconformidade ou não desconformidade constitucional. Na verdade, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, (o legislador) tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do contrato, aquela circunstância (de o arrendatário permanecer continuamente no arrendado há mais de 30 anos), debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data de entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido direito à permanência no arrendado com base na lei então em vigor.»
Ou seja, as normas em causa - artigo 26º, n.º 4 al. a) ex vi do artigo 28º, n.º 1, do RAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, ao eliminarem a hipótese prevista na alínea b) do artigo 107º do RAU, violam o direito que, com o decurso do tempo, os arrendatários tinham adquirido a permanecer no arrendado sem o risco de denúncia ou de oposição à renovação do prazo nele previsto, ambos conduzindo à cessação do contrato de arrendamento – e, com isso, violam, aquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.
Na verdade, importa sublinhá-lo, não está aqui em causa que o legislador ordinário possa alterar o regime do contrato de arrendamento para habitação. O legislador, como se sublinha, no AC TC n.º 559/98, citando o AC n.º 352/91 do mesmo Tribunal, ambos disponíveis in wwww.tribunalconstitucional.pt, «não está obrigado, em regra, a manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou. Notas típicas da função legislativa são, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade. Por isso, salvo nos casos em que o legislador tenha que deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas na lei a cuja revisão procede. Quando se revê uma lei, em regra, é porque se pretende alterar o regime jurídico até então vigente.»
No entanto, se é certo que não existe uma norma que, a nível constitucional, impeça a retroactividade (o que sucede, apenas, no domínio penal, no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), essa retroactividade não pode violar “princípios constitucionais autónomos”, estando-lhe, pois, nesse enquadramento, vedado pôr em risco de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa, direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos.
Num tal caso, com efeito e como salienta a doutrina firmada pelo Tribunal Constitucional «a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito, violando o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição da República.» [14]
Ora, no caso dos autos, a Recorrente, à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 de 14.08, ou seja, em 12.11.2012 – cfr. artigo 15º da mesma Lei -, mantinha-se no arrendado, nessa qualidade, de forma contínua desde a data em que o seu marido (falecido em 2005) o tomou de arrendamento há cerca de 60 anos, ou seja, há bem mais de 30 anos, à data de 12.11.2012. – cfr. artigo 107º, n.ºs 1 al. b) e 2, do RAU – o que lhe conferia, pois, à luz do regime em vigor à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, o direito de se opor à cessação do contrato de arrendamento, seja ela decorrente de denúncia ou de oposição à renovação do contrato, antes convertido em contrato com prazo certo por mor da sua transição para o NRAU.
Consequentemente, no seguimento da doutrina do AC TC n.º 297/2015 (e que se mostra acolhida também no AC TC n.º 277/2016), há que concluir que a norma do artigo 26º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, ao limitar a remissão ali prevista apenas para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, desconsiderando a previsão da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 107º, desprotegeu, de forma arbitrária e demasiadamente onerosa, a posição da arrendatária e ora Recorrente (que se encontrava no arrendado, à data de entrada em vigor da dita Lei n.º 31/2012 há mais de 30 anos) – impedindo-a de se opor, com tal fundamento, à denúncia ou à cessação do contrato de arrendamento por oposição à sua renovação.
Violou, pois, em nosso ver e na esteira do aludido Acórdão do TC, esta solução legal os princípios da segurança e protecção da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático contido no artigo 2º da CRP.
Note-se que, neste conspecto, a actualização das rendas mais antigas e a consequente dinamização do mercado de arrendamento, sempre poderia ser alcançada pelo legislador em moldes que não implicassem necessariamente, nos casos dos arrendamentos mais antigos celebrados antes do RAU (em que existia uma tradição vinculística que o próprio NRAU na sua versão originária salvaguardou), a transição para o NRAU e para contratos de prazo certo e a consequente possibilidade de cessação do contrato por oposição do senhorio à sua renovação, bastando, para tanto, em nosso ver, contemplar essa actualização das rendas mais antigas em termos semelhantes aos que vieram a ser previstos nos artigos 33º a 37º da dita Lei n.º 31/2012, mas sem pôr em causa retroactivamente direitos já antes consolidados e sobre os quais o arrendatário construiu as suas justas expectativas e a sua vida.
Por conseguinte, tendo a douta sentença recorrida ao decretar a improcedência da acção desconsiderado aquele direito adquirido pela arrendatária e ora Recorrente e a inconstitucionalidade do citado artigo 26º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, daí decorre que a mesma sentença não se pode manter, antes se impondo, em nosso julgamento, recusar a aplicação da dita norma com aquele sentido/interpretação, o que implica a revogação da mesma sentença e a consequente procedência da acção proposta pela arrendatária, julgando inválida, para todos os efeitos, a transição do contrato arrendamento em causa para o NRAU e para o tipo de arrendamento com prazo certo e, logicamente, a sua subsequente cessação por oposição do senhorio à sua renovação.
Mas se este fundamento seria, em nosso ver, o bastante ao decretamento da procedência da apelação, ainda um outro fundamento avulta nesse mesmo sentido, como em seguida se explicita.
O artigo 30º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, tinha a seguinte redacção:
«A transição para o NRAU e a actualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:
a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana.»
Posteriormente, com a Lei n.º 79/2014 de 19.12., este mesmo artigo 30º foi alterado nos seguintes termos:
«A transição para o NRAU e a actualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
a)….
b)….
c)….
d) Que o prazo de resposta é de 30 dias;
e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32º;
g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte.»
Por seu turno, o artigo seguinte (31º) foi também alterado, nomeadamente quanto ao seu n.º 4, que passou a ter a seguinte redacção:
«4 - …
a)…
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36º.»
Esta alteração, em particular quanto à informação a transmitir ao arrendatário nas hipóteses de transição dos antigos contratos de arrendamento para o NRAU e actualização da renda, como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII (aprovada pelo Governo em Conselho de Ministros de 2.10.2014) – disponível in www.parlamento.pt – que veio a dar origem à Lei n.º 79/2014, enquadra-se no objectivo de proteger o arrendatário face a frequentes e compreensíveis situações de desconhecimento ou imprevidência em face da iniciativa do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o novo regime (NRAU) e/ou actualização da renda.
Com efeito, como se assinala na exposição de motivo da dita Proposta de Lei n.º 250/XII «… a monitorização da reforma (…) revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação realizada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.»
Este novo regime que, conforme decorre dos princípios gerais da aplicação da lei no tempo (artigo 12º do Cód. Civil), não é retroactivamente aplicável às situações já consumadas à data da sua entrada em vigor [15], procura corresponder às preocupações de proporção e justiça que vieram a ser expressamente apontadas pelo Tribunal Constitucional ao regime introduzido pela Lei n.º 31/2012 no seu Acórdão n.º 277/2016 de 4.05.2016. [16]
Nesse douto Acórdão, o Tribunal Constitucional ponderou, além do mais, que:
- a proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo) constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral;
- este princípio constitui um princípio geral de limitação do poder público, que se ancora no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição;
- o princípio da proibição do excesso pressupõe que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida;
- existe, assim, violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (no sentido de ser inócua, indiferente ou até negativa, relativamente ao fim nela visado); desnecessária (no sentido de existirem outros meios adequados alternativos mas menos onerosos para atingir o fim visado); ou desproporcionada (no sentido de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coactiva imposta, gerando uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios);
Com efeito, o regime legal dos artigos 30º e seguintes do NRAU que prevê a troca de comunicações entre o arrendatário e o senhorio em vista da transição para o novo regime prossegue o objectivo precípuo de uma rápida definição do estatuto do contrato, ou seja, se o mesmo se continua reger pelo regime anterior (em caso de ausência de acordo entre o inquilino e o senhorio) ou se transita para o NRAU (em caso de acordo de ambos). Nesse sentido, compreende-se a imposição de diversos ónus ao arrendatário que seja confrontado com a intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU e de actualizar a renda comunicada nos termos do artigo 30º.
Desde logo, um ónus de resposta à intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU, já que falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio (artigo 31º, n.º 6).
Mas também um ónus de alegação de circunstâncias que podem condicionar ou, no limite, impedir a transição do contrato para o NRAU sem o acordo do arrendatário (artigo 31º, n.º 4).
E, ainda, um ónus de comprovação de tais circunstâncias no prazo concedido para a resposta (artigo 32º).
Note-se, como se refere no aludido AC TC n.º 277/2016, cuja lição aqui se segue de perto, que todos estes ónus são agravados pela circunstância de a referida comunicação do senhorio para início do procedimento de transição ser enquadrada exclusivamente pela lei, sem indicação das diferentes opções a favor do arrendatário e das respectivas consequências, em particular das consequências que emergem do silêncio do arrendatário e que, como resulta do regime antes exposto, podem ser particularmente gravosas para a manutenção do contrato de arrendamento e para a fixação do valor da renda. Por outro lado, como também se adverte no mesmo aresto, é de recordar que a referida comunicação, além de iniciar um procedimento negocial disciplinado por regras «claramente» inspiradas no Código de Processo Civil, tem como destinatários normais pessoas já com uma certa idade, atenta a titularidade de um contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU (1990).
Dito de outra forma, em nosso ver, a associação de um efeito cominatório inelutável à ausência de resposta do arrendatário perante a proposta do senhorio, aplicado sem qualquer menção das alternativas que se colocam ao arrendatário em face dessa proposta e sem qualquer aviso prévio quanto às suas consequências (que podem ser, como viu, especialmente gravosas para a posição do arrendatário) é tanto mais chocante quanto o quadro legal aplicável se apresenta significativamente complexo e “ incide sobre situações que a lei presume, justamente, serem de particular fragilidade, como é o caso dos autos, de pessoas sujeitas às limitações próprias da idade, frequentemente acompanhadas de doenças incapacitantes. “ [17]
O mesmo Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em causa a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vectores essenciais: - a justificação da exigência processual em causa; - a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; - e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento os ónus. [18]
Ora, é justamente em relação a este último aspecto que a norma dos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, suscita especiais dificuldades.
Com efeito, a solução legal de associar à ausência de resposta do arrendatário, sem que ao mesmo seja dado prévio conhecimento das alternativas que se lhe colocam (em particular em razão da sua idade – 65 anos ou mais -, dos seus rendimentos – quanto à fixação do valor da renda – e quanto à sua incapacidade física) e, ainda, sem o advertir do efeito cominatório aplicado em razão da ausência de resposta (aceitação do tipo de contrato, aceitação da sua duração e do valor da renda propostos – tudo com efeitos gravosos na sua posição e na manutenção do contrato de arrendamento), traduz-se numa opção desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma solução traz para o senhorio e para o interesse comum, qual seja a dinamização do mercado de arrendamento e a actualização das rendas mais antigas.
Na verdade, esses mesmos objectivos seriam totalmente alcançáveis se a comunicação a realizar pelo senhorio ao arrendatário para efeitos de transição do contrato para o NRAU e actualização da renda contivesse as menções que o próprio legislador veio, ainda que tardiamente, a reconhecer serem devidas e a consignar em forma de lei na Lei n.º 79/2014 de 19.09 (acima referidas), sendo certo que as mesmas são essenciais a uma esclarecida, conscienciosa (e, assim, livre) tomada de posição por parte do arrendatário, sobretudo quando, como se referiu, está em causa um quadro legal com alguma complexidade, estão em causa arrendamentos já antigos (celebrados antes de 1990) em que intervieram pessoas que hoje têm já uma certa idade, frequentemente com doenças incapacitantes ou limitativas, e com rendimentos que não lhes permitem – em caso de cessação do contrato de arrendamento ou de revisão significativa do valor da renda – aceder a uma outra alternativa, do mesmo nível, no actual mercado de arrendamento.
Em suma, como se refere no citado AC TC n.º 277/2016, numa fase já avançada da sua vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade – em razão da não percepção exacta dos efeitos que decorrem da ausência da sua resposta à proposta do senhorio (e sem que para tal tenha sido esclarecido ou advertido) -, ver-se confrontado, por mor do disposto nos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redacção da Lei n.º 31/2012, com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade por oposição à sua renovação e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos.
O que significa, pois, em conclusão, que a norma extraída dos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, segundo a qual a ausência de resposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto ao tipo de contrato, à sua duração e ao valor da renda importa, sem que o arrendatário seja esclarecido das alternativas que lhe assistem e sem que seja advertido dos efeitos cominatórios associados ao seu eventual silêncio, a aceitação do tipo de contrato, a aceitação do prazo do mesmo e do valor da renda, sofre de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
E, assim sendo, também por esta via não pode a sentença recorrida manter-se, antes se impondo a sua revogação, com a consequente procedência da apelação, ainda que, nesta parte, por fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados pela Recorrente.
Concluindo, procede a apelação, ficando prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente – artigo 608º, n.º 2, do CPC.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar
a) Inconstitucional a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, no artigo 26º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano), ao ofender o direito do arrendatário à permanência no arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela Lei n.º 31/2012.
b) Inconstitucional a norma extraída dos artigos 30º e 31º, n.º 6 do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/20006, de 27 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
c) Julgar procedente a apelação, com a consequente revogação da sentença proferida e condenação da Ré a reconhecer que o ajuizado contrato de arrendamento não transitou para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, e que, por isso, não lhe assiste o direito a opor-se à renovação do contrato de arrendamento.
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Custas em ambas as instâncias pela Ré/Recorrida, que ficou vencida - artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 23.09.2019
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida

(O presente acórdão foi elaborado por meios informáticos e contém a assinatura electrónica dos seus subscritores)

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Segue-se no relatório a exposição efectuada pelo Tribunal de 1ª instância.
[2] Vide, neste sentido, por todos, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[3] Vide, neste sentido, por todos, J. LEBRE de FREITAS, MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, “Código de Processo Civil Anotado”, II volume, Coimbra Editora, 2001, pág. 630.
[4] FERNANDO ALVES CORREIA, “Direito Constitucional (Programas, Conteúdo e Métodos de Ensino de um Curso de Mestrado”, Almedina, 2001, pág. 52.
[5] JORGE MIRANDA, “A Fiscalização da Constitucionalidade: Uma Visão Panorâmica”, in Scientia Juridica, Tomo XLII, n.ºs 244/246, Julho/Dezembro de 1993, pág. 174.
[6] J. J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, II volume, 4ª edição, 2010, pág. 886.
[7] Sobre os modelos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vide, por todos, THIAGO de ALMEIDA VENTURA, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Políticas/Menção em Direito Constitucional, disponível in https://eg.uc.pt/bitstream/10316/29976/1/A20%fiscalizacao % 20 concreta% 20 em % 20 Portugal.pdf
[8] A citada Lei n.º 31/2012 de 14.08, em conformidade com o preceituado no seu artigo 15º, entrou em vigor 90 dias após a sua publicação, ou seja, a 12 de Novembro de 2012.
[9] Vide, neste sentido, FERNANDO GRAVATO MORAIS, “As Novas Regras Transitórias na Reforma do NRAU (Lei 31/2012), in Revista Julgar, n.º 19, Janeiro-Abril de 2013, pág. 27 e LUIS MENEZES LEITÃO, “Arrendamento Urbano”, 2013, 6ª edição, pág. 201.
[10] Vide, neste sentido, por todos, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 170 ou, ainda, PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, pág. 60-64.
[11] Vide, neste sentido, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 170. [12] Vide, neste sentido, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 178. Este prazo de dois anos foi, entretanto, aumentado para cinco anos com a Lei n.º 13/2019 de 12.02.
[13] Vide, neste sentido, FERNANDO GRAVATO MORAIS, op. cit., pág. 20.
[14] Vide, neste sentido, por todos, além dos já citados, AC TC n.º 786/96, AC TC n.º 287/90, AC TC n.º 634/2015 e AC TC n.º 568/2016, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
[15] O que é reforçado pelo artigo 6º, n.º 1, da mesma Lei n.º 79/2014 ao prescrever que «As alterações introduzidas à Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, pela presente lei aplicam-se aos procedimentos de transição para o NRAU, previstos nos artigos 30º e seguintes e 50º e seguintes, que se encontrem pendentes na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo dos direitos e obrigações decorrentes dos actos já praticados nesses procedimentos e do disposto nos números seguintes.»
Destarte, tendo, no caso dos autos, o procedimento de transição do contrato de arrendamento sido concluído a 1.07.2013 (artigo 31º, n.º 6, na redacção da Lei n.º 31/2012), daí decorre que a nova redacção dos artigos 30º e 31º do NRAU, na redacção desta Lei n.º 79/2014 não lhe é (retroactivamente) aplicável.
[16] Disponível in www.tribunalconstitucional.pt e também publicado in Diário da República, IIª série de 14.06.2016.
[17] Vide, neste sentido, em situação que se esgrime também o regime introduzido pela Lei n.º 31/2012 ao nível da comprovação dos rendimentos do agregado familiar do arrendatário, AC RL de 20.10.2016, relator JORGE LEAL, disponível in www.dgsi.pt.
[18] Vide, neste sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 197/07, n.º 277/07 e 332/07, todos citados no AC TC nº 277/2016.