Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
557/15.1GAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
HOMICÍDIO NEGLIGENTE
CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL
PENA ACESSÓRIA
Nº do Documento: RP20170208557/15.1GAVNG.P1
Data do Acordão: 02/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 8/2017, FLS.17-20)
Área Temática: .
Sumário: Perante um comportamento que configura contraordenação estradal e simultaneamente integra um dos crimes previstos no artº 69º 1 a) CP, esgotando a pratica do crime o âmbito da contraordenação, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artº 69º do C. Penal sob pena de violação do principio ne bis in idem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 557/15.1GAVNG.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
No processo comum [com intervenção do tribunal singular] n.º557/15.1GAVNG, por sentença proferida e depositada em 21/6/2016, o arguido B… foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art.137.º, n.º1 e 2, do C.Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo; o arguido foi ainda condenado pela prática da contraordenação p. e p. pelos arts.103.º, n.º2 e 4, 131.º, 145.º, n.º1, alínea i) e 147.º, todos do C.Estrada, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses.
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido no artigo 137º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e, enquanto autor da contraordenação prevista no artigo 103º, n.º 2, punível nos termos do seu n.º 4, 145º, n.º 1, al. i), e 147º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada, na sanção acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 4 meses;
2. A discordância que o recurso expressa cinge-se à não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal;
3. Pena acessória que a redação da norma vigente na data dos factos subjacentes à condenação, vinda da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, impõe expressamente;
4. Sendo o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, como se propugna, importará alterar a sentença no que se refere à condenação na sanção acessória prevista nos artigos 138º, n.º 1, e 145º, al. i), do Código da Estrada, uma vez que a pretendida condenação na pena acessória, por se referir a um homicídio cometido no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito, "consumirá" a condenação na sanção acessória que lhe foi aplicada;
5. A ser de outro modo resultaria violado o principio do non bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado, e condenado, mais do que uma vez pela prática do mesmo crime;
6. A douta sentença violou, por erro de interpretação, as previsões dos artigos 68º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
O arguido não apresentou resposta ao recurso.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, a Sra.Procuradora – geral adjunta emitiu parecer em que subscreveu integralmente os fundamentos invocados no recurso [fls.368].
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, a que se seguiu a respetiva fundamentação:
«A) Discutida a causa, com relevo para a decisão, eis os factos que resultaram provados:
a) No dia 6 de Julho de 2015, pelas 8h00, o arguido conduzia o veículo ligeiro de matrícula ..-..-QV, na Rua …, Vila Nova de Gaia, sentido Oeste/Este.
Não sendo, na altura, o arguido portador de taxa de álcool no sangue.
Nas supra descritas circunstâncias de tempo e lugar, circulava a pé C….
A dada altura, a ofendida atravessou a aludida via, da esquerda para a direita, fazendo uso da passagem existente no local em frente ao n° 190 da aludida via, devidamente sinalizada com traços brancos no solo e com sinal de informação previsto no Regulamento de Sinalização (RST), sendo o local onde fazia a travessia visível a 54 metros de distância.
Acontece que, sem que a supra identificada utente da via o previsse e quando a mesma já percorria a passadeira, tendo atravessado mais de 50% da largura total faixa, encontrando-se a 2,20 metros do passeio direito, o arguido, ao volante do seu automóvel não imobilizou a sua viatura, isso em violação do dever que sobre ele impendia de dar prioridade ao peão e de se assegurar que a via estava livre de trânsito e que podia circular na passadeira sem colocar em perigo os demais utentes da via.
Nessas circunstâncias, na via de transito onde circulava o arguido, o peão não logrou evitar o embate da parte anterior direita do carro no eixo da via pela forma repentina com que o arguido se atravessou, nem teve tempo para tentar desviar-se, nem dispunha de espaço, nem de tempo suficiente, para que qualquer manobra para evitar o acidente fosse bem-sucedida.
O automóvel conduzido pelo arguido ficou imobilizado poucos metros à frente da passadeira no sentido onde circulava, com o capô amolgado.
A manobra supra descrita foi causa única e directa do embate no corpo da ofendida, que veio a ser colhida pelo veículo do arguido e projectada para a estrada, ficando prostrada ao lado da passadeira, na hemi-faixa da direita, até ser socorrida.
b)Por via da conduta do arguido, a ofendida veio a falecer no local.
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, resultaram pois para a vítima as lesões corporais descritas e examinadas no relatório de autópsia junto, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente:
"Lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, raquidianas cervicais, torácicas e da bacia".
Lesões essas que foram consideradas "causa adequada da morte" e que "foram produzidas por traumatismo de natureza contundente, ou como tal actuando, como o que pôde ter sido devido a acidente de viação - atropelamento por veículo ligeiro de passageiros", sendo considerada "causa de morte violenta".
A via onde ocorreram os factos era (e é) uma recta em asfalto, em boas condições de aderência e conservação, com boa visibilidade em toda a sua largura, sendo o limite de velocidade para o local de 50 km/h, com passagens para peões, com duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, sem separador central, sendo a faixa com 8,10 metros de largura total, sem bermas, local onde o movimento de veículos e pessoas é regular, por permitir o acesso a outra freguesia do Concelho, o que obriga necessariamente os utentes a diversas cautelas, designadamente adequação e moderação de velocidade, verificação de que a via se encontra livre antes de cruzar as passadeiras e necessidade de respeitar às regras de cedência de passagem.
Estava bom tempo à data do sinistro e céu limpo, sendo que o local goza de boa iluminação através de postes da E.D.P.
O embate do veículo tripulado pelo arguido com a vitima ficou a dever-se à conduta do arguido que não manteve as medidas de segurança exigidas aos utentes da via pública, pese embora conhecer as características da via publica onde circulava, circulando de forma desatenta, desrespeitando o dever de garantir que não colocava entraves ao trânsito na via pública e violando as regras de cedência de passagem dos peões.
c) Ao conduzir da forma descrita o arguido não procedeu com o cuidado e a prudência a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, não obstante saber que era proibido conduzir em via pública violando as regras de circulação rodoviária, designadamente as regras relativas à prioridade de passagem dos pões, que conhecia.
Ao omitir tais cautelas, o arguido representou como possível a ocorrência de factos susceptíveis de integrar um ilícito típico, nomeadamente a ocorrência de um embate que acarretasse lesões físicas ou a morte para quem naquela via transitava, não se tendo, contudo, conformado com essa realização.
Mais sabia que o desrespeito das normas que impõem tais cautelas o fazia incorrer em responsabilidade contra-ordenacional e penal, agindo sempre de forma livre e consciente.
Mais se provou que:
O arguido nasceu no dia 18.5.1950.
e) Está casado, residindo em casa própria, e tem ocupação profissional na D…, …, em Vila Nova de Gaia, recebendo o salário mensal de 530,00.
f) Concluiu o 12.0 ano de escolaridade.
g) Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado e manifestou arrependimento, estando significativamente abalado pela ocorrência.
h) Não tem antecedentes criminais e do seu Registo individual de condutor nada consta.
i) É considerado por aqueles que com ele convivem regularmente pessoa idónea, honesta e trabalhadora e um condutor habitualmente prudente e atento.
B) Com interesse para a resolução do caso sub iudice, não se provaram quaisquer outros factos.
C) Convicção do Tribunal:
A convicção do tribunal alicerçou-se na confissão integral e sem reservas do arguido, conjugada com o teor do auto de notícia de fls. 2/4, a participação de acidente de viação de fls. 5, o relatório de autópsia médico-legal de fls. 57/60, o relatório fotográfico de fls. 87 e ss e o relatório de averiguação de fls. 133 e ss, a par do CRC e do RIC juntos aos autos.
No que diz respeito às condições pessoais, económicas e profissionais do arguido, valorou-se o que o mesmo declarou na matéria.
Para prova dos factos constantes do ponto II, a), i), o tribunal atentou ainda nos depoimentos sérios das testemunhas E…, F… e G…, os quais, nessa parte denotou um conhecimento pessoal e directo dos factos, merecendo credibilidade aos olhos do tribunal.»
Apreciação
É entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
Vistas as conclusões apresentadas, a questão trazida à apreciação deste tribunal reconduz-se à não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º, n.º 1, al. a), do C.Penal, sendo que o arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art.137.º, n.º1 e 2, do C.Penal, crime esse cometido no exercício da condução de veículo motorizado com violação de regra de trânsito rodoviário prevista no art.103.º, n.º2, do C.Estrada.
Desde já se adianta que assiste razão ao recorrente, sendo que o Sr.Juiz a quo não atentou na redação do art.69.º do C.Penal aquando da prática dos factos, ou seja, em Julho de 2015.
Dispõe o art.69.º, n.º1, do C.Penal, [Proibição de conduzir veículos com motor], na versão introduzida pela Lei n.º19/2013, de 21/2:
«1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometido no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 292.º e 292.º;
b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja exceção tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob o efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo».
Face ao disposto no art.69.º, n.º1, alínea a), do C.Penal, tendo o arguido cometido, em 6/7/2015, um crime de homicídio negligente no exercício da condução de um veículo automóvel e com violação de trânsito rodoviário prevista no art.103.º, n.º2, do C.Estrada [o arguido, conduzindo um veículo automóvel, não cedeu a passagem a um transeunte que atravessava uma passagem de peões, embatendo no mesmo e projetando-o, vindo a sofrer, em consequência do embate, lesões que lhe provocaram a morte], não tem fundamento afirmar, como faz a decisão recorrida, que a proibição de conduzir veículos motorizados prevista no art.69.º não é aplicável aos crimes negligentes.
A decisão recorrida incorreu em lapso tendo, por certo, atendido à versão do art.69.º, n.º1, alínea a), do C.Penal, na redação da Lei n.º77/2001, de 13/7, a qual dispunha «É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto os artigos 291.º e 292.º», sem ponderar que a redação do dispositivo legal em questão foi alterada com a Lei n.º19/2003.
Posto isto, será de aplicar o atual art.69.º, n.º1, alínea a) do C.Penal e consequentemente condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir.
De salientar que não há lugar ao cumprimento do disposto no art.424.º, n.º3, do C.P.Penal, uma vez que o arguido foi acusado, entre outras disposições legais, nos termos do art.69.º, n.º1, alínea a) do C.Penal, como se constata da leitura da acusação contra si deduzida e que o Sr.Juiz a quo, mais uma vez incorrendo em lapso, não fez constar do relatório da sentença.
Nesta conformidade, cabe agora proceder à determinação da pena acessória de proibição de conduzir, a qual é fixada entre três meses e três anos.
A proibição de conduzir, como verdadeira pena que é, submete-se às regras gerais de determinação da medida concreta da pena principal, ressalvando-se a finalidade a atingir, que se revela mais restrita, dado que a sanção acessória em causa visa primordialmente prevenir a perigosidade do agente, ainda que se reconheçam também necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, através da tutela das expectativas comunitárias na manutenção [e reforço] da validade da norma in casu violada.
Assim, a fixação da sua medida obedece aos critérios de determinação concreta da pena principal, nos termos do art.71.º do C.Penal, por referência, igualmente, ao art. 40.º do mesmo Código, ainda que lhe esteja também associada uma finalidade de prevenção da perigosidade[1].
No caso, há a ponderar, o grau acentuado da ilicitude dos factos e suas consequências, as exigências de prevenção geral são relevantes, sendo que as necessidades de prevenção especial não são especialmente prementes, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, está inserido socialmente, mostra-se arrependido, denotando assim interiorização do mal cometido.
Tudo ponderado, mostra-se adequada a pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses.
Questão que agora se coloca é a do concurso da pena acessória de proibição de conduzir e da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada pelo tribunal recorrido.
In casu, dúvidas não restam que o arguido praticou uma contraordenação grave prevista no art.145.º, n.º1, alínea i), do C.Estrada.
As contra ordenações graves são punidas com coima e com a sanção acessória de inibição de conduzir – art.138.º, n.º1, do C.Estrada.
O art. 134.º, n.º 1 do C.Estrada, sob a epígrafe Concurso de infrações, estabelece que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.
No entanto, o disposto no n.º 1 do art. 134.º não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.
Assim, perante um comportamento que configura contraordenação estradal e, simultaneamente, integra um dos crimes previstos no art.69.º, n.º1, alínea a), do C.Penal, esgotando a prática do crime o âmbito da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no art. 69.º do C.Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta.
Concluindo, impõe-se a revogação da sentença na parte em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir, pela prática da contraordenação.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso procedente e em consequência:
-condenam o arguido B…, nos termos do art.69.º, n.º, alínea a) do C.Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses,
- revogam a decisão recorrida na parte em que condena o arguido B… na sanção acessória de inibição de conduzir nos termos do arts.145.º, nº1, alínea i) e 147.º, ambos do C.Estrada,
-quanto ao mais, mantém-se a decisão recorrida.
-sem custas.
[texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários]

Porto, 8/2/2016
Maria Luísa Arantes
Renato Barroso
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[1] Cfr. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários Lisboa, 1ª ed., 1996, pág. 28, e António Casebre Latas, A pena acessória da proibição de conduzir, in Sub Judice, vol. 17, Jan/Març de 2001, pág. 93 e 94.