Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2720/09.5TAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
FACTOS NÃO INVESTIGADOS EM INQUÉRITO
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP201407022720/09.5TAVLG.P1
Data do Acordão: 07/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A actividade processual desenvolvida na instrução é “materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”.
II – O assistente pode requerer a abertura da instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação.
III – No entanto, porque a instrução visa comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, não pode o assistente requerer a instrução relativamente a factos que não tivessem sido já objecto de investigação, seja, relativamente a factos novos, diversos daqueles que foram objecto de apreciação na fase de inquérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 2720/09.5TAVLG.P1

Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I)- Relatório

Nestes autos de instrução com o número acima referido foi o arguido B… pronunciado, nos termos que constam da decisão de folhas 388 a 414 dos autos, pela autoria de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º número 1 alínea a) do Código Penal.

Inconformado com a decisão dela veio o arguido interpor recurso, com os fundamentos que constam de folhas 429 a 434 dos autos, que agora aqui se dão por integralmente reproduzidos os quais sintetiza nas conclusões seguintes:
“1- O crime de que está acusado o arguido por força da decisão instrutória emerge de factos novos, isto é, de factos que não foram objecto do auto de denúncia de fls 2 e seguintes e, como tal, de investigação.
2- A pronúncia sobre factos novos, que não foram objecto de qualquer participação, investigação e contraditório é processualmente inadmissível.
3 - Por força disso, a decisão instrutória é nula.
SEM PRESCINDIR
4- Não há indícios nos autos de que tenha sido o arguido quem apôs pelo seu próprio punho na C… a rubrica, pretensamente atribuída ao assistente.
5 - Pelo contrário, a prova testemunhal é conclusiva quanto à autoria da predita rubrica, quem a fez foi o assistente.
6 - O relatório pericial, elaborado pelo Prof J. Pinto da Costa expressamente reconhece que “teria sido conveniente ter sido presente ao perito termos manuscritos pelo punho de D… que reproduzissem os caracteres questionados, in casu, da rubrica aposta no C…
7 - Até porque, como está reconhecido pelo Gabinete Análise “a ausência de recolha de rubricas autógrafos com a dimensão da interessada dificulta um confronto entre ambas.
8 - Confrontando as características da rubrica contestada com a das assinaturas autografadas de B…, realizadas pelo Tribunal, não é possível estabelecer qualquer relação... porque estas não contém nenhum dos caracteres que compõem a predita rubrica.
9 - Com excepção da afirmação produzida pelo assistente, nenhuma prova existe de que o arguido havia proposto a fabricação de uma factura falsa, com o intuito de “despachar” o automóvel.
10 - A existir falsificação da rubrica — o que não se concebe nem concede — esta terá ocorrido com conhecimento e consentimento do assistente.
11 - O assistente, depois daquela proposta de falsificação, negociou com o arguido a venda do carro, tendo-lhe para o efeito, entregue os respectivos documentos, o próprio carro e 500,00 Euros.
12- O próprio assistente sabia que para registar o carro em nome de uma pessoa na Alemanha bastaria que esta se apresentasse com os documentos, numa conservatória, o que ele, aliás, já tinha feito para pôr o carro em seu nome.
13 - Até por isso, nenhuma necessidade tinha o arguido de falsificar a “rubrica” do assistente quando podia registar o carro em seu nome sem intervenção deste.
Ao pronunciar o arguido pela prática de um acto que não tinha sido invocado no auto de denúncia de fls. 2 e seguintes e oportunamente arquivado pelo M°.P° e ao concluir que nos autos há prova indiciária suficiente para que ao arguido venha a ser aplicada, em sede de julgamento, uma pena pela prática de um crime de falsificação, a Mm. Juiz a quo violou, entre outros normativos que Ex°s, Senhores Desembargadores, doutamente suprirão, os previstos nos art°s 286°, nº 1, 287°, al. b), 309°, n°. 1, 308°, nº 1 e 2 e 283°, n°s 1 e 2, todos do Código Penal.

A este recurso respondeu o Ministério Público junto da 1ª instância nos termos que constam de folhas 441 a 458 dos autos, em síntese, contestando a existência da invocada nulidade da decisão instrutória por entender que independentemente de existir ou não existir queixa o tribunal não estava impedido de pronunciar-se pela existência ou não de um crime de falsificação de documento uma vez que este é um crime público; no entanto sufraga o entendimento de que o recurso do arguido deve merecer provimento porque, mesmo a investigação levada a cabo durante a instrução, concretamente o exame pericial à escrita elaborado concluiu pela probabilidade de ser do punho do arguido os carateres constantes do documento analisado; entende pois que correspondendo essa probabilidade a um grau de significância entre 50% a 70%, podendo, portanto ser igual a probabilidade de não ser. Assim entende que deveria o tribunal ter, em nome do princípio in dubio pro reo e da presunção da inocência concluído pela não pronúncia do arguido. Para mais quando o arguido apresenta novo exame pericial que contraria aquele primeiro e quando dos autos constam elementos que permitem concluir que, mesmo a ter existido falsificação do documento, o assistente negociou com o arguido em momento posterior, entregando-lhe os documentos do carro e 500,00€ em dinheiro. Tudo isto entende o Ministério Público ser razão para se concluir pela inexistência de indícios suficientes para pronunciar o arguido uma vez que existe uma possibilidade séria de vir a não ser condenado em julgamento.

Também o assistente respondeu ao recurso pronunciando-se, conforme emerge de folhas 459 a 467, pela sua total improcedência.

Neste Tribunal da Relação o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu douto Parecer e nele sufragou igualmente o entendimento de que o recurso deveria proceder (folhas 476 a 478).

Cumprido o preceituado no artigo 417º do Código de Processo Penal nada veio a ser acrescentado.
Colhidos os Vistos foram os autos sujeitos a conferência

II) – Fundamentação.
Tem o seguinte teor a decisão de que se recorre:

“Nos presentes autos, finda que foi a fase do inquérito decidiu o Ministério Público proferir despacho de arquivamento (fis. 228 a 233).
Em sequência do que veio o assistente, D…, requerer a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia relativamente à prática pelo arguido, B…, em autoria material e concurso real, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.° e 218.° do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.° do mesmo diploma.
Alega, em síntese, que adquiriu na Alemanha, por € 18.000,00, uma viatura da marca Mercedes, modelo …, de cor preta e com a matrícula HD - CD …, que podia vender em Portugal por € 20.000,00.
Mais alega, que foi enganado pelo arguido que o levou a acreditar que o iria ajudar a legalizar a viatura, o que fez com que lhe entregasse os documentos e a chave da mesma.
Alega, ainda, que ulteriormente falsificou a declaração de venda possibilitando-lhe, junto do comerciante ‘E…” e mediante pagamento do IVA, que o mesmo lhe entregasse uma factura da compra permitindo a sua legalização e conseguindo realizar a venda do viatura e enriquecer-se com o negócio.
Com utilidade para a decisão a proferir, nesta fase processual, entendeu o Tribunal proceder à realização das diligências instrutórias requeridas.
Não se tendo vislumbrado qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, nem tendo sido requerida a realização de mais algum, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respectiva acta, tudo em conformidade com o disposto nos artigos 298.°, 301.° e 302.°, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, nos termos do artigo 308.° do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
A Instrução visa, segundo o que nos diz o art. 286°. n.° 1 do CPP. “a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Configura-se, assim, como fase processual sempre facultativa - cf. n.° 2 do mesmo dispositivo - destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no CPP como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que, tendencialmente, se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade, conforme dispõe do art. 308°, n.° 1 do CPP, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no n.° 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.° 2 do art. 283°, nos termos do qual “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, págs. 38 e 39, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida “a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final “, apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados “os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Fixadas as directrizes que de acordo com a lei nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido, B…, dos factos que lhe são imputados.
Vejamos o caso sub judice e o que dos autos dimana.
Conforme referimos no relatório da presente decisão, desenvolvida que foi toda a actividade investigatória, entendeu o Ministério Público proferir despacho de arquivamento.
Vejamos, antes de mais e ainda que de forma breve, os tipos legais de crime em apreço.
Crime de Burla
Dispõe o art. 2l7.°, do Cód. Penal, no seu n.° 1, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou pena de multa”.
Por sua vez, dispõe o art. 218.°, n.° 2, alínea a), do mesmo diploma legal, que “quem praticar o facto previsto no n.° 1, do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, com pena de prisão de dois a oito anos”.
A este propósito, o art. 202.°, alínea b), do Código Penal, refere que “valor consideravelmente elevado” é aquele que exceder 200 unidades de conta avaliados no momento da prática do facto.
Trata-se de um crime material, em que o efectivo prejuízo patrimonial e o correspondente enriquecimento ilegítimo interessam à sua consumação.
São, assim, elementos constitutivos deste crime os seguintes:
a) uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados;
Trata-se de um crime que só é, pois, censurado a título de dolo; não existe o crime sem a vontade conscientemente dirigida a provocar ou aproveitar astuciosamente o erro ou engano da vítima.
b) para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo ilegítimo;
c) intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Enriquecimento ilegítimo, será aqui, aquele a que não corresponde, objectiva ou subjectivamente, a qualquer direito, definindo-se segundo o conceito de enriquecimento sem causa, a que se refere o art. 473.° do Cód. Civil.
Por outro lado, exige-se ainda que o agente tenha a consciência da ilegitimidade desse enriquecimento.
No caso dos autos, exige-se, ainda que o prejuízo seja de valor elevado, ou seja, superior a 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
Com efeito, nos termos do n° 1, do artigo 218°, do Código Penal, o crime de burla pode constituir um crime qualificado em função do valor elevado ou consideravelmente elevado da coisa. Considera-se valor elevado aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto e considera-se valor consideravelmente elevado aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cf. artigo 202°, alíneas a) e b), do Código Penal).
Crime de Falsificação
Prevê o art. 256°:
“1- Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao estado, ou de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. (…).
3. (…).
4. (...)”.
Importa começar por referir que o crime de falsificação de documentos se encontra inserido no Título relativo aos “Crimes contra a vida em sociedade”. Liminarmente, dir-se-á, também, que o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação é “a verdade intrínseca do documento enquanto tal” (cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, in CJ, VII- 3, pág.23). Neste particular, costuma igualmente referir-se a protecção da fé pública, traduzida num sentimento geral de confiança nos actos públicos; a “protecção da verdade da prova”; e ainda a “segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental” (cfr. Helena Moniz, in “O crime de falsificação de documentos - Da falsificação intelectual e da falsidade em documento”, Livraria Almedina, 1993, pág. 41 e segs.).
Trata-se, por outro lado, de um crime de perigo, uma vez que “após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança e a fë pública já foram violadas, mas o bem protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo” (cfr. Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense “, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 681).
Dentro dos crimes de perigo, o tipo legal em análise pertence à categoria dos crimes de perigo abstracto, porquanto “basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual” (cfr. Helena Moniz, ob. cit., pág. 681).
Feito este intróito, uma primeira advertência se impõe:
Na verdade, urge começar por referir que qualquer estudo sobre o presente tipo legal deve ter presente que, “documento, para efeitos de crime de falsificação é a declaração e não o objecto em que está incorporada”. Assim, “o que constitui falsificação de documento é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento” (cfr. Helena Moniz, ob. cit., pág. 676).
Ora, a falsificação assim entendida pode assumir diversas formas, ou seja, pode consubstanciar uma falsificação material ou uma falsificação ideológica.
Na falsificação material, “o documento não é genuíno”, isto é, “ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento”.
Na falsificação ideológica, “o documento é inverídico”, ou seja, diz respeito aos casos em que “o documento foi objecto de falsificação intelectual” - o documento integra uma declaração falsa, existindo uma declaração escrita integrada no documento, distinta da declaração prestada - e àqueles em que existe ‘falsidade do documento” - ou seja, em que se narra um facto falso.
Vejamos, agora, o tipo objectivo de ilícito, que comporta, desde logo, diversas modalidades de conduta. A saber:
a) fabricar documento falso: Com esta conduta procede-se a uma “contrafacção total, isto é, à feitura ex novo e ex integro de um documento” (Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, Vol. II, Rei dos Livros, 2000, pág. 1100);
b) falsificar ou alterar documento: Esta modalidade de falsificação diz respeito aos casos de ‘falsificação material “, em que se verifica “uma falsificação posterior do documento” (cfr. Helena Moniz, ob. cit., pág. 682), mediante uma alteração do seu conteúdo. Cabe aqui diferenciar a contrafacção parcial, “que se preenche com os chamados actos acessórios falsos, ou seja, com actos falsos que acrescem a documento verdadeiro” e a alteração que “surge sempre que se acrescentam aditamento, em documento já completo, ou se suprimem dizeres ou sinais por forma a produzir a modificação do seu conteúdo” (cfr. Simas Santos, loc. cit.);
c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso: Esta modalidade de conduta prende-se com os casos de fraude na identificação. Nesses casos, o documento não é autêntico, a declaração não foi proferida pela pessoa que o escrito aparenta. Por outras palavras, “utiliza-se uma assinatura mecânica alheia não autorizada para os documentos em que é aposta” aproveita-se de “papel assinado em branco por terceiro introduzindo-lhe uma declaração de vontade que não pertence ao dono da assinatura” (cfr. Simas Santos, loc. cit.);
d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante: Esta modalidade de conduta reporta-se à falsidade em documento, e;
e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa, distinta da que falsificou.
No que diz respeito ao tipo subjectivo de ilícito, o crime de falsificação é um crime intencional, isto é, o agente deve actuar com a “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”.
Volvendo ao caso em análise cumpre proceder à análise crítica dos indícios recolhidos.
Em sede de inquérito:
Os presentes autos tiveram início com o auto de denúncia de fls. 2 e ss., onde D… denunciou o facto de em Janeiro de 2008 se ter deslocado a Dusseldorf, na Alemanha, a fim de ali adquirir uma viatura automóvel usada para ulterior importação para o nosso país, tendo-se feito acompanhar por um indivíduo de nome B…, a quem pagou uma comissão no momento da aquisição da viatura, esclarecendo que nos últimos anos adquiriu 5 viaturas, nas mesmas circunstâncias e com apoio no mesmo indivíduo. Ulteriormente, após a devida legalização, vendeu as referidas viaturas em Portugal.
Asseverou que relativamente à última viatura que adquiriu, uma carrinha Mercedes, modelo …, de cor preta, com a matrícula HD-CD-…, a transacção ocorreu no dia 29 de Janeiro de 2008, encontrando-se, ainda, presente um indivíduo estrangeiro que se identificou como E….
Segundo se recorda, pagou pela viatura, em dinheiro, a E…, entre € 17.500,00 e € 18.000,00 e a B…, € 500,00 ou € 600,00.
Referiu que não recebeu quaisquer facturas dos valores pagos, tendo-lhe sido explicado por B… que a mesma ser-lhe-ia remetida pelo vendedor, para a sua residência, em Portugal.
Referiu, ainda, que após o negócio o denunciante deslocou-se com os outros dois indivíduos a uma conservatória de Dusseldorf, onde registou a viatura em seu nome, tendo-lhe sido atribuída a matrícula de trânsito “D-…” para a correspondente viagem para Portugal.
Segundo referiu, quando se encontrava já em Portugal, colocou a viatura à venda na Internet, tendo-lhe surgido uma pessoa interessada na sua aquisição. No entanto e uma vez que ainda não tinha recebido a factura da aquisição da viatura, começou a pressionar o denunciado para que este, junto de E…, tentasse agilizar o envio da mesma.
Entretanto, disse que resolveria o seu problema, mas que necessitava, para tal, dos documentos da viatura que estavam em seu poder.
Daí que, numa primeira fase, entregou-lhe a viatura e, posteriormente, os documentos que já se encontravam no despachante “F…, Lda. “.
Declarou, ainda, que o denunciado lhe chegou a solicitar o pagamento de mais € 4.000,00 para o envio da factura de aquisição da viatura, o que se recusou a fazer, tendo o denunciado efectuado uma proposta de emissão de factura falsa, com o intuito de “despachar” o veículo, o que também recusou.
Disse, por último, que já não tem a viatura na sua posse, há cerca de 1 ano e 6 meses, tendo, apenas, a sua chave suplente, pelo que tendo vindo a pressionar o arguido a devolver-lhe a viatura e os seus documentos em vão.
Segundo informação prestada pelo denunciante, a fls. 20, a viatura em questão estaria a circular em Portugal, devidamente legalizada, com a matrícula ..-HS-.., encontrando-se já registada em nome de G….
Inquirido D…, a fls. 30 a 33, confirmou a denúncia apresentada, tendo esclarecido que conhece o denunciado há cerca de 6 anos, mantendo com o mesmo, ao longo desse tempo, vários negócios de compra e venda de automóveis, que compravam na Alemanha e que eram, ulteriormente, vendidos em Portugal, nunca tendo havido qualquer problema excepto com a referida carrinha Mercedes ….
Mais disse, que a mencionada carrinha custou-lhe € 18.000,00 cujo preço pagou em notas e que, durante um mês, circulou com a matrícula de trânsito com o número “D-…”.
Referiu que na altura em que comprou a viatura na Alemanha foi-lhe referido, pelo denunciado, que seria preciso obter uma factura para ulterior legalização na Alfândega, pelo que trouxe consigo os documentos verdadeiros, bem como a matrícula de trânsito em seu nome.
Quando esse período de tempo estava a esgotar-se entrou em contacto com o denunciado, tendo decidido que a carrinha ficava guardada na garagem na Póvoa de Varzim, até ambos conseguirem um comprador mantendo, contudo, os seus documentos na sua posse.
Disse, ainda, que depois de colocar a viatura nessa garagem contactou várias vezes com o denunciado, insistindo pela referida factura.
No entanto, a mesma nunca lhe foi entregue, sendo-lhe sempre referido que era o vendedor alemão que estava em falta, pelo que entregou os documentos da viatura, que estavam na sua posse, ao despachante H…, dono da agência “F…, Lda”.
Como a não conseguiram vender, deslocaram-se novamente para a Alemanha, para aquisição de veículos de gama inferior, tendo comprado, no ano de 2008, mais duas viaturas, uma “Passat” e uma “Audi ..”, que vieram a ser depositados na mesma garagem.
Insistiu, novamente, com o denunciado por causa da factura da aludida carrinha Mercedes, tendo este sugerido que teria duas hipóteses para conseguir legalizar a carrinha no nosso país, ou entregando-lhe € 4.000,00 para conseguiram arranjar uma verdadeira factura na Alemanha, ou apresentando uma factura falsa para o despachante poder legalizar o referido veículo, o que não aceitou, tendo ido levantar os restantes veículos à garagem e conseguido vendê-los.
Mais tarde, em negociação com o denunciado, entregou-lhe os documentos da viatura Mercedes, que foi levantar à agência e, ainda, lhe entregou € 500,00 para que o denunciado resolvesse o problema da sua legalização.
Referiu que em Dezembro de 2008 voltou a contactar com o denunciado, que lhe propôs levar a carrinha para o Luxemburgo, para ser vendida naquele país ou na Alemanha. No entanto, no mês seguinte entrou em contacto com o denunciado, que lhe afirmou que a carrinha já estava no Luxemburgo.
Disse, ainda, que em Fevereiro de 2009 encontrou-se novamente com o denunciado, junto da igreja de …, em …, para combinarem o negócio da carrinha, tendo-lhe sido sugerido o abaixamento do seu preço.
Consta do relato de diligência externa, de fls. 59, que o agente da PSP, responsável pela presente investigação, se deslocou à Alfândega do Porto a fim de se inteirar dos procedimentos legais necessários com vista à legalização dos veículos provenientes da União Europeia.
A fls. 55 consta cópia da factura de compra e venda do veículo na Alemanha e a fls. 56 consta nova matrícula de trânsito, sendo o seu titular o denunciado B….
Inquirido I…, a fis. 64/65, referiu ser marido da proprietária do veículo em questão e ter sido quem tratou da sua compra.
Referiu que em Junho de 2009 viu a carrinha em questão num stand denominado “J...”, em …, Vila Nova de Gaia. Decidiu então adquiri-la pelo que sinalizou a viatura com um cheque de € 500,00, passado à ordem do mencionado Stand, do qual é proprietário um tal de K…, tendo acordado o valor de € 24.750,00.
Com vista à legalização do veículo, o stand emprestou-lhe, posteriormente, a documentação da Alfândega, tratando da sua legalização para nome da sua esposa.
Refere, também, que na altura da compra o stand somente lhe entregou uma chave.
Mais disse, que não conhece o indivíduo que importou a viatura da Alemanha, pensando que o mesmo é da cidade de Braga pelo facto de ter na sua posse a documentação da Alfandega de Braga.
Inquirido K…, a fis. 81/82, referiu ser proprietário do stand, afirmando não se recordar se foi o denunciado, B…, que se deslocou ao seu stand ou se lhe enviou a documentação do veículo.
Referiu que nesse negócio com o E… comprou mais um veículo, sendo efectuado o transporte dos dois carros pela transportadora “L…” para o seu stand. Foi o próprio que tratou da documentação para posterior venda ao cliente.
Afirmou, ainda, que E… lhe garantiu que o denunciado B… fez negócio com ele, pelo que terá pago a viatura ao E….
Inquirido B…, a fis. 92 a 94, referiu que adquiriu a viatura ao denunciante, conforme documento que juntou aos autos, emitido pela entidade alemã competente. Nesse acordo ficou estipulado que caso vendesse a viatura por preço superior ao adquirido devolveria ao denunciante essa diferença e que obteve um lucro de € 500,00, conforme o valor exarado no documento de venda a um stand alemão. Acrescentou que, não devolveu a referida quantia pois não chegava para as despesas inerentes ao processo.
Disse que foi o denunciante que adquiriu a referida viatura na Alemanha, com a sua ajuda e que a conduziu para território nacional. Desconhece o motivo pelo qual não procedeu, de imediato, à legalização da viatura, não sabendo qual o documento que estava em falta para o fazer.
Mais disse, que quem ficou na posse da viatura, dos documentos e das chaves foi o denunciante D....
Referiu, também, que adquiriu a referida viatura ao denunciante a 13 de Novembro de 2008, data em que passou a ser responsável pela mesma, tendo sido nessa data que solicitou ao denunciante os documentos e chaves da viatura para futura transacção, tendo o denunciante lhe entregue, nessa altura, a factura de compra da dita viatura.
No território nacional e após ter expirado a primeira matrícula da viatura, a mesma ficou depositada num armazém do depoente.
Referiu, ainda, que para requerer nova matrícula de trânsito, que foi atribuída em 29-12- 2008, entregou na Alemanha os documentos solicitados pela competente entidade e procedeu ao registo em seu nome.
Tendo sido ouvido, em declarações complementares, a fis. 110 a 111, o denunciante D… confirmou a denúncia apresentada.
Inquirido H…, a fis. 125, referiu que o processo de substituição da matrícula em questão foi aberto no seu actual escritório, em 18/09/2008, a pedido do queixoso, cuja documentação entregou.
Em 3 de Novembro de 2008, o queixoso dirigiu-se novamente à “F…” e solicitou a devolução dos documentos do referido veículo, não se recordando se o mesmo lhe deu qualquer razão para o fazer.
Inquirido M..., a fis. 153/154, despachante oficial que foi contactado pelo ofendido, para tratar da legalização da viatura Mercedes referiu que em meados do ano de 2010 dirigiu-se com o ofendido a um stand de …, onde o proprietário do stand referiu que tinha vendido a viatura em questão, na Alemanha, a um cidadão Turco.
Interrogado B…, na qualidade de arguido, a fls. 180, manteve as declarações por si prestadas na qualidade de testemunha.
Entretanto, notificado o arguido para indicar aos autos, no prazo de 10 dias, a forma de pagamento da viatura ao denunciante veio dizer, por documentação junta a fis. 189 que o preço da viatura foi por si pago ao seu legitimo proprietário D…, em dinheiro, e que é o próprio ofendido - vendedor, que confessa ter recebido a quantia de € 9.500,00, o que resulta da declaração de compra e venda junta.
Inquirido N…, pessoa que já fez vários negócios com o denunciado, referiu que se recorda de no mês de Dezembro de 2008, quando se deslocou ao armazém onde o arguido guardava automóveis, ter assistido a uma entrega de uma quantia em dinheiro, bem como ter visto a viatura em questão, não se recordando, porém, de mais pormenores sobre o referido negócio.
Inquirida O…, a fis. 208 e 209, vendedora particular de automóveis e colaboradora do denunciado B…, recorda-se de, em 2008, o denunciado lhe ter solicitado a elaboração de um contrato de venda da viatura Mercedes …, tendo como comprador B… e vendedor D….
Mais disse que no dia acordado o denunciante não compareceu, mas apenas cerca de 2/3 dias depois e após ter na sua posse os documentos do despachante.
Que no interior do armazém e na sua presença o denunciante vendeu a referida viatura ao arguido, tendo sido preenchido e assinado o contrato de compra e venda por todos os intervenientes, sendo que o denunciado pagou a totalidade da viatura em numerário, já não sabendo precisar se foi € 9.000,00 ou € 9.500,00.
Nessa altura, foi acordado, entre ambos, que se a viatura fosse comercializada pelo denunciado por um valor superior àquele, a diferença lhe seria devolvida.
Em sede de instrução:
Inquirido P…, a fis. 307, declarou que o ofendido tinha um colega de trabalho que lhe tentou adquirir a viatura de marca Mercedes, o que não veio a suceder por ausência da factura de venda da mesma na Alemanha, o que impedia de tratar da legalização.
Inquirido Q…, a fis. 308, declarou desconhecer os trâmites do negócio de aquisição da viatura de marca Mercedes pelo denunciante. Asseverou, no entanto, que em data que não recorda, sita em finais de Fevereiro do ano de 2008, acompanhou o ofendido na entrega da viatura num armazém a um indivíduo que supõe tratar-se do arguido.
Realizado exame pericial de escrita, ordenado em fase de instrução, promana das suas conclusões que “A análise comparativa entre si dos caracteres apostos no doc. 1, mostra semelhanças entre si, o que permite afirmar que é praticamente provado que as assinaturas foram manuscritas pelo mesmo punho o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde uma probabilidade superior a 95%.
A análise comparativa entre si dos caracteres questionados referenciados como doc. 1 com os caracteres manuscritos pelo punho de D… constantes nos docs. 2, doc. 3 e doc. 4 pelas suas características permite afirmar que é pouco provável que os caracteres questionados tenham sido manuscritos pelo punho de D… o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde um grau de significância inferior a 50%.
A análise comparativa entre si dos caracteres questionados referenciados como doc. 1, com os caracteres manuscritos pelo punho de B… constantes no doc. 5 e doc. 6 pelas suas características permite afirmar como provável que os caracteres questionados tenham sido manuscritos pelo punho de B… o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde um grau de significância entre 50 a 70%”.
QUANTO AOS INDÍCIOS
Como já acima referimos, por despacho proferido, a fs. 228 a 233 e finda que foi a fase do inquérito decidiu o Ministério Público proferir despacho de arquivamento (fis. 228 a 233), relativamente à eventual à prática pelo arguido, em autoria material e concurso real, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.° e 2l8.° do Código Penal. e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.° do mesmo diploma.
Aí se refere, nomeadamente, que
Analisemos, então, a matéria apurada.
Segundo declarações prestadas pelo ofendido, o mesmo afirma que o denunciado, após ter a factura de compra da viatura em questão da Alemanha, de imediato iniciou a sua legalização no nosso país, registando-a, desse modo, em seu nome e vendendo-a, posteriormente, pelo que se sente lesado, pois ficou sem o dinheiro empregue bem como sem a viatura em questão. Afirma, no entanto, que não tem qualquer prova do pagamento da viatura em questão, pois levantou o dinheiro da sua conta e entregou-o ao vendedor alemão.
Por sua vez, o denunciado assumiu que adquiriu a viatura em questão ao denunciante, em 13 de Novembro de 2008, fazendo juntar o documento de fis. 95, contrariando, dessa forma, as declarações prestadas pelo lesado, onde refere a data de Janeiro de 2008 como sendo a altura em que adquiriu a viatura.
Ademais, o arguido apresentou prova testemunhal e documental a corroborar a versão por si apresentada.
Pelo que, da análise de toda aprova produzida em inquérito ficam varias dúvidas de que os factos denunciados tenham ocorrido como o denunciante os relatou.
Ora, em obediência ao princípio do “in dúbio pró reo”, as dúvidas terão de ser sempre valoradas a favor do arguido, em respeito absoluto ao princípio da presunção da inocência do arguido.
Por outro lado e mesmo que assim não fosse, a verdade é que mesmo que se considerassem indicados os factos denunciados, o que não é o caso, não estaríamos perante a prática de um crime de burla.
Aliás, para se indiciar a prática de um crime de burla tem de existir um erro ou engano em que o burlado tenha caído e que tenha sido, astuciosamente, provocado, pelo agente, o que importa que o comportamento do agente, dirigido a enganar o seu interlocutor, seja convincente e hábil quanto baste para iludir o cuidado que, nesse domínio de actividade, é exigível e normalmente exigente em cada um (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n° 0210951, de 07 de Janeiro de 2004, disponível in www.dgsi.pt.)
Daí que, e tendo em conta os elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito da burla, será de concluir que os mesmos não se indiciariam, no caso em concreto, em relação ao arguido.
Na verdade, a forma como os factos denunciados vêm descritos, a actuação do arguido, a se ter verificado na forma e circunstâncias relatadas, não integraria a pratica de um crime de burla, mas de um incumprimento contratual, a ser discutido pelas partes, querendo, em acção cível.
Acresce que, a sujeição de alguém a julgamento pressupõe que se tenham reunido indícios suficientes da verificação e prática do crime, sendo que os indícios são, apenas, suficientes, quando deixam antever a possibilidade razoável de o arguido ser condenado, em julgamento.
Por outro lado, aquela probabilidade só existe quanto os elementos recolhidos já possibilitem um juízo de condenação provável, se em julgamento não acabarem prejudicados, verbi gratia, por falhar aí a sua prova ou por se demonstrar uma qualquer circunstância que os neutralize.
Na verdade, e segundo se explana no Acórdão supra referido, “não é correcto que se relegue para julgamento o esclarecimento das dúvidas e pontos obscuros, transformando a remessa do processo para julgamento num verdadeiro “salto no escuro”, na medida a que, a persistirem ali essas dúvidas, a absolvição se ante vê inexorável”.
Com efeito, sempre se diria que a eventual responsabilização do vendedor da viatura e possível indemnização do denunciante deverá e poderá ser tratada no âmbito da jurisdição cível, à qual compete.
Por tudo o exposto, determina-se o arquivamento dos autos, em relação ao arguido B…, por falta de indícios de o mesmo ter cometido o crime de burla, nos termos do disposto no artigo 277. n.° 2, do Código de Processo Penal.
Sustenta, todavia, o assistente em sede de requerimento de abertura de instrução, que adquiriu na Alemanha, por € 18.000,00, a viatura em questão que podia vender em Portugal acima dos € 20.000,00.
Mais alega, que foi enganado pelo arguido que o levou a acreditar que o iria ajudar a legalizar a viatura, o que fez com que lhe entregasse os documentos da viatura e a chave.
Alega, ainda, que ulteriormente falsificou a declaração de venda possibilitando ao arguido, junto do comerciante “E…” e mediante pagamento do IVA que o mesmo lhe entregasse uma factura da compra permitindo a sua legalização e conseguindo realizar a venda da mesma e enriquecer-se com o negócio.
- Relativamente ao imputado crime de burla
Como acima referimos e conforme dispõe o artigo 2170, no i, do Código Penal “Quem com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido (...)“
Comparado com os crimes patrimoniais cometidos com recurso à violência ou à ameaça intimidativa, o crime de burla apresenta-se como uma forma evoluída de captação do alheio. O agente serve-se do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar.
Efectivamente, o aspecto nuclear dos crimes de burla materializa-se na indução em erro de alguém e na prática por este, em consequência da viciação da vontade de que foi objecto, de actos lesivos do património, seu ou alheio.
Em conformidade, são elementos objectivos do crime de burla: o uso do erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocados; e que determina outrem à prática de actos que lhe causem, a si, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.
Assim, em primeiro lugar, deve existir uma relação causal entre os requisitos enunciados, pois que o erro ou engano deve ser gerado através da astúcia, sendo esta um instrumento necessário para que se alcancem aqueles. Sem astúcia a conduta do agente é atípica, uma vez que omitiu a prática de um acto típico instrumental, essencial para obter um efeito legalmente relevante. Precisamente, foi esta exigência acentuada aquando da i’ Comissão Revisora do texto de 1982, tendo ali sido referido que: “ao lado do erro coloca-se o engano. Mas, também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado astuciosamente” (cf. BMJ n° 287, pág. 41).
Por outro lado, erro ou engano relevantes não são apenas aqueles que logram o convencimento da vítima. Relevante é apurar se a vítima, sujeita ao processo enganatório, agiu conforme os desígnios do agente.
Por erro deve entender-se a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima. O engano, e segundo defende Marques Borges, (in Crimes contra o Património, pág. 22), equipara-se à simples mentira.
Mais complexa é a definição do conceito de astúcia.
Em primeiro lugar, a astúcia relevante é uma noção de recorte objectivo e não meramente subjectivo, tendo, por isso, conforme refere José António Barreiros (in “Crimes Contra o Património”, pág. 157), de ser reconstituída a partir de actos materiais que a revelem e evidenciem, e não por referência a estados de espírito ao nível da mera motivação do agente.
Na sua formulação vulgar, registada por qualquer dicionário, ela é equiparada à habilidade para o mal, à manha, à sagacidade, à habilidade para enganar, à subtileza para defraudar, ao ardil, ao embuste e à maquinação. Mais difícil, contudo, é a sua formulação jurídica.
Porém, e não obstante esta dificuldade, sempre que ocorra uma actuação engenhosa da parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada a ludibriar que, psiquicamente, manipula o intelecto da vítima, tratar-se-á de actuação astuciosa relevante (assim, António Barreiros in Ob. cit., Loc. cit.).
Conforme supra se referiu, para que se pudesse considerar preenchido o tipo legal do crime em causa seria necessário que resultasse provado o núcleo essencial do referido tipo, ou seja, indução em erro de alguém e na prática por este, em consequência da viciação da vontade de que foi objecto, de actos lesivos do património, seu ou alheio.
Ora, os presentes autos tiveram início com o auto de denúncia de fls. 2 e ss., em que D… denunciou o facto de, em Janeiro de 2008, ter-se deslocado a Dusseldorf, na Alemanha, a fim de ali adquirir uma viatura automóvel usada para ulterior importação para Portugal, tendo-se feito acompanhar por um indivíduo de nome B…, a quem pagou uma comissão no momento da aquisição da viatura, afirmando ainda, que nos últimos anos adquiriu 5 viaturas nas mesmas circunstâncias e com apoio do mesmo indivíduo.
Que ulteriormente e após devida legalização, vendeu as referidas viaturas em Portugal.
Contudo e relativamente à última viatura que adquiriu, uma carrinha Mercedes, modelo …, de cor preta e com a matrícula HD-CD- …, a transacção ocorreu no dia 29 de Janeiro de 2008, encontrando-se presente um indivíduo estrangeiro que se identificou como E….
Segundo se recorda, pagou pela viatura, em dinheiro, a E…, entre € 17.500,00 e € 18.000 e a B…, € 500,00 ou € 600,00.
Referiu que não recebeu quaisquer facturas dos valores pagos, tendo-lhe sido explicado pelo arguido que a mesma ser-lhe-ia remetida pelo vendedor, para a sua residência, em Portugal.
Referiu, ainda, que após o negócio deslocou-se com os outros dois indivíduos a uma conservatória de Dusseldorf, onde registou o carro em seu nome, tendo-lhe sido atribuída a matrícula de trânsito “D-…” para a correspondente viagem para Portugal.
Segundo mencionou, quando se encontrava já em Portugal, colocou a viatura à venda na Internet, tendo-lhe surgido uma pessoa interessada na sua aquisição. No entanto e uma vez que ainda não tinha recebido a factura da aquisição da viatura, começou a pressionar o arguido para que este, junto de E…, tentasse agilizar o envio da mesma.
Entretanto, o arguido referiu que resolveria o seu problema, mas que necessitava para tal dos documentos da viatura que se encontravam em seu poder.
Daí que, numa primeira fase, entregou-lhe a viatura e, ulteriormente, os documentos que já se encontravam no despachante “F…, Lda.”.
Declarou, ainda, que o arguido lhe chegou a solicitar o pagamento de mais € 4.000,00 para o envio da factura de aquisição da viatura, o que se recusou fazer, tendo o arguido efectuado uma proposta de emissão de factura falsa, com o intuito de “despachar” o automóvel, o que também recusou.
Quando inquirido, confirmou a denúncia apresentada, esclarecendo que conhece o arguido há cerca de 6 anos, mantendo com o mesmo, ao longo desse tempo, vários negócios de compra e venda de automóveis, que compravam na Alemanha e que, ulteriormente, eram vendidos em Portugal, nunca tendo havido qualquer problema, excepto com a referida carrinha Mercedes ….
Mais disse, que esta carrinha custou-lhe € 18.000,00 em dinheiro e que, durante um mês, circulou com a matrícula de trânsito com o número “D- …”.
Referiu que, na altura em que comprou a viatura na Alemanha, foi-lhe referido pelo denunciado que seria necessário obter uma factura para ulterior legalização na Alfândega, pelo que trouxe consigo os documentos verdadeiros, bem como a matrícula de trânsito em seu nome.
Quando esse período de tempo estava a esgotar-se entrou em contacto com o denunciado, tendo decidido que a carrinha ficava guardada na garagem na Póvoa de Varzim, até ambos conseguirem um comprador ficando, contudo, com os seus documentos.
Disse, ainda, que depois de colocar a viatura nessa garagem contactou várias vezes com o denunciado, insistindo pela referida factura.
No entanto, a mesma nunca lhe foi entregue, sendo-lhe sempre dito que era o vendedor alemão que estava em falta, pelo que entregou os documentos da viatura que tinha na sua posse ao despachante H…, dono da agência “F…, Lda”.
Como não a conseguiram vender, deslocaram-se novamente para a Alemanha, para aquisição de veículos de gama inferior, tendo comprado, no ano de 2008, mais duas viaturas, uma “Passat” e uma “Audi ..”, que vieram a ser depositados na mesma garagem.
Que insistiu, novamente, com o denunciado por causa da factura da carrinha Mercedes, tendo este lhe sugerido que teria duas hipóteses para conseguir legalizar a carrinha no nosso país, ou entregando-lhe € 4.000,00 para conseguiram arranjar uma verdadeira factura na Alemanha ou apresentado uma factura falsa para o despachante poder legalizar a referida viatura, o que não aceitou, tendo ido levantar os restantes veículos à garagem e conseguido vendê-los.
Mais tarde, em negociação com o denunciado, entregou-lhe os documentos da viatura Mercedes, que foi levantar à agência e deu-lhe, ainda, € 500,00 para que o denunciado resolvesse o problema da sua legalização.
Referiu que, em Dezembro de 2008, voltou a contactar com o denunciado, que lhe propôs levar a carrinha para o Luxemburgo, para ser vendida naquele país ou na Alemanha. No entanto, no mês seguinte entrou em contacto com o denunciado, que lhe afirmou que a carrinha já estava no Luxemburgo.
Disse, ainda, que em Fevereiro de 2009 encontrou-se novamente com o denunciado, junto da igreja …, em …, para combinarem o negócio da carrinha, tendo-lhe sido sugerido o abaixamento do seu preço.
Ora, analisada criticamente a versão oferecida pelo assistente constitui nosso entendimento que aquando da outorga do negócio e atenta a envolvência á existente entre arguido e assistente em outros negócios contemporâneos não houve por parte do arguido a astúcia, ou engodo susceptível de consubstanciar o crime burla imputado.
Ou seja, não temos por indiciado que o arguido tenha engendrado um plano para prejudicar o queixoso. Isto é, não vemos que esteja indiciado que o arguido tenha proposto ao assistente um negócio que fosse impossível e que tivesse em mente enganá-lo, prejudicá-lo.
Desde logo e, em primeiro lugar, porque existiram vários negócios outorgados em idênticos cenários tendo os problemas, apenas, surgido na venda da carrinha mercedes e, em nossa óptica, por dificuldades de legalização.
Aliás, o arguido, segundo palavras do assistente e dadas as dificuldades existentes na legalização da viatura, ter-lhe-á sugerido que teria duas hipóteses para conseguir legalizar a carrinha no nosso país, ou entregando-lhe € 4.000,00 para conseguiram arranjar uma verdadeira factura na Alemanha, ou apresentando uma factura falsa para o despachante poder legalizar a referida viatura, o que não aceitou.
Afigura-se-nos que este constitui o ponto fulcral da questão e que revela que não usou de astúcia ou engodo. Aliás, afigura-se-nos como plausível que, atentas tais dificuldades, tenham reformulado os termos do negócio conforme em parte sustenta o arguido e que o mesmo tenha feito uso da sua própria sugestão/falsificação para resolver um problema que passava a ser seu.
Por isso, não vemos, como já acima referimos, que haja indícios de que o arguido tenha engendrado qualquer esquema para levar o denunciante ao engano por o ter esclarecido devidamente e dado sugestões para resolver o problema ocorrido.
Ou seja, afigura-se-nos que, in casu, não foi criada qualquer falsa representação da realidade, que induzindo em erro o denunciante tenha viciado a sua vontade, e que em consequência o tenha determinado à prática de um acto que lhe causou empobrecimento.
Ora, não se podem reconduzir, como acontece frequentes vezes, todas as situações de eventuais incumprimentos contratuais à tipificação do crime de burla, sendo que a lei civil tem normas próprias para a apreciação da situação aqui subjacente, devendo aí ser dirimido o conflito que opõe o denunciante e o arguido.
Pelo exposto não se encontra preenchido o elemento objectivo essencial do tipo de crime em causa impondo-se, por isso e nesta parte, a prolação de despacho de não pronúncia.
Relativamente ao imputado crime de falsificação a nossa leitura da prova indiciária é diversa.
Com efeito, resulta dos autos que havia um problema com a legalização da viatura de marca Mercedes, questão esta que se estava a agudizar com o decurso do tempo, de resto tanto o assistente como o arguido aceitam tal facto. Aliás, a sugestão dada pelo assistente ao arguido para resolução de tal problema levam-nos a concluir pela tese da indiciação da prática pelo arguido de tal crime.
Realizado exame pericial de escrita, ordenado em fase de instrução, promana das suas conclusões que “A análise comparativa entre si dos caracteres apostos no doe. 1, mostra semelhanças entre si, o que permite afirmar que é praticamente provado que as assinaturas foram manuscritas pelo mesmo punho o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde uma probabilidade superior a 95%.
A análise comparativa entre si dos caracteres questionados referenciados como doc. 1 com os caracteres manuscritos pelo punho de D… constantes nos docs. 2, doc. 3 e doc. 4 pelas suas características permite afirmar que é pouco provável que os caracteres questionados tenham sido manuscritos pelo punho de D… o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde um grau de significância inferior a 50%.
A análise comparativa entre si dos caracteres questionados referenciados como doc. 1, com os caracteres manuscritos pelo punho de B… constantes no doc. 5 e doc. 6 pelas suas características permite afirmar como provável que os caracteres questionados tenham sido manuscritos pelo punho de B… o que segundo a Tabela de Significância usada corresponde um grau de significância entre 50 a 70%”.
É certo que o arguido sustenta outra versão dos factos, negando a autoria dos factos que lhe são imputados. Todavia, em fase de instrução e conforme já referimos foi junto aos autos relatório pericial colocando em crise a tese aventada pelo arguido, aportando um terceiro meio de prova que confere luz nova ao tema em discussão.
Promana das conclusões do referido exame pericial que “Admite-se como provável que as escritas suspeitas sejam da autoria do arguido”.
Tal exame pericial visou apurar da probabilidade de ter sido o arguido a apor a assinatura/rubrica do assistente na declaração de venda constante de fis. 95.
Nos termos do artigo 151º do C.P.P. “a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.
A perícia é, pois, um meio de prova que visa a avaliação dos vestígios da prática do crime com base nestes especiais conhecimentos.
Quanto ao valor da prova pericial, ela constitui uma excepção à regra da livre apreciação, consignada no artigo 127° do Código de Processo Penal.
Como determina o n° 1 do artigo 163° do C.P.P. «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador». Porém, acrescenta o no 2, «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência».
O valor da prova pericial está fixado na lei. Por isso se diz que esta é uma prova tarifada ou taxada, porque o seu valor probatório, o seu peso para a formação da decisão sobre a matéria de facto, está pré-estabelecida na lei, peso este que radica na segurança e certeza dos juízos emitidos, pois que o «papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem» - cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, 1981, pág. 171.
Esta prova - também denominado de prova legal, já que é a lei que determina o seu peso na decisão -, comprime a liberdade de apreciação e julgamento do juiz, por ela não ser livremente valorável. Na medida em que tem um especial peso probatório o juiz deve acatar o juízo emitido no âmbito dessa prova. Para dele discordar tem, diz a lei, que fundamentar a divergência. Sendo certo que qualquer decisão tem que ser fundamentada, esta referência à fundamentação da divergência com a prova pericial é entendida pela jurisprudência com o sentido de podendo o julgador divergir da prova pericial, para o fazer tem que fundamentar cientificamente a divergência estribando-se numa crítica da mesma natureza, ou seja, científica, técnica ou artística - cf. acórdão do S.T.J. de 05.05.1993, processo 044111, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 198.
Em sequência e conforme já referimos a prova pericial realizada nos autos e ordenada pelo Tribunal coloca em crise a versão do arguido, constituindo um indício forte da versão que sustenta a prática pelo arguido do crime de falsificação imputado.
Não olvidamos que o arguido ofereceu aos autos um outro exame pericial que contraria a perícia ordenada pelo Tribunal, todavia, no nosso modo de ver, a metodologia seguida pela perícia ordenada pelo Tribunal confere-lhe uma consistência manifestamente superior à realizada e oferecida pelo arguido. Com efeito, tal exame de escrita contemplou as seguintes características gerais: domínio da escrita, formas de ligação, mudança de direcção, graus de ligação, acentuação, dimensão e distribuição vertical, proporcionalidade, regularidade, orientação, largura e espaçamento e corpo e base da escrita. Foram, ainda, estudadas as características especiais da escrita: forma e movimento da escrita e qualidade do traço. Não é, ainda, de ignorar a experiência do perito Prof. Doutor J. Pinto da Costa na realização deste género de exames o que lhe confere manifesta consistência.
Note-se que a análise da rubrica/assinatura em causa a olho nu permite concluir no sentido sustentado no referido relatório. Aliás, afigura-se-nos que o relatório apresentado pelo arguido centra-se na análise da mera rubrica em si, descontextualizando-a do todo do documento, assentando as suas conclusões em manifestas razões formais. Aliás, refere-se que “Não é possível estabelecer, devidamente, a relação entre as características da rubrica suspeita e as das assinaturas autógrafas de B…, realizadas junto do tribunal de Valongo, porque estas não contêm nenhum dos caracteres que constituem aquela “, sendo certo que a letras G e M foram várias vezes escritas pelo arguido embora não de forma isolada, mas combinada impondo-se extrair as devidas conclusões e não refugiar-se na mera inconclusão.
Não ignoramos, ainda, que o arguido sugeriu ao assistente, atentas as dificuldades na legalização da viatura, seguir o caminho da falsificação e atenta a recusa do assistente e dadas as voltas e contra-voltas que o negócio terá sofrido, não nos causa estranheza que tenha seguido o caminho mais fácil, rubricando a assinatura do assistente contra a vontade deste. De resto, a valia da prova pericial não pode ser apreciada de forma isolada da demais prova oferecida nos autos e esta confere consistência às conclusões do exame pericial ordenado pelo Tribunal.
Todavia, os indícios da prática do crime e atenta a envolvência do negócio em causa surge dissociada da demais factualidade, assumindo carácter autónomo.
Assim sendo, é manifesta a suficiência dos indícios recolhidos, apresentando-se a condenação do arguido pela prática do crime de falsificação que lhe é imputado como mais provável do que a sua absolvição.
Assim sendo, parece manifesta a suficiência dos indícios recolhidos, apresentando-se a condenação do arguido pela prática do referido crime que lhe é imputado como mais provável que a sua absolvição.
O que disse é por si só suficiente para que se conclua que nos autos há prova indiciária suficiente para que ao arguido venha a ser aplicada, em sede de julgamento, uma pena - o que levará, consequentemente, à pronúncia do mesmo pela prática de um crime de falsificação.
Diverso raciocínio seguimos relativamente ao imputado crime de burla conforme por nós já sustentado.
Nestes termos, decide-se julgar parcialmente procedente o requerimento de abertura de instrução e, em consequência, pronunciar para julgamento em Processo Comum e perante Tribunal Singular, o arguido:
B…, casado, nascido no dia 10 de Maio de 1958, filho de S… e de T…, natural de Guimarães, residente na Rua …, …, …. - … Porto, titular do B.I. n.° …….
Porquanto:
- Em Janeiro de 2008, o assistente, D…, deslocou-se a Dusseldorf, na Alemanha, a fim de ali adquirir uma viatura automóvel usada para ulterior importação para Portugal, tendo-se feito acompanhar pelo arguido, B…, e adquirido uma carrinha Mercedes, modelo …, de cor preta, com a matrícula HD-CD-….
- Após o negócio, dadas as dificuldades ocorridas com a legalização da viatura em questão e em circunstâncias não devidamente apuradas, o arguido AB… preencheu a declaração de fis. 95, documento C…, datado de 13.11.2008, apondo, pelo seu próprio punho, todos os caracteres.
- O arguido sabia, nomeadamente, que a assinatura/rubrica de D… não era verdadeira e que não estava autorizada a apô-la, e que, ao agir dessa maneira estava a abusar da assinatura/rubrica do verdadeiro titular, consciente de que punha em crise a genuidade e credibilidade que tal título merece no tráfego comercial.
- Agiu o arguido de livre vontade e consciente de que praticava actos proibidos por lei, com o propósito de obter para si benefícios ilegítimos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Cometeu, assim, o arguido, B…, em autoria material e na forma consumada, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art.° 256°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
(…)”

Importa conhecer:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar.
No caso em apreço a primeira questão que nos vem colocada pelo recorrente é a de saber se não tendo o inquérito sido instaurado para apreciação do cometimento de um crime de falsificação poderia, no final da instrução, o arguido ser pronunciado pelo cometimento desse crime.
A instrução, que é, como se sabe, uma fase facultativa do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público no final do inquérito. É o que consagra o artigo 286º do Código de Processo Penal.
No caso concreto, o inquérito correu investigando-se a eventual prática pelo arguido de um crime de burla (artigo 217º/218ª do C.P.) e de coação (artigo 154º e/ou 155º do C.P.); no final o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por entender que, após ter realizado todas as diligências de investigação que reputou essenciais, inexistiam indícios suficientes para sujeitar o arguido a julgamento com probabilidade de poder vir a obter a sua condenação.
Estando o juiz, substancial e formalmente, limitado, na pronúncia, aos factos constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado do assistente - como até se extrai do facto de a lei cominar, no artigo 309º do Código de Processo Penal , com a sanção de nulidade, a decisão instrutória, na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituem alteração substancial[1] dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução -, constitui ónus do assistente alegar expressamente todos os factos concretos suscetíveis de integrar o tipo legal de crime que entende ter a conduta do arguido preenchido, nomeadamente todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime em causa, como o vem entendendo a generalidade da jurisprudência[2].
A liberdade de investigação conferida ao juiz de instrução pelo artigo 289º do citado diploma legal, como decorrência do princípio da verdade material que enforma o processo penal, e que lhe permite levar a cabo, autonomamente, diligências de investigação e recolha de provas, não é absoluta; está condicionada pelo objeto da acusação. A atividade processual desenvolvida na instrução é uma actividade “materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”[3] .
É facto que na alínea b) do nº 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal a lei faculta ao assistente requerer a abertura da instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação, mas, importa realçar, factos que tivessem sido já objeto de investigação.
Isto porque a fase de instrução é uma fase jurisdicional do processo no qual se pede a um juiz que sindique se a decisão proferida pelo Ministério Público no final do inquérito foi, ou não, devidamente tomada. Não se trata, portanto, de abrir uma outra fase de investigação, muito menos de levar a cabo investigação por factos novos diversos daqueles que foram objeto de apreciação na fase de inquérito.
No caso vertente o Ministério Público deu início ao inquérito, por denuncia do assistente, onde este narra uma sucessão de factos ocorridos entre a sua pessoa e o arguido, atinentes à compra, em Dusseldorf, de uma viatura usada, de marca Mercedes que, transportada para Portugal, deveria depois aqui ser aqui transacionada, mas que, por uma série de vicissitudes, não o foi como o assistente pretendia. Alega assim o assistente que o arguido o “burlou”, o enganou por forma a conseguir que lhe tivesse entregue o carro e os seus documentos (e ainda algum dinheiro), vindo posteriormente a vendê-lo, locupletando-se à custa do assistente. Este relata ainda que tem andado a ser ameaçado para não denunciar estes factos à autoridade policial.
São estes os factos que se investigam, cuidando de se apurar se o arguido tinha ou não cometido um crime de burla investigando-se ainda a autoria de um crime de coação. Para além de outras diligências, no inquérito, o Ministério Público decide ouvir o arguido e este dá dos factos a sua versão; defende-se dizendo que comprou a dita viatura ao denunciante e para provar o que diz junta um documento (fls 95). Na ponderação do que arguido disse e de tudo o mais que do processo constava entendeu então o Ministério Público que teria de concluir o inquérito arquivando-o. Que faz o assistente? Requer a abertura da instrução; mantém a sua versão e acrescenta ainda a afirmação de que o documento junto pelo arguido durante o inquérito é falso. Ora, o juiz de instrução decide então “investigar” se, de facto, o documento é ou não falso. Mas essa “investigação” não pode caber no âmbito da instrução. Este é um facto novo alegado pelo assistente. Aliás cremos que tudo se ficou a dever a um lapso manifesto da senhora juíza como decorre do trecho da sua decisão instrutória onde refere: “Como já acima referimos, por despacho proferido a fls 228 a 233 e finda que foi a fase de inquérito decidiu o Ministério Público proferir despacho de arquivamento (fls 228 a 233) relativamente à eventual prática pelo arguido, em autoria material e concurso real, de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigo 217º e 218º do Código Penal e de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º do mesmo diploma” (fls 402).
Ora, na verdade, a decisão de arquivamento foi, como se retira de folhas 223, por falta de indícios de o arguido ter cometido um crime de burla e pela não determinação de quem terá cometido um crime de coação (sendo que aqui não era o arguido a pessoa diretamente visada no inquérito).
Talvez porque é habitual que o crime de burla traga associado a si, como crime meio para o seu cometimento, a falsificação de documento, o juiz a quo se tenha deixado “enganar” na conclusão de que o despacho de arquivamento havia considerado a falta de indícios desse crime. Mas não foi o que sucedeu na realidade. Esse facto resultou, como se disse, de uma reação do assistente à defesa apresentada pelo arguido quando estava ser investigado pelo cometimento de um crime de burla; só no requerimento de abertura de instrução o assistente veio trazer à colação esse facto que anteriormente não havia estado em investigação.
Ora, como se disse já, é no inquérito que se exige a prática de todos os actos e diligências de investigação tendentes a averiguar da existência de fundamento para se imputar ao arguido o cometimento de factos que consubstancia a prática de crime(s) e sujeitá-lo a julgamento.
A fase da instrução não investiga factos novos que lhe tenham sido apresentados, sujeita apenas a controlo judicial a decisão anteriormente tomada pelo Ministério Público.
Assim sendo e não obstante serem judiciosas as razões aduzidas pelo Ministério Público na primeira instância e junto deste Tribunal da Relação, para concluírem pela procedência do recurso interposto, concluímos da mesma forma mas pelas razões que acabamos de aduzir e que se encontram a montante daquelas, consequentemente concluindo pela não pronúncia do arguido.

III)- Decisão:

Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, concluindo pela sua não pronúncia

Sem tributação
(elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores)

Porto, 2/07/2014
Maria Manuela Paupério
Élia São Pedro
____________
[1] cfr. Ac. RP 23/5/01, C.J., ano XXVI, t. 3, p. 238: “se, de acordo com a definição do art. 1-f) do C.P.Penal, há alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente quando a nova factualidade tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, por maioria de razão existirá alteração substancial dos factos sempre que os descritos naquele requerimento não integrem qualquer crime e os novos, só por si ou conjugados com aqueles, passem a integrá-lo.”
[2] cfr., entre outros, os Acs. RP 21/6/06, proc. 611176, e 11/10/06, proc. 0416501, www.dgsi.pt
[3] cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 132 que também cita o Prof. Fig. Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal, pág. 16.