Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
974/20.5T8AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
AUDIÇÃO DAS PARTES
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP20210712974/20.5T8AGD-A.P1
Data do Acordão: 07/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando se pretende conhecer (no todo ou em parte) do mérito da causa, a audiência prévia só pode ser dispensada se, por um lado, no despacho que ordenou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à dispensa de tal formalidade processual, o T. a quo tivesse expressamente mencionado o sentido da sua posterior decisão, de modo a acautelar decisões-surpresa (artº 3º nº 3 do CPC) e, por outro, se ambas as partes estivessem de acordo quanto à prescindibilidade da mesma.
II - A não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 195/1.º do Código de Processo Civil), a qual podia ser arguida - como foi - em sede de recurso e conduz à anulação do despacho saneador-sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº nº 974/20.5T8AGD-A.P1
Apelação
(552)
Sumário:
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ACÓRDÃO
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
B…, C… e D…, Lda. deduziram os presentes embargos de executado contra E…, SA, invocando a ineptidão do requerimento executivo, dada a ausência de alegação da causa de pedir.
Para o efeito, alegaram que, do requerimento executivo não é possível retirar factos ou quaisquer elementos que comprovem o processo de crédito e a sua cabal identificação, tais como o montante do crédito, a sua forma de pagamento, os valores pagos por conta do mesmo, o cálculo do montante da quantia em dívida.
Os primeiros embargantes avalizaram a livrança exequenda em branco, nunca tendo subscrito qualquer documento que lhes tivesse sido exibido e devidamente esclarecido, de onde constasse que autorizavam a exequente a preencher o título, a data da sua emissão e vencimento, e o valor, fosse ele qual fosse.
Alegam ainda que, em data que não conseguem precisar, a sociedade executada adquiriu à F… um veículo de matrícula ..-SI-.., tendo sido celebrado um contrato de locação financeira, no valor de 81.500,00€, que seriam pagos em 48 prestações mensais, sem qualquer intervenção da ora exequente.
O representante do fornecedor do bem sempre informou os executados de que se se verificasse qualquer situação de incumprimento da empresa, esta seria notificada por escrito, dessa situação, de modo a resolver a dívida ou o contrato e que se não pudessem cumprir com as prestações acordadas bastaria proceder à entrega do veículo, ficando obrigados a pagar as prestações que estariam em débito na altura.
Os executados pessoas singulares são pessoas de pouca instrução e acreditaram no que lhes foi transmitido, assinando e colocando o carimbo nos locais onde lhe foi dito para assinar.
Aos avalistas foi dito que estes apenas responderiam se a sociedade não procedesse como antes afirmado.
Mais alegam, que desconhecem se entre os documentos que foram dados para assinar de cruz, se encontrava algum pacto de preenchimento da livrança, mas caso exista, deve reger-se por aquilo que foi combinado entre as partes quanto ao preenchimento.
O contrato subjacente à livrança exequenda foi resolvido em janeiro de 2020 por iniciativa da exequente, altura em que instou os executados a devolver o veículo até ao dia 23.01.2020, nas instalações da F…, em Aveiro.
A sociedade executada procedeu à entrega do camião no início de fevereiro de 2020 e ficou a aguardar que a informassem do remanescente do valor em dívida, quanto às rendas que permaneciam em débito, no sentido de celebrar acordo de pagamento.
A exequente nunca notificou a sociedade de que iria proceder ao preenchimento da livrança e por que valor.
Mas notificou os executados pessoas singulares em abril de 2020 de que o contrato fora resolvido por falta de pagamento das rendas por parte da empresa, mencionando que iria preencher a livrança pelo valor de 22.465,19€.
Os executados responderam à carta, insurgindo-se quanto ao valor em causa, à qual a exequente respondeu, mantendo a sua posição, à qual novamente os executados responderam, opondo-se ao valor em dívida, defendendo que se só se encontra em dívida o montante de 3.517,89 €.
Que, a exequente não respeitou o pacto de preenchimento eventualmente celebrado, pretendendo obter valor que não lhe é devido.
Acresce que nunca chegou às mãos dos executados qualquer cópia ou duplicado dos documentos assinados por todas as partes.
Os executados não foram informados ou foi-lhes explicado que assumiam uma qualquer outra obrigação que não a das rendas vencidas à data da entrega do veículo.
Invocam ainda a violação do dever específico de informação por parte da exequente.

O exequente deduziu contestação, alegando, em suma, que não se verifica a invocada ineptidão do requerimento executivo, atendendo a que o título executivo é uma livrança que não se encontra prescrita, pelo que não há qualquer obrigação de alegar a relação jurídica subjacente à sua emissão, atento o disposto no artigo 703º/1, alínea c) do Código de Processo Civil.
Mais refere que entre si e os executados foi celebrado um contrato de locação financeira mobiliária, que teve como objeto um veículo pesado da marca F….
O contrato em causo teve como condição subjacente a prestação de garantias, neste caso, a livrança dada à execução, tendo sido assinado em simultâneo a convenção de preenchimento da livrança em branco, não se verificando qualquer nulidade ou vício na sua emissão.
Acresce que, tratando-se de um bem locado sujeito a registo, do documento único automóvel constava averbada a propriedade a favor da exequente, com a reserva de locação.
Os executados cumpriram o contrato por um período de quase três anos, pagando as rendas sem qualquer objeção.
A assinatura aposta no contrato não foi feita de cruz, tendo em conta que os embargantes assinaram na dupla qualidade de subscritores, enquanto representantes legais da sociedade executada, e como avalistas.
Dado o incumprimento contratual, resolveu o contrato e por cartas registadas com aviso de receção datadas de 13.04.2020, interpelou todos os executados para os domicílios convencionados para procederem ao pagamento da quantia sobrante emergente da resolução contratual.
E na sequência das cartas enviados pelos executados, a exequente prestou os necessários esclarecimentos.
Assim, o valor peticionado é certo, líquido e exigível. A exequente é a legítima portadora do título e observou o estipulado no pacto de preenchimento.
Quanto à invocada violação do dever de informação, alega que cumpriu com o mesmo.
A final, pugna para que sejam julgados improcedentes os embargos de executado.
Foram notificadas as partes para se pronunciarem quanto à dispensa da realização da audiência prévia e da prolação de despacho saneador sentença por escrito, tendo os embargantes manifestado a sua discordância, pretendendo a realização da audiência prévia, por estar em causa nos autos questões de facto e de direito.

Não obstante a oposição dos embargantes, ao abrigo dos princípios da gestão processual e adequação formal plasmados nos artigos 6º e 547º do Código de Processo Civil, por se entender que as questões a decidir são meramente de direito, foi dispensada a realização da audiência prévia.

Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou improcedentes os presentes embargos de executado deduzidos por B…, C… e D…, Lda. contra E…, SA, determinando o prosseguimento da execução.

Inconformados, apelaram os embargantes, apresentando alegações que finalizaram com as seguintes conclusões:
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NESTES TERMOS, na procedência do presente recurso, deve ser revogada a Sentença de Primeira Instância, ordenando-se a realização da audiência prévia e o prosseguimento dos autos para produção de prova no tocante à matéria alegada sobre o que seria devido em caso de incumprimento e, portanto, sobre o valor que deveria ter sido aposto na Livrança, sem prejuízo de, desde já, ser declarada nula a “convenção de preenchimento de livrança em branco”,

Foram apresentadas contra-alegações pela exequente, sendo as
respectivas conclusões do seguinte teor:
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Em conclusão e, sem necessidade de mais considerandos, entende a Recorrida que a Douta Sentença da Mtª Juiz a quo não merece, pelos fundamentos expendidos, qualquer reparo.

Foram dispensados os vistos legais.
II – QUESTÕES A RESOLVER
Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente importando decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artºs. 635º, 639º e 663º, todos do Código Processo Civil.
Assim, em face das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1) Da nulidade do despacho saneador-sentença, por dispensa da audiência prévia.
2) Da nulidade da convenção de preenchimento da livrança dada à execução.
3) Do incumprimento do dever de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais e consequente necessidade de produção de prova.
4) Da violação do pacto de preenchimento da livrança exequenda.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes (manteve-se a enunciação das alíneas embora haja duplicação da al. E):
A) Foi dada à execução a livrança, cujo original se encontra junto aos autos principais, e cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.
B) A livrança tem aposto como local de emissão Lisboa, data de emissão 13.04.2020, o valor de 22.465,19€, a data de vencimento de 20.04.2020, encontrando-se subscrita pela sociedade embargante D…, Lda.
C) No verso da livrança e após a expressão “Bom para aval ao subscritor” encontra-se aposta a assinatura dos embargantes B… e C….
D) Subjacente à livrança referida em B), está o contrato de locação financeira mobiliária celebrado em 02.01.2017 entre a sociedade executada e o E…, que teve como objeto o veículo pesado da marca F…, com a matrícula ..-SI-...
E) O contrato teve o seu início no dia 01.01.2017 e o termo previsto para 22.01.2021.
E) Ficou convencionado o pagamento 48 prestações mensais a título de renda, no valor de 1.130,21€, com data de vencimento ao dia 22 de cada mês.
F) O artigo 1º, nº1 das Condições Gerais do Contrato prevê o seguinte:
“O presente contrato tem por objeto a locação financeira do(s) bem(ns) identificado(s) nas Condições Particulares, obrigando-se o Locador a adquirir o bem ao fornecedor aí indicado nas condições de venda, entrega e garantia acordadas entre o locatário e o fornecedor, a conceder o seu gozo ao locatário e a vender-lhe o mesmo, caso este exerça a opção de compra, findo o prazo de locação.”
G) O artigo 8/1 das condições gerais do contrato estabelece que:
“A propriedade do Bem pertence em exclusivo ao Locador, sendo expressamente vedado ao locatário subloca-los ou ceder por qualquer modo a sua utilização, ainda que parcial, salvo autorização prévia e por escrito do locador.”
H) No artigo 13/3 das referidas Condições Gerais encontra-se estipulado que:
“A falta ou atraso de pagamento, bem como a anulação de débitos, o cancelamento ou a limitação da autorização de débito, pelo locatário, que inviabiliza o recebimento, por parte desta, dos montantes que lhe são devidos, na data do respetivo vencimento, envolverá o imediato e automático vencimento e exigibilidade de todas as demais subsequentes, passando a totalidade desse débito a vencer juros de ora, contados ao dia entre a data desse vencimento e a do respetivo pagamento.”
I) Por seu turno, o artigo 19 prescreve o seguinte:
“1 – Encontrando-se o locatário obrigado a restituir o bem ao locador e não o faça na data devida, este terá direito a uma indemnização por mora, de montante igual ao valor da último renda contratual, por cada mês ou fração em que a mora se verificar e até à data da respetiva restituição.
2 – A indemnização prevista no número anterior é sempre cumulável com qualquer outra que o locador tenha direito nos termos do presente contrato.”
J) O artigo 27 das Condições Gerais tem a seguinte redação:
“1 – Para além dos casos previstos na lei, o presente contrato poderá ser resolvido pelo Locador, verificando-se o incumprimento definitivo do locatário de qualquer das obrigações dele emergentes.
2 – Para os efeitos do número anterior, considera-se que há incumprimento definitivo quando o locatário estiver em mora relativamente a uma qualquer das suas obrigações e não cumprir com o prazo que lhe foi fixado pelo locador, exceto quando a mora respeitar ao pagamento de uma qualquer renda, caso em que o incumprimento definitivo se verifica automaticamente após terem decorrido 30 dias sobre a data do respetivo vencimento.
3 – O locatário pode precludir o direito à resolução do contrato pelo locador procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido dos respetivos juros de mora e de 50% do valor em dívida, acrescido dos respetivos juros de mora e de 50% do valor e dívida, no prazo de 8 dias a contar da data em que for notificado pelo locador da resolução do contrato.
4 – (…).”
K) No artigo 28 das condições gerais do contrato de locação financeira ficou estipulado o seguinte:
“Quando o presente contrato seja resolvido nos termos do artigo anterior, o locatário fica obrigado a efetuar de imediato ao locador a restituição do bem, na forma e condições previstas para a restituição no termo do contrato, e ainda a pagar-lhe um montante equivalente ao somatório das quantias referentes a:
a) rendas vencidas e não pagas, acrescidas de penalizações por mora previstas no contrato, com direito do locador fazer suas as rendas já pagas;
b) encargos suportados pelo locador em virtude da resolução do contrato, nomeadamente com a restituição do bem;
c) quantia equivalente a 20% da soma das rendas vincendas à data da resolução com o valor residual fixado nas condições particulares, a título de cláusula penal, sem prejuízo do locador poder pedir a reparação integral do seu prejuízo, quando superior.
L) O artigo 32 prevê o seguinte:
“As notificações ou comunicações entre o Locador e o Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efetuadas para os respetivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados no presente contrato.
M) No artigo 33 ficou estipulado que:
“1 - Fazem parte do contrato, as presentes condições gerais e particulares.
2 – O locatário declara conhecer as Condições Gerais e as condições particulares do presente contrato de locação financeira, às quais dá a sua inteira concordância.
3 – O presente contrato é feito em duas vias, ficando uma na posse do locador e outra na do locatário.”
N) No espaço imediatamente anterior aos campos destinados à data e assinatura do contrato consta o seguinte:
“O locatário declara que lhe foi dado a conhecer e acordou, previamente à assinatura deste contrato, todo o conteúdo das Condições Gerais e Particulares, o qual manifesta desde já aceitar sem quaisquer reservas, tendo ainda o locador prestado toda as informações e esclarecimentos pré-contratuais necessários à compreensão do presente contrato (conforme previsto no Decreto-Lei nº446/85 de 25 de outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº323/2001 de 17 de dezembro (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais)”.
O) Entre o exequente, a sociedade subscritora da livrança e os avalistas B… e C… foi celebrada a convenção de preenchimento de livrança em branco relativa ao contrato nº…….. - locação financeira, nos seguintes termos:
“Pela presente convenção, o aqui Subscritor autoriza, de forma irrevogável, o locador/mutuante a preencher a livrança em anexo, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, nos termos que correspondam às suas responsabilidades não satisfeitas, observando-se, no entanto, e sempre, o seguinte:
- o montante da livrança não poderá ser superior às responsabilidades do subscritor perante o Locador/Mutuante à da do seu vencimento, sem prejuízo do locador mutuante poder pedir a reparação integral do seu prejuízo quando superior;
- a referida livrança destina-se a titular os créditos do locador/mutuante sobre o subscritor emergentes, nomeadamente, das obrigações pecuniárias presentes ou futuras, resultantes do incumprimento, temporário ou definitivo, da resolução, da caducidade e da ineficácia do contrato em epígrafe, entre ambos celebrado.
São ainda da responsabilidade solidária do subscritor e avalista(s) as despesas judiciais e extrajudicias, incluindo honorários de advogados e solicitadores, necessários à boa cobrança dos valores titulados pela livrança que o locador/mutuante venha a realizar.
O Subscritor autoriza desde já, a que o locador/mutuante proceda, se assim, tiver por conveniente, ao desconto da livrança.
O(s) avalista(s) declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo do referido contrato e das responsabilidades que dele emergem para o Subscritor, assim como das consequências do seu incumprimento, temporário ou definitivo, da sua resolução, caducidade ou ineficácia, autorizando, em consequência, o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados.
(…)”
P) Em 20.08.2018, entre a sociedade locatária e o exequente foi celebrado um aditamento ao contrato de locação financeira, nos termos do qual procederam à alteração da duração de contrato, cujo termo passou para o dia 07.01.2021.
Q) O dia de vencimento das rendas é alterado para o dia 7.
R) As rendas passaram a ter a seguinte descrição:
- 20 rendas o valor de 1.130,21€;
- 28 rendas no valor de 1.125,33€.
S) Todas as demais condições particulares e gerais do contrato permanecem inalteradas.
T) Em 13 de abril de 2020, o exequente enviou carta registada com aviso de receção para a sociedade D…, Lda, para a morada Lugar de …, ….-… …, com o seguinte teor:
“(…)
Assunto: Preenchimento da livrança do contrato de locação financeira nº……..
(…)
Vimos, por este meio, informar que, o contrato supra referido, foi resolvido por falta de pagamento. Desta forma, e de acordo com as cláusulas contratuais, é agora exigido o pagamento das rendas em dívida, incluindo este o montante das rendas vencidas e não pagas até à presente data, juros de mora vencidos, indemnizações previstas nos artigos 13 e 21 das Condições Gerais, acrescido de despesas extrajudiciais incorridas até à data desta carta.
Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17 do DL 149/95 de 24 de julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 30/2008 de 25 de fevereiro, confirmamos a resolução do contrato supra identificado.
Informamos ainda que, igualmente ao abrigo do clausulado contratual, foi efetuado o preenchimento da livrança entregue para o efeito por V. Exa. com o montante de 22.465,19 Euros.
Este valor encontra-se a pagamento no E… (…).
O valor em dívida refere-se às seguintes parcelas:
Rendas em dívida 3.517,89€
Juros de mora vencidos 87,39€
Despesas judiciais iniciais (AE) 25,50€
Cláusula Penal 17.319,56€
Imposto sobre a livrança 111,77€
Total da livrança a pagar 22.465,19€
(…)
U) No mesmo dia, o exequente enviou carta de igual teor aos avalistas.
V) A carta enviada à sociedade subscritora não foi por esta rececionada.
W) Os embargantes avalistas enviaram carta ao exequente com o seguinte teor:
“…, 26.05.2020
ASSUNTO: Preenchimento da Livrança do contrato de locação financeira nº ……
(…)
Recebemos a carta que nos remeteu, datada de 13.04.2020, à qual só agora conseguimos responder em consequência da situação de pandemia em que nos encontramos, que afetou não só a vida da empresa que representamos como a nossa própria vida (não só em termos profissionais
como em termos pessoais/doença).
Posto isto:
Em tal carta vem mencionado que irão proceder ao preenchimento da livrança pelo valor de €22.465,19.
Ora, e em primeiro lugar, não damos a autorização para tal preenchimento porque tal não foi acordado entre as partes aquando da celebração do contrato. Sempre nos foi dito que a Livrança era um mero pró-forma e que nunca seria preenchida (e, estando nós de boa-fé em todo o processo, acreditamos nisso).
Por outro lado, e independentemente disso, não se entende o valor em si.
O veículo objeto do contrato foi entregue na F… em Aveiro no início de fevereiro de 2020.
Assim sendo, o valor do veículo deve ser abatido à alegada dívida.
Mais.
A que se referem os €17.319,56 de “cláusula penal” e como chegaram a tal valor? Nunca nos foi comunicada nem informada qualquer cláusula dessa natureza.
Assim como os €1.230,00 da rúbrica “encargos com honorários de advogados”? Nunca nos foi dito nem nós aceitamos pagar tais honorários e, de todo o modo, fica por demonstrar como chegaram a esse montante.
Por tudo, agradecemos que se abstenham de preencher a livrança (cuja autorização não demos nem damos) e que revejam os valores eventualmente em dívida, de acordo com o efetivamente contratado.
Salientamos que se permanecerem na intenção de preencher a Livrança, este será claramente abusivo e serão responsabilizados por todos os danos que nos causarem.
(…)”
X) O exequente respondeu aos embargantes/avalistas por carta datada de 5 de junho de 2020 nos seguintes termos:
“(…)
Em primeiro lugar cumpre esclarecer que, em momento algum foi dito pelo E… que a livrança seria um mero pró-forma, pois a mesma foi concedida a título de garantia da operação em questão.
Mais esclarecemos que o preenchimento da livrança não carece de autorização por parte do subscritor e seus avalistas, apenas carece de uma convenção de preenchimento de livrança em branco que determine os termos em que essa mesma livrança pode ser preenchida, assinada pelo subscritor e seus avalistas.
Por fim, importa ainda referir que estamos perante um contrato de locação financeira mobiliária, pelo que o bem locado é propriedade do E…, não existindo assim qualquer normativo ou cláusula contratual que obrigue a abater o valor de venda desse mesmo bem à dívida do cliente.
Contudo, no caso concreto o E… abateu o valor da venda à dívida da D… consequentemente à dívida dos seus avalistas, pelo que a cláusula penal consiste apenas no prejuízo efetivo que o E… teve após a venda do bem locado.
(…)”
Y) Os embargantes avalistas/responderam por carta registada datada de 6.06.2020 com o seguinte teor:
“(…)
ASSUNTO: Preenchimento da Livrança do contrato de locação financeira nº ………
(..)
Na n/ posse a v/ carta datada de 05.06.2020, cujo teor merece o nosso repúdio.
De facto, e para começar, mencionam que “em momento algum foi dito pelo E… que a livrança seria um mero pró-forma pois a mesma foi concedida a título de garantia da operação em questão” – ora, se todo o negócio foi efetuado em Aveiro e sem a intervenção direta do E…, é lógico que as informações prestadas foram-no pelo Fornecedor do bem.
Assim, se as informações prestadas (na ânsia de celebrar contratos) são menos corretas, tal circunstância deverá ser dirimida entre o E… e quem vos representa no terreno. São a eles que devem pedir explicações.
Reiteramos, pois, que nos foi dito que a livrança são era mais que um pró-forma, acrescentando ainda que a obrigação de comunicar devidamente TODAS as cláusulas do contrato impende sobre o E… ou quem os representa. O locatário é um mero aderente a quem não é dada a possibilidade de alterar o antes pré-definido, pelo que, neste contexto, se exige um ainda maior cuidado nas informações transmitidas ao consumidor (o que aqui não se verificou).
O mesmo se dirá quanto ao que apelidam de cláusula penal que não foi minimamente abordada aquando da celebração do contrato e, de todo o modo, não basta dizerem que tiveram um “prejuízo efetivo após a venda do bem locado” sem comprovar minimamente o que dizem.
Assim, não aceitamos nem a existência de qualquer cláusula penal nem tão pouco o valor que lhe atribuíram.
Para finalizar, reiteramos que se permanecerem na intenção de preencher a Livrança, este será claramente abusivo e serão responsabilizados por todos os danos que nos causarem.
E mais. Se a tiverem já preenchido, todos os prejuízos, inclusive e além domais, os judiciais e os com honorários de advogados que teremos de contratar, vos serão imputados.
(…)”
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1) Da nulidade do despacho saneador-sentença, por dispensa da audiência prévia.
Por despacho de 10/12/2020, entendendo que o estado dos autos já lhe permitia conhecer do mérito da causa, nos termos do disposto nos artºs 593º/1, 591º/1 al. d), 595º/1 al. b) e 597/1 al. b) todos do CPCivil e atento o dever de gestão processual e o princípio da adequação formal previstos nos artºs 6º/1 e 547º ambos do CPCivil, o Mmº Juiz a quo ordenou a notificação das partes para, em 10 dias, se pronunciarem quanto à dispensa de audiência prévia e à prolacção de saneador-sentença.
Nessa sequência e enquanto a exequente/embargada declarou prescindir da realização de audiência prévia, os embargantes entenderam que o estado dos autos não permitia que fosse proferida sentença sem a realização de prévio julgamento com produção de prova.
Todavia, o T. de 1ª instância entendeu dispensar a realização de audiência prévia e proferir despacho saneador-sentença, neste argumentando nos termos seguintes:
«Conforme resulta do despacho anterior, as questões a decidir nos autos são meramente de direito, não implicando qualquer produção de prova, sendo certo que nunca seria em sede de audiência prévia que iria ter lugar a mesma.
E não seria pela realização da audiência prévia que o Tribunal ficaria convencido da necessidade da realização da audiência de julgamento para produção de prova.
Acresce que as questões em causa nos autos já se encontram suficientemente debatidas em sede de articulados, pelo que, não obstante, a oposição dos embargantes, ao abrigo dos princípios da gestão processual e adequação formal plasmados nos artigos 6º e 547º do Código de Processo Civil, dispenso a realização da audiência prévia».
Os embargantes não concordam com esta tomada de posição por entenderem que, estava completamente vedado ao T. a quo dispensar a audiência prévia, ao abrigo do disposto no artº 597º do CPCivil, por falta de um pressuposto exigido para o efeito, qual seja, o valor da acção ser inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação e também porque resulta da conjugação dos artºs 591º nº 1 al. b) e 593º nº 1 “a contrario” do CPCivil, que tal dispensa não pode ocorrer quando o juiz se proponha conhecer do mérito na fase do saneador.
Concluem, assim, que tal dispensa acarreta a prática de um acto que conduz à nulidade do saneador-sentença.
Vejamos se lhes assiste razão.
Nos termos do artigo 591.º do CPCivil, concluídas as diligências do preceituado no nº 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respectivas datas.
Extrai-se, assim, do teor deste normativo legal que, a regra é a realização da audiência prévia.
O artigo 592.º do mesmo diploma legal enuncia os casos em que a audiência prévia não tem lugar.
Por sua vez, o artigo 593.º do CPCivil refere os casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
Por isso, iremos analisar se, a situação dos autos se enquadra no âmbito deste último preceito legal, o qual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, quando a audiência prévia só tenha por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º supra elencadas.
Ou seja, o que se retira do teor deste preceito legal é que, quando a acção houver de prosseguir, isto é, quando não deva findar no despacho saneador pela procedência de alguma excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.
O objectivo é facultar às partes uma última oportunidade para exporem os seus argumentos de modo a poder convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes - neste sentido, cfr. ac. do TRP de 27/09/2017, pº nº 136/16.6T8MAI-A.P1, consultável em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.
No caso dos presentes autos, o que se extrai é que o despacho saneador-sentença recorrido para além de ter julgado não verificada a excepção de ineptidão do requerimento executivo invocada pelos embargantes, julgou improcedentes os presentes embargos de executado deduzidos pelos embargantes e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução, ou seja, a presente acção findou aqui, não prosseguindo para julgamento com produção de prova.
Nesta medida, entendemos que, o despacho que dispensou a realização da audiência prévia, não deveria ter sido proferido, por não estar verificada nenhuma das situações em que era legalmente permitido dispensar a realização desse acto processual, a que acresce o facto de o próprio Tribunal a quo, ter, de certa forma, induzido as partes em erro, já que se, por um lado, refere estar em condições de conhecer de mérito (não dizendo se, no todo ou em parte) invocando o disposto nos artºs 591º nº 1 al. d) e 595º nº 1 al. b) ambos do CPCivil, por outro, faz referência a preceito legal, que claramente se refere às acções que hão-de prosseguir os seus termos (como é o caso do artº 593º nº 1 do CPCivil) e a preceito legal que se refere a acções de valor não superior a metade da alçada da Relação (artº 597º nº 1 al. b) do CPC), quando claramente não é o caso dos autos (a presente acção tem o valor de € 22.487,35).
Na verdade, o disposto no artº 591º nº 1 al. b) do CPCivil é expresso e taxativo ao dispor que é convocada audiência prévia quando o Tribunal deva apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (neste sentido, vide ac. deste TRP de 12/11/2015, pº nº 4507/13.1TBMTS-A.P1, consultável em www.dgsi.pt).
Mas, mesmo admitindo que, as questões a decidir já estariam suficientemente debatidas em sede de articulados e que, por via da ordenada notificação às partes para se pronunciarem, por escrito, quanto à dispensa de realização de audiência prévia e à prolacção de saneador-sentença, sempre o Mmº Juiz a quo deveria ter fundamentado de forma suficiente este seu despacho - o que não fez - só o vindo a fazer já no despacho saneador-sentença.
Em nosso entender, o Mmº Juiz a quo não poderia escudar-se na invocação dos princípios de gestão processual e adequação formal, para dispensar a realização de audiência prévia, quando esta imperiosamente, neste caso concreto, deve ser realizada, até porque, como se disse, a lei permite expressamente que se conheça imediatamente do mérito, na própria audiência prévia.
Na verdade, como lapidarmente se refere no citado ac. deste TRP de 27/09/2017, «estamos perante uma situação em que o legislador regulou de forma pensada e pormenorizada a tramitação processual, estabelecendo diferenças entre os actos a praticar consoante a situação verificada e sopesando de forma expressa o caso de o passo que se segue ser apenas o do conhecimento do mérito. Acresce que a solução legal de impor a realização da audiência (…), serve o objectivo coerente e justificado de levar às últimas consequências o princípio do contraditório, explorando as virtualidades da discussão oral entre os intervenientes dos argumentos pelos quais a decisão deve ser uma ou outra, sendo difícil de conceber um processo equitativo que prescinda dessa discussão oral sem, ao menos, a substituir pela possibilidade de apresentação de alegações escritas».
In casu, após notificação, a exequente, ora embargada limitou-se apenas a dizer que prescindia da realização da audiência prévia, ou seja, não produziu alegações escritas e, os embargantes manifestaram, desde logo, a sua oposição, à não realização da mesma, tendo, mesmo assim, o Mmº Juiz a quo persistido, na sua intenção de não realizar a mesma, por entender que, as questões a decidir são meramente de direito, não implicando a produção de prova.
No entanto, atentas as questões elencadas no despacho saneador-sentença (1 - Da ineptidão do requerimento executivo; 2- Do cumprimento pela exequente dos deveres de comunicação e informação das cláusulas contratuais e as consequências no cálculo da quantia exequenda e da ausência de entrega da cópia do contrato; 3 - Da violação do pacto de preenchimento da livrança exequenda e da falta de interpelação da sociedade executada), consideramos que, não podem as mesmas ser consideradas muito simples e que a decisão sobre as mesmas seja pacífica na jurisprudência e na doutrina.
Ou seja, em nosso entender, quando se pretende conhecer (no todo ou em parte) do mérito da causa, a audiência prévia só pode ser dispensada se, por um lado, no despacho que ordenou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à dispensa de tal formalidade processual, o T. a quo tivesse expressamente mencionado o sentido da sua posterior decisão, de modo a acautelar decisões-surpresa (artº 3º nº 3 do CPC) e, por outro, se ambas as partes estivessem de acordo quanto à prescindibilidade da mesma, o que, não aconteceu nem num caso nem noutro.
Temos assim que, a não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 195/1.º do Código de Processo Civil), a qual podia ser arguida - como foi - em sede de recurso e conduz à anulação do despacho saneador-sentença.
Nestes termos, procede o recurso interposto no tocante à nulidade processual invocada pelos embargantes/recorrentes, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões recursivas.
V – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho saneador-sentença recorrido, a fim de ser sanada a nulidade processual decorrente da falta de realização de audiência prévia.
Custas pela recorrida, atento o seu decaimento total.
(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)
Porto, 12/07/2021
Maria José Simões
Abílio Costa
Augusto Carvalho