Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
471/15.0T9AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA
LEI DO CIBERCRIME
FACEBOOK
NULIDADE
Nº do Documento: RP20160413471/15.0T9AGD-A.P1
Data do Acordão: 04/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 996, FLS.46-53)
Área Temática: .
Sumário: I – O documento obtido através de recolha de prova em suporte eletrónico consubstanciando uma impressão de uma publicação realizada pelo arguido no mural do seu perfil de facebook, que opera através da internet e no âmbito de um sistema informático é regulado pela lei do cibercrime.
II – Tal publicação não reveste o caracter de comunicação semelhante a correio eletrónico na medida em que foi colocado pelo próprio num perfil, publico, acessível, livre e indiscriminadamente a qualquer pessoa que tenha perfil nessa rede social.
III – Todavia a sua junção aos autos está sujeita aos mecanismos do artº 16º 1 e 3 da Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15/9).
IV - Caso tal documento contenha dados que sejam susceptiveis de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam por em causa a privacidade de uma pessoa, devem ser apresentados, sob pena de nulidade, ao juiz que decidirá da sua junção tendo em conta os interesses do caso concreto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 471/15.0T9AGD-A.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

B, I.P.S.S.” e C…, apresentaram queixa, junto do DIAP de Águeda, Comarca do Aveiro, contra D…, pela prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, e outro de difamação, p.p., respectivamente, pelos Artsº 187 nsº1 al. a) e 2 e 180 nº1, ambos do C. Penal.
Alegaram, para tanto, que esta, ex-funcionária daquela instituição, havia colocado na sua página de Facebook uma publicação, onde, alegadamente, fazia afirmações inverídicas que ofenderam o bom nome e a reputação daqueles, tendo juntado aos autos o print dessa publicação, bem como a lista de “amigos” que haviam colocado um “gosto” na mesma, para além de um comprovativo de que alguém a partilhou e dos respectivos comentários por ela suscitados.

Na sequência dessa queixa, o MP requereu a apreensão no processo de alguns daqueles elementos - print dessa publicação, comprovativo da sua partilha e comentários efectuados – e que a mesma fosse considerada válida para os autos, nos termos do Artº 16 nº3 da Lei do Cibercrime, por entender que, apesar de o seu conteúdo ser susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam por em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiros, se tratar de elementos com relevância probatória atentos os crimes indiciados.
Tal pretensão foi judicialmente indeferida, pela Instância Central de Águeda, 2ª Secção de Instrução Criminal, J2, mais se tendo determinado a nulidade da prova assim obtida e o consequente desentranhamento dos referidos elementos dos autos e a sua posterior destruição, por despacho que gera o presente recurso e que reza do seguinte modo (transcrição):

Resulta dos autos, nomeadamente não deu o seu consentimento para a junção aos autos das mensagens cujo registo e transcrição, sendo certo que a ofendida também não era interveniente nas comunicações em causa.
A junção aos autos de comunicações contendo conversações efectuadas através de redes sociais, no caso através de Facebook, implica necessariamente a recolha de prova em suporte electrónico, nomeadamente «dados de tráfego» e «dados de conteúdo», pelo que é aplicável o disposto nos artigos 15°, 16°, 17° e 18° da Lei º 109/2009 de 15-9.
Especificamente quanto à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, prevê o artigo 17° que a sua junção aos autos depende de despacho do Juiz competente (sendo durante o Inquérito o Juiz de Instrução), exigindo-se o seu grande interesse para a descoberta da verdade material ou para a prova, aplicando-se o regime da apreensão de correspondência previsto no CPP.
Mesmo a entender-se não terem as comunicações em causa natureza semelhante a correio electrónico e mesmo tratando-se de comunicações electrónicas acessíveis a todos os membros da referida rede social, sempre lhes seria aplicável o regime previsto no artigo 16º da mesma Lei por se tratar de dados íntimos que podem por em causa a privacidade do seu titular e de terceiros, exigindo-se, por isso, também a autorização pelo Juiz de Instrução da sua junção aos autos, sob pena de nulidade, ponderando-se os interesses do caso concreto - art. 16° nº3 da referida Lei 109/2009.
No caso dos autos não houve qualquer autorização prévia do Juiz de Instrução e não se mostra documentado nos autos o consentimento dos intervenientes nas comunicações.
Por outro lado, mesmo a considerar-se que estão verificados os elementos do crime de difamação em causa e não apenas ainda o exercício do direito de liberdade de expressão (o que não se concede sem mais) atentas as expressões e grau de lesão em causa os direitos de privacidade e o interesse da inviolabilidade das comunicações não deve ceder, pelo que não se admitiria a junção aos autos das comunicações em causa.
Face ao exposto determina-se:
1 - Não se autoriza a junção aos autos das comunicações constantes de fls. 7 e 12 a 17 dos autos - arts. 16° nº3 e 17° da Lei 109/2009 de 15-9 que, após trânsito, deverão ser desentranhadas dos autos.
2 - A nulidade da prova obtida através da junção aos autos das referidas comunicações, nos termos dos artigos 16° n03, 17° da Lei 109/2009 e 179° nº1 do CPP, devendo o expediente em causa ser destruído após trânsito do presente despacho.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o B… – Centro de Apoio Social Cultural e Recreativo, I.P.S.S., já constituído assistente, com as seguintes conclusões (transcrição) :

I. Nos presentes autos foi proferido despacho a determinar a não autorização da junção aos autos das comunicações constantes de fls. 7 e 12 a 17 dos autos, ao abrigo do disposto nos art.s 16º nº 3 e 17º da Lei 109/2009 de 15-9, bem como a nulidade da prova obtida através da junção aos autos das referidas comunicações, nos termos dos mesmos normativos e do disposto no art. 179º nº 1 do CPP, ordenando assim o subsequente desentranhamento e destruição, decisão de que se discorda.
II. A Lei 109/2009 de 15 de Setembro, tipifica nos artigos 3º a 8º, uma série de crimes contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade dos sistemas de computadores, crimes referentes aos conteúdos e crimes cometidos por via da informática, e nos artigos 11º a 19º prevêm um regime especial de preservação, pesquisa, apreensão e intercepção de comunicações relativas ao Cibercrime e à recolha de prova em suporte electrónico.
III. No entanto, não está em causa nos autos factualidade relativa a tal tipo de criminalidade, já que o uso de meio informático não surge como elemento objectivo do tipo de crime em questão, nem está em causa a integridade do sistema informático.
IV. E também o documento de fls. …, não é enquadrável no âmbito do referido diploma, já que igualmente não é uma questão de preservação, pesquisa, apreensão e intercepção de comunicações relativas ao Cibercrime, nem de recolha de prova em suporte electrónico, com certificação nomeadamente de dados informáticos ou de tráfego, como origem da comunicação, destino, hora e data da publicação, entre outros.
V. O fundamento do despacho recorrido de as informações em causa poderem ter a natureza de correio electrónico, ou estarem em causa dados íntimos, sempre salva melhor e seguramente mui douta opinião, não está correcto, não cabendo assim o documento/impressão de fls. … no regime previsto na Lei 109/2009 de 15 de Setembro, nem no no art. 179º nº 1 do CPP, estando antes em questão no caso vertente uma mera reprodução mecânica – com o valor probatório que a lei lhe atribui (artigo 368º C. Civil), e de apreciação livre pelo tribunal – de um texto publicado pela Participada no Facebook de modo público, cópia obtida sem qualquer intromissão ou ingerência na vida privada/íntima daquela, e sem qualquer violação de correspondência ou de outros meios de comunicação privada, pelo que deve ser admitida a respectiva junção aos autos.
VI. A decisão proferida nos presentes autos viola o disposto nos artigos art.s 16º nº 3 e 17º da Lei 109/2009 de 15 de Setembro, e 179º do CPP.
TERMOS E FUNDAMENTOS, CONJUNTAMENTE COM OS MAIS COM QUE MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, EM QUE SE REQUER QUE SEJA, POR VOSSAS EXCELÊNCIAS DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E CONSEQUENTEMENTE DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, MANTENDO-SE O DOCUMENTO DE FLS. … JUNTO AOS AUTOS, ASSIM SENDO FEITA ACOSTUMADA JUSTIÇA.

C – Respostas ao Recurso

Quer o M.P., quer o arguido, responderam a este recurso.

C.1. Resposta do M.P.

O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, manifestando-se pela sua procedência, ainda que por razões diversas do ali invocado, concluindo da seguinte forma (transcrição):

1) O enquadramento legal da junção aos autos dos documentos em causa é a Lei do Cibercrime, uma vez que aqueles foram obtidos através de recolha de prova em suporte electrónico, tratando-se de uma impressão de uma publicação efectuada pela arguida no mural do seu perfil de Facebook, uma rede social que funciona através da internet, a qual opera no âmbito de um sistema informático;
2) Ao invés do referido pelo Meritíssimo JIC no despacho a quo, não tem aplicação ao caso o disposto no art. 17° da Lei do Cibercrime, porque a publicação em causa não tem manifestamente, o carácter de comunicação semelhante ao correio electrónico, como aconteceria no caso de a arguida ter divulgado o seu conteúdo por mensagem do Facebook, tratando-se, ao invés, de um texto que publicou no seu mural, num perfil público, a que qualquer pessoa que tenha igualmente um perfil de Facebook tem acesso, podendo lê-lo, comentá-lo e até partilhá-lo;
3) Não se vislumbra aqui qualquer necessidade de tutela da privacidade das comunicações, tutela essa, aliás, que se revela despicienda e desproporcionada quando é a própria emitente dessa comunicação quem prescinde dessa privacidade ao publicar o referido texto numa página de perfil público de uma rede social:
4) Contudo, conforme resulta da queixa apresentada pela própria assistente, apesar da referida publicação do Facebook já ter estado disponível para o público em geral, entretanto a arguida restringiu o seu acesso apenas aos "amigos" daquela rede social, onde a assistente não se inclui, pelo que a junção válida dos documentos juntos pela assistente tem que ser feita ao abrigo do disposto no art. 16º, nº 3, da Lei do Cibercrirne;
5) Dispõe o aquele 'preceito que, caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos. que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto:
6) Feita essa ponderação, o Meritíssimo JIC não admitiu, no seu despacho a quo, a junção daqueles documentos por considerar que, ainda que se entenda estarem verificados os elementos do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, atentas as expressões em causa e o grau de lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma, os direitos de privacidade e o interesse da inviolabilidade das comunicações não deve ceder:
7) Ora, a publicação em causa foi feita numa rede social e, ao menos numa fase inicial, acessível a qualquer pessoa que fizesse parte da mesma rede, sendo que só em momento posterior a arguida reservou o seu conteúdo, tornando-a acessível apenas aos "amigos" do Facebook;
8) Sem prejuízo de se entender que o conteúdo da publicação, que constitui um desabafo relativo à sua ex-entidade empregadora revela dados pessoais ou íntimos, o mesmo acontecendo com os respectivos comentários efectuados pelas pessoas que a visualizaram, na ponderação de interesses a fazer quanto à junção daqueles documentos não pode deixar de se ter em consideração o facto de ter sido a própria emitente da publicação a prescindir, ainda que num momento inicial, da sua privacidade;
9) Entende-se que, apesar da publicação e respectivos comentários revelarem dados de natureza íntima ou privada, a sua junção aos autos justifica-se para prova do crime que a assistente imputa à arguida, mesmo que subsistam dúvidas quanto à verificação daquele crime e ao grau de lesão dos bens jurídicos por ele tutelados;
10) Não sendo a inexistência de crime evidente, a ponderação de interesses a realizar pelo Meritíssimo JIC quanto à junção de uma determinada prova, que constitui, no caso concreto, o chamado "corpo de delito", tem que ser especialmente flexível, sob pena de a prova em causa pode perder-se definitivamente, assim prejudicando o interesse da assistente em ver exercida a acção penal;
11) Não foi violado c disposto no art. 17º da Lei do Cibercrime e 179º do Código de Processo Penal, mas foi violado o disposto no art. 16º, nº 3, da Lei do Cibercrime.
Nestes termos, deve a douta decisão sob recurso ser revogada e substituída por outra que determine a junção aos autos dos documentos juntos pela assistente, ainda que por fundamentos parcialmente diversos dos por esta invocados, assim se fazendo Justiça.

C.2. Resposta do arguido

Também o arguido respondeu ao recurso do assistente, pugnando pela sua improcedência e concluindo do seguinte modo (transcrição):

A - A Recorrente pretende ver alterado o despacho que decidiu não admitir e mandar desentranhar dos autos e destruir elementos retirados de comunicações constantes do processo a folhas. 7 e 12 a 17ª.
B - A recorrente alega que os documentos em causa não se encontram no enquadramento legal vertido nos artigos 16°, nº 3 e 17.° da Lei 109/2009 de 15 de Setembro de 2009.
C - A Recorrida não concorda com a alegação da recorrente subscrevendo, a douta decisão do Tribunal.
D - Na decisão proferida não está em causa qualquer violação das disposições legais contidas nos artigos 16.° n.º 3 e 17.° da Lei 109/2009 de 15 de Setembro e artigo 179.° do Código de Processo Penal.
E - As comunicações juntas aos autos pela assistente foram retiradas da sua página pessoal do "Facebook".
F- A recolha da prova foi feita em suporte eletrónico, pelo que, lhe é aplicável o disposto no artigo 15.°; 16.°, 17.° e 19 da Lei 109/2009 de 15 de Setembro de 2009.
G- A publicação de facebook encontra-se inserida na esfera pessoal e privada da Recorrida, dado que, foi publicada na sua página pessoal da citada rede social.
H- A referida publicação encontrava-se restringida ao seu grupo de amigos.
I - A Assistente só através do acesso a uma página pessoal de um amigo da Recorrida é que pode ter tido conhecimento do referido "post".
J - O Tribunal considerou, e bem, tratarem-se de dados íntimos que podem por em causa a privacidade do seu titular e de terceiros.
L - Os dados íntimos ali constantes colocam em causa uma intromissão na vida privada/intima daqueles que lá os colocam.
M - A junção desses dados pessoais aos autos só poderia ter ocorrido com prévia autorização, e sempre ponderando-se o interesse do caso concreto.
N - Deve ser mantida a douta decisão proferida.
O - Deve manter-se a não autorização da junção aos autos das comunicações constantes de fls. 7 e 12 a 17 dos autos, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º n.º3 e 17.º da Lei 109/2009 de 15 de Setembro.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, assim, a decisão instrutória.
Assim se fazendo a acostumada justiça.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmo Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso, embora por razões não inteiramente coincidentes com as aduzidas pelo recorrente.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foram apresentadas respostas.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente, quando solicita a revogação do despacho supra transcrito e a sua substituição por outro que mantenha nos autos os aludidos documentos.

B – Apreciação

Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, entende-se que o seu correcto entendimento se mostra vertido na resposta apresentada pelo M.P. da 1ª instância e que seguiremos de perto.
Entende a recorrente que a questão não se dirime pela denominada Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15/09), na medida em que a postagem efectuada pela arguida a sua página de Facebook constitui um mero documento, apreensível por qualquer pessoa, pelo que a assistente se limitou a extrair uma cópia do mesmo, não se tratando assim de uma questão relativa a criminalidade informática, ou recolha de prova em suporte electrónico, não sendo por isso o dito documento enquadrável para o conceito de comunicações alusivo naquela Lei.
Nessa medida, o print por si feito traduz-se num mero documento, com o valor probatório legalmente atribuído a qualquer outro e sujeito à livre apreciação do tribunal.
Crê-se, todavia, que assim não é, na medida em que parece evidente que o documento em causa foi obtido através de recolha de prova em suporte electrónico, consubstanciando uma impressão de uma publicação realizada pela arguida no mural do seu perfil de Facebook, rede social que, somo é sobejamente sabido, opera através da internet e no âmbito de um sistema informático.
Daí que não seja possível afirmar, como faz o assistente, que se limitou a uma mera impressão da dita publicação sem ter tido intervenção num sistema informático, pois, como bem nota o M.P. junto do tribunal recorrido, “…bastaria imprimir um e-mail, ainda que não lido pelo destinatário, para que o mesmo adquirisse a natureza de mero documento e perdesse a natureza de correio electrónico, com especial tutela, semelhante à da correspondência no Código de Processo Penal”, o que, manifestamente, não é contemplável pela Lei do Cibercrime, que estabelece as disposições penais materiais e processuais relativas à cooperação internacional em matéria penal, no domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico.
No seu Artº 11, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação das disposições processuais", plasma-se que:
1 - Com excepção do disposto nos artigos 18.° e 19.°, as disposições processuais previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes:
a) Previstos na presente lei;
b) Cometidos por meio de um sistema informático: ou
c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico", sendo que as disposições seguintes dizem respeito a meios de obtenção de prova, designadamente, a "preservação expedita de dados", a "revelação expedita de dados de tráfego", a "injunção para apresentação ou concessão de acesso a dados", a "pesquisa de dados informáticos", a “apreensão de dados informáticos", e a "apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante".
Ora, tratando-se de uma situação em que o meio de prova utilizado foi o acesso a um suporte electrónico, e conclui-se, ao contrário do afirmado pelo assistente, que a matéria em causa deve ser regulada pela referida Lei.
Todavia, apesar dessa conclusão, não assiste razão ao tribunal recorrido na decisão que tomou, de não autorizar a junção dos autos desses elementos probatórios.
Como se alcança da sua leitura, o despacho em crise assenta no pressuposto que os escritos em causa foram obtidos através da recolha de dados informáticos armazenados sem observância do regime previstos nos Artsº 16 e 17, ambos da Lei do Cibercrime e com violação da privacidade do respectivo titular, o que importaria acautelar.
O referido Artº 17 estipula que estando em causa mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante encontrados, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no CPP.
A publicação em causa, todavia, não tem, manifestamente, essa natureza, ou seja, não reveste o carácter de comunicação semelhante a correio electrónico, como aconteceria, por exemplo, se a arguida tivesse divulgado o seu conteúdo por mensagem do Facebook.
Ao contrário, a arguida efectuou essa publicação num perfil público, acessível, livre e indiscriminadamente, a qualquer pessoa que tenha também um perfil de Facebook, que assim o podia ler, comentar e partilhar, assemelhando-se, por essa via, numa correcta analogia feita pelo assistente, a um qualquer artigo de jornal.
Na verdade, quando alguém coloca um post na sua página de Facebook, de forma livremente acessível para qualquer utilizador daquela rede social, sem sequer o restringir ao grupo dos seus “amigos” está, necessariamente, por vontade própria, a querer partilhar esse texto com quem quer que o venha a ler, prescindindo assim da sua privacidade relacionada com o conteúdo da mensagem que transmita.
Nessa medida, como bem refere o M.P. na sua resposta ao presente recurso, “…não se vislumbrando aqui qualquer necessidade de tutela da privacidade das comunicações.
Tutela essa, aliás, que se revela despicienda e desproporcionada quando é a própria emitente dessa comunicação quem prescinde dessa privacidade ao publicar o referido texto numa página de perfil público de uma rede social.”
Nessa medida, não havendo lugar à aplicação do Artº 17 da Lei do Cibercrime – por a publicação em causa não revestir natureza semelhante a correio electrónico e ter estado acessível a todos os membros da referida rede social, como aliás, implicitamente, é reconhecido no próprio despacho recorrido – entende-se contudo que a sua junção aos autos está sujeita ao mecanismo integrado dos nsº1 e 3 do Artº 16 da mesma Lei.
Dispõe o n°1 deste preceito que, quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos, estipulando, por o seu nº3 que caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
Ora, a este nível é que também não se concorda com o despacho recorrido, quando este, ponderados os interesses em jogo – a honra e consideração dos ofendidos por um lado, e os direitos de privacidade e a inviolabilidade das comunicações, por outro – entendeu que estes últimos deviam prevalecer sobre os primeiros.
Entram aqui as considerações já efectuadas sobre a forma como foi levada a cabo a publicação em causa, o lugar escolhido para a mesma e a circunstância, assaz relevante, de, pelo menos num primeiro momento, ter estado disponível para qualquer pessoa com acesso ao Facebook, que é, como se sabe, a rede social com mais utilizadores no nosso país e em todo o mundo, que assenta na publicação e partilha de comentários, fotos, links, etc e que é utilizada precisamente com esse intuito, de divulgação exponencial desses mesmos conteúdos.
Ora, referindo o assistente na sua queixa que a arguida, entretanto, já havia restringido o acesso à referida publicação aos seus "amigos" daquela rede social, onde aquele não se inclui, julga-se verificada a previsão normativa do nº3 do citado Artº 16 da Lei do Cibercrime, no sentido em que, podendo tal publicação, bem como, os comentários que à mesma foram efectuados por várias pessoas, revelar dados pessoais ou íntimos de quem a fez ou assim interveio, a ponderação de tais interesses terá naturalmente de ceder pela necessidade de junção dos ditos elementos para a prova dos crimes que são imputados pelo assistente à arguida, não se olvidando a já referida circunstância de ter sido a própria emitente da publicação a prescindir na totalidade e ainda que num momento inicial, da sua esfera pessoal e privada, não podendo assim esperar qualquer tutela penal a este nível.
Como muito acertadamente refere o M.P. na sua resposta ao recurso:
“Em suma, entende-se que, apesar da publicação e respectivos comentários revelarem dados de natureza íntima ou privada, a sua junção aos autos justifica-se para prova do crime que a assistente imputa à arguida.
Isto mesmo que subsistam dúvidas quanto à verificação daquele crime e ao grau de lesão dos bens jurídicos por ele tutelados, A menos que a inexistência de crime fosse evidente (o que não acontece no caso concreto), a ponderação de interesses a realizar pelo Meritíssimo JIC quanto à junção de uma determinada prova, que constitui, no caso concreto, o chamado "corpo de delito", tem que ser especialmente flexível. De outra forma, a prova em causa pode perder-se definitivamente, assim prejudicando o interesse da assistente em ver exercida a acção penal.
Ou seja, não só se entende que nessa ponderação de interesses o direito de privacidade da arguida ficou diminuído, atenta a sua prévia exposição, por sua iniciativa, como além do mais a junção daqueles documentos se revela essencial para a prova dos factos denunciados e que a assistente considera integrarem a prática do crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa colectiva.”
A prova trazida aos autos pela assistente não foi obtida por meios proibidos, mas tem que ser acautelada, nos termos do Artº 16 nº3 da Lei do Cibercrime, devendo-se determinar a sua apreensão, ao abrigo da citada norma, por se entender, que apesar de o seu conteúdo ser susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam por em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiros, se tratar de elementos com relevância probatória atentos os crimes indiciados.
Não tendo assim procedido, mostra-se violado o estatuído nessa disposição legal, devendo por isso a decisão sob recurso ser revogada e substituída por outra no sentido apontado.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso - ainda que por razões diferentes das ali sustentadas - e em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine a apreensão nos autos dos documentos juntos pelo assistente a Fls. 7 e 12/17 do processo principal.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Porto, 13 de Abril de 2016
Renato Barroso
Vítor Morgado