Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
805/18.6PDVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE FURTO
CONSUMAÇÃO
FURTO
TENTATIVA
Nº do Documento: RP20210623805/18.6PDVNG.P1
Data do Acordão: 06/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Existe alguma clivagem doutrinária e jurisprudencial a propósito do momento da consumação do furto, que se traduz em três posições fundamentais:
II - a tese da posse instantânea - doutrina tradicional - que se basta com a consumação formal, sendo suficiente que a coisa subtraída passe para a esfera do poder do agente criminoso para se considerar que ocorreu a efetiva lesão do interesse tutelado, não sendo necessário verificar-se o exaurimento total do plano do agente, nem carecendo a detenção da coisa de qualquer período temporal;
III - a tese da posse pacífica da coisa apropriada exigindo a detenção em pleno sossego ou estado de tranquilidade, encabeçada por Eduardo Correia em reação ao primeiro entendimento citado;
IV - a tese da tendencial estabilidade, surgida mais recentemente, que centra a questão na perda do domínio de facto por parte do anterior fruidor, podendo dizer-se que, em regra, «a subtração se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infração, com tendencial estabilidade, isto é, não pelo facto de ela ter sido removida do respetivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito».
V - Deve ser seguida esta terceira orientação, pois é a perda da possibilidade de domínio de facto do prévio detentor sobre a coisa que justifica a consideração da consumação do crime de furto.
VI - No caso em apreço, não chega a consumar-se o crime de furto, pois o arguido, embora tenha logrado extrair os depósitos de dinheiro de quatro máquinas de “vending” e o tenha guardado dentro da mala de que estava munido, acabou por esconder esta mala e respetivo conteúdo no balcão da sala onde se encontrava quando se apercebeu da presença de um vigilante; ou seja, o arguido, embora removendo e ocultando o bem, manteve a quantia monetária aludida na área de intervenção do legítimo possuidor, não logrando alcançar, por tal razão, um efetivo domínio de facto sobre a coisa nem dela podendo usufruir; assim sendo, a conduta que protagonizou não denuncia a prática de factos que revelem a existência de condições para uma "tendencial estabilidade" da efetiva transferência do domínio de facto da coisa do anterior fruidor para o agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 805/18.6PDVNG.P1
Secção Criminal
Conferência
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Comarca: Porto
Tribunal: Vila Nova de Gaia/Juízo Central Criminal-J2
Processo: Comum Colectivo n.º 805/18.6PDVNG
Apensos n.ºs 789/18.0PDVNG, 801/18.3PDVNG, 61/19.9T9VNG e 57/19.0GFVNG

Arguidos: B… (Recorrente)
C…
Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
a) Por acórdão proferido e devidamente depositado a 25 de Fevereiro de 2021, no âmbito dos autos supra referenciados, foram absolvidos os arguidos C… e B…, ambos com os demais sinais dos autos, o primeiro da prática de 2 (dois) crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. e) e f), do Cód. Penal e, o segundo, da prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punível pelo art. 191º, do mesmo diploma legal, que lhes estavam imputados, e foram condenados os arguidos:
a) C… na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, em resultado das seguintes penas parcelares:
2 (dois) anos de prisão pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. e) e f), do Cód. Penal (apenso n.º 801/18.3PDVNG);
1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos arts. 22º, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), do Cód. Penal (processo principal)
b) B…, com os demais sinais dos autos, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. e) e f), do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 2 (dois) anos.
c) Inconformado, o arguido B… interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição sem destaques/sublinhados e rectificação de gralhas ortográficas)
1 - O Ministério Público deduziu acusação e requereu julgamento em processo comum, perante Tribunal colectivo, imputando ao Recorrente a prática em concurso efectivo, de 1 (um) crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º n.º 1 e 204º n.º 1 als. e) e f) do Código Penal em co-autoria e na forma consumada de 1 (um) crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art. 191º do Código Penal, em autoria imediata e na forma consumada.
2 - O Arguido apresentou contestação, oferecendo merecimento dos autos.
3 - Foi realizado o respectivo julgamento e o aqui Arguido foi absolvido do crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art. 191º do Código Penal e foi condenado pela prática, em co-autoria de 1 (um) crime de furto qualificado consumado, previsto e punido pelos artigos 203º nº 1 e 204º nº 1 als. e) e f) ambos do Código Penal, na pena única de 10 (dez) meses de prisão suspensa na execução por 2 (dois) anos.
4 - Compete-nos agora, explicar o porquê da não conformação do Recorrente em relação ao decidido no Acórdão de que se recorre. Entendemos, pois, que a identificada decisão padece de vícios que versam: a Qualificação Jurídica e a Medida da Pena.
5 - DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA: Ao arguido vem imputada a prática do crime de furto qualificado na forma consumada, porém face à factualidade apurada, importa averiguar se o crime foi cometido sob a forma de tentativa ou não. A nosso ver entendemos que estamos perante um crime de furto qualificado na forma tentada.
6 - Pois, no caso sub judice, apesar de, no momento da prática dos factos, o arguido ter intenção de furtar a quantia que tinha retirado das máquinas de vending e pese embora tenha guardado essa mesma quantia no interior de uma pasta, a verdade é que, quando se preparava para se retirar do local com o dinheiro que não lhe pertencia, apercebeu-se da presença de um vigilante e nesse seguimento, escondeu a mencionada pasta, não logrando retirar a mesma para fora das instalações. Sendo posteriormente, tal quantia devolvida ao proprietário.
7 - Pugnamos que, mesmo que o aqui arguido tenha tido intenção de furtar o dinheiro, e mesmo que não tenha consigo tal objectivo por motivos alheios à sua vontade, a verdade é que, em termos práticos e objectivos, não chegou a apoderar-se efectivamente do dinheiro. Não lhe deu o uso que pretendia, na verdade não teve acesso real ao mesmo.
8 - Logo, podemos concluir que a sua conduta preenche os elementos subjectivos do tipo legal, mas não os objectivos.
9 - A este respeito, a doutrina tem-se dividido entre aqueles que defendem que basta a posse instantânea para a consumação do crime e os que consideram necessária a posse pacífica da coisa apropriada para se julgar cumprido o elemento subtração, tais como o Prof. Eduardo Correia, in “Direito Criminal, II”, pág. 44, nota 1: "Enquanto a coisa não está na mão do ladrão em pleno sossego não parece que possa dizer-se que haja consumação". Tese que acompanhamos.
10 - Destarte, recentemente, surgiu uma nova posição que centra a questão na perda do domínio de facto por parte do anterior fruidor. Posição defendida pelo Prof. José da Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, 1999, pág. 43": “a subtração traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa”.
11 - Também nesse sentido entende o Prof. Paulo Saragoça da Mata, in "Subtração de coisa móvel alheia - Os efeitos do Admirável Mundo Novo num crime 'clássico', in Liber Discipulorum para J. Figueiredo Dias”, p. 1026: “ (…) de um ponto de vista geral poderá dizer-se que a subtração se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infração, com tendencial estabilidade, isto é, não pelo facto de ela ter sido removida do respetivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito".
12 - Ora, também do ponto de vista desta tese intermédia, deve a conduta do arguido ser considerada no âmbito da tentativa, pois não ficou o proprietário da quantia em causa nos autos privada da mesma.
13 - Pelo que, podemos concluir que a posse instantânea não é suficiente para a consumação do crime.
14 - Face ao exposto, deve o aqui Recorrente ser condenado pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada.
(…)
Admitido o recurso, por despacho que se pode ver a fls. 393 do processo físico, respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência e manutenção do decidido com os fundamentos que sintetizou nas conclusões que se transcrevem:
1- A factualidade dada como provada nos pontos 6 a 11 do acórdão recorrido preenche os elementos típicos do crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203º nº 1 e 204º nº 1 als. e) e f) do Código Penal, pelo qual, o arguido foi corretamente condenado.
2- O crime de furto consuma-se quando o agente tira ou subtrai a coisa da posse do respetivo dono, contra a sua vontade, e a faz entrar na sua posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual ela se encontrava, não sendo necessário que o agente detenha a coisa em sossego e tranquilidade, bastando-se a lei com o facto do agente retirar a coisa da esfera patrimonial do seu legítimo proprietário, transferindo-a para si, passando a exercer a posse sobre a coisa, colocando-a na sua égide ou poder (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-2015; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/3/2015 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 27-11-2013, todos disponíveis in DGSI).
3- O arguido B… com a sua conduta preencheu os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de furto qualificado, na forma consumada e não tentada, pois que, subtraiu uma quantia em dinheiro- coisa móvel alheia; sem o conhecimento ou consentimento da proprietária daquele bem- a sociedade “Gertral”; fê-lo de modo sub-reptício, pois que, para o efeito se introduziu num local cujo acesso lhe estava vedado, fazendo-o de modo ilegítimo; apoderou-se da mencionada quantia que se encontrava fechada num recetáculo equipado com fechadura; entrou efetivamente na posse da mencionada quantia da qual se apoderou antes de ser detido, tanto assim, que a escondeu, subtraindo-a ao poder de facto do seu legítimo dono, quantia essa que só veio a ser recuperada posteriormente e na sequência da sua detenção.
4- A consumação do crime ocorreu de modo instantâneo, tendo o arguido adquirido um pleno e autónomo domínio sobre aquele dinheiro, não sendo exigível que este domínio de facto se tenha de operar em pleno sossego ou em estado de tranquilidade, como defende o Recorrente.
5- O arguido apoderou-se efetivamente do dinheiro, tanto assim, que decidiu escondê-lo para evitar a sua recuperação, tendo tido a posse do mesmo pelo tempo necessário a dar-lhe este uso, ou seja, a ocultação ao seu legítimo proprietário.
6- Nenhum reparo nos merece a qualificação jurídica dos factos dados como provados realizada pelo Tribunal a quo, pelo que, deverá manter-se a decisão recorrida e a condenação do arguido B… pela prática de um crime de furto qualificado, na forma consumada.
(…).
c) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso por entender que os factos apenas justificam a imputação do crime de furto na sua forma tentada, embora assinalando a existência de divergências que demonstrou com a citação de variada jurisprudência.
d) Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido.
e) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Assim, no caso sub judicio, as questões suscitadas são as seguintes:
a) Imputação criminosa na modalidade de tentativa
(…)

2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A) Factos Provados
Apenso 789/18.0PDVNG
1) No período compreendido entre as 01h15m e as 02h00m do dia 20 de Outubro de 2018, alguém cuja identidade não se apurou deslocou-se, de modo não concretamente apurado, às instalações onde funciona a sociedade “D…, SA”, situadas na Avenida …, …., …. - … …, Vila Nova de Gaia, decidido a assaltar tais instalações, retirando do seu interior bens que fossem de seu interesse, para dos mesmos se apoderar.
2) Nas instalações supramencionadas, existe um bar e uma cantina, explorados pela sociedade “E…, SA”, a qual instalou nesses locais, máquinas automáticas de vending de café, bebidas e snacks, que funcionam através da introdução de moedas e notas.
(…)
Apenso 801/18.3PDVNG
6) No dia 24 de Outubro de 2018, pelas 01h24m, os arguidos B… e C…, executando um plano entre ambos previamente gizado, deslocaram-se às instalações mencionadas em 1), decididos a retirar do seu interior bens que fossem de seu interesse, para dos mesmos se apoderarem.
7) Ali chegados, em execução do plano engendrado por ambos, enquanto o arguido C… permaneceu no exterior dessas instalações, junto da porta de entrada, a vigiar, o arguido B… através de método não concretamente apurado entrou nas referidas instalações e deslocou-se ao corredor que dá acesso à sala de convívio, local onde se encontram 6 (seis) máquinas de vending, propriedade da “E…, SA” e munido de uma barra de ferro - vulgo, pé de cabra – partiu a parte de uma dessas máquinas.
8) Após, o arguido B… forçou a porta de entrada da sala de convívio e entrou nessa divisão e, munido do mencionado pé de cabra, partiu parte de 4 (quatro) máquinas de vending, propriedade da “E…”, acima identificada, logrando retirar os depósitos de dinheiro que continham no total €405,80 (quatrocentos e cinco euros e oitenta cêntimos), que guardou dentro da mala que trazia consigo para repartir em partes iguais com o arguido C…, assenhoreando-se assim os arguidos da referida quantia monetária.
9) De seguida, quando o arguido B… se preparava para abandonar o interior das instalações para vir ao encontro do arguido C…, apercebeu-se da presença de um vigilante.
10) O arguido C… logrou fugir do local e o arguido B… escondeu a mala que continha o dinheiro subtraído no balcão da sala de convívio antes de ter sido retido por um vigilante e detido pela autoridade policial.
11) Ao atuarem como descrito, os arguidos agiram, sempre conjugando esforços e intentos, em execução de um plano entre si previamente elaborado, no propósito, concretizado, de se apoderarem do dinheiro que estava no interior daqueles receptáculos, sabendo que o mesmo não lhes pertencia, mas sim à ofendida “E…, SA” contra a vontade de quem atuaram.
Apenso 61/19.9T9VNG
12) No dia 24 de Outubro de 2018, pelas 7h40m, o arguido B…, regressou às instalações referidas em 1), com o objetivo de recolher a mala de computador e um isqueiro, que ali havia deixado horas antes.
13) Aí chegado, o arguido através de método não concretamente apurado acedeu ao interior daquelas instalações e dirigiu-se ao bar e, após ter encetado conversa com uma das funcionárias, abandonou o local.
14) Ao atuar da forma descrita, o arguido quis aceder, como acedeu, ao interior do referido bar para recuperar o isqueiro e a mala, sabendo que não tinha consentimento do proprietário das instalações.
Processo 805/18.6PDVNG
15) No dia 25 de Outubro de 2018, pelas 01h15m, o arguido C…, deslocou-se de modo concretamente não apurado, às instalações referidas em 1), decidido a assaltar tais instalações, retirando do seu interior bens que fossem de seu interesse, para dos mesmos se apoderar.
16) Aí chegado, o arguido através de método não concretamente apurado, acedeu ao interior das instalações e dirigiu-se em direcção ao edifício onde se situava o bar, local onde se encontravam as máquinas de vending de café, propriedade da referida E… munido de uma chave de fendas e um ponteiro em ferro, com o objetivo de se apoderar dos bens que fossem de seu interesse, o que não veio a suceder por entretanto ter sido retido por F…, pessoa que exercia naquele momento funções de vigilante.
17) O arguido atuou no propósito de se apoderar dos bens que estivessem no interior do referido edifício de valor superior a €102,00 que fossem do seu interesse, apesar de saber que ao mesmo não tinha qualquer direito, contra a vontade de quem atuou.
18) E tal propósito, não se concretizou, por motivos absolutamente alheios aos desejos do arguido.
(…)
24) Em todas as circunstâncias, agiram os arguidos de forma livre, voluntária e conscientes da ilicitude penal das suas condutas.
*
(…)
3. Da apreciação jurídica interessa, por seu turno, ponderar o seguinte:
«Dos crimes de furto
§1. O artigo 203º, n.º 1 do Código Penal prescreve que:
“1. Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O artigo 204º preceitua que:
“1- Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
e) Fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança;
f) Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar;
(…) ”
São elementos constitutivos do crime de furto:
a) Elemento objectivo: apropriação ou subtracção ilegítima de coisa móvel alheia
b) Elemento subjectivo que o agente tenha intenção de se apropriar ilegitimamente para si ou para outrem da coisa.
A definição de coisa tem de ir buscar-se aos conceitos de subtracção c de apropriação. Coisa é tudo aquilo que é susceptível de apropriação.
A tal acresce que a coisa objecto da acção do crime de furto tem que ser móvel, o que mais uma vez não pode ser definido através do conceito estabelecido na lei civil, mas antes como tudo aquilo que pode ser subtraído.
A coisa objecto do furto tem de ser alheia, ou seja, tem de ser uma coisa não pertencente ao autor do furto.
Quanto à problemática que envolve a consumação do crime de furto importa significar que este se tem por consumado quando o agente tira ou subtrai a coisa da posse do respectivo dono, contra a sua vontade, e a faz entrar na sua posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual ela se encontrava, não sendo necessário que o agente detenha a coisa em sossego e tranquilidade, bastando-se a lei com o facto do agente retirar a coisa da esfera patrimonial do seu legitimo proprietário, transferindo-a para si, passando a exercer a posse sobre a coisa, colocando-a na sua égide ou poder. Tal como ensina o acórdão do STJ, datado de 21 de Março de 1990, o furto tem-se por consumado no preciso momento em que a coisa furtada passa da esfera do seu legítimo detentor para a esfera do poder do agente (Col. Jur., Ano XV, tomo II, pág. 15 e 16 e Acórdãos do STJ processos nºs 747/98 da 3ª Secção e 46/99 da 3ª Secção, Ac. S.T.J. de 11.07.2007, Acs. R.L. de 29.01.2014 e de12.05.2015 disponíveis em www.dgsi.pt).
(…)
§2. Arguido C…
Atentos os elementos constitutivos do crime de furto acima expendidos e ao agir da forma descrita na factualidade apurada supra transcrita a conduta do arguido C… integra a prática dos seguintes ilícitos criminais:
a) Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º1, als. e) e f), em co-autoria e na forma consumada (apenso 801/18.3PDVNG);
b) Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º1, al f), em autoria imediata e na forma tentada (processo 805/18.6PDVNG).
*
Quanto ao crime de furto consumado (apenso 801/18.3PDVNG) o mesmo é qualificado na medida em que se verificam as circunstâncias qualificativas previstas nas als. e) e f) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal.
Determina, no entanto, o n.º 3 do art. 204º do Cód. Penal, que se na mesma conduta concorrerem mais do que umas das circunstâncias agravantes, só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
Assim, considera-se como circunstância relevante para qualificar o furto consumado a da al. e) do n.º 1 – objecto fechada em receptáculo equipado com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança – reservando-se a circunstância da al. f) do n.º 1 para a determinação da medida concreta da pena.
*
Quanto ao crime de furto tentado (processo 805/18.6PDVNG) deve o mesmo ser qualificado por ocorrer a circunstância prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 204º, do Código Penal na medida em que o arguido se introduziu ilegitimamente em estabelecimento industrial.
Porém, a factualidade apurada não permite concluir pela verificação da outra circunstância imputada ao arguido na acusação – n.º 1, al. e) do artigo 204º do Código Penal.
(…)
§3. Arguido B…
Atentos os elementos constitutivos do crime de furto acima explanados e ao agir da forma descrita na factualidade apurada supra transcrita a conduta do arguido B… integra a prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, als. e) e f), em co-autoria e na forma consumada (apenso 801/18.3PDVNG) de que vinha acusado.
*
A este respeito importa referir que o referido crime de furto é qualificado por se verificarem as circunstâncias qualificativas previstas nas al. e) e f) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal.
Contudo, conforme acima expendido, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 204º do Cód. Penal considera-se como circunstância relevante para qualificar o furto consumado a da al. e) do n.º 1 – objecto fechada em receptáculo equipado com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança – reservando-se a circunstância da al. f) do n.º 1 para a determinação da medida concreta da pena.
(…)
4. Apreciação do mérito
4.1 Da subsunção jurídica
Tendo sido condenado, em co-autoria material, pela prática de um crime de furto qualificado na forma consumada, sufraga o recorrente B…, estribado em citações doutrinárias e jurisprudenciais, que a factualidade apurada e descrita apenas possibilita a imputação de tal infracção na modalidade de tentativa visto que a posse instantânea não é suficiente para determinar a consumação criminosa.
Vejamos.
Consoante ressalta da síntese recursória e excertos decisórios supra transcritos, sendo a subtracção um dos elementos constitutivos do crime de furto - consubstanciada “na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo agente”[1] -, existe alguma clivagem doutrinária e jurisprudencial a propósito do associado momento da consumação da infracção que diverge em três posições fundamentais:
i) A tese da posse instantânea - doutrina tradicional - que se basta com a consumação formal, sendo suficiente que a coisa subtraída passe para a esfera do poder do agente criminoso para se considerar que ocorreu a efectiva lesão do interesse tutelado, não sendo necessário verificar-se o exaurimento total do plano do agente, nem carecendo a detenção da coisa de qualquer período temporal;
ii) A tese da posse pacífica da coisa apropriada exigindo a detenção em pleno sossego ou estado de tranquilidade, encabeçada por Eduardo Correia em reacção ao primeiro entendimento citado[2];
iii) A tese da tendencial estabilidade, surgida mais recentemente, que centra a questão na perda do domínio de facto por parte do anterior fruidor, podendo dizer-se que, em regra, “a subtração se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infracção, com tendencial estabilidade, isto é, não pelo facto de ela ter sido removida do respectivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito”[3].
Cremos que esta última posição é a dominante neste Tribunal da Relação do Porto e já a subscrevemos, como adjunta, no Acórdão proferido a 7/12/2018, no Proc. n.º 270/16.2PHMTS.P1, acessível in dgsi.pt., não se vislumbrando fundamento válido para a abandonar, porquanto é essa perda da possibilidade de domínio de facto do prévio detentor sobre a coisa que justifica a consideração da consumação do crime.
Por conseguinte, tendo presente que só com a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do fruidor se consuma a prática do crime e que, na presente hipótese, o arguido, embora tenha logrado extrair os depósitos de dinheiro de quatro máquinas de “vending” instaladas na sala de convívio da firma “D…, S.A.”, sita na Avenida …, em … – Vila Nova de Gaia, os quais continham a quantia monetária total de €405,80, montante que guardou dentro da mala de que estava munido, acabou por esconder a mala e respectivo conteúdo no balcão da sala onde se encontrava quando se apercebeu da presença de um vigilante e antes de por este ter sido retido e entregue à autoridade policial.
Quer isto dizer que o arguido, embora removendo e ocultando o bem, manteve a quantia monetária aludida na área de intervenção do legítimo possuidor não logrando alcançar, por tal razão, um efectivo domínio de facto sobre a coisa nem dela podendo usufruir.
Assim sendo, a conduta que protagonizou não denuncia a prática de factos que revelem a existência de condições para uma "tendencial estabilidade" da efectiva transferência do domínio de facto da coisa do anterior fruidor para o agente, inscrevendo-se a sua actuação no âmbito do crime de furto tentado, tendo que extrair-se as devidas consequências de tal modificação.
Importa ainda recordar que o crime em apreço foi cometido em co-autoria material pelos arguidos B… e C… e que a alteração da qualificação jurídica não advém de qualquer motivo estritamente pessoal do recorrente pelo que, nos termos do disposto no art. 402º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal, aproveita também ao segundo arguido que se havia conformado com o decidido.
Assim, cumpre retirar as devidas consequências da decretada alteração da qualificação jurídica, em sede de medida da pena já que a modificação, considerando as especiais exigências de prevenção especial advenientes das anteriores condenações sofridas pelos arguidos - 3 pelo recorrente B…, uma delas por infracção de natureza idêntica, e 14 pelo arguido C…, todas atinentes a crimes de furto, acrescendo a uma delas um crime de condução perigosa - não legitima a escolha de pena pecuniária.
(…)
III - DISPOSITIVO
Nestes termos e pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto julgar procedente o recurso do arguido B…, que aproveita ao co-arguido C…, nos termos previstos no art. 402º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, e:
1) REVOGAR a condenação dos arguidos pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. e) e f), do Cód. Penal (Proc. n.º 801/18.3PDVNG);
2) CONDENAR o arguido C… pela prática, como co-autor, de 1 (um) crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punível nos termos das disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, n.ºs 1 e 2, 73º, n.º 1, al. a), 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, al. e), do Cód. Penal (Proc. n.º 801/18.3PDVNG), na pena de 6 (seis) meses de prisão cuja execução se suspende pelo período de 1 (um) ano;
2) CONDENAR o arguido C… pela prática, como co-autor, de 1 (um) crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punível nos termos das disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, n.ºs 1 e 2, 73º, n.º 1, al. a), 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, al. e), do Cód. Penal (Proc. n.º 801/18.3PDVNG), na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão e, em cúmulo jurídico com a pena parcelar restante (1 ano de prisão), na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
3) MANTER quanto ao mais a decisão recorrida.

Sem tributação – art. 513º, n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal.
Notifique.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[4]]
Porto, 23 de Junho de 2021
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Cfr., Beleza dos Santos, in RLJ, n.º 58, pág. 252.
[2] A propósito afirma o autor in “Direito Criminal”, Tomo II, pág. 44, nota 1 que: "Enquanto a coisa não está na mão do ladrão em pleno sossego não parece que possa dizer-se que haja consumação".
[3] Paulo Saragoça da Mata, "Subtracção de coisa móvel alheia - Os efeitos do Admirável Mundo Novo num crime 'clássico' ", in Liber Discipulorum para J. Figueiredo Dias, pág. 1026.
[4] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.