Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
36/12.9TBRSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ÁGUAS PÚBLICAS
RESERVATÓRIOS PÚBLICOS
ÁGUAS SOBEJAS
Nº do Documento: RP2014011436/12.9TBRSD.P1
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: As águas dos reservatórios públicos têm natureza pública e, na falta de norma em contrário, são também públicas as sobras dessas águas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 36/12.9 TBRSD.P1
Tribunal Judicial de Resende – secção única
Recorrentes – B… e marido
Recorridos – C… e mulher
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Maria do Carmo Domingues
Desemb. José Bernardino de Carvalho

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – C… e mulher, D…, intentaram no Tribunal Judicial de Resende a presente acção declarativa com processo sumário contra B... e marido, E…, pedindo:
- Se declare que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio identificado em 1.º da petição inicial;
- A condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre o mencionado imóvel;
- Se declare que os réus são donos e legítimos proprietários do prédio descrito em 6.º da petição inicial;
- Se declare que os autores têm direito à água represada no tanque existente na parte acima da estrada da …, do prédio dos réus, descritos em 6.º e 12.º da petição inicial, desde quinta-feira ao pôr-do-sol até Domingo ao pôr-do-sol para rega do seu prédio identificado em 1.º da petição inicial, bem como às respectivas servidões de presa e de aqueduto, que se exercem nos termos descritos em 20.º a 40.º da petição inicial, servidões essas impostas ao prédio dos réus em benefício do prédio dos autores;
- A condenação dos réus a reconhecerem o direito dos autores à mencionada água, para rega do seu prédio, bem como às respectivas servidões de presa e de aqueduto, impostas ao prédio daqueles em benefício do prédio dos autores;
- A condenação dos réus a reporem a água a cair no tanque;
- A condenação dos réus a indemnizarem os autores pelos prejuízos causados.
Alegaram, em síntese, que são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, denominado "F…", e que lhes adveio por compra à ré B…, por escritura pública outorgada no dia 22.06.2001. Invocaram ainda a usucapião como legítimo título de aquisição do imóvel.
Mais alegaram que os réus são os e legítimos possuidores de um prédio misto, denominado "G…", que lhes adveio por sucessão hereditária do pai da ré mulher. Sendo que até 22.06.2001 os prédios de autores e réus pertenceram aos mesmos donos, numa primeira fase aos pais do ré mulher e, posteriormente, a esta, formando uma: unidade de cultura ou uma "dependência imobiliária", explorada pelos mesmos proprietários, durante mais de 20/ 30 ou 40 anos.
O prédio dos autores é irrigado, desde tempos imemoriais, de quinta-feira ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol pelas denominadas águas …, bem como pelas sobras de um depósito de águas pertencente ao Município …. Provindo as primeiras de uma nascente, existente no prédio imediatamente superior à parte do prédio rústico dos réus, que se situa acima da estrada municipal da …, designado por …, para cujo represamento os antepossuidores dos prédios que actualmente pertencem a autores e réus, mandaram fazer um tanque, na parte da G…, o qual foi intervencionado e rebocado em 2007, tendo o custo das obras sido repartido entre autores e réus, na proporção dos respectivos direitos à água represada no mesmo. Tendo os proprietários do prédio onde nasce a água … direito à mesma, apenas de domingo ao pôr-do-sol a segunda ao pôr-do-sol, e os antepossuidores dos prédios de autores e réus de segunda ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol, sendo de segunda ao pôr-do-sol a quinta ao pôr-do-sol para a G…, e de quinta ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol para a F….
Em 1986, o Município …, construiu um depósito de águas, para abastecimento da população …, beneficiando as casas de …, bem como dos caseiros de G… e do F… do abastecimento, ao domicílio, de água pública, passando a água que caía no pequeno depósito, a partir de 1986, a ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios actualmente dos autores e réus.
Pelo que desde 1986 até, pelo menos, Junho de 2011, que a totalidade das denominadas águas …, bem como as sobras do depósito camarário se destinam única, exclusiva e ininterruptamente a rega da G…, sendo estas de domingo do pôr-do-sol a quinta ao pôr-do-sol e as primeiras de segunda ao pôr-do-sol a quinta ao pôr-do-sol e a rega da F… de quinta ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol, tendo, consequentemente os autores adquirido por usucapião o direito a tais águas, bem como à sua represa e condução para rega do seu prédio. E tendo o prédio dos autores sido desanexado do prédio que aos réus pertence, e existindo sinais visíveis e permanentes que revelam serventia dos dois prédios outrora do mesmo dono, é havida como prova da servidão de águas a favor do prédio daqueles, constituídas por destinação de pai de família.
Inexplicavelmente, a ré mulher, no mês de Junho de 2011, mandou ligar directamente as sobras das águas do depósito municipal a um tubo que as conduz directamente para o seu prédio, deixando assim as mencionadas águas de cair no tanque, como vinha sucedendo há, pelo menos, 25 anos, e na mesma altura, ligou a parte da água … que caía no depósito existente no tanque, directamente para o seu prédio, privando os autores de usarem parte da água …, bem as sobras das águas do depósito Municipal, a que têm direito.
Com tal comportamento os réus violam o direito à água do prédio dos autores, uma vez que o caudal da água armazenada no tanque diminuiu substancialmente, impedindo os réus os autores de regar as culturas e árvores ali existentes, muitas das quais secaram já no passado verão, em consequência da atitude abusiva e ilícita dos réus, o que está a provocar vultuosos prejuízos aos autores.
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Regular e pessoalmente citados, os réus vieram contestar pedindo a improcedência, parcial, da acção.
Para tanto, confessaram os três primeiros pedidos, aceitaram parte dos factos articulados pelos autores, nomeadamente, o direito a parte da água identificada pelos autores e as respectivas servidões de presa a e aqueduto, e impugnaram o demais alegado, nomeadamente a proveniência de parte das águas que deitam para o tanque identificado pelos autores; a utilização das águas represadas na tanqueta e os danos invocados pelos autores.
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Foi proferido despacho saneador tabelar, com dispensa da selecção da matéria de facto.
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Foi, posteriormente, apresentado articulado superveniente, que veio a ser admitido.
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Procedeu-se a julgamento da matéria de facto, com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados, e no âmbito do qual se realizou inspecção judicial ao local.
Finalmente foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Reconheceu o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado em 1.º dos factos provados;
b) Condenou os réus a reconhecerem esse direito de propriedade;
c) Reconheceu o direito de propriedade dos réus sobre o prédio descrito em 5.º;
d) Reconheceu o direito dos autores à água que, provindo do prédio do … pelo tubo descrito em 16.º e 17.º dos factos provados, é represada no tanque existente na parte acima da estrada da …, do prédio dos réus, desde quinta-feira ao pôr-do-sol até Domingo ao pôr-do-sol para rega do seu prédio identificado em 1.º dos factos provados, bem como às respectivas servidões de presa e de aqueduto, que se exercem nos termos descritos em 26.º a 28.º dos factos provados;
e) Condenou os réus a reconhecerem o direito dos autores à mencionada água, para rega do seu prédio, bem como às respectivas servidões de presa e de aqueduto;
f) Mais condenou os réus a reporem a água proveniente do prédio …, bem como a água sobeja do depósito público, mencionadas em 8.º (conduzida pelo tubo identificado em 16.º/17.º) e em 9.º, a cair no tanque;
g) Absolveu os réus do mais peticionado.
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Inconformados com tal decisão dela recorreram, de apelação, os réus, pedindo a revogação da mesma na parte respeitante à alínea f) da sentença a sua substituição por outra que os absolva de tal pedido.
Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações onde formulam as seguintes conclusões:
1. O recurso interposto pelos RR. visa censurar o pedido reconhecido na alínea f) que os condenou a “reporem a água proveniente do prédio do …, bem como a água sobeja do depósito público, mencionadas em 8.º (conduzida pelo tubo identificado em 16.º/17.º e em 9.º, a cair no tanque” e, ainda, a sua condenação na proporção de metade das custas.
2. O âmbito do recurso abrangerá a matéria dos factos assentes sob os n.ºs 9.º, 20.º, 21.º, 22.º e 23.º e parte do n.º 24… da Fundamentação de facto da decisão; (de fls 4 e 5 de 16) por, se consideram incorretamente julgados, respeitando, ainda, a matéria de direito.
3. Os factos da Fundamentação de Facto considerados incorretamente julgados (fls. 4 e 5 da sentença) são o n.º 9 da Fundamentação de facto de fls. 4 correspondente ao art.º 10.º da p.i; O facto n.ºs 20.º, este a partir de ”...beneficiando as casas de G… … água pública”, que expressa o alegado a art.º 21 da petição inicial; O facto n.º 21º correspondente ao art.º 22 da petição inicial e, o facto 23, correspondente ao alegado a art.º 24 da mesma petição inicial;
4. A esses factos responderam as testemunhas dos AA., H…, cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado com o n.º de ficheiro: 20121016143336_1348_65072 à 14.33.39 h ; 2-I…. Respondeu aos mesmos factos 10.º, 21.º, 23.º e 24.º da p.i e com igual correspondência de facto n.º 9.º, 20.º, 24.º e cujo depoimento está gravado no mesmo sistema no ficheiro: 20121016144751_13481 _65072, às 14.47.53 h; 3-J…- respondeu ao alegado a 21.º da p.i, correspondente ao facto n.º 20 com depoimento gravado no ficheiro com o n.º 20121016150415_1348_65072. E a testemunha K… bem como ao art.º 22.º da p.i, correspondente ao facto 21 e outro que não importa considerar, cujo depoimento está gravado nos ficheiros seguintes: c- 20121016150931_13481_65072, de 16/10/2012; 14.13 h; b-20121016152725_13481_65072; 15. 46 h; c- 20121016164750_13481_65072; 16.24 h;
5. Responderam, também, as seguintes testemunhas dos RR.: L…, médico, irmão da Ré mulher e filho dos imediatos antecessores de ambas as quintas, cujo depoimento está gravado no ficheiro informático sob a ref.ª do dia 29/10/12 pelas 15.30h, n. a)- 20121029161257_13481_65072; e Ficheiro de gravação b)- 20121029164443 _13481_65072 e ficheiro20121029170842_13481_65072. b)- M…: o seu depoimento está registado no sistema com o n.º 20121119103224 _13481_65072; 10.37 h; tamanho 9.926 KB tendo respondido aos mesmos factos em sindicância, além de outros e foram ainda ouvidas as testemunhas: N… e O…, aquele com o registo do seu depoimento no ficheiro: 20121119113944_13481_65072. 10.59h. Como respondeu na qualidade de caseiro responsável pela P… embora tendo sido esclarecedor ao que foi indicado, não respondeu aos factos em causa; o depoimento da testemunha O.., esposa de M… por semelhante ao do marido também o não reproduzimos.
6. Os 3 antigos funcionários da Câmara Municipal disseram que ligaram as sobras para o tanque por meio de um tubo, por ordem do Presidente, e fizeram cair a água no tanque forçando o tubo a inclinar-se para o tanque com um arame preso na extremidade com uma pedra e nunca mais lá voltaram; quanto ao mais disseram não saber nada; a data da construção do depósito teria sido em 1985 ou 1986.
7. Do depoimento das duas testemunhas dos RR. pode inferir-se conhecerem bem os factos, designadamente, o lugar de ambas as nascentes, quais sejam a nascida no minote aberto e introduzido na P… numa extensão de 3 a 4 metros e a água nascida na poça …; expuseram, de forma clara e inequívoca, como uma e outra, águas são derivadas das respetivas nascentes e conduzidas, a primeira até à tanqueta existente dentro do tanque e a segunda- a da poça …- até ao tanque.
8. Mostraram conhecimento sobre o destino das águas das sobras do depósito do Município, expondo que saíram dele em tubo preto, estendido pelo campo fora, com uma secção de polegada e meia, e a testemunha M… declarando que essas sobras ficaram a cair no tanque da forma descrita pelos funcionário camarários, o que sucedeu até 19 anos atrás, data da construção da sua casa.
9. A casa foi construída em terreno vendido pela T1… e a confinar com o tanque pelo que necessitou de retirar o tubo condutor daquelas sobras do meio do terreno e encosta-lo ao muro de suporte do prédio superior, para o que obteve autorização da mãe da Ré mulher e de U1…, mãe daquela que lhe prestaram tal consentimento mas lhe mandaram conduzir o tubo das sobras até à tanque e aí escoar tais águas, o que ele fez necessitando de comprar 6 metros de tubo para emendar ao anterior; aquela água era para reforçar só a da nascente e as sobras iam para o tanque.
10. Ambas as testemunhas disseram que estiveram a escoar para aquele depósito ou tanqueta para servirem de abastecimento à casa de Q…, e rega de jardim, escoando para o tanque as que sobravam do consumo e quando sobravam.
11. Que era esta a situação quando a T1… vendeu aos AA., em Junho de 2001, a F…, especificando que para esta quinta iam as águas provenientes da poça … que sempre se escoaram no tanque e nunca deixaram de lá cair, e as sobras caídas da tanqueta quando estava cheia pelas águas do minote da P… e as sobras da água pública do depósito do Município, umas e outra caindo da tanqueta que, uma vez cheia as vertia para o tanque.
12. Que em junho de 2011, os RR. mandaram ligar as sobras da água pública a cair na tanqueta diretamente para junto de sua casa numa mina que lhes secou, deixando, por isso, de nenhuma dessas sobras transbordar da tanqueta para o tanque.
13. Está provado documentalmente que a água da Companhia foi ligada para casa da Q… só em Fevereiro de 1998, mas, mesmo a partir dessa data, as águas escoadas na tanqueta continuaram a ser conduzidas para ela.
14. Os recorrentes consideram, pois, incorretamente julgados os factos dados como provados a n.º 9, 20, 21 e 23, correspondentes aos art.ºs 10.º, 21.º, parte final, 22.º e 24.º da petição inicial, devendo, antes, responder-se como não provados: o n.º 9, 20 (parte final) 21, 23, e a data de 1997 no facto 24, devendo dizer-se 1998. Ao não fazê-lo a Senhora Juiz não ajuizou bem nem discerniu bem sobre a prova ouvida e a percecionada pelos sentidos, não fazendo um uso adequado do princípio da livre apreciação da prova nos termos do direito a si conferido pelo art.º 655.º do CPC.
15. Discorda-se do enquadramento jurídico feito “as sobras” do depósito público, ou se quisermos da conclusão extraída da sua subsunção jurídica e consequentemente que tenha condenado os RR. nos termos em que o fez na alínea f) da Decisão.
16. Só por mero lapso se poderá ter condenado ao RR. a reporem a água proveniente da poça … por nada se ter provado, tendo, além disso, os RR. confessado essa parte do pedido, explícita ou implicitamente, cfr. n.ºs 16 e 17 dos factos provados e termos da contestação.
17. Apesar de nos revermos em diversos considerando sobre as águas públicas mas, de modo nenhum, nos revemos em considerandos como os do tipo “se os autores não têm o direito à servidão das águas por usucapião também os RR. não têm; se os autores não podem exigir a divisão das águas sobejas também os RR. não dispõem de qualquer título legítimo para delas se apropriarem como fizeram… nem sequer ao seu uso exclusivo” que nos parecem despropositados e desprovidos do mínimo valor jurídico.
18. O art.º 202.º n.º 2 do C.Civil declara fora do comércio jurídico as coisas que se encontram no domínio público. Desta forma, a qualificação de uma coisa como pública retira-a, quer se queira ou não, do comércio jurídico privado, do mesmo modo que a coloca sob o domínio de uma pessoa de direito público para satisfação de determinadas necessidades coletivas.
19. Em consequência desse normativo, as coisas públicas são insuscetíveis de serem objecto de direitos privados e serem usucapíveis, sendo isso o que resulta da lei pura e simplesmente.
20. A sentença sindicada reconhece essa natureza pública das sobras das águas e, consequentemente, submetidas à administração do Município … mas não extrai daí nenhumas consequências práticas.
21. Sendo o Município … o seu titular único a ele pertence agir em juízo como seu sujeito ativo e demandando os sujeito que violem esse seu direito obrigando-os a repor as coisas no estado anterior, não podendo a Senhora Juiz “a quo” decidir sobre o mesmo dispondo sobre um direito para o qual é incompetente em razão da matéria.
22. A ter-se o entendimento da Senhora Juiz, teórica e praticamente, o Município … fica impedido e impossibilitado de dispor para o futuro das sobras daquelas águas devido a uma sentença condenatória que lhes dá um rumo e fim certo e definido.
23. Nem os AA. têm legitimidade para pedir o reconhecimento desse direito nem a correlativa condenação a reconhecê-lo e a cumpri-lo por parte dos RR. e, passada que foi essa fase processual do reconhecimento dessa ilegitimidade, deve tal pedido ser julgado improcedente.
24. As águas em causa são públicas; as águas que sobram constituem águas sobejas; estas águas pertencem à entidade que custeou a construção do depósito, o Município …; enquanto este seu titular não regular o seu uso ou não as tornarem objeto de concessão, podem as mesmas ser aproveitadas pelos RR. o proprietário contíguo a elas, a título precário e de mera tolerância.
25. A condenação imposta pela decisão recorrida impediria que os RR. pudessem, de futuro, virem a adquiri-las por concessão por anteriormente condenados a reconhecer o direito dos AA. – seja qual for – a elas e condenados a repor-lhas.
26. Há violação manifesta do disposto a n.º2 do art.º 202.º do C.Civil e da lei das águas ainda em vigor, devendo revogar-se a sentença na parte decisória e condenatória da alínea f) da sentença e do pagamento de custas.
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Os autores/apelados juntaram aos autos as suas contra-alegações onde pugnam pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. Está registado a favor dos autores um prédio rústico denominado F…, sito no …, freguesia e concelho de Resende, composto por terra de cultura com videiras, árvores de fruta, eira, alpendre, canastro e alambique, a confrontar do norte e poente com caminho de servidão, do sul com caminho municipal e do nascente com ribeiro, inscrito na matriz sob o artigo 1451 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1533/20010508, conforme teor de documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial. – art.º 1.º da p. i.
2. Tal prédio adveio à titularidade dos autores por compra à ré B…, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Resende, no dia 22.06.2001, lavrada a fls. 75 a 75 vs do Livro 314ª, conforme teor de documento n.º 3 junto com a petição inicial. – art.º 2.º da p. i.
3. Que o havia adquirido por sucessão hereditária de seu pai, T…, falecido no estado de casado, sob o regime da comunhão geral de bens, com U…, que dele eram possuidores há mais de 20, 30 e 40 anos. – art.º 3.º da p. i.
4. Os autores, por si e antecessores, vêm usando e fruindo o prédio em causa, extraindo as suas utilidades, efectuando plantações, colhendo os frutos, efectuando construções e liquidando as respectivas contribuições, ininterruptamente, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, na convicção de tratar de um direito seu, legitimamente adquirido, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos. – art.º 4.º da p. i.
5. Está registado a favor dos réus um prédio misto, composto por terra de regadio e sequeiro, pastagem, duas casas de habitação, jardim, um alpendre, palheiro, uma eira, um canastro e dois tanques, denominado “G…", sito no lugar deste nome, na freguesia e concelho de Resende, a confrontar do norte com o caminho público, do sul e poente com V… e do nascente com a estrada da …, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1205 rústico e 675 e 1362 urbanos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Resende sob o n.º 386/19911009, conforme documentos n.º 4, 5, 6 e 7 juntos com a petição inicial. – art.º 6.º da p. i.
6. Tal prédio adveio à titularidade dos réus por sucessão hereditária do pai da ré mulher, T…, falecido no estado de casado, sob o regime da comunhão geral de bens, com U…. – art.º 7.º da p. i.
7. Até 22.06.2001, os prédios descritos em 1.º e em 5.º foram explorados pelos mesmos antecessores comuns. – art.º 8.º da p. i.
8. O prédio descrito em 1.º é irrigado, desde tempos imemoriais, de quinta-feira ao por-do-sol a domingo ao pôr-do-sol, pelas denominadas águas …. – art.º 9.º da p. i.
9. Bem como pelas sobras de um depósito de águas pertencente ao Município …, desde meados da década de 1980. – art.º 10.º da p. i.
10. Sendo as denominadas águas …, provenientes de uma nascente, existente no prédio imediatamente superior à parte do prédio rústico descrito em 5.º, que se situa acima da estrada municipal da …, também designado por "…".– art.º 11.º da p. i.
11. Para represamento da qual os antecessores dos prédios descrito em 1.º e em 5.º mandaram fazer um tanque, numa fase inicial em pedra e posteriormente alteado em betão e rebocado, na parte da G…, situada acima da estrada municipal …. – art.º 12.º da p. i.
12. O qual foi intervencionado e rebocado em data não concretamente apurada mas depois de 2001, tendo o custo das obras sido partido entre autores e réus. – art.º 13.º da p. i.
13. Tendo os proprietários do prédio onde nasce a água … direito à mesma, apenas de Domingo ao pôr-do-sol a segunda ao pôr-do-sol, e os antepossuidores dos prédios descritos em 1.º e em 5.º de segunda ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol.
14. Sendo de segunda ao pôr-do-sol a quinta ao pôr-do-sol para a G…. – art.º 14.º da p. i.
15. E de quinta ao pôr-do-sol a Domingo ao pôr-do-sol para a F…. – art.ºs 15.º e 16.º da p. i.
16. A água da nascente do … era conduzida para o tanque referido em 11.º através de um tubo plástico, – art.º 17.º da p. i.
17. que deitava directamente a água para o mencionado tanque. – art.º 18.º da p. i.
18. Existia um outro tubo, através do qual era conduzida água para um depósito existente dentro do tanque, com uma saída para as sobras saírem para o tanque, e que se destinava aos usos domésticos nas casas de … e dos caseiros do F…. – art.º 19.º da p. i.
19. Sendo as sobras da água conduzida por este tubo, bem como pelo outro, depois de represadas no tanque destinadas a rega das G… e do F…, nos moldes acima expostos. – art.º 20.º da p. i.
20. Em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população …, beneficiando as casas de …, bem como dos caseiros de G… e do F…, do abastecimento, ao domicílio, de água pública. – art.º 21.º da p. i.
21. Passando assim a água que caía no pequeno depósito, ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios referidos em 1.º e em 5.º. – art.º 22.º da p. i.
22. Passaram a ser conduzidas para aquele mesmo tanque através de tubo de plástico colocado ao longo de toda a estrema sul do prédio onde foi edificado o depósito, também este outrora pertencente aos mesmos donos, aos pais da ré, que confina a nascente com a parte acima da estrada municipal da … da G…, pelo Município …, as sobras da água do aludido depósito. – art.º 23.º da p. i.
23. Tendo sido então propositadamente colocada, no tanque, uma argola em ferro, com uns arames, a segurar o tubo que para ali conduzia as sobras de água do depósito municipal. – art.º 24.º da p. i.
24. Há, pelo menos, 25 anos quanto às águas referidas em 8.º, desde meados de 1980, quanto às águas referidas em 9.º e desde 1997 quanto às águas referidas em 18.º, que as referidas águas regam os prédios do F… e de G…, o que vem acontecendo desde as referidas datas, contínua e ininterruptamente, a vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo delas retiradas todas as utilidades pelos autores e réus e antecessores, quer directamente quer através de pessoas ao seu serviço. – art.º 26.º da p. i.
25. ... Sem oposição dos réus. – art.º 28.º da p. i.
26. Sendo a parte da água que ao prédio referido em 1.º se destina, isto é, de quinta a domingo ao pôr-do-sol, conduzida através de um rego a céu aberto, cavado no próprio terreno, em sulco próprio, com aproximadamente 20 cm de largura e 10 cm de profundidade, em alguns sítios ladeado por pedras graníticas, acompanhado em toda a sua extensão por um caminho pedonal com cerca de 50 centímetros de largura, ambos em terra bem batida, que atravessando a parte acima da estrada da …, do prédio referido em 5.º, cai à valeta da dita estrada municipal no sentido …/ …. – art.º 30.º da p. i.
27. Encontrando-se o dito rego e o caminho que o acompanha em toda a sua extensão, abertos desde tempos imemoriais, há mais 20, 30 ou 50 anos, à vista de toda a gente e com carácter permanente, sendo regularmente limpos, seja pelos autores, seja por trabalhadores ao seu serviço. – art.º 31.ºda p. i.
28. Que partindo do tufo do tanque, segue pelo limite sul da propriedade, situada acima da estrada da …, junto ao muro divisório, em direcção àquela estrada municipal, onde cai directamente para a valeta, actualmente em meia cana, outrora em terra batida, até ao tanque público do “…”, junto ao qual entra num aqueduto, atravessando a dita estrada municipal da …, através de aqueduto subterrâneo, caindo no prédio descrito em 1.º, onde é represada num tanque, situado na estrema sul, abaixo do nível do mencionado aqueduto, com o propósito exclusivo de represar as referidas águas, a partir do qual depois é conduzida, por diversas formas, seja por rego a céu aberto em terra batida em meia cana, seja através de tubos de plástico, para rega das culturas e plantações existentes nos diversos campos que integram o prédio. – art.º 32.º da p. i.
29. A divisão da água tem sido respeitada, desde tempos imemoriais, pelos autores e réus, antecessores e respectivos caseiros, mesmo após 22.06.2001. – art.º 33.º da p. i.
30. Os autores e seus antecessores têm actuado em relação ao tanque, rego e caminho que o acompanha, há mais de 20, 30 e 50 anos como titulares do correspondente direito e em relação aos tubos, apenas desde as datas mencionadas em 24.º. – art.º 39.º da p. i.
31. …Sem oposição dos réus. – art.º 41.º da p. i.
32. Não existe no documento, escritura pública de compra e venda, nenhuma declaração oposta à constituição do encargo. – art.º 48.º da p. i.
33. A ré mulher, no passado mês de Junho de 2011, mandou ligar directamente as sobras das águas do depósito municipal a um tubo que as conduz directamente para o prédio descrito em 5.º. – art.º 51.º da p. i.
34. Deixando assim as mencionadas águas de cair no tanque, identificado em 11.º, como vinha sucedendo desde meados da década de 1980. – art.º 52.º da p. i.
35. Privando os autores de usarem a água descrita em 18.º e as águas das sobras do depósito público. – art.º 54.º da p. i.
36. É notória a diminuição do caudal da água do tanque no verão, altura em que é mais precisa para rega. – art.º 58.º da p. i.
37. Secaram árvores no ano passado. – art.º 59.º da p. i.
38. O local descrito pelos autores e réus sofreu alterações devido à construção de um prédio urbano, que anda a efectuar-se ali junto. – art.º 6.º do art. superv.
39. Parte da poça foi coberta com uma placa para passagem de veículos. – art.º 9.º do art. superv.
40. A água, ao sair pelo boeiro da poça, cai numa caixa donde parte encanada e, junto ao tanque ali existente dividida em suas saídas: uma para o tanque de um terceiro, outra segue o trajecto indicado por autores e réus até ao tanque sito junto à estrada do Loureiro (referido em 11.º). – art.º 6.º do art. superv.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B, n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso é aplicável o regime processual estabelecido pelo DL 303/2007, de 24.08, por respeitar a acção instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, cfr. n.º 1 do artº 11.º e art.º 12.º do citado DL., não sendo ainda aplicável o NCPC por a decisão em crise ter sido proferida antes de 1 de Setembro de 2013.
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Ora, visto o teor das alegações dos apelantes são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Impugnação da decisão da matéria de facto.
2.ª – De Direito.
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Como resulta expresso do teor das alegações dos apelantes, estes apenas se insurgem contra a sentença recorrida na medida em que os condenou a: - “reporem a água proveniente do prédio do …, bem como a água sobeja do depósito público, mencionadas em 8.º (conduzida pelo tubo identificado em 16.º/17.º) e em 9.º, a cair no tanque”.
A procedência deste pedido foi fundamentada na sentença recorrida, escrevendo-se:
“(…) resulta dos factos provados que o prédio dos autores é irrigado, desde tempos imemoriais, de quinta feira ao por do sol a domingo ao pôr do sol, pelas denominadas águas …. Bem como pelas sobras de um depósito de águas pertencente ao Município …, desde meados da década de 1980.
Sendo as denominadas águas do …, provenientes de uma nascente, existente no prédio imediatamente superior à parte da G…, que se situa acima da estrada municipal da …, também designado por "…".
Para além disso, apurou-se que existia um outro tubo, através do qual era conduzida água para um depósito existente dentro do tanque, com uma saída para as sobras saírem para o tanque, e que se destinava aos usos domésticos nas casas de … e dos caseiros do F….
Mais se apurou que os proprietários do prédio onde nasce a água … têm direito à mesma, apenas de domingo ao pôr-do-sol a segunda ao pôr-do-sol.
Entendem os autores serem titulares de uma servidão sobre a referida água ….
Na verdade, esse direito de servidão não é sequer posto em causa pelos réus.
O que os réus contestaram foi a composição das denominadas “Águas …”.
De acordo com os autores tais águas integram quer as que são conduzidas do prédio … pelo tubo descrito em 16º e 17º, mas também pelas águas que eram conduzidas desde o prédio … até ao tanque, pelo tubo descrito em 18º.
Relativamente às primeiras, dúvidas não subsistem, em face dos factos provados, nomeadamente dos pontos 8º, 10º, 11º, 15º, 16º, 17º, 24º, 25º e 30º dos factos provados, que os autores, por si e antecessores, irrigam o seu prédio rústico com as mencionadas águas, de modo pacífico, público e de boa-fé, na convicção de que exercem o correspondente direito de servidão, há mais de 25 anos, o que conjugado com a existência do tubo, lhes faculta a constituição do direito.
Quanto às inerentes servidões de presa e aqueduto, na parte relativa às águas que provêm do tubo referido em 16º e 17º, a sua constituição não é sequer contestada, pelos réus, sendo manifesta a procedência da ação, nesta parte, seja pela servidão rega, seja pela usucapião.
(…)
(…) importa apreciar a questão das sobras das águas do depósito público. Os autores invocaram a constituição de uma servidão sobre as referidas águas. Os réus contrapõem com a natureza pública de tais águas.
(…)
Provou-se que, em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população de …. Mais se provou que passaram a ser conduzidas para aquele mesmo tanque através de tubo de plástico colocado ao longo de toda a estrema sul do prédio onde foi edificado o depósito, também este outrora pertencente aos mesmos donos, que confina a nascente com a parte acima da estrada municipal da … da G…, pelo Município …, as sobras da água do aludido depósito. Tendo sido então propositadamente colocada, no tanque, uma argola em ferro, com uns arames, a segurar o tubo que para ali conduzia as sobras de água do depósito municipal.
Pelo que, desde meados 1980, que as sobras da água do referido depósito público, regam os prédios dos autores, nos mesmos termos e divisão que as águas referidas em 16.º e 17.º.
(…)
A actual Lei das Águas, aprovada pela Lei nº 58/2005, de 29/12, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva nº 2000/60/CE do Parlamento e do Conselho, de 23 de Outubro (…)
(…) a Lei nº 54/2005, de 15/11, que estabeleceu a titularidade dos recursos hídricos, dispõe que o domínio hídrico público (…)
(…) nenhum dos referidos diplomas legais revogou, na íntegra o Decreto nº 5787-III, de 10/05/1919, cujo artigo 32º, 1º parágrafo dispunha: As águas sobejas das fontes, poços e reservatórios públicos construídos pelo Estado, ou corporações administrativas, pertencem à entidade que tiver custeado a construção, a qual poderá regular-lhe o uso, ou torná-lo objecto de concessão (…); enquanto lhes não for dado outro destino ou regulado o uso, poderão os proprietários vizinhos aproveitar as águas sobejas a título precário e de mera tolerância.
Trata-se, exactamente do caso dos autos.
O depósito em apreço foi construído pelo Município …, para o abastecimento de água ao domicílio. Como tal, as águas em causa têm natureza pública e, na falta de norma em contrário, são também públicas as sobras dessas águas, como dispunha o artigo 32.º, 1.º parágrafo da antiga Lei das Águas.
A utilização que autores e réus vinham fazendo da água em causa é permitida. A aquisição das mencionadas águas sobejas pela usucapião não é viável, como vimos. Como viável não é exigir a divisão das referidas águas, por se tratarem, ambos, de meros utilizadores precários (…)
(…) se os autores não têm direito à servidão das águas por usucapião, também os réus não o têm. Se os autores não podem exigir a divisão das águas sobejas do depósito público, também os réus não dispõem de qualquer título legítimo para delas se apropriarem, como fizeram. Se é verdade que assiste razão aos réus ao invocarem a natureza pública das águas, para obviarem à constituição da servidão por usucapião (e que obsta também à usucapião por destinação do pai de família), o certo é que tal não lhes confere um direito à apropriação dessas águas, nem sequer ao seu uso exclusivo.
(…) aos vizinhos das águas sobejas de reservatórios públicos é permitida a sua utilização, segundo a sua contiguidade, o que a nosso ver impossibilita o primeiro vizinho de se apropriar em exclusivo da água, privando os demais de usar da mesma faculdade (note-se que, a ser assim, então nem seriam os réus os primeiros beneficiados com a água), tanto mais que já o vinham fazendo há mais de 20 anos, de modo pacífico, através da divisão nos moldes supra descritos.
Nesta medida, concluímos que os autores não beneficiam de servidão das águas sobejas do depósito público, mas apenas um mero direito à sua utilização, a título precário, enquanto não lhe for dado outro destino ou regulado o uso.
Quanto à extensão desse uso, tratando-se de um situação que não está expressamente prevista, cremos que a solução deverá passar pela manutenção da situação que sempre existiu, de modo consolidado e pacífico entre todos, há mais de 20 anos, por aplicação analógica do disposto no artigo 1400.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, que manda atender ao costume na divisão da água, desde que seguido há mais de 20 anos, sem prejuízo dos direitos do seu proprietário, quando esteja a ser utilizada por quem não tenha direito a ela (neste caso, sem prejuízo dos direitos do Município, naturalmente)”.
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Alegaram os autores que no mês de Junho de 2011, a ré mulher mandou ligar directamente as sobras das águas do depósito municipal a um tubo que as conduz directamente para o seu prédio, deixando assim tais águas de cair no tanque e que na mesma altura, ligou a parte da água … que caía no depósito existente no interior do dito tanque, directamente para o seu prédio, tendo estas também deixado de cair no tanque, diminuindo substancialmente o caudal proveniente deste, causando-lhes prejuízos nas regas do seu prédio, e viram os correspondentes pedidos de reposição serem deferidos.
Insurgem-se agora os apelantes, defendendo que não se fez prova de que os réus tenham desviado a água proveniente do prédio …; que sobrantes do reservatório público são públicas; essas águas que sobram constituem águas sobejas; estas águas pertencem à entidade que custeou a construção do depósito, ou seja, ao Município …; enquanto este seu titular não regular o seu uso ou não as tornarem objecto de concessão, podem as mesmas ser aproveitadas pelos réus, o proprietário mais contíguo a elas, a título precário e de mera tolerância, pelo que não podem os autores pedir-lhes o que pediram, nem os réus podiam ser condenados, como foram.
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1.ªquestão – Impugnação da decisão da matéria de facto.
Dizem os apelantes que face à prova produzida nos autos, designadamente em face dos teor dos depoimentos das testemunhas H…; I…; J…; K…; L…; M…; W…, N… e O…, a matéria respeitante aos factos n.ºs 9.º, 20.º, este, a partir de ”… beneficiando as casas de … … água pública”, 21.º e 23.º da fundamentação de facto da sentença recorrida, correspondentes ao art.ºs 10.º, 21.º, 22.º e 24.º da p. inicial, não se encontram bem julgados, pelo que deve ser alterada a sua decisão para não provados os factos n.ºs 9.º, 20.º (parte final) 21.º, 23.º e, a data de 1997 no facto 24.º, devendo dizer-se 1998.
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No que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 712.º do C.P.Civil.
Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação...”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 712.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do C.P.Civil, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar...”.
Decorre também do preâmbulo do DL 39/95, de 15 de Dezembro, que instituiu no nosso processo civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, ou seja, “a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Desse mesmo preâmbulo consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Dúvidas não restam de que está hoje legalmente consagrada a possibilidade deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas recorrentes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, podendo, ainda, por força do disposto no art.º 712.º n.º 2 do C.P.Civil, “oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”, formará a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa (não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção), o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cfr. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1.ª secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Todavia não se pode esquecer que quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal, cfr. art.º 655.º n.º 1 do C.P.Civil, “O tribunal colectivo (ou o juiz singular) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Finalmente, há que atentar no que preceitua o art.º 685.º-B, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, de onde decorre que ao apelante não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que cumpra os ónus de especificação aí impostos, isto é:
a) – Tem de especificar quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) – Tem de indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto, tratando-se de prova gravada, deverá identificar precisa e separadamente, com referência ao que consta da acta, os depoimentos em que se funda, indicando ainda com exactidão as passagens dessa gravação em que se funda;
c) – E deve desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável, cfr, Acs. do STJ de 25.09.2006, de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, constatamos que os apelantes cumpriram os referidos ónus de alegação.
*
Os factos que os apelantes consideram incorrectamente julgados em 1.ª instância são os seguintes:
- 9.º- Bem como pelas sobras de um depósito de águas pertencente ao Município …, desde meados da década de 1980. – correspondente ao art.º10.º da p. inicial.
- 20.º - Em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população de …, beneficiando as casas de …, bem como dos caseiros de G… e do F…, do abastecimento, ao domicílio, de água pública. – correspondente ao art.º 21.º da p. inicial.
- 21.º - Passando assim a água que caía no pequeno depósito, ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios referidos em 1º e em 5º (prédios de autores e réus, respectivamente). – correspondente ao art.º22.º da p. inicial.
- 23.º - Tendo sido então propositadamente colocada, no tanque, uma argola em ferro, com uns arames, a segurar o tubo que para ali conduzia as sobras de água do depósito municipal. – correspondente ao art.º24.º da p. inicial.
- 24.º - Há, pelo menos, 25 anos quanto às águas referidas em 8º (águas ...l), desde meados de 1980, quanto às águas referidas em 9.º (sobras do depósito) e desde 1997 quanto às águas referidas em 18º, (águas de um depósito existente dentro do tanque, com uma saída para as sobras saírem para o tanque, e que se destinava aos usos domésticos nas casas de … e dos caseiros do F…) que as referidas águas regam os prédios do F… e de G…, o que vem acontecendo desde as referidas datas, contínua e ininterruptamente, a vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo delas retiradas todas as utilidades pelos autores e réus e antecessores, quer directamente quer através de pessoas ao seu serviço. – correspondente ao art.º25.ºda p. inicial.
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O tribunal recorrido fundamentou a referida decisão de facto dizendo: “A convicção do Tribunal, no que à matéria de facto provada e não provada diz respeito, resultou da posição das partes assumidas nos respectivos articulados, bem como da prova testemunhal produzida e documentos juntos, conjugados e valorados à luz das regras do ónus da prova, consagradas no artigo 342º e seguintes do Código Civil.
(…)
Quanto aos factos descritos em 9º, (…) 20º, 21º, 22º, 23º e 24º discutiram-se, essencialmente, duas versões: uma sustentada pelas testemunhas indicadas pelos autores no sentido de que as águas represadas no tanque eram três, as águas do prédio…, que nascem no muro da poça, as águas do minote que situa acima da poça e as águas das sobras do depósito público; outra sustentada pelas testemunhas indicadas pelos réus no sentido de que todas as águas referidas sempre foram represadas única e exclusivamente no pequeno depósito ou tanqueta que se encontra dentro do tanque, com excepção da água que vinha da poça, pelo rego.
Vejamos, as três referidas águas, começando pela água proveniente do minote, situado acima da poça. A este propósito, a testemunha X…, caseira do prédio dos autores há 29 anos, disse que as águas … eram as que vinham “do P… para baixo” e que eram para rega. Havia uma outra água que vinha por um tubo com um passador (que é visível nas fotografias tiradas na inspecção ao local), que era destinada aos usos domésticos das casa de … e do F… e que deitava directamente na tanqueta.
A testemunha W…, marido daquela, veio sustentar a mesma versão, embora desdizendo a sua mulher no que concerne à questão de irem ao prédio do … tornar a água do passador nos dias a que tinham direito.
Ora, nesta parte os depoimentos acabam por ser confirmados pela testemunha L…, irmão da ré, que conhece as propriedades desde criança e que admitiu que a água do minote era canalizada para a tanqueta, de onde partia em direcção às casas de … e do F….
Sucede que, em meados da década de 1980 (não foi possível apurar o ano preciso) foi construído um depósito público e, em 1997, a ré através da sua mãe requisitou água da rede pública para a casa de G…. Nessa altura, a casa do F… já não era habitada, pois as testemunhas X… e W… já se tinham mudado para a sua actual residência.
A divergência reside no que aconteceu ao cano que deitava para a tanqueta desde 1997 até 2011 (esclareça-se que apenas se considerou 1997 como data do início do abastecimento público, por força do documento – requisição – junto aos autos).
De acordo com as testemunhas indicadas pelos autores foi desviado pelos proprietários ou por alguém a seu mando para o tanque grande para rega.
De acordo com as testemunhas indicadas pelos réus, nada sucedeu, mantendo-se a água a cair na tanqueta e só as sobras no tanque.
Do cotejo de todos os meios de prova, não podemos deixar de valorar os depoimentos das testemunhas indicadas pelos autores, nesta parte. Com efeito, são os depoimentos das testemunhas dos réus que encontram suporte nos demais meios de prova, nomeadamente, nas fotografias juntas aos autos. São também estes depoimentos que se apresentam mais completos e verosímeis.
É bem visível nas fotografias a existência de dois canos de pequenas dimensões ligados à tanqueta. Um deles está implantado de modo fixo à tanqueta – está inserido no cimento que une o topo da parede à cobertura. Outro está inserido por baixo da cobertura de modo provisório ou amovível. Este tem um acrescento na extremidade, fixado com um arame.
De acordo com as testemunhas X… e W…, o tubo que conduz as águas estava inserido dentro do tubo que se encontra fixado à tanqueta e, quando deixou de se necessário o abastecimento de água para usos domésticos, foi acoplado um acrescento para permitir que este alcançasse o tanque – o que faz todo o sentido, desde logo, porque é bem visível nas fotografias que a parte do tubo fixa na tanqueta tem um diâmetro maior na extremidade (está, por assim dizer “alargado”), o que indica que um outro tubo encaixava naquele. E também faz sentido acoplar um acrescento para alcançar o tanque, o que de outro modo era impossível. Por fim, é bastante plausível que, sendo desnecessária a água da tanqueta, os donos dos dois prédios tenham decidido juntar as águas no tanque.
Já a versão dos réus, mormente a relatada pela testemunha L… e pela testemunha M…, não tem suporte nas fotografias. De acordo com estas testemunhas o tubo teria sido cortado, mas a verdade é que é bem visível nas fotografias que têm diâmetros diferentes, pelo que não poderiam ter sido um só, cortado ao meio. Também falece a explicação para o acrescento. No entanto, pese embora as considerações que antecedem, a verdade é que os autores alegaram que ambos os tubos vinham do prédio …, que se situa imediatamente acima da G…. Mas o certo é que os autores não lograram provar que ambas as águas vêm do prédio …. Se foi pacífico que a água que cai para a poça brota no prédio …, quanto à água do minote, várias foram as testemunhas que afirmaram que a mesma vem do prédio do P… (que não é o do …), nomeadamente, a testemunha N…, caseiro do P…, que agriculta o campo onde se situa o minote por conta do P… e afirmou que quando é necessário alguma intervenção no rasgo do minote é ao P… que se pede autorização para o efeito.
Também a testemunha L… afirmou que a parte de cima já não era pertença do prédio do …, mas do prédio do P….
Ora, estes depoimentos afastam a versão dos autores, já que nenhuma das testemunhas dos autores demonstrou efectivo conhecimento sobre a pertença do terreno onde se encontra implantado o minote (aliás, a testemunhas X… até afirmou que todas as águas vinham do P… para baixo).
Deste modo, pese embora o represamento da água do minote no tanque desde 1997 até 2011, não se apurou que estas integrem as designadas águas …, ou seja, que o minote esteja implantado em terreno do prédio do ….
Quanto às águas da poça, que nascem abaixo do minote, não foi sequer colocado em causa por nenhuma das testemunhas que a mesma água seja represada, desde tempos imemoriais, no tanque, para rega das propriedades de G… e do F….
Com efeito, nenhuma das testemunhas ouvidas sobre a matéria questionou quer a divisão das águas – 3 dias para cada quinta – quer o represamento da água da poça, quer a forma de condução desde a poça até ao tanque e desde o tanque até cada uma das propriedades, conforme os dias determinados, sendo que também não foi possível apurar há quanto anos assim sucede, pois todas as testemunhas disseram que sempre assim foi desde que dos factos têm memória, tendo-se perdido no tempo quem foi o autor de tal distribuição.
Quanto às águas das sobras do depósito, as testemunhas indicadas pelos autores defenderam que sempre caíram no tanque até que, em 2011, a ré as desviou só para si. Pelo contrário, as testemunhas indicadas pelos réus defenderam que essas águas caíam na tanqueta.
Mais uma vez, são os depoimentos das testemunhas dos autores que encontram acolhimento nas fotografias e que se mostram mais consentâneos com a normalidade. Desde logo, das fotografias de fls. 114 e 119 resulta que existia uma argola na beira do tanque, orientada de modo perpendicular ao tanque, ou seja, pendendo para dentro do tanque. Já das fotografias tiradas aquando da inspecção ao local, visualiza-se perfeitamente que essa argola está voltada de modo paralelo ao tanque, o que terá ocorrido após a entrada da presente acção, já que as primeiras fotografias acompanharam a petição inicial. Por outro lado, as testemunhas X… e W… explicaram que a argola servia para segurar o tubo na beira do tanque.
Ora, a testemunha L… não apresentou qualquer explicação para a existência da argola. Por outro lado não se mostra de todo em todo viável a introdução do tubo das águas das sobras do depósito público, que como resulta das fotografias e do auto de inspecção ao local tem considerável dimensão, por baixo da cobertura da tanqueta, o que a faria tombar, de acordo com um juízo de normalidade. Ademais, se tais águas já caíssem na tanqueta (quer as do minote, quer as sobras do depósito público), as quais a partir de 1997 e meados de 1980, respectivamente, passaram a estar exclusivamente ligadas à casa de G…, não se vislumbra qual a necessidade de, em 2011, a ré mulher proceder à ligação directa para si (se já eram encaminhadas exclusivamente para G…).
Acresce ainda que, desde meados de 1980 até 1997, as águas da tanqueta serviam para consumo humano, ora a única testemunha que demonstrou conhecimento do interior do depósito público, W…, esclareceu que essa água não é limpa, pelo que, uma vez mais, não faz sentido juntar uma água boa para beber com uma água que não está em condições de servir para consumo humano (como até a testemunha M… admitiu) (…)”.
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Ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento e invocados pelos apelantes, tendo em consideração a razão de ciência de cada uma dessas testemunhas e, além do mais tendo em atenção o que foi possível intuir, designadamente quanto à espontaneidade, imparcialidade e convicção das respostas dadas, e vendo ainda o teor dos documentos juntos aos autos, julgo que não assiste qualquer razão aos apelantes, ou seja, a decisão sobre a matéria de facto em causa não merece qualquer censura, pelo que se mantém inalterada.
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Mas vejamos.
Relativamente aos pontos da fundamentação de facto da decisão recorrida ora impugnada, constatamos que a testemunha H…, funcionário da C.M. de …, depôs de forma isenta, segura e convicta e revelou conhecer bem o depósito para abastecimento de água ao domicílio da população de … referido nos autos, o qual já existia quando entrou ao serviço da C. Municipal, (em1.09.86) contudo, como estava incumbido da verificação dos reservatórios no concelho de Resende, foi verificá-lo várias vezes. Mais disse que as sobras do depósito, segundo lhe disseram iam para o tanque do Sr. T…, (pai da ré) situado a cerca de 20/30 metros de distância. Disse que tais sobras iam por um tubo para o referido tanque. Finalmente disse que não tem ideia de ter visto, de perto, tal tanque, daí não saber como é que tais sobras caiam no mesmo.
A testemunha manifestamente revelou alguma incerteza e inconsistência no relato dos facto de que tinha conhecimento, justificando tal pelo decurso de tempo.
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A testemunha I… que foi capataz de obras da C.M. de … também depôs de forma isenta, segura e convicta, revelando bem conhecer o depósito municipal de … em referência nos autos, pois foi o responsável por tal obra, dizendo “fui eu que fiz aquilo…o pessoal que andava comigo”, não sabendo precisar a data, e “meti o cano das sobras desde o reservatório até um tanque que lá havia”, a mando do então Presidente da Câmara, que lhe disse que tal era porque o Sr. T… (pai da ré) havia dado o terreno para construírem o depósito. Concretamente referiu que posou o dito cano na beira do tanque e que este ficou a deitar para o tanque. Disse desconhecer se esse tanque tinha um depósito no seu interior, mas o dito tubo com as sobras ficou a deitar para o tanque grande, tendo prendido tal tubo na beira do tanque com um “aramezito” e uma pedra “para levar peso para baixo”.
Esta testemunha também revelou alguma dificuldade e imprecisão no relato dos factos dado o tempo decorrido desde então.
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A testemunha J… que foi trolha na C.M. de … referiu que esteve ligado à construção do depósito/reservatório de água referido nos autos, sito em …. Contudo não se lembra ao certo em que data foi essa construção, mas ou foi em 1985 ou em 1986.
Também esta testemunha revelou manifesta dificuldade na precisão dos factos que lhe foram perguntados, decerto devido ao decurso do tempo sobre os mesmos.
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A testemunha K…, trabalhadora agrícola, caseira dos autores (F…), tendo sido caseira, habitando a casa do respectivo caseiro, durante 16 anos da mãe da ré mulher e da mesma quinta quando pertencia àquela, no total é caseira daquela quinta há 29 anos, foi para lá em 1983, tendo interrompido essa sua actividade apenas entre 1999 e 2000/2001. Disse que a quinta era regada pelas águas … que vinham do P… para baixo, parte delas eram conduzidas por um tubo grande até ao tanque existente na G…, referindo como tais águas eram repartidas (por dias) entre a G… e a do F….
Quanto ao abastecimento de água da casa da mãe da ré mulher e da casa da própria testemunha disse que era feita, diariamente, apenas pelas águas da poça …, uma parte dela era conduzida por um tubo com um passador para um pequeno depósito existente (ou “tanqueta”) no interior do tanque existente na G…, e isto até haver distribuição de água ao domicílio pelos serviços públicos. Tendo a mãe da ré, há 14/15 anos, passado a ser servida pela água pública, ou seja, apenas na casa de G…, tendo ficado a casa do caseiro do F… sem água, sendo que nessa ocasião a testemunha já lá não residia.
Disse ser do seu conhecimento que as sobras do depósito municipal caiam directamente no tanque, e não na dita “tanqueta”, tendo o tubo que conduzia tais águas desde o depósito sido preso, primeiramente, com um arame e uma pedra, para fazer peso e, depois colocaram uma argola (em ferro, como a reconheceu na fotografia de fls. 114 e 119) para segurar o tubo na beira do tanque e, que tal foi feito pelos trabalhadores da Câmara na altura em que fizeram o depósito. Tais sobras eram usadas para a rega das G… e do F…, nos termos definidos. Referiu, mais à frente, que viu o Sr. M…, trolha, que trabalha por conta da ré a fazer a ligação do tubo das sobras do depósito municipal directamente e apenas para a ré (e não para o tanque), através da ligação de um outro tubo.
Mais referiu que quando passou a haver abastecimento de água pública ao domicílio a água da dita “tanqueta” deixou de ser utilizada para abastecimento domiciliário, passou a cair no tanque e passou a ser utilizada para rega quer da G… quer da F…, dividida como já a demais era, tendo o tubo com o passador que conduzia a água até à “tanqueta” sido acrescentado e mudado para deixar cair a água directamente no tanque. Disse ainda que há dois anos quando houve reparações no tanque, a “tanqueta” também foi reparada porque segundo a ré lhe referiu ficava como “antiguidade”, porque era do tempo da sua mãe e, que os problemas com as águas surgiram posteriormente.
Esta testemunha revelou conhecimento pessoal e directo dos factos que lhe forma preguntados e depôs de forma bem clara, segura, pormenorizada e convincente, revelando a vivência pessoal dos mesmos.
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A testemunha W…, marido da testemunha X…, também depôs de forma isenta, segura e convincente, resultado da sua vivência pessoal, tendo, no global, confirmado o depoimento produzido pela sua mulher.
Referiu que eram as águas …, da poça …, que vinham para a “despesa das casas” de G… e da casa do caseiro do F… e para a rega de ambas as quintas. Essa água para a rega vinha encanada para o tanque sito na G… e a água para a “despesa das casas” também vinha encanada para um depósito sito dentro do tanque e depois também ia encanada para as casas e que hoje não está lá o tubo que ia para a casa do caseiro do F….
O depósito Municipal foi feito em 1985/1986. “Depois da U… por água da Companhia a água passou a cair no tanque”, não sabendo precisar em que data foi, mas a água que anteriormente caía no depósito existente no interior do tanque, e que era para a “despesa das casas”, passou a cair no tanque, tendo sido posta uma emenda no tubo para o mesmo chegar ao tanque, tendo explicado essa sua afirmação vendo a fotografia que constitui o doc. 12 de fls.116, dizendo que o tubo da esquerda é o que contém o acrescento para cair no tanque e que anteriormente estava embutido no tudo do centro, que caia no depósito. Mais declarou que antigamente só existia um tubo que caia no referido depósito, o que se vê ao centro.
“Também caia no tanque as sobras da água do depósito da Companhia”, e isto desde que o depósito municipal foi feito. O tubo que vinha desse depósito tinha para aí 2,5 polegadas e “ia cair no tanque onde está a argola”, mas primeiro puseram um arame que não segurava bem o tubo, daí terem posto a argola. Esclarecendo que quem pôs esse arame e a argola foram os funcionários da Câmara.
Afirmou, peremptoriamente, que a água das sobras do depósito Municipal não era limpa e que o tubo que a transportava nunca esteve a cair no depósito existente no interior do tanque, mas sempre directamente no tanque e, só em Junho de 2011 é que tal deixou de ser assim, ou seja, quando a ré a ligou directamente para a G…. Mais referiu que o tubo que trazia as sobras do depósito Municipal não poderia ir para o depósito existente no interior do tanque, porque dada a sua grossura não cabia debaixo da tampa do depósito, caso contrário o depósito não ficaria fechado.
Esclareceu que hoje falta para a rega a água das sobras do depósito da Companhia e parte da água … que caia, primeiramente, no depósito existente no interior do tanque e que era antigamente para a “despesa das casas” e que depois passou a cair directamente no tanque.
Referiu que há cerca de 3 anos foram feitas obras no dito tanque e no depósito existente dentro dele, e esclareceu como e porquê foi dividido o seu custo entre autores e réus, e que nessa altura já não caía água na “tanqueta” ou depósito existente no interior do tanque.
Declarou ainda que a argola existente na beira do tanque, e que servia para segurar o tubo que trazia a água das sobras do depósito Municipal, hoje está diferente.
Disse ainda esta testemunha que, em Junho de 2011, a ré tirou do tanque a água das sobras do depósito da Municipal e “ao cabo de dias tirou a água que antigamente era para consumo das casas”.
Finalmente referiu que a água do depósito Municipal já não é utilizada para a abastecimento público, pelo que toda ela ia, até 2011, encanada até ao tanque.
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A testemunha L…, irmão da ré, revelou bem conhecer os factos em discussão nos autos e depôs de forma clara e segura, revelando conhecer o local desde criança, no entanto quando o seu relato foi posto em causa, revelou-se um tanto impertinente vindo ao de cima o seu eventual interesse no desfecho da acção em certo sentido. Referiu que há cerca de 38/40 anos o pai encanou a água que vinha da quinta … ou quinta …, colocando um tubo com um passador para aproveitar tal água para a casa-de-banho de casa, nessa data construída, para a cozinha e para regar o jardim, da G… e também para a casa do caseiro do F…, que ia até à “tanqueta”, construída nessa altura, existente no interior do tanque. Existia ainda um outro tubo que conduzia a água da poça … para o tanque, sendo que anteriormente á colocação desse tubo a água era conduzida por um rego.
Referiu que “acho que a minha mãe nunca desativou a “tanqueta” ou depósito”, “é a água que existe em casa …ainda há uns meses estava lá …está lá a torneira”, mesmo depois da mãe ter pedido a ligação da água da Companhia, não houve qualquer alteração. Dessa água havia sobras, que vertiam na parte de cima do depósito para o interior do tanque.
Declarou ainda que o depósito público de águas foi feito em terreno da G…, e como contrapartida foi acordado com o então Presidente da Câmara, Dr. Y…, que as sobras dessa água seriam cedidas aos seus pais e, que iriam reforçar a água da nascente …, ou seja, iam para a “tanqueta”, de água limpa, para gastos domésticos de G… e da casa do caseiro do F… e, as sobras desta é que cairiam no tanque.
Quanto à argola existente na beira do tanque não soube precisar a que se destinava, desconsiderando ainda a sua existência e/ou relevância. Não esclarecendo ainda como é que o tubo que conduzia a água das sobras do depósito Municipal seria inserido na “tanqueta”.
Afirmou ainda a testemunha que para a rega da F… só iam as águas da poça …, recolhidas no tanque e, nos dias de semana definidos entre as quintas.
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A testemunha M… que trabalha por conta da ré na G…, referiu foi trolha/empreiteiro da construção civil até 2006 e agora trabalha na terra da ré e reside no local.
Declarou que o tanque recebe as águas que vem de cima da poça …, vem num tubo de 11/4 polegada, e tem dentro uma “tanqueta”, a um canto, que é mais alta cerca de 10 cm do que o tanque. Referiu que sempre ouviu dizer que essa “tanqueta” recebe uma água que vem do P… (…).Disse que tal água vem num tubo de ¾ desde o minote e cai directamente na “tanqueta”. Referiu que há pouco tempo, em Junho/Julho de 2011, andou a limpar o dito minote, tendo metido também um tubo com um passador, sobre observação de pessoal do …, porque estava entupido e não havia água na “tanqueta”.
Declarou que existem duas nascentes, a da P… e a do …, conduzidas por tubos diferentes, caindo a do P… na “tanqueta” e a dos … no tanque, no entanto a instâncias da mandatária dos autores não foi seguro quanto a essa afirmação, ou seja, se a água da poça não é a mesma que vem para o minote e do muro do P…. Mais referiu que a água da “tanqueta” destinava-se à casa da ré e ao jardim e, ainda à cozinha da casa do caseiro do F….
No que concerne ao depósito/reservatório público, referiu que essa água sobeja e que vinha para o tanque, o que disse espontaneamente, despois rectificou, dizendo, para a “tanqueta”. Disse que o tubo que conduzia essas sobras tem 1½ polegadas, e que foi a mãe da ré que o mandou ligar esse tubo à “tanqueta” e só as sobras dessa “tanqueta” é que caiam no tanque. Referindo que essa água para beber não é limpa mas para outras coisas serve. A instâncias da mandatária dos autores referiu, sem consistência, que há 19 anos ligou o tubo dessas águas para a “tanqueta”, colocando-o por baixo da respectiva tampa, suportada por dois paus. Mais referiu que não sabe há quanto tempo a ré tem água pública ao domicílio em sua casa, mas que a água da “tanqueta” continua a chegar lá e é usada para regar o jardim.
Disse que há cerca de um ano, a mando da ré, encanou, directamente, as águas sobejas do depósito/reservatório público, para a casa dela (sem passar pela “tanqueta”), tendo engatado essa água numa mina que secou a cerca de 50 metros da casa da ré e depois vai daí encanada para um tanque que a ré tem no terreiro da sua casa e é usada para regar o jardim. Referindo que hoje a Câmara não utiliza a água desse reservatório para abastecimento da população de …, não sabendo há quanto tempo isso acontece.
A testemunha referiu que sempre viu um só tubo ligado à “tanqueta”, dizendo ainda que alguém depois o cortou e o emendou para a sua água cair no tanque.
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A testemunha N…, caseiro do P… de …, situada na quinta …, desde de 1976.
Referiu que é do seu conhecimento que há 30 e tal anos o pai da ré, Sr. T…, pediu autorização ao P… para desentulhar onde brota a água na quinta …, para depois a encanar e levá-la para a sua casa. Disse ainda que teve presente quando a anterior testemunha esteve a limpar o minote em Junho/Julho de 2011 e deixou que metessem um tubito, ficando a água a correr para a G…, no seu entender da estrada da … para baixo. Mais disse que a água do minote e a água da poça (…) não é a mesma, sendo que de um e de outra saem canos diferentes, não sabendo, contudo, para onde vai cada uma dessas águas, mas também vai para baixo, dizendo desconhecer a existência de qualquer tanque e “tanqueta” onde essas águas possam cair.
Finalmente, referiu que desconhece se existem ali uma, duas ou três nascentes, mas diz que tem uma mina na quinta dos Sais que está entulhada, mas se a limpasse, decerto tiraria toda a outra água que existe mais abaixo (minote e poça …).
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Finalmente, a testemunha O…, mulher da testemunha M…, irmã da testemunha W…, com quem não fala há cerca de 4 anos, e reside no local há 18 anos, fez um depoimento pouco seguro e pouco convincente.
Começou por referir que a “tanqueta” serve para a ré levar para casa, a água do …. Sendo que as sobras da “tanqueta” caiam no tanque. Mais disse que as águas do … e da poça …, são águas diferentes, conduzidas por tubos diferentes. Refere também que o tubo que levava a água … para a “tanqueta” foi cortado, mas que não sabe quem o cortou.
Recorda-se da construção do depósito Municipal para abastecer a população …, mas nunca entro no seu interior. A água que crescia desse depósito sai pelo fundo do depósito, pensando que por um cano/tubo enterrado que passa por trás da casa da testemunha, mais referindo que desde que se lembra essas águas caiam na “tanqueta”, desconhecendo se essa água é ou não limpa. Mais referiu que quando construiu a sua casa, há 18 anos, a mãe da ré disse ao seu marido para emendar o tubo e pô-lo a cair na “tanqueta”, levantando para tanto a tampa do depósito e pondo o tubo por debaixo dela, mas agora essa água já não vai para a “tanqueta”, mas vai directamente para a G…, porque uma mina lá secou, tendo sido o marido quem fez tal obra. Referindo ainda que desconhece para onde ia a água dessas sobras, para o tanque ou para a “tanqueta”, aquando da construção do depósito Municipal.
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Pelo global teor dos supra referidos depoimentos é nossa segura convicção que nenhuma censura nos merece o que foi dado por provado nos pontos 9.º e 23.º da fundamentação de facto da sentença recorrida.
Na verdade, é nossa convicção que aquando da construção do depósito/ /reservatório público de água pelo Município … destinado ao abastecimento de água domiciliário à população …, o que sucedeu nos inícios/meados da década de 80 do século passado, por acordo entre o pai da ré, que havia cedido ao Município o terreno necessário a tal construção e essa entidade, as sobras da água desse depósito foram cedidas para irrigação dos campos de G… e do F…., por isso, foram entubadas desde o depósito até ao tanque existente na G… que represava as águas utilizadas na rega desses campos, segundo divisão feita e respeitada desde tempos imemoriais. O tubo em causa é um tubo de diâmetro relativamente grande como se pode ver pelas fotografias juntas aos autos, como foi referido pelas testemunhas e como foi observado pelo tribunal durante a inspecção ao local realizada. Esse tubo que levava a água directamente para o interior do tanque foi, inicialmente “preso” na beira do tanque com um arame e com uma pedra para o manter fixo, e depois, porque aquele modo de fixação se mostrou instável, pela sua fixação à beira do tanque por uma argola em ferro, aí fixada. Ambos esses modos de fixação do tubo foram efectuados à ocasião da construção do referido depósito público e foram efectuados pelos funcionários do município que aí andavam a trabalhar.
Finalmente sempre se dirá se não se mostrou minimamente credível que a água dessas sobras, que não era limpa, atento o modo como ficou provado que era recolhida no depósito, fossem lançadas na “tanqueta” cuja água que certamente se queria limpa porque se destinava aos usos domésticos da casa de G… e da casa do caseiro do F…. Como também se não mostrou credível que o tubo que conduzia tais sobras de água, cujo diâmetro é apreciável fosse colocado por debaixo da tampa da “tanqueta”, pois tal ocasionaria que tal tampa ficasse muito instável e que ficasse parcialmente aberta o que ocasionaria que o interior da “tanqueta” pudesse vir a ser conspurcado pelo meio que a envolvia, o que seria contrário ao que se pretendia daquela água, ou seja, que fosse própria para o consumo humano e doméstico.
Pelo que nenhuma censura nos merece o consignado nos pontos 9.º e 23.º da fundamentação de facto da sentença recorrida que assim se mantém inalterado.
No que concerne ao ponto 20.ºda fundamentação de facto da decisão recorrida, insurgem-se os réus quanto ao facto de se relacionar directa e imediatamente a construção do depósito/reservatório público de água com o benefício do serviço de abastecimento público de água ao domicílio às casas de … e do caseiro do F….
E na verdade, é nossa segura convição, que ambos os factos – construção do depósito – e – abastecimento domiciliário de água pública a tais casas - não têm imediação temporal.
Na verdade, o depósito foi construído em inícios/meados da década de 80 do século passado e só em Fevereiro de 1998 foi instalado o serviço de abastecimento domiciliário de água pública na casa de G….
Donde julgamos que se deve alterar o ponto 20.º da fundamentação de facto da sentença recorrida no segmento “…beneficiando as casas de G…, bem como dos caseiros de G… e do F…, do abastecimento, ao domicílio, de água pública”, devendo ter-se agora por provado que: - “Em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população de …, o que veio a beneficiar, em inícios de 1998, a casa de G…, que veio a ter abastecimento, ao domicílio, de água pública., bem como a casa dos caseiros do F… e de G…”.
No que respeita ao ponto 21.º da fundamentação de facto da decisão recorrida, é nossa segura convicção que desde o momento em que a casa de G… passou a ser servida por água pública ao domicílio, ou seja, desde inícios do ano de 1998, a água que até aí era conduzida directamente para a “tanqueta” existente no interior do tanque, água essa proveniente do minote existente na quinta …, e que se destinava aos usos domésticos das casas de … e dos caseiros do F…, foi redirecionada para cair directamente no tanque, cujas águas se destinavam à rega dos campos de G… e do F…, divididas, quanto ao seu uso, consensualmente, desde tempos imemoriais, porque tais águas deixaram de ser necessárias para os usos domésticos, mas mantiveram a sua utilização nas regas dos campos.
Todavia, para respeitar a verdade material dos factos apurados nos autos, dever-se-á alterar a redacção deste facto de forma que dele passe a constar que: - “A partir da ocasião em que a casa de G… passou a ser servida por abastecimento de água pública ao domicílio, a água que caía no pequeno depósito, passou a ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios referidos em 1.º e 5.º”
Finalmente, e no que concerne ao ponto 24.º da fundamentação de facto da decisão recorrida, tendo em atenção o que consta a fls. 136 verso, constatamos que a o serviço de distribuição de água pública ao domicílio foi ligado à casa da G… em 23.02.1998. Ora, como nenhuma das testemunhas soube precisar qual a data em que a mãe da ré solicitou e obteve água pública domiciliária, temos de considerar o que consta do teor do dito documento.
Assim ter-se-á de alterar o teor do referido facto por forma que dele passe a constar que: - “Há, pelo menos, 25 anos quanto às águas referidas em 8º, desde meados de 1980, quanto às águas referidas em 9° e desde inícios de 1998 quanto às águas referidas em 18º, que as referidas águas regam os prédios do F… e de G…, o que vem acontecendo desde as referidas datas, contínua e ininterruptamente, a vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo delas retiradas todas as utilidades pelos autores e réus e antecessores, quer directamente quer através de pessoas ao seu serviço”.
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Por tudo o que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto e o teor dos documentos juntos aos autos, não se vislumbra que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os quesitos em causa neste enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo, por isso, qualquer censura, devendo manter-se inalterada, excepção feita aos pontos 20.º, 21.º e 24.º da fundamentação de facto da sentença recorrida e onde se dá como provado que:
-“…beneficiando as casas de ..., bem como dos caseiros de G…. e do F…, do abastecimento, ao domicílio, de água pública.”, devendo ter-se agora por provado que: - “Em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população …, o que veio a beneficiar, em inícios de 1998, a casa de …, que veio a ter abastecimento, ao domicílio, de água pública, bem como a casa dos caseiros do F… e de G…”.
- “Passando assim a água que caía no pequeno depósito, ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios referidos em 1º e em 5º”, deve ter-se agora por assente que: - “A partir da ocasião em que a casa de G… passou a ser servida por abastecimento de água pública ao domicílio, a água que caía no pequeno depósito, passou a ser utilizada, também ela, única e exclusivamente para rega dos prédios referidos em 1.º e 5.º”
- “…e desde 1997 quanto às águas referidas em 18º…” devendo ter-se como provado que:- “Há, pelo menos, 25 anos quanto às águas referidas em 8º, desde meados de 1980, quanto às águas referidas em 9° e desde inícios de 1998 quanto às águas referidas em 18º, que as referidas águas regam os prédios do F… e de G…, o que vem acontecendo desde as referidas datas, contínua e ininterruptamente, a vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo delas retiradas todas as utilidades pelos autores e réus e antecessores, quer directamente quer através de pessoas ao seu serviço”.
Procedem, parcialmente, as respectivas conclusões dos apelantes.
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2.ªquestão – De Direito.
Desde já deixa-se consignado que as alterações acima referida e efectuada à decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância, nenhuma influência tem na decisão de Direito constante da decisão recorrida.
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Mas como resulta do teor das alegações dos réus/apelantes, insurgem-se estes contra o facto de a sentença recorrido os ter condenado a reporem a água proveniente do prédio …, mencionadas em 8.º (conduzida pelo tubo identificado em 16.º/17.º), a cair no tanque, dizendo que nada se provou quanto a tal facto e que, além disso, eles próprios, confessaram essa parte do pedido, explícita ou implicitamente, cfr. n.ºs 16 e 17 dos factos provados.
Na realidade, se vem percebemos, desde a contestação que não está em causa nos autos a água vinda da poça …, conduzida directamente, através de um tubo de plástico, para o tanque, situado na G…, acima da estrada municipal da … e que servia para a rega quer da G… quer da F…, segundo a divisão feita por dias de semana, desde tempos imemoriais, e por todos respeitada. Pois que dúvidas não há que os autores são titulares de uma servidão sobre a referida água …, servidões de presa e de aqueduto, constituída por usucapião que não foram impedidas ou dificultadas pelos réus.
O que os autores alegaram, por via desta acção, é que parte da água que denominavam …, mas que se veio a provar, tal como alegaram os réus, que provinha de um minote situado na quinta … ou do P… de … e que, por um tubo próprio era conduzido para a “tanqueta” existente no interior do tanque em causa nos autos, e que as sobras dessa “tanqueta” posteriormente também caiam no tanque e se destinavam à rega das G… do F…, nos termos convencionados desde tempos imemoriais, e que depois de ter sido construído no local um depósito municipal, em 1986, beneficiando de água pública ao domicílio a casa de … e a casa do caseiro do F…, que até então eram servidas pela água armazenada na referida “tanqueta”, tal água passou também ela a cair directamente no tanque e a ser destinada à rega das G… e do F…, nos termos convencionados desde tempos imemoriais.
Ora, como resulta e bem da decisão recorrida no que respeita às águas provenientes da poça … conduzidas directamente para o tanque em causa nos autos “Quanto às inerentes servidões de presa e aqueduto, na parte relativa às águas que provêm do tubo referido em 16.º e 17.º, a sua constituição não é sequer contestada pelos réus, sendo manifesta a procedência da acção, nesta parte, seja pela servidão legal, seja pela usucapião”. Mas, no que respeita à restante parte das águas .., no dizer dos autores, ou águas provenientes do minote existente na quinta …, no dizer dos réus, e como resultou provado nos autos, diz-se correctamente na decisão recorrida que “O mesmo não sucede com as águas referidas em 18.º, quer porque não ficou provado que proviessem do referido prédio …, quer porque os autores, por si e antecessores apenas estiveram no gozo e fruição daquela água, para rega do seu prédio, desde 1997 até 2011, ou seja, 14 anos, o que é insuficiente para a constituição da servidão por usucapião”.
Logo, relativamente ao pedido de reposição destas últimas águas, a acção teve de, e foi julgada improcedente e, relativamente às águas … que caiem directamente no tanque há apenas que declarar reconhecidos os respectivos direitos de servidão, pelo que há que retirar da parte decisória da sentença recorrida a parte em que
“Mais condena os réus a reporem a água proveniente do prédio …, (…) mencionada em 8.º… (que irriga o prédio dos autores, desde tempos imemoriais, de quinta feira ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol, pelas denominadas águas …), desde logo, por não ter sido objecto do pedido por parte dos autores, alterando-se, consequentemente, a mesma nessa conformidade.
Procedem assim as respectivas conclusões dos apelantes.
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Mais defendem os réus/apelantes que as águas em causa (águas sobejas do depósito/reservatório público) são públicas pois pertencem à entidade que custeou a construção do depósito, o Município …, e que enquanto este seu titular não regular o seu uso ou não as tornar objeto de concessão, elas podem ser aproveitadas pelos réus, o proprietário contíguo a elas, a título precário e de mera tolerância. Daí que se insurjam contra a sentença recorrida na parte em que os condenou a reporem a água sobeja do depósito público, (mencionada em 9.º), a cair no tanque.
Ora está assente nos autos que:
- o prédio descrito dos autores é irrigado, desde tempos imemoriais, de quinta feira ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol, além do mais, pelas sobras de um depósito de águas pertencente ao Município …, desde meados da década de 1980. Pois que em meados da década da 1980, o Município … construiu um depósito de águas, para abastecimento da população ….
-para represamento da água destinada à irrigação das G… e do F…, os antecessores desses prédios mandaram fazer um tanque, numa fase inicial em pedra e posteriormente alteado em betão e rebocado, sito na parte da G…, situada acima da estrada municipal da …. O qual foi intervencionado e rebocado em data não concretamente apurada mas depois de 2001, tendo o custo das obras sido partido entre autores e réus.
- para este tanque passaram a ser conduzidas, através de tubo de plástico colocado ao longo de toda a estrema sul do prédio onde foi edificado o depósito, também este outrora pertencente aos mesmos donos, aos pais da ré, que confina a nascente com a parte acima da estrada municipal da ermida da G…, pelo Município …, as sobras da água do aludido depósito. Tendo sido então propositadamente colocada, no tanque, uma argola em ferro, com uns arames, a segurar o tubo que para ali conduzia as sobras de água do depósito municipal.
- além do mais, desde meados de 1980, que as referidas águas regam os prédios do F… e de G…, o que vem acontecendo desde as referidas datas, contínua e ininterruptamente, a vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo delas retiradas todas as utilidades pelos autores e réus e antecessores, quer directamente quer através de pessoas ao seu serviço. Sem oposição dos réus.
- a ré mulher, no passado mês de Junho de 2011, mandou ligar directamente as sobras das águas do depósito municipal a um tubo que as conduz directamente para a G…. Deixando assim as mencionadas águas de cair no tanque, como vinha sucedendo desde meados da década de 1980. Privando os autores de usarem as águas das sobras do depósito público.
- é notória a diminuição do caudal da água do tanque no verão, altura em que é mais precisa para rega. Tendo, no ano passado, secado árvores dos autores.
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Como correcta e apropriadamente se refere na decisão recorrida, quer a actual Lei das Águas, Lei n.º 58/2005, de 29.12, que transpôs a Directiva n.º 2000/60/CE do Parlamento e do Conselho, de 23.10 e que estabeleceu as bases e o quadro institucional para a gestão sustentável das águas, que apenas preceitua no n.º2 do seu art.º 59.º que:
“O direito de utilização privativa de domínio público só pode ser atribuído por licença ou por concessão qualquer que seja a natureza e a forma jurídica do seu titular, não podendo ser adquirido por usucapião ou por qualquer outro título”, quer a Lei n.º 54/2005, de 15.11, que veio estabelecer a titularidade dos recursos hídricos, que apenas dispõe na al. e) do seu art.º 7.º que, são do domínio público hídrico: “Águas das fontes públicas e dos poços e reservatórios públicos, incluindo todos os que vêm sendo continuamente usados pelo público ou administrados por entidades públicas”, mas nenhuma dessas Leis revogou, na totalidade, o preceituado pelo Decreto n.º 5787-IIII, de 10.05.1919, (antiga Lei das Águas) que no seu art.º 32.º corpo, e §1.º dispõe que: “As águas sobejas das fontes, poços e reservatórios públicos construídos pelo Estado, ou corporações administrativas, pertencem à entidade que tiver custeado a construção, a qual poderá regular-lhe o uso, ou torná-lo objecto de concessão (…); Enquanto lhes não for dado outro destino ou regulado o uso, poderão os proprietários vizinhos aproveitar as águas sobejas a título precário e de mera tolerância”.
Ora a questão dos autos versa, exactamente, sobre águas sobejas de um depósito/reservatório público, e não estando provado que as mesmas foram concessionadas no seu uso a quem quer que seja, nem dado outro destino ou regulado o seu uso, a utilização que delas vêm fazendo autores e réus tem de ser considerar feito a título precário e de mera tolerância.
Pelo que se as águas dos reservatórios públicos têm natureza pública, na falta de norma em contrário, são também públicas as sobras dessas águas, como dispunha o artigo 32.º, §1.º da antiga Lei das Águas.
Trata-se de águas de titularidade do domínio público da respectiva autarquia ou município, sendo coisas, submetidas, com fundamento em determinado critério, a um regime distintivo jurídico-publicístico, “ex constituitione” ou “ex lege”.
Os bens deste tipo estão fora do comércio, pelo que não podem ser objecto de negócios jurídicos que afectem a sua natureza de bens dominiais, podendo ser concessionado o seu uso ou a sua exploração económica; todavia, tais bens não podem ser apropriados individualmente, sendo insusceptíveis de posse privatística (avultando a inalienabilidade, a imprescritibilidade (ou impossibilidade de ser adquirida por usucapião), a impenhorabilidade, a insusceptibilidade de ser dados como garantia de obrigações (hipotecas) e de serem objecto de servidões reais, a exclusão de posse privatística e a impossibilidade de serem objecto de execução forçada ou de expropriação por utilidade pública (embora seja admissível a possibilidade de desapropriação de bens do domínio público regional ou local por acto do Estado), cfr. art.º 202.º, n.º2 do C.Civil, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “CRP Anotada”, vol.I, págs.1002 e 1004 a 1007 e Luís de Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, pág. 62.
Pelo que, como correctamente entendeu a 1.ª instância, sobre as referidas águas sobejas do depósito/reservatório público, não exerciam autores e réus o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de servidão, e em que se define a posse, apenas fazendo uso permitido da coisa pública, a título precário e de mera tolerância. Sendo certo que, como se afirma na decisão recorrida, autores e réus, enquanto co-utentes dessas águas sobejas, a título precário, não podem exigir a divisão das mesmas, nem podem dispor livremente do seu uso. Trata-se de águas, de águas sobejas, recorde-se, que pertencem à entidade que custeou a construção do depósito/reservatório, ou seja, ao Município … e enquanto este seu titular não regular o seu uso ou não as tornar objecto de concessão, podem ser utilizadas pelos proprietários dos prédios vizinhos, segundo um critério de vizinhança, mas sempre a título precário e de mera tolerância.
Mas que fazer quando um dos co-utentes dessas águas sobejas, ainda que a título precário e de mera tolerância, se arroga à sua utilização exclusiva, em prejuízo do outro, como os réus o fizeram em 2011?
Dúvidas não restam que, em tal caso, se tem de respeitar o uso e costume, relevante, da utilização dessas águas sobejas, uso esse que assegure a utilização economicamente mais equilibrada, racional e sustentável desses recursos hídricos públicos.
E estando provado que, desde meados da década de 80 do século passado, as sobras da água do referido depósito/reservatório público são conduzidas directamente para o tanque sito na G…, através de tubo de plástico aí colocado para o efeito, servindo, desde então, pacificamente, para regar os prédios dos autores e dos réus, sendo de quinta ao pôr-do-sol a domingo ao pôr-do-sol para os primeiros e, de segunda ao pôr-do-sol a quinta ao pôr-do-sol para os segundos.
Perante tal factologia, é nossa convicção de que deverá manter-se a situação que existiu, de modo pacífico, aceite e respeitado por todos (autores, réus e Município …), desde há mais de 20 anos, sem prejuízo dos legítimos direitos do dito Município de a qualquer altura, regular o uso de tais águas sobejas ou as tornar objecto de concessão e isto, tal como foi decidido em 1.ª instância, e à falta de norma que preveja e regule tal situação, por aplicação analógica do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 1400.º do C.Civil.
Carecem os apelantes, pois, de qualquer razão, quando pretendem por via da denegação de justiça, alcançar um objectivo contrário à lei, ou seja, a “apropriação” ou a utilização exclusiva das águas sobejas do referido depósito/reservatório público.
Pelo que nesta parte improcedem as suas conclusões.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação, parcialmente, procedente, alterando-se a decisão recorrida, de forma que apenas conste na al. f) do seu decisório que: - “Mais se condena os réus a reporem a água sobeja do depósito público, mencionada em 9.º, a cair no tanque”.
Custas por apelantes e apelados, na proporção de ½ para cada.

Porto, 2014.01.14
Anabela Dias da Silva
(Tem voto de conformidade da Drª Maria do Carmo Domingues (1ª Adjunta) que não assina por não estar presente)
José Carvalho