Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12335/18.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PROPRIEDADE PRIVADA
Nº do Documento: RP2021090912335/18.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os requisitos ou pressupostos da aplicação da acção de impugnação pauliana resultam do disposto nos artigos 610.º e 612.º, ambos do Código Civil, e são os seguintes:
- a existência de um crédito;
- a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal;
- esse acto provoque ao credor a impossibilidade de satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé.
II - Aos credores não interessa apenas que se mantenha o valor do património que garante o seu crédito, é também importante que se mantenha o grau de exequibilidade prática dos bens que o integram.
III - É que há bens que são mais facilmente objecto de ocultação ou dissipação que outros, pelo que a substituição de bens, cujo trajeto os credores podem facilmente controlar e mais tarde, se necessário, executar, por outros, facilmente subtraídos ao campo de visão dos credores e cujo abandono de património garante é de difícil detecção, prejudica claramente o funcionamento prático da sua garantia.
IV - Assim, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não sufraga uma interpretação contrária e violadora do direito fundamental à propriedade privada, conforme prescrito no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, no artigo 17º, nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
Processo n.º 12335/18.1T8PRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
“B…, S.A.”, com sede na …, nº .., ….-… Lisboa, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra C… e mulher D…, residentes na Rua …, …., …, ….-... Gondomar, contra E… e mulher F…, residentes na Rua …, …./…., …, ….-… Gondomar, contra “G…, Lda.”, com sede na Rua …, nº .., …, ….-… Gondomar, e contra “H…, Lda.”, com sede na Rua …, .., 2 direito, ….-… Gondomar, onde concluiu pedindo que sejam declaradas ineficazes as transmissões celebradas pelos primeiros e segundos réus a favor das terceira e quarta rés, identificadas nos artigos 16º e 17º da petição inicial, devendo ser reconhecido à Autora o direito à restituição desses bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património dos obrigados à restituição e praticando os actos de conservação da garantia patrimonial legalmente previstos.
Alegou, em síntese, que os 1ºs e 2ºs Réus transmitiram em massa todo o seu património a favor das 3ª e 4ª Rés o que impossibilitou/agravou a satisfação integral do seu crédito radicado no incumprimento de contrato de crédito concedido no ano de 2009 à sociedade I…, Ld.ª e posteriormente reclamado no processo de insolvência da sociedade devedora principal, em 2013.
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Citados, os Réus contestaram.
Alegaram, em síntese, que as transmissões impugnadas não implicaram qualquer dissipação do património dos 1ºs e 2ºs Réus pois que os mesmos continuaram a deter tais bens na qualidade de únicos sócios e exclusivos titulares do capital das sociedades 3ª e 4ª Rés, acrescentando que - para além das referidas participações sociais - estes últimos conservaram no respectivo património todo um acervo de bens e direitos que permaneceu susceptível de responder pelo crédito da Autora.
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Foi realizada a audiência prévia, proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
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Realizou-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e declarou ineficazes as transmissões celebradas pelos primeiros e segundos réus a favor das terceira e quarta rés, melhor identificadas nos artigos 16º e 17º da petição inicial e, por essa via reconheceu à Autora o direito à restituição desses bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património dos obrigados à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial legalmente previstos.
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Não se conformando com a sentença proferida, os recorrentes C… e mulher D…, E… e mulher F… e “G…, Lda.” vieram interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluem da seguinte forma:
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. No exercício da sua actividade, o Banco Autor celebrou com a sociedade I…, Lda., um contrato de abertura de crédito com hipoteca e fiança, com o número interno ..…………….., formalizado no dia 19 de Fevereiro de 2009, até ao montante de €4.000.000,00, destinando um empreendimento para habitação e comércio.
2. Entre o mais, ficou convencionado que todas as utilizações, entrega do montante contratado, reembolsos e pagamentos a que a empresa outorgante se encontrava obrigada seriam efectuados através de crédito/débito na sua conta
depósito à ordem n.º …./…../…, aberta na agência da B… em Gondomar, em nome de I…, Lda.
3. O montante contratado foi efectivamente disponibilizado pela Autora à I… e utilizado por esta em seu proveito próprio.
4. Foram convencionadas e mantidas as seguintes garantias:
i) Hipoteca: Para garantia do pagamento do capital mutuado, dos juros e despesas emergentes do contrato, foi constituída Hipoteca a favor da B… sobre o bem em seguida melhor discriminado, com todas as suas benfeitorias e pertenças presentes e futuras: Prédio urbano, composto por um terreno para construção, sito na …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 4424, da freguesia de Gondomar /inscrito na matriz urbana sob o artigo 8966.
ii) Fiança: C…, D…, E… e F… responsabilizaram-se como fiadores e principais pagadores de todas e quaisquer quantias sejam ou venham a ser devidas à B… pela parte devedora no âmbito do presente contrato de abertura de crédito, quer a título de capital, quer de juros, moratórios os remuneratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos e dão antecipadamente o seu acordo a prorrogações do prazo e moratórias que foram convencionadas entre a B… e a parte devedora. Os fiadores renunciaram ao benefício do prazo estipulado no artigo 782.º do CC e ao exercício das excepções previstas no artigo 642.º do mesmo código.
5. Ainda no exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a mesma empresa um contrato de emissão de garantia bancária, com o n.º ..…………….., formalizado por documento particular no dia 19 de Fevereiro de 2009, a favor da Câmara Municipal …, com responsabilidade até € 93.410,00m destinando-se o mesmo a garantir a boa execução de obras de pavimento e arranjos exteriores termos e condições constantes do referido contrato por integralmente reproduzido.
6. Como garantia do referido contrato foi prestado aval, em livrança em branco, pelos primeiros e segundos
7. Em 23/10/2013, na sequência do encerramento do processo especial de revitalização, sem aprovação do plano de recuperação apresentado, a sociedade I…, Lda., foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado no processo nº 2989/13.0TJVNF Braga, Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz 2.
8. A Autora reclamou os seus créditos no referido processo de insolvência.
9. O processo de insolvência encontra-se pendente em fase de liquidação.
10. O valor total reclamado pelos credores e reconhecidos pela Senhora Administradora na lista que elaborou é superior ao valor dos bens apreendidos para a respectiva massa insolvente.
11. A autora reclamou o referido processo de insolvência o crédito de € 3.094.501,52 (actualmente está no montante de €3 .426.108,05, sendo € 2.941.484,15 de natureza garantida).
12. A Autora apenas recuperou € 1.959.465,95.
13. Os RR prestaram as garantias referidas em 4º e 6º e que a Autora aceitou, por ser conhecedora do património imobiliário dos primeiros e segundos RR.
14. Em 03.09.2013, os primeiros réus, transferiram, a titulo de prestações acessórias gratuitas, para a sociedade G… terceira Ré, constituída em 09.08.2013 e da qual constituição, os únicos sócios:
1. Fracção autónoma, designada pela letra “A”, composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 A, com um valor patrimonial de € 35.593,23;
2. Fracção autónoma, designada pela letra “C”, composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 C, com um valor patrimonial de €3 6.349,88;
3. Fracção autónoma, designada pela letra “D”, composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 D, com um valor patrimonial de € 38.016,55;
4. Fracção autónoma, designada pela letra “G”, composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar e descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 G, com um valor patrimonial de € 37.679,13;
5. Fracção autónoma, designada pela letra “I”, composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 com um valor patrimonial de € 36.063,58;
6. Fracção autónoma, designada pela letra “D” composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 1099/19881209-D com um valor patrimonial de € 141.718,13;
7. Fracção autónoma, designada pela letra “AI” composta por rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 1099/19881209 -AI com um valor patrimonial de € 48.578,98;
8. Fracção autónoma, designada pela letra “AJ” composta por rés do chão destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 1099/19881209-AJ com um valor patrimonial de €54.086,00;
15. Em 26.11.2013, os segundos RR. transferiram, também a título de prestações para a sociedade H…, quarta Ré, constituída em 05.11.2013 e da qual os segundos RR eram, na data da sua constituição, os únicos sócios os seguintes imóveis:
1. Fracção autónoma, designada pela letra “B”, composto por rés do chão destinada a estabelecimento comercial, sito em …, Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 593/19870806 com um valor patrimonial de €59.857,15;
2. Prédio urbano, composto por rés-do-chão e andar, com anexos e quintal, sito na Rua …, …./…., …, inscrito na matriz urbana sob o nº 6765, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 1000/19920305, com um valor patrimonial de € 105.400,00;
3. Fracção autónoma, designada pelas letras “AK”, composta por rés destinada a estabelecimento comercial, sita em …, Gondomar, descrito composta por rés-do-chão, Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o nº 1647/19900627- AK, com o valor patrimonial de € 36.554,36;
4. ½ da quota referente à fracção autónoma, designada pelas letras “AI”, composta rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2068/20014010-AI;
5. ½ da quota referente à fracção autónoma, designada pelas letras “AJ”, composta rés do chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2068/20014010 - AJ
16. As referidas transmissões foram realizadas a título gratuito.
17. Nas execuções interpostas pela B… até ao momento não foram penhorados quaisquer bens dos réus.
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2.2 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
1. Os Réus pessoas singulares preservaram quer os seus rendimentos (de pensões de reforma e de trabalho dependente), quer o restante património imobiliário que detinham.
2. O prédio urbano afecto a armazéns e actividade industrial, sito na Rua …, nº .., da freguesia …, concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2351 e inscrito na matriz predial da União das Freguesias … sob o art. 8378º, ainda hoje é propriedade dos Réus C… e E….
3. Tendo a execução das garantias pessoais (avais e fianças) dos créditos então existentes sido por diversas vezes abordada na reuniões e negociações entre os legais representantes da sociedade devedora e a instituição de crédito aqui autora, sempre os representantes da aqui Autora sublinharam - de forma expressa e reiterada - que a B…, S.A. não iria accionar essas mesmas garantias.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões por resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Admissibilidade da junção dos documentos nas alegações;
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do mérito do decidido.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1 Da admissibilidade da junção dos documentos
Os Réus/Recorrentes vieram juntar aos autos dois documentos com as alegações de recurso, tendo a Ré/Recorrida se oposto à sua junção.
Cumpre apreciar.
Decorre do disposto no nº 1 do artigo 651º, do Código de Processo Civil que “As partes apenas podem juntar documento às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Por sua vez, dispõe o artigo 425º, do mesmo diploma que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Do disposto nos referidos preceitos resulta que as partes só podem juntar documentos em sede de recurso numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1ª instância.
Relativamente à primeira hipótese, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva.
O primeiro caso tem a ver com o momento em que o documento foi produzido e o segundo caso com o momento em que o documento é conhecido.
No caso vertente, os documentos em referência encontram-se datados de 18 de dezembro de 2020, logo, os ditos documentos são posteriores ao encerramento da audiência de discussão e julgamento pelo que os apresentantes, igualmente, não tiveram conhecimento do seu conteúdo em momento anterior ao encerramento da discussão.
Nos termos vistos e face ao exposto, admite-se a junção aos autos dos documentos apresentados.

4.2. Da impugnação da Matéria de facto
Os apelantes em sede recursiva manifestam-se discordantes da decisão que apreciou a matéria de facto, pugnando pela alteração dos factos considerados como provados sob os pontos 11, 12, 14 e 17 nos termos a seguir referidos, bem como pugnam que sejam aditados e considerados provados os factos vertidos nos artigos 22º, 23º e 27º da contestação.
Pugnam que a redação do ponto 11º dos factos provados seja alterada por forma a excluir a menção ao valor actual do crédito da Autora, passando a ser sómente a seguinte: “A autora reclamou no referido processo de insolvência o crédito de € 3.094.501,52”
Pugnam, ainda, que a redacção do ponto 12º dos factos provados seja alterada nos seguintes termos: “Até à data, a Autora recuperou € 1.959.465,95”.
Defendem, ainda, que as alíneas 7ª e 8ª do ponto 14º dos factos tidos por provados padecem de lapsos manifestos na identificação quer da proporção dos direitos transmitidos, quer da descrição predial correspondente aos bens imóveis aí listados, pelo que a respectiva redacção deverá ser alterada nos seguintes termos:
“7. ½ da quota referente à fração autónoma, designada pelas letras “AI”, composta por rés-do-chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2068/20010410 - AI, com um valor patrimonial de € 48.578,98;
8. ½ da quota referente à fração autónoma, designada pelas letras “AJ”, composta por rés-do-chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2068/20010410 - AJ, com um valor patrimonial de € 54.806,00”.
Pugnam, ainda, pela exclusão do ponto 17.º do elenco dos factos provados ou, assim se não entendendo, que ao mesmo seja dada a seguinte redacção: “Na execução interposta pela B… em 05.06.2018, até ao momento não foram penhorados quaisquer bens dos réus, apesar do património penhorável aí identificado.”.
Pretendem, igualmente, que a factualidade descrita nos artigos 22º e 23º da contestação, sejam incluídos num novo ponto dos factos provados, com a seguinte redacção: “As transmissões vertidas nos pontos 14º e 15º dos factos provados eram adequadas a otimizar a atividade das sociedades Rés, bem como a reduzir a tributação dos rendimentos gerados pela locação dos imóveis transmitidos”.
Pugnam, por fim, que conste dos factos provados um novo ponto com a seguinte redacção: “Mesmo após as entregas efetuadas, os Réus pessoas singulares preservaram quer os seus rendimentos (de pensões de reforma e de trabalho dependente), quer o restante património que detinham, bens e direitos esses que incluíam a totalidade do capital social das sociedades Rés, os ativos descritos no doc. junto aos autos pela própria Autora em 29.10.2020 e o prédio identificado no doc. nº 3 da Contestação”.

Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelos recorrentes e, se necessário, outras provas, maxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“Os factos que constam sob os nºs 1º a 11º e 13º a 16º foram aceites pelas partes.
O tribunal fundamentou a sua convicção quanto aos demais factos que considerou provados e não provados na análise crítica e integrada da globalidade da prova produzida nos autos, designadamente dos documentos juntos aos autos, em conjugação com o depoimento/declarações de parte e das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, de acordo com as regras da experiência comum, como oportunamente se especificará:
O facto nº 12 resulta da informação prestada pela senhora Administradora da Insolvência (fls. 147 v.).
A testemunha J… (funcionário da B… desde 1993 na Direcção de Negócios Gerais, no departamento de concessão de crédito e no de recuperação de crédito) relatou ao tribunal que só acompanhou os assuntos relativos à sociedade I…, Lda. até à declaração de insolvência.
Confirmou a existência do contrato de abertura de crédito e a prestação de garantias por parte dos avalistas. Aquando da propositura do Processo Especial de Revitalização, vulgo, PER em Março de 2013, o crédito da B… ascendia a acerca 2.655.000,00.
Mais relatou que no início de 2013 fez uma relação de bens dos devedores e verificou que tinham estes sido transmitidos para duas sociedades (embora não possa garantir que tenham sido todos os bens).
A testemunha K… (funcionário da B… há 28 anos, actualmente director comercial, e que no ano de 2013 se ocupava da recuperação de crédito) referiu igualmente que só acompanhou os assuntos relativos à sociedade I…, Lda. até à declaração de insolvência. Acrescentou que a B… votou contra a aprovação do PER, e que apesar de reuniões entre esta e os devedores, em Agosto de 2013, a B… não os desonerou do pagamento do crédito que detinha,
A testemunha L… (funcionário da B… desde 1991, sendo actualmente gestor na área de contencioso) prestou informações sobre o montante do crédito da autora (facto nº 11)
A testemunha M… reconheceu que na sua qualidade de contabilista certificado elucidou os réus sobre a vantagens tributárias da gestão dos imóveis geradores de rendimentos ser feita através de uma empresa. Recorda-se que os réus em 2017 ou 2018 venderam um armazém pelo valor de €300.000,00.
O facto nº 17 resulta dos documentos juntos com os requerimentos datados de 28.10.2020 e 03.11.2020 (diligências levadas a cabo pela senhora Agente de execução).
Relativamente aos factos dados como não provados não foi feita qualquer prova adicional em julgamento.”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelos apelantes.
Pugnam, desde logo, os apelantes que a redacção do ponto 11º dos factos provados seja alterada por forma a excluir a menção ao valor actual do crédito da Apelada, passando a ter a seguinte redacção: “A autora reclamou no referido processo de insolvência o crédito de € 3.094.501,52”.
Pugnam, ainda, que a redacção do ponto 12º dos factos provados seja alterada nos seguintes termos: “Até à data, a Autora recuperou € 1.959.465,95”.
Adiantamos, desde já, que parece-nos que não tem fundamento a pretensão dos apelantes em ver alterada a resposta aos referidos pontos de facto.
Com efeito, no artigo 11º da petição inicial alegou a B…, S.A. que o seu crédito, à data da instauração da acção, era de € 3.426.108,05, sendo € 2.941.484,15 de natureza garantida.
Na sua contestação, os aqui apelantes apenas referem no seu artigo 4º que “desconhecem em absoluto, se os aludidos créditos efetivamente subsistem e, se sim, por que valor”.
Por sua vez, também no artigo 8º da contestação aludem que o remanescente dos créditos referidos no artigo 11º será ou não pago após a liquidação total na insolvência.
Ou seja, resulta do exposto que os apelantes não impugnaram o crédito da B…, S.A., tendo-se limitado, apenas, a sustentar que a B…, S.A. não concretizou os valores do seu crédito.
Acresce que, os apelantes eram gerentes e sócios da mutuária e insolvente “I…, Lda” e gerentes e sócios das sociedades “H…” e “G…”.
Assim sendo, na qualidade de sócios e gerentes da mutuária teriam que saber qual a quantia que a B…, S.A. lhes tinha financiado e disponibilizado ao longo do tempo no âmbito do contrato de conta-corrente, uma vez que o referido facto era do seu conhecimento pessoal.
Por sua vez, na sua resposta, a B…, S.A. reitera que o seu crédito, à data da instauração da acção, ascendia a € 3.426.108,05 e que já tinha em conta o valor recebido na insolvência de € 517.264,36.
Ademais, para prova dos referidos factos ofereceu como documentos nºs 1 e 2, as notas de débito datadas de 22.10.2013 e de 14.05.2018, que não foram impugnados pelos apelantes.
Ora, dado que estes documentos particulares não foram impugnados pelos Apelantes, gozam de força probatória entre as partes, nos termos do disposto no artigo 376.º, n.ºs. 1 e 2, do Código Civil.
Além disso, conforme consta dos contratos celebrados ao abrigo do princípio da liberdade contratual, o extrato de conta-corrente e os documentos em débito emitidos pela B…, S.A. fazem prova dos montantes em dívida (cfr. nºs 18 e 19, do documento complementar junto com doc. 1 com a petição inicial).
Ademais, na motivação da matéria de facto considerada como provada sob o ponto 11 a Srª Juiz a quo alicerçou-se, igualmente, nos documentos juntos aos autos e na prova testemunhal, designadamente no depoimento prestado pela testemunha L…, a qual, no seu depoimento, que se nos afigura ciente e isento, aludiu ao montante do crédito à data da propositura da acção e ao montante na data da audiência.
Afigura-se-nos, assim, estar devidamente comprovado o crédito da Autora/apelada à data da instauração da execução no montante de € 3.426.108,05.
Ademais, os apelantes, nas suas alegações, ao requererem que nos artigos 11º e 12º apenas passe a constar que a B…, S.A. reclamou na insolvência da mutuária “I…, Lda.” o montante de 3.094.501,52 e que só recebeu da massa insolvente até à data o montante de € 1.959.465,95, sempre estaria a admitir um crédito da B…, S.A. no montante de € 1.135.035,57 (€ 3.094.501,52 - € 1.959.465,95).
Relativamente à pretensa alteração da redacção das alíneas 7ª e 8ª do ponto 14º da matéria de facto dada como provada goza de justeza a argumentação dos apelantes quanto defendem o lapso ocorrido na identificação da descrição predial e na proporção alienada, que merece ser atendida e rectificada.
Afigura-se-nos, ainda, que à luz das duas certidões judiciais da execução n.º 12828/12 oferecidas nas alegações, será de considerar provado o ponto 17 dos factos provados com a seguinte redacção: “Na execução interposta pela B… em 05.06.2018, até ao momento não foram penhorados quaisquer bens dos réus livres de penhoras anteriores”.
Entendem, ainda, os Apelantes que deviam ter sido considerados como provados os factos alegados na contestação sob os nºs 22, 23 e 27 com a redacção atrás sugerida.
Ora, como é sabido, a matéria de facto provada só deve (ou só tem de) conter aquilo que se afigure relevante para a decisão de direito segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sendo certo que qualquer dos pontos de facto pretendidos aditar são irrelevantes para alterar a decisão proferida, pelo que afigura-se-nos não se justificar o seu aditamento.
Em face do que vem de ser exposto, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto devendo a redacção das alíneas 7ª e 8ª do ponto 14º dos factos tidos por provados ser alterada nos seguintes termos:
“7. ½ da quota referente à fração autónoma, designada pelas letras “AI”, composta por rés-do-chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº2068/20010410 - AI, com um valor patrimonial de €48.578,98;
8. ½ da quota referente à fração autónoma, designada pelas letras “AJ”, composta por rés-do-chão, destinada a estabelecimento comercial, do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o nº 7730, freguesia …, Gondomar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 2068/20010410 - AJ, com um valor patrimonial de €54.806,00”.
Deve, ainda, o ponto 17 dos factos provados passar a ter a seguinte redacção: “Na execução interposta pela B… em 05.06.2018, até ao momento não foram penhorados quaisquer bens dos réus livres de penhoras anteriores”.
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim a atrás mencionada com as alterações referidas.
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4.3. Do mérito do decidido.
Como é sabido, a acção ou impugnação pauliana constitui um meio de conservação da garantia patrimonial, colocado à disposição do credor pelo ordenamento jurídico, que visa permitir-lhe reagir contra actos que ponham em perigo a garantia geral dos seus créditos, praticados pelo devedor, mediante a redução do activo ou o aumento do passivo - cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, edição de 2010, pág. 523, Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 717, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª edição, pág. 434 e acórdão do STJ de 20/3/2012, proferido no processo n.º 29/03.7TBVPA.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Os requisitos ou pressupostos da sua aplicação resultam do disposto nos artigos 610.º e 612.º, ambos do Código Civil, e são os seguintes:
- a existência de um crédito;
- a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal;
- esse acto provoque ao credor a impossibilidade de satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé - cfr., entre outros, Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 524, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª edição, pág. 16; Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição, páginas 155-209; Almeida Costa, obra citada, págs. 722-728.
Tal como resulta do citado artigo 612.º, n.º 1, este requisito da má fé só é requerido quando o acto tenha natureza onerosa, já que os actos gratuitos são sempre impugnáveis desde que se verifiquem os restantes requisitos.
O n.º 2 do mesmo artigo define a má fé como “(…) a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.
Sabendo-se que a boa fé subjectiva nada mais é do que a projecção, na esfera das pessoas, das regras objectivas da boa fé, existe má fé quando o devedor e o terceiro tenham procedido em “desacordo com a cláusula geral da boa fé, mormente com o fito de prejudicar o credor. Verifica-se, pois, que a má fé acaba por ser uma característica do próprio acto a impugnar, derivando do facto de devedor e terceiro, na sua celebração, terem como fim o prejuízo do credor. Ou, se se quiser, o acto que cai na previsão pauliana é um acto finalisticamente destinado a prejudicar o credor” - cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 525.
Confrontando o citado artigo 612.º com a alínea a) do artigo 610.º, o Professor Menezes Cordeiro, na página 526 da mesma obra, concluiu que o seu alcance é bem menor do que aquilo que poderia parecer, justificando do seguinte modo:
“Efectivamente, resulta do artigo 612.º que o acto oneroso só está sujeito à impugnação quando devedor e terceiro estejam de má fé. Sendo esta a consciência do prejuízo causado ao credor, verifica-se que há, seguramente, sempre dolo, directo ou, pelo menos, necessário. Concluímos daqui que, em relação a actos onerosos, a pauliana procederia sempre, verificado o condicionalismo requerido, independentemente da anterioridade ou posterioridade do acto em relação ao crédito prejudicado.
O artigo 610.º, a) tem, por isso, a sua utilidade circunscrita aos actos gratuitos. Quando estes sejam posteriores ao crédito prejudicado, a pauliana procede sempre, independentemente da boa ou má fé dos seus intervenientes - e, logo, com dolo ou sem ele. Mas se o acto gratuito for anterior ao crédito, então, pelo artigo 610.º, a), ele só procede quando tenha sido dolosamente praticado para prejudicar o credor”.
A jurisprudência do STJ sustenta que a má fé para efeitos do n.º 2 do citado art.º 612.º, enquanto “consciência do prejuízo” ali referido, pode revelar-se sob a forma dolosa, em qualquer das suas formas (directa, necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente, mas não na modalidade de culpa inconsciente - cfr. acórdãos de 12/3/2009, proferido no processo n.º 09B0264, e de 13/10/2011, proferido no processo n.º 116/09.8T2AVR-Q.C1.S1, e demais neste citados, disponíveis em www.dgsi.pt., e, ainda, o acordão de STJ de 14/4/2015, proferido no processo n.º 593/06.9TBCSC.L1.S1, disponível no mesmo sítio.
Importa ainda dizer que, no que concerne ao ónus da prova, cabe ao credor provar o montante do crédito que tem contra o devedor e da anterioridade dele em relação ao acto impugnado, bem como a má fé quando o acto for oneroso, enquanto ao devedor ou ao terceiro adquirente compete demonstrar a existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado (artigo 611.º do Código Civil).
Feita esta breve abordagem, detenhamo-nos, com acuidade, naquilo que se passou no caso em análise.
Ora, no caso vertente, encontra-se provado o montante do crédito, bem como a natureza gratuita dos actos ocorridos.
Por sua vez, incumbia aos Apelantes, nos termos do disposto no artigo 611º do Código Civil, o ónus da prova que possuíam bens de igual ou valor superior ao valor daquele património alienado.
Ou seja, competia aos Apelantes comprovar o valor do património que alegadamente detinham se encontrava livre de ónus ou encargos e que era suficiente para pagar a divida da B…, S.A., o que não lograram fazer.
Defendem, porém, os Recorrentes que não houve qualquer diminuição da garantia patrimonial, uma vez que houve apenas substituição dos bens imóveis por quotas, pelo que o seu património é exactamente o mesmo.
Afigura-se-nos que a referida argumentação não colhe pelas razões a seguir enunciadas.
Com efeito, em primeiro lugar, estamos perante bens de natureza diferente: bens imobiliários em comparação com a configuração dos direitos que incidem sobre quotas de uma sociedade.
O direito dos sócios na sociedade, ou melhor a sua participação social, é um bem móvel ainda que o património social integre bens imóveis.
Daí se dizer que “os sócios não têm direitos nem sobre os bens isolados da sociedade, nem sobre o património da sociedade no seu todo” - cf. Soveral Martins, Estudos de Direito das Sociedades, pág. 73.
Em segundo lugar, não se pode estabelecer uma relação de equivalência entre o valor das entradas em espécie e o valor das quotas que correspondem à percentagem da participação no capital social.
Em terceiro lugar, não se pode comparar a volatilidade do valor de quotas com o valor de bens imóveis.
Em quarto lugar, as quotas são facilmente transmissíveis.
É evidente que com a transmissão gratuita houve um enfraquecimento da garantia patrimonial dos apelantes pela especial facilidade de transmissão de quotas afectando também a possibilidade de execução das mesmas.
Afigura-se-nos, por esse motivo, que existe, assim, um agravamento da impossibilidade de satisfação integral ou parcial do crédito da B…, S.A., ao contrário dos bens alienados.
Ou seja, substituíram-se bens que a B…, S.A. podia facilmente executar por outros que é de crer sejam subtraídos à sua acção.
Como alude Cura Mariano, “Da Impugnação Pauliana”, pág. 131: “Na verdade aos credores não interessa apenas que se mantenha o valor do património que garante o seu crédito, é também importante que se mantenha o grau de exequibilidade prática dos bens que o integram. É que há bens que são mais facilmente objecto de ocultação ou dissipação que outros, pelo que a substituição de bens, cujo trajeto os credores podem facilmente controlar e mais tarde, se necessário, executar, por outros, facilmente subtraídos ao campo de visão dos credores e cujo abandono de património garante é de difícil detecção, prejudica claramente o funcionamento prático da sua garantia. Assim, apesar de não ser a troca desses bens quem diretamente causa um prejuízo quantitativo aos credores, a criação das condições propícias a que ocorra esse prejuízo justifica a possibilidade de um ataque preventivo, atenta a dificuldade de posteriormente se conseguir uma reação eficaz aos atos de alienação ou ocultação de bens tão fluídos”
O mesmo autor, a pág. 180, refere: “Assim, o valor dos bens de fácil ocultação ou dissipação e, portanto, de difícil penhora em processo executivo, não deverá incluir-se no valor do património do credor”.
Assim, face aos factos provados, impõe-se concluir que os RR. não lograram provar que são titulares de património que iguala ou supera o valor do referido crédito.
Referem, porém, os Apelantes que tendo saído da esfera patrimonial dos alienantes o direito de propriedade sobre as duas quotas, tal foi compensado com a entrada simultânea das participações sociais na sociedade anónima.
Tal argumentação, todavia, também não colhe quando nos defrontamos com a natureza do direito sobre bens imobiliários, em comparação com a configuração dos direitos que incidem sobre quotas de uma sociedade anónima.
Com efeito, de modo algum se pode estabelecer uma relação de equivalência entre o valor das entradas em espécie e o valor das quotas que correspondem à percentagem da participação no capital social.
Ora, nos termos do artigo 25º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, o valor nominal das quotas atribuídas aos sócios no contrato de sociedade não pode exceder o valor das suas entradas. E sendo estas em espécie, esse valor deve ser aferido através do relatório do revisor oficial de contas, o qual vem referenciado na escritura de constituição da sociedade.
Ademais, uma vez realizadas as entradas em espécie, através da transferência de direitos sobre bens imóveis, como sucedeu no caso concreto, tais direitos dissolvem-se no património da sociedade, sendo o valor das quotas aferido por outros meios que não apenas pelo valor inicial das entradas em dinheiro ou em espécie.
Nessa medida, em momento posterior, o valor das quotas não corresponde necessáriamente ao seu valor nominal, podendo ser superior, mas podendo também ser inferior, tudo dependendo de factores diversos que integram o activo, o passivo e outros aspectos ligados à vida societária.
Além disso, as quotas atribuídas a cada um dos accionistas podem ser fácilmente mobilizáveis, sendo que no caso concreto o capital social ficou titulado por 68.000 quotas nominativas ou ao portador, sendo de notar que as quotas ao portador são transmissíveis mediante a entrega dos títulos, nos termos do artigo 327º do Código das Sociedades Comerciais.
No caso vertente, essa divergência mais se acentua, quando se verifica que as quotas foram transferidas para uma sociedade cujo objecto social é precisamente a “aquisição e administração de imóveis para revenda e para arrendamento habitacional, comercial e actividades turísticas”.
Pode, assim, dizer-se que se afigura evidente, pela prova produzida que há um enfraquecimento da garantia patrimonial dos primeiros RR. pela especial facilidade de transmissão de quotas própria das sociedades anónimas, que afecta a possibilidade de execução das mesmas.
Não se vislumbra, assim, que a decisão proferida pelo Tribunal a quo sufrague uma interpretação contrária e violadora do direito fundamental à propriedade privada, conforme prescrito no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, no artigo 17º, nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes.
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Notifique.

Porto, 09 de Setembro de 2021
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)