Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
194/20.9PHVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA RODRIGUES
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
LESÕES INSIGNIFICANTES
TENTATIVA
ATOS PREPARATÓRIOS
ATOS DE EXECUÇÃO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
Nº do Documento: RP20220504194/20.9PHVNG.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem; por ofensas no corpo deve entender-se, “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”.
II - Tal crime abrange qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente de esta provocar lesão corporal, como decorre do Assento n.º 2/92 do STJ de 18 de dezembro de 1991 (in DR, serie I-A de 8 de Fevereiro de 1992) que declara: “integra o crime do art.º 143.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.”
III - Na situação em apreço, na medida em que se apurou que: «…) quando a ofendida pretendia sair de casa do arguido, este a agarrou pelos dois braços, apertando-os, por querer que a mesma voltasse a entrar em sua casa, o que fez contra a sua vontade», estão verificados os elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física simples
IV - O critério legal para a distinção entre atos preparatórios e atos de execução é um critério objetivo; os atos de execução hão de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem; enquanto o ato de execução é um ato dotado de capacidade potencial para a produção do evento criminoso, o ato preparatório é um ato sem essa capacidade, é ainda um ato equívoco, ambíguo, que está ainda demasiado longe da consumação e que, por isso, também não afeta geralmente o sentido jurídico da comunidade, não constitui ainda, pelo menos em regra, um perigo objetivo para o bem jurídico, e que tanto poderá servir para preparar o crime como para quaisquer outras finalidades.
V - Nos termos do preceituado no art. 22º, nº 2, do Código Penal, são atos de execução de um crime: a) aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
VI - Na situação vertente, é indubitável que o arguido praticou materialmente atos necessários a atingir no corpo a ofendida, aproximando-se dela exaltado e tendo praticado imediatamente antes atos que, de acordo com a experiência comum, seria expectável que se seguissem atos de moléstia no corpo dela
VII - O circunstancialismo fáctico das ações do arguido em apreço nestes autos que decorre de um desentendimento deste com a ofendida, até então sua namorada, por razões que se prendem com o acabar da relação por parte desta última, e apurada tentativa de confrontação física com ela, não revela, por si só, especial censurabilidade, ou uma exigência acrescida de respeito, por forma a dar-se como preenchida a agravante qualificativa do crime de ofensa à integridade física.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 194/20.9PHVNG.P1


Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO

Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum Singular nº 194/20.9PHVNG do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (J2) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi em 24.11.2021 proferida sentença, na qual se decidiu (transcrição):

“a) Absolver o arguido pela prática de dois crimes de violência doméstica pelo qual vinha acusado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e 4 e 5 do C.P.;
b) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do CP, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €600,00 (seiscentos euros) a que correspondem 80 dias de prisão subsidiária;
c) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, nos termos dos artigos 21.º, 22, 1 e 2, c), 143.º, 145.º e 132.º, 2, b) do CP, na pena de seis meses de prisão;
d) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em b) e c), mantendo a diferente natureza das mesmas, condenar o arguido na pena única de 120 dias de multa e seis meses de prisão;
e) Substituir a pena de prisão aplicada por iguais dias de multa, num total de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de €5,00, num total de €900,00.
*
Custas pelo arguido, que se fixam em 2 UC’s.
(…)”

Inconformado com esta decisão, o arguido AA interpôs recurso para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes conclusões, que se transcrevem:
(…)

XXV. O simples facto do Recorrente ter chegado junto da Ofendida não preenche o tipo subjectivo e objectivo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada.
XXVI. O Recorrente estava sozinho contra quatro elementos do lado da Ofendida, a Ofendida não procurou fugir do local.
XXVII. Pelo que, por força do disposto no artigo 23.º, n.º 3 do Código Penal, a tentativa não é punível atenta a manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime
XXVIII. Pelo que estamos perante uma tentativa impossível ou inidónea.
XXIX. Temos assim que, a matéria de facto provada é insuficiente para conduzir à condenação do Recorrente na prática de um crime de ofensa à integridade física qualificado, na forma tentada, pelo que deverá o mesmo ser absolvido do referido crime.
XXX. Em face de tal deverá o arguido ser absolvido, beneficiando do princípio in dubio pro reo.
XXXI. Quanto à sua qualificação, para a mesma ser ponderada crime, a tentativa teria de ser punível, e, salvo o merecido respeito, a mesma configura uma tentativa impossível.
XXXII. O facto do Recorrente ter partido a porta de vidro, da entrada do prédio da Ofendia, a ter destrancado, e, ter pontapeado a porta de acesso à casa da mesma, configuram factos passíveis de integrar o crime de dano p. e p. pelo artigo 212.º do Código Penal.
XXXIII. O mesmo não foi perseguido criminalmente quanto ao crime de dano.
XXXIV. Em face do que tal circunstância não se assume como especialmente censurável ou perversa, no contexto em que o Recorrente não agrediu a Ofendida, tendo a sua conduta sido circunscrita aos danos mencionados.
XXXV. É de relevar que o Recorrente estava desgostoso com o término da relação e tudo o que queria era dialogar com a Ofendida.
XXXVI. O facto de ter agido precipitadamente, danificando as portas do prédio e da habitação da Ofendida, provado que ficou que os pais da Ofendida prontamente confrontaram o Recorrente e que este não os agrediu nem agrediu a própria Ofendida, tendo todos os intervenientes se envolvido numa discussão verbal, não se revela como especialmente censurável.
XXXVII. Pelo que, também quanto à qualificação do crime de ofensa à integridade física na forma tentada, a matéria de facto provada é insuficiente para conduzir à condenação do Recorrente, devendo por isso “cair” a qualificação do crime.
(…)
2. FUNDAMENTAÇÃO

Atentas as conclusões supra transcritas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões por aquele submetidas ao conhecimento deste tribunal prendem-se com:

1º No que ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do CP tange, impugnação da matéria de facto no que se refere ao facto provado sob o nº 3; atipicidade penal da conduta dada a insignificância do respetivo grau de ilicitude; insuficiência da matéria de facto, nos termos do art. 410º nº 2 al. a) do CPP; e actuação do principio in dúbio pro reo

2ª Em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 143.º, 145.º n.º 1 alínea a), e n.º 2, por remissão para o artigo 132.º, n.º 2 alínea b) conjugados com os artigos 21.º, 22.º, n.º 1 e n.º 2 alínea c), todos do CP: insuficiência da matéria de facto; impossibilidade da tentativa de ofensa à integridade física qualificada e sua não punibilidade; e actuação do principio in dúbio pro reo

(…)
Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso vejamos primeiro a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido (transcrição):

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS PROVADOS.
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados, com relevo para a apreciação da causa:
1. Nos quatro meses que mediaram entre Novembro de 2019 e Abril de 2020, o arguido e a ofendida BB mantiveram uma relação de intimidade, sem coabitação;
2. Nesse período de tempo, o arguido efetuando chamadas e enviava sucessivas mensagens de texto para a ofendida, a questionar onde estava;
3. Ambos discutiam por várias vezes, por razões não concretamente apuradas, sendo que numa dessas situações, no período referido em 1), quando já tinham decorrido pelo menos dois meses de namoro, e quando a ofendida pretendia sair de casa do arguido, este a agarrou pelos dois braços, apertando-os, por querer que a mesma voltasse a entrar em sua casa, o que fez contra a sua vontade;
4. A ofendida deu por terminado o namoro de ambos;
5. Não aceitando esta decisão da ofendida, cerca das 19:00 horas do dia 9 de Maio de 2020, o arguido escreveu e endereçou à ofendida, as mensagens com o teor:
- «ou vens comigo falares nas calmas oh juro mesmo aqui pelo meu irmão que hoje não saio daqui podes chamar quem quiseres a mim ninguém mete mete medo»;
- «eu não me esqueço»;
- «És uma vergonha passado dois dias meteste outro mas eu não sou nenhum corno Obla metes histórias a meter nojo»;
- «Onde tas então»;
- «Eu tou aqui e não vou sair daqui te garanto alguém que me venha bater juro te aqui meter as tuas amigas ao barulho para me virem bater então eu vou meter gente também se alguém me tocar te garanto aqui que meto…»;
6. E cerca das 20:10 horas desse mesmo dia, o arguido dirigiu-se para a residência da BB – sita na Rua ..., em Vila Nova de Gaia – onde partiu o vidro da porta de acesso à zona comum do prédio, logrando (assim) destrancá-la;
7. Após, o mesmo dirigiu-se à citada habitação e depois de a ofendida lhe ter recusado a entrada, desferiu um número indeterminado de pontapés na respetiva porta de acesso, fazendo com que a mesma cedesse e se abrisse;
8. Temendo pela vida e integridade física da BB, os respetivos progenitores fizeram barreira no hall de entrada, impedindo o arguido de avançar na direção daquela;
9. Não obstante e indiferente ao facto de estar perante os pais da ofendida, o AA avançou e logrou chegar-se à mesma;
10. E o denunciado só não a atingiu no seu corpo, pois que – entretanto – um tio da ofendida e um vizinho acorreram a esse mesmo local e manietaram aquele;
11. Conduzido para interrogatório judicial, a 26 de Maio de 2020 foi aplicada ao arguido a proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio e em qualquer lugar (medidas estas fiscalizadas através de meios técnicos de controlo à distância);
12. Após, o arguido, cerca da 01:00 hora da madrugada de 10 de Setembro de 2020, no estabelecimento denominado «D ...», sito na Avenida ..., em ..., Vila Nova de Gaia, o arguido abeirou-se da ofendida, e acercou-se desta, declarando-lhe «sua puta, sua vaca»;
13. E nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido ainda fez um gesto, levando as mãos à cintura;
14. Sendo que outras pessoas se aproximaram, o arguido saiu do local;
15. O arguido previu e quis atuar da forma descrita, sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a ofendida no seu corpo e saúde, o que logrou efetuar e, no dia 9 de Maio de 2020, só não logrou efetuar porquanto foi impedido por terceiros, mas prevendo e querendo atuar do modo descrito;
16. Não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta.
Mais se provou que:
17.O arguido cresceu até aos 11 anos no seio da família de origem, altura em que os progenitores se separaram, ficando à guarda da progenitora, com um irmão uterino;
18. Integrou o ensino regular, tendo registado três retenções, e tendo integrado curso de formação na área de restauração que lhe deu equivalência ao 9.º ano de escolaridade;
19. Após integrou novo curso profissional na área, que lhe deu equivalência ao 12.º ano de escolaridade;
20. Após conclusão do curso integrou empresa de trabalho temporário, onde permaneceu cerca de um ano;
21. Frequentou consulta de pedopsiquiatria por comportamentos de tipo opositivo/impulsivo, no Hospital ..., de 2004 a 2016;
22. Teve um relacionamento de namoro entre 2015 e 1017, conflituoso, e que redundou na instauração de processos judiciais;
23. Em janeiro de 2019 deslocou-se às urgências do centro hospitalar do Porto por mudanças de humor e insónias, tendo tido alta com indicação de medicação de foro depressivo;
24. O arguido continua a residir com a mãe e irmão, tendo contactos regulares com o pai;
25. Após situação de desemprego, tendo realizado curso de segurança, passou a desempenhar funções de vigilante no Hospital ..., com contrato a caducar em 20-10-2021;
26. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
(…)
*
De seguida, (al. b) da subsunção jurídica dos factos ao direito como consta do corpo da motivação) e ainda quanto ao tipo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do CP questiona o recorrente a qualificação jurídica dos factos.
Nesta decorrência defende que se do teor da motivação da sentença resulta que o Tribunal ad quo retira relevo penal relativamente à conduta do Recorrente, designadamente não condena o Recorrente por qualquer crime de ameaça ou coação, discorrendo que os factos se verificaram no decurso de uma discussão mútua e que o Recorrente segurou a ofendida pelos braços por estar transtornado, não persistindo na sua atitude, por outro é ambígua quando confrontada com a sua condenação pelo crime p. e p. pelo art. 143º do CP.
Questiona, pois, a relevância penal da conduta em apreço, resumindo a conduta ao facto de ter segurado ou agarrado os braços da ofendida, numa súplica para esta não se ir embora de sua casa, chorando, sustentando a sua posição essencialmente na consideração que a ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não pode ser insignificante, e a inerente exclusão das lesões bagatelares do âmbito deste tipo legal de crime. Aponta por isso para circunstâncias que excluem a tipicidade da conduta apesar de esta formalmente se encaixar na descrição legal.
Por conseguinte sustenta que a conduta será de algum modo ilícita, mas não é penalmente típica e ilícita, apelando ao princípio da insignificância, do qual resulta que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante.
Em resumo, assevera que o concreto contacto físico, apesar de provocado voluntariamente pelo recorrendo, foi de pequena intensidade e sem quaisquer consequências para a ofendida, pelo que se impõe considerar não ser a conduta do arguido suficiente para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respectivo grau de ilicitude revelando-se tal conduta atípica e impondo a sua absolvição.
Há, por isso, que apurar se a referida factualidade integra o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do CP.
Recorde-se o que a este respeito discorreu o tribunal recorrido:
“Do crime de ofensa à integridade física e ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada.
Dispõe o artigo 143.º, n.º 1 do C.P. que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
São elementos típicos do crime imputado (…):
- a prática de factos causadores de uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem;
- a verificação do dolo sobre os dois elementos objetivos acima referidos.
A ofensa pode ser de nível somático, quando o seu objeto é o corpo, de nível psíquico, quando o seu alvo é a mente, ou de nível funcional, quando atinge o estado de bem-estar de uma pessoa.
O tipo legal do artigo 143.º do C.P. exige que o facto tenha sido praticado com dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do C.P..
O dolo, na modalidade de direto, consiste em o agente prever e querer praticar os factos causadores das ofensas, e pretender, com tal conduta, ofender o corpo ou saúde da vítima.
Ora, da factualidade provada resulta que:
- numa primeira situação, o arguido agarrou a ofendida pelos braços, apertando-os, assim atingindo o seu corpo.
- noutra situação, o arguido dirigiu-se à ofendida, com intenção de a atingir no seu corpo, não o tendo logrado fazer porque foi impedido por terceiros, quer o seguraram.
*
Assim, com a primeira situação o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p pelo artigo 143.º do CP, dado que preencheu o elemento objetivo do tipo legal, atingindo a ofendida no seu corpo, e previu e quis atuar do modo descrito, pelo que atuou com dolo direto.
(…)”
Prosseguindo.
O art. 143º nº 1 do CP, veio consagrar que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Trata-se a nível subjetivo de um crime doloso, exigindo-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artº 14º CP).
O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem. Por ofensas no corpo deve entender-se, como faz Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense ao Código Penal vol. I, pag. 205, citando Eser, “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”.
Salienta-se neste âmbito que o crime em causa, abrange textualmente qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente desta provocar lesão corporal. Tal entendimento encontra-se fixado no Assento n.º 2/92 do STJ de 18 de Dezembro de 1991, in DR, serie I-A de 8 de Fevereiro de 1992: onde se pode ler “integra o crime do art.º 143.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.”
Na nessa senda retira-se ainda do Acórdão n.º 226/2000, de 05/04/2000, do Tribunal Constitucional, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc “encontrando-se o direito à absoluta inviolabilidade da pessoal integridade física terminantemente tutelado pela constituição nacional, (cfr. respectivo art. 25º), nada no vigente ordenamento jurídico consente e/ou legitima qualquer interpretação restritiva do respectivo conteúdo, em termos de apenas supostamente abranger a protecção contra um determinado grau, mais ou menos intenso, de ofensas corporais”.
Ora na concreta situação, na medida em que se apurou que (…) quando a ofendida pretendia sair de casa do arguido, este a agarrou pelos dois braços, apertando-os, por querer que a mesma voltasse a entrar em sua casa, o que fez contra a sua vontade (Ponto 3) o tribunal concluiu, e bem, que tal comportamento integra a ofensa abarcada pelo tipo, inexistindo dúvidas quanto ao seu preenchimento também no que toca ao elemento subjetivo, dolitivo da sua conduta.
Perante o vindo de referir, e porque a definição de ofensa corporal consiste na perturbação, ilícita, da integridade física de outra pessoa, sobrevindo logo que o estado físico desta, no momento da ação, sofre uma alteração minimamente relevante, então os factos apurados no caso presente consentem na integração do tipo legal em apreço.
É que dúvidas não há que a ofensa não determina inelutavelmente a verificação de uma lesão, de dor ou de incapacidade para o trabalho tal como decorre do citado Assento do qual se extrai “A lei pune [...] a mera ofensa no corpo e esta tem lugar quando uma agressão voluntária é praticada no corpo de alguém, mesmo quando dela não resulte ofensa na saúde do visado por ausência de quaisquer efeitos produtores de doença ou incapacidade para o trabalho.”
Não se ignora que as lesões insignificantes estão excluídas do tipo em análise, mas, seguramente que o ato de apertar os braços da ofendida nos moldes e contexto apurado não oferecem incerteza quanto à sua relevância penal. Há aqui um nível de violência que não poderá ser menosprezado com o apurado intuito de forçar a ofendida, contra a sua vontade, a regressar à residência onde o arguido, habitava e que aquela pretendia abandonar, ainda que não tenha provocado lesões ou dores, condições que se repete, não se revelam essenciais para o preenchimento objetivo do tipo.
Veja-se e em reforço deste nosso entendimento o Ac. da Relação de Coimbra de 03/23/2011 proferido no Proc. nº 759/09.0PAOVR.C1 acessível in www.dgsi.pt. em que numa situação com semelhanças às do presente caso se entendeu que “Comete o crime de ofensa à integridade física simples aquele que, intencionalmente e sem que nada lho legitimasse, agarra e aperta o braço da ofendida, com força e pressão adequada ao seu arrastamento para fora do gabinete onde se encontrava”.
Aí se sustentou que “qualquer voluntário e injustificado acto comportamental atentatório à incolumidade corporal de terceira pessoa necessariamente – verificados os demais legais pressupostos, bem-entendido – fará incorrer o respectivo agente em responsabilidade criminal, que, à partida – não ocorrendo outros mais gravosos circunstancialismos típicos –, se balizará pela moldura penal correspondente ao tipo-de-ilícito prevenido no n.º 1 do art. 143º do Código Penal, independentemente da maior ou menor extensão objectiva da respectiva ofensa e das resultantes consequências”
Donde, ao invés do pretendido pelo recorrente não se pode ajuizar na situação que nos ocupa de uma insignificância jurídico-criminal do acto praticado pelo recorrente, e de todo consentido no nosso ordenamento jurídico plo art. 25º da Lei Fundamental.
(…)
2ª Em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 143.º, 145.º n.º 1 alínea a), e n.º 2, por remissão para o artigo 132.º, n.º 2 alínea b) conjugados com os artigos 21.º, 22.º, n.º 1 e n.º 2 alínea c), todos do CP, insuficiência da matéria de facto, impossibilidade da tentativa de ofensa à integridade física qualificada e sua não punibilidade e actuação do principio in dúbio pro reo
(…)
Avançando.
Importa antes de mais frisar que o recorrente não questiona a matéria de facto apurada no que se refere a este segundo episódio (pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 15 e 16), que assim se tem por definitivamente fixada. Resta por isso averiguar se tal circunstancialismo fáctico permite concluir pela sua subsunção jurídica à forma qualificada do crime de ofensa à integridade física na forma tentada, tal como foi entendido pelo tribunal recorrido.
O Ministério Público na 1ª instância sustenta que os provados comportamentos do arguido, de arrombar, a pontapé, a porta da residência da ofendida, logrando chegar-se à mesma, não obstante os progenitores se terem tentado interpor entre ambos, não a atingindo no corpo apenas devido à intervenção de um vizinho e de um tio da ofendida, o que fez com o propósito de a molestar no corpo; constituem, naturalmente, atos de execução do crime de ofensa à integridade física qualificada, entendimento com o qual tendemos a concordar.
A tónica residiria, portanto, em saber por um lado se a actuação do arguido descrita na matéria assente como provada, mantida inalterada, insiste-se, não consubstancia a prática de actos de execução e, por outro se estamos perante uma situação de tentativa não punível à luz do nº3 do art. 23º do CP.
Resumidamente no que àquela 1ª questão tange dir-se-á que não contendo o Código Penal qualquer definição de actos preparatórios, dispondo apenas, no art. 21º, que os actos preparatórios não são puníveis, salvo disposição em contrário, vem-se entendendo que os actos preparatórios são já actos externos que preparam ou facilitam a execução, mas não são ainda actos de execução. O seu conceito delimita-se, aliás, pela definição dos actos de execução do crime. O critério legal para a distinção entre actos preparatórios e actos de execução é um critério objectivo; os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem.
Enquanto o acto de execução é um acto dotado de capacidade potencial para a produção do evento criminoso, o acto preparatório é um acto sem essa capacidade, é ainda um acto equívoco, ambíguo, que está ainda demasiado longe da consumação e que, por isso, também não afecta geralmente o sentido jurídico da comunidade, não constitui ainda, pelo menos em regra, um perigo objectivo para o bem jurídico, e que tanto poderá servir para preparar o crime como para quaisquer outras finalidades.
Mas se a preparação antecede apenas o momento em que se inicia a agressão do objecto material do crime, já o acto de execução contém, ele mesmo, um momento de ilicitude. Convocando os ensinamentos de Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral, Teoria do Crime 1998, II, fls. 232-234, materialmente, constitui acto de execução aquele que ataca o bem jurídico tutelado; formalmente, tal acto integra a acção típica prevista na lei.
E nos termos do preceituado no art. 22º, nº 2, são actos de execução de um crime: a) aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
A configuração da tentativa como ilícito autónomo nasce da conjugação de duas normas: a da parte especial que incrimina determinado facto e a do art. 22º, que estende a incriminação a actos que não representam ainda a consumação do crime a que se referem. Há, pois, a fusão de duas normas: a da parte especial que prevê determinado tipo de crime que o agente queria cometer e a da parte geral que estende a punição ao comportamento que o agente efectivamente comete - Germano Marques da Silva, ob. cit., Ora, na situação vertente, é indubitável que o arguido praticou materialmente actos necessários a atingir no corpo a ofendida, aproximando-se dela exaltado e tendo praticado imediatamente antes actos que, de acordo com a experiência comum seria expectável que se seguissem actos de moléstia no corpo daquela (dirigiu-se para a residência da BB onde partiu o vidro da porta de acesso à zona comum do prédio, logrando (assim) destrancá-la; após, o mesmo dirigiu-se à citada habitação e depois de a ofendida lhe ter recusado a entrada, desferiu um número indeterminado de pontapés na respetiva porta de acesso, fazendo com que a mesma cedesse e se abrisse;, temendo pela vida e integridade física da BB, os respetivos progenitores fizeram barreira no hall de entrada, impedindo o arguido de avançar na direção daquela; não obstante e indiferente ao facto de estar perante os pais da ofendida, o AA avançou e logrou chegar-se à mesma) só não logrando consumar os seus propósitos porque foi impedido por terceiros, ou seja, por circunstâncias alheias à sua vontade.
Pelo que, no tocante a este domínio não assiste razão ao recorrente.
O mesmo se diga no tocante à alegada não punibilidade da tentativa no caso presente, pois de todo não se vislumbra uma inaptidão do meio empregado pelo agente, até porque a agressão não necessita de ser praticada com recurso a nenhum instrumento em especial, e a distância a que se encontrava da ofendida é também neste particular irrelevante. O recorrente, como ficou demonstrado, foi avançando sempre para a ofendida, num comprovado estado de exaltação e fora de controle, danificando pelo trajecto objectos, concretamente partindo vidro e portas aos pontapés que se interpunham entre ele a ofendida, e só a esta não chegou porque apesar da sua insistência, repete-se, a isso o impediram familiares e vizinhos daquela, num espaço perfeitamente delimitado, isto é, o hall de entrada. Nem se diga que a ofendida não procurou ausentar-se do local, pois ficou demonstrado que o arguido foi manietado não se revelando necessário a arguida fugir para um dos outros compartimentos da habitação. Porém, não fora a intercedência daqueles e o arguido levaria a cabo os seus apurados propósitos.
(…)
Ainda assim, temos para nós que a presente situação comporta uma critica que cumpre analisar e que diz respeito à qualificação do tipo legal decorrente da combinação do art. 145º, nº 1, al. a), com o art. 132º, al. b), do CP, ou seja, a que decorre de a circunstância do crime ter sido praticado contra pessoa com quem o agente manteve uma relação de namoro.
Com efeito, o art. 145º prevê a qualificação do crime de ofensa à integridade física, se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente. E de acordo com o seu nº 2, “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do art.º 132.”.
Assim, ocorre ofensa à integridade física qualificada, sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos padrão enumerados no nº 2 do art. 132º, ou, tendo estes uma natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, ou qualquer outra circunstância substancialmente análoga.
Assim, com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca que intercede entre o chamado critério generalizador e os exemplos padrão. É que não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspectos da personalidade mais desvalioso se concretizem em qualquer dos exemplos padrão.
Por outras palavras, não basta a realização típica dos elementos constitutivos do tipo agravado consagrado nas várias alíneas do nº 2, sendo sempre, em última análise, necessário demonstrar que dela resultou uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (a que alude o nº 2 do art. 145º).
Este tipo agravado é, segundo a doutrina e jurisprudência dominante, um tipo qualificado de culpa, isto é, trata-se de punir mais severamente, no quadro de uma moldura penal agravada em relação ao crime na sua forma mais simples (o tipo matricial) condutas que, em razão da verificação de certas circunstâncias com uma estrutura essencialmente típicas, traduzam vertentes do facto ou da conduta do agente particularmente desvaliosas em razão da sua personalidade de ou da forma como ele imprime à sua actuação uma marca que acentua o desvalor do facto, em relação ao desvalor inerente a qualquer tipo de ofensa. Ou seja, o agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto revestiu.
Por conseguinte, há que equacionar se conduta do recorrente integra a qualificação do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, nºs 1 al. a) e nº 2, por referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132º, nº 2 al. b), dada a relação de namoro existente entre recorrente e a ofendida.
E a resposta quanto a nós não pode deixar de ser negativa, posto que a factualidade supra descrita não espelha uma especial perversidade ou censurabilidade do agente, atendendo ao contexto fáctico em que ocorreram os factos, já que estava em causa o apuramento por parte do arguido das razões que motivaram a ofendida a terminar a relação de namoro que ambos mantinham um com o outro (ponto 4 dos factos provados), não aceitando aquele esta decisão da ofendida (ponto 5 dos factos provados).
Ora este clima de tensão entre ambos que culminou com a tentativa de agressão por parte do arguido àquela, por si só, não traduz uma especial censurabilidade ou perversidade, na nossa perspectiva.
É que a qualificativa em causa – o crime ter sido praticado contra pessoa com quem o agente manteve uma relação de namoro -, vai buscar a sua razão justificativa à circunstância de que os laços que o uniam à vítima deverem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, como acentua Paulo Pinto de Albuquerque, CPP anotado p. 445. Refere o citado Autor que, na base daquele art. 145º, está “um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física por força da cláusula geral da especial censurabilidade, concretizado de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo” e, a propósito da aludida qualificativa aduz: “Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade. A Lei n.º 59/2007 veio alargar ainda mais esta tutela penal, prescindindo mesmo da existência de laços familiares básicos entre a vítima e o agente, ao incluir o homicídio de ex-cônjuge, de pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges e mesmo de progenitor de descendente comum em 1.º grau. Desde modo, incluem-se sob a tutela penal as relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares. É certo que as relações familiares, presentes e pretéritas, e as relações parentais são também aquelas que permitem uma maior desinibição, mas essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado (também assim, MARGARIDA SILVA PEREIRA, 2008: 102, mas contra FERNANDA PALMA, 1996: 143, e TERESA SERRA, 1998: 152.”
Assim e em resumo, deve ser afastada a qualificação operada, pois o circunstancialismo fáctico apurado em que decorreram as acções do arguido, decorre de um desentendimento deste com a ofendida até então sua namorada, por razões que se prendem com o acabar da relação por parte desta última, e apurada tentativa de confrontação física com a ex-namorada, não revela por si só, especial censurabilidade, ou uma exigência acrescida derespeito, por forma a dar-se como preenchida a agravante qualificativa do crime em apreço.
Donde, caindo a qualificativa, concluímos que estamos perante um caso de não punibilidade da tentativa previsto no nº 1 do art. 23º do CP já que ao crime consumado não corresponde pena superior a três anos de prisão – cfr. art. 143º, nº 1 do CP.
Daí que pese embora o cometimento pelo arguido do crime de ofensa à integridade física simples na forma tentada, não há lugar à sua punição.
Donde, embora com fundamento diverso, altera-se o decidido em 1ª instância, desqualificando o crime de ofensa à integridade física na forma tentada pelo qual o arguido foi condenado, e, em consequência determina-se a sua não punibilidade por imposição legal, tal como almejava o recorrente.
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(…)»

3. DECISÃO.

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) desqualificar o crime de ofensa à integridade física na forma tentada pelo qual o arguido AA foi condenado, e, em consequência determina-se a sua não punibilidade por imposição legal.
b) manter, no mais, o decidido na sentença recorrida.

Sem custas - art. 513º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Notifique.»

Porto 4 de maio de 2022
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso