Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17659/19.8T8PRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
QUESTÕES DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
AUTORIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2021120217659/19.8T8PRT-C.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As viagens turísticas ao estrangeiro dos filhos menores na companhia do progenitor que exerce as responsabilidades parentais constituem atos da vida corrente, nos termos do artigo 1906º nº 3 do Código Civil.
II - Em tal caso, os filhos menores, podem sair do território nacional sem necessidade de autorização do outro progenitor, conforme decorre do disposto no artigo 23.º nº 1 do D. Lei n.º 83/2000, de 11 de Maio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: AP n.º 17659/19.8T8PRT-C.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do Código Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
B… instaurou, por apenso, ao processo de regulação das responsabilidades parentais de C…, o presente processo de alteração do regime estabelecido quanto ao montante dos alimentos fixados, requerendo a fixação da prestação mensal ao filho no montante de 80,00 euros.
A Requerida mãe D… opôs-se.
Os autos prosseguiram, tendo sido designada Conferência de Progenitores, na qual, se manteve o dissenso.
Foram juntas alegações nos termos do artigo 39º nº 4 do DL 141/2015 de 8.9, (doravante RGPTC).
Designou-se audiência de julgamento.
Entretanto, a Requerida apresentou requerimento nos autos, solicitando que o tribunal autorize a mesma a viajar com os filhos (o casal tem outra filha) para a Ucrânia para visita à família dada a oposição do pai.
Este requerimento que foi notificado ao Requerente não teve qualquer resposta do mesmo, e mereceu o seguinte despacho: “aguardem os autos a data designada para julgamento”.
Consta do Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais a que este é apenso o seguinte regime em relação ao C…:
“Fixa-se a residência do C… com a progenitora a qual exercerá as responsabilidades parentais em relação aos atos da vida corrente do mesmo”

(…) Na ata de sessão de audiência de discussão e julgamento consta:
a- O Requerente desistiu do pedido formulado
b- os progenitores acordaram em alterar o último ponto da cláusula 5 do regime fixado no apenso A, nos seguintes termos:
- Nas férias de Verão, o C… passará com a progenitora a segunda quinzena de agosto, sendo que, quanto aos 15 dias de férias com o progenitor, este deverá comunicar à progenitora o período pretendido até 8 dias antes daquele período.
c-A Requerida requereu a autorização para poder viajar com os filhos para a Ucrânia, por motivos familiares, uma vez que a avó materna das crianças reside naquele país e que por motivos de saúde não tem possibilidades para viajar para Portugal para poder estar com os netos, e conhecer até o C….
O Requerido declarou que não pretende dar autorização para a viagem por ter receio que a progenitora não regresse com os filhos, conforme a mesma lhe referiu quando viviam juntos.
Dada a palavra à Senhora Procuradora da República, no uso da mesma, proferiu a seguinte promoção “(…) deverá ser deferido por um período de tempo determinado que se sugere não superior a 15 dias”.

FOI PROFERIDA A SEGUINTE SENTENÇA:
Julgo válido o acordo firmado nestes autos e, em consequência, homologo-o (…)
II.
“No que se refere ao requerimento da progenitora, e estando em causa o direito da criança de poder ter contato direto com os elementos da família alargada, independentemente do país onde vivam.
Resulta destes autos e seus apensos que a progenitora pretende manter em Portugal o seu centro de vida e não tendo apresentado nenhum facto de que deva concluir um receio concreto da retenção das crianças na Ucrânia ou em qualquer outro país que não Portugal, entendemos como adequado a permissão da viagem das crianças à Ucrânia, devendo, contudo, a progenitora sempre que o pretenda fazer comunicar ao progenitor a data das viagens e submeter o pedido concreto ao Tribunal por forma a ser dada essa autorização. “
No mais (…) homologo a desistência do pedido.

DESTA SENTENÇA APELOU O REQUERENTE TENDO LAVRADO AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
1. O despacho de que se recorre, em nada se relaciona com o objeto do processo, vulgo, com as questões que o tribunal recorrido foi chamado a decidir.
2. Pelo contrário, trata-se, evidentemente, de uma questão nova, que o Tribunal estava impedido de apreciar. O Tribunal recorrido extravasou o objeto do pedido formulado na ação e apreciou pedido não submetido à sua apreciação.
(…)
4. O suprimento de consentimento de autorização de viagem para o estrangeiro, integra-se na previsão do artigo 3º, c) RGPTC, configurando-se como uma regulação do exercício das responsabilidades parentais ou o conhecimento das questões a este respeitantes.
5. A pretensão da Recorrida é processualmente inadmissível no âmbito dos autos com n.º de processo 17659/19.8T8PRT-C.
6. O tribunal recorrido não respeitou o formalismo e a tramitação processual previstos no RGPTC, concretamente nos artigos 42º e 35º a 40º, violando as suas previsões.
7. O despacho recorrido é nulo, porquanto o tribunal conheceu de questões que não podia tomar conhecimento – artigo 615º, 1, d) do CPC.
O MP RESPONDEU A SUSTENTAR A IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO PARA O QUE LAVROU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
(…)
Em termos práticos, o Tribunal se limitou a reconhecer o direito da criança a conviver com a família materna alargada, o que implicará, necessariamente, a realização de viagens internacionais, mas deixou para decidir, casuisticamente, a autorização para a realização de cada uma dessas viagens, subordinando-a ao pressuposto de a progenitora comunicar as suas datas ao progenitor e de submeter o pedido concreto ao Tribunal.
Não se alcança – procurando-se a decisão que melhor acautelasse o interesse da criança, e sendo essa coisa que o recorrente sequer questiona que tenha sido o decidido – que não pudesse o Tribunal decidir como decidiu, e que deva a sentença recorrida, nessa parte, ser revogada, por (pretensamente) nula.
Colhidos os vistos legais nada obsta ao mérito

OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Em consonância e atentas as conclusões do recorrente a única questão a decidir é a de saber se:
A parte visada da sentença impugnada decidiu uma questão de particular importância para cujo conhecimento deveria ter sido impulsionado o processo previsto no artigo 44º do rgptc pelo que está ferida de nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) segunda parte, do código de processo civil

O MÉRITO DO RECURSO:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a factualidade supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
O excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que não tendo sido colocadas pelas partes, ou intervenientes também não são de conhecimento oficioso.
Resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 608º do CPC, nos termos do qual "[o] juiz" não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".
Este vício da decisão funda-se na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes. Muito embora no processo tutelar cível se não possa falar de um puro dispositivo, atenta a sua natureza de processo de jurisdição voluntária (artigo 12º do RGPTC) e ainda os princípios orientadores desta jurisdição (artigo 4º), não se pode ir tão longe que se aceite como regular e válida uma decisão proferida com violação dos princípios fundamentais do processo, nomeadamente, o direito à prova e sobretudo o do contraditório, o que ocorre quando é proferida pronúncia sobre uma questão nova que não tenha sido discutida amplamente no processo.
O apelante vem sustentar isso mesmo.
Sustenta que a questão das viagens é uma questão de particular importância e que foi decidida pelo juiz sem que tivesse havido discussão no processo e com violação da forma processual adequada que deveria ser a constante dos artigos 35º a 40 ex vi artigo 44º todos do RGPTC.
APRECIEMOS.
Serão questões de particular importância para a vida do filho as que “… se resumem a questões existenciais graves e raras na vida de uma criança, questões essas que pertencem ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças… “Exposição de Motivos Das Alterações Introduzidas No Regime Jurídico do Divórcio- Projeto de Lei nº 509/X). Têm, assim, de se tratar de questões centrais e fundamentais para o desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação dos menores, integrando todos os atos que se relacionem com o seu futuro, a avaliar em concreto e em função das suas circunstâncias de cada caso concreto; já os atos da vida corrente, como é óbvio, terão que coincidir “…com aqueles que não sejam de particular importância, ou seja, são atos relacionados com o quotidiano do menor, v.g. decisões relativas à disciplina, alimentação, contactos sociais, os trabalhos de casa, o uso de telemóvel, consultas médicas de rotina, entre outros… “.
Como exemplos de questões de particular importância podem-se indicar, entre outros, os seguintes:- intervenções cirúrgicas das quais possa decorrer risco para a saúde do menor; -a prática de atividades desportivas radicais ou outras que possam comportar perigos para a sua integridade física; -a saída do menor para o estrangeiro para países em conflito de que resultem riscos acrescidos para a sua segurança; - a educação religiosa do menor; -a mudança de residência do menor para local distinto da residência do progenitor a quem foi confiado; a escolha da escola em determinadas circunstâncias, v. Hugo Rodrigues, in “Questões De Particular Importância No Exercício Das Responsabilidades Parentais”, págs. 123 e ss,; Clara Sottomayor, In “Regulação do Exercício Das Responsabilidades Parentais Nos Casos De Divórcio”, págs. 275 e ss.; Helena Gomes de Melo/ João Raposo/ Luis Carvalho/ Maria do Carmo Bargado/Ana Leal/Felicidade d´Oliveira; in “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”, págs. 139 e ss.
No que respeita às viagens dos filhos ao estrangeiro, o artigo 23.º do D. Lei n.º 83/2000, de 11 de maio, sob a epígrafe “Passaporte para menores” estatui que:
1 - Os menores, quando não forem acompanhados por quem exerça o poder paternal, só podem sair do território nacional exibindo autorização para o efeito.
2 - A autorização a que se refere o número anterior deve constar de documento escrito, datado e com a assinatura de quem exerce o poder paternal legalmente certificada, conferindo ainda poderes de acompanhamento por parte de terceiros, devidamente identificados.
3 - A autorização pode ser utilizada um número ilimitado de vezes dentro do prazo de validade que o documento mencionar, a qual, no entanto, não poderá exceder o período de um ano civil.
4 - Se não for mencionado outro prazo, a autorização é válida por seis meses, contados da respetiva data.”
Pese embora se tratar de uma delimitação difícil de estabelecer em abstrato, existindo uma ampla “zona cinzenta” formada por atos intermédios que tanto podem ser qualificados como atos usuais ou de particular importância, conforme os costumes de cada família concreta e conforme os usos da sociedade num determinado momento histórico. da simples leitura deste normativo legal se retira que o progenitor que exerce o poder paternal pode sair para o estrangeiro com o filho à sua guarda sem que para isso precise de autorização do outro progenitor. (Sobre este assunto, veja-se, o Acórdão da Relação de Lisboa de 2.05.2017 in apelação 897/12.1T2AMD-F.L1-1, in dgsi),
Sendo o regime regra o de que as viagens dos filhos ao estrangeiro, em tal caso, são consideradas como atos da vida corrente; cabendo ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente (artº 1906º nº 3, 1ª parte, do Código Civil) Neste sentido se pronunciou o Acórdão desta Relação de 27-01-2020, apelação 4775/15.4T8PRT-C.P1, in DGSI.
A pronuncia do tribunal relativamente à concreta questão suscitada pela Requerida/Recorrida não extravasa, por isso, o objeto do processo na medida em que se trata de questão abarcada pela decisão sobre a forma do exercício das responsabilidades parentais já anteriormente fixadas.
Acresce, que em bom rigor o tribunal limitou-se a estabelecer o procedimento a seguir, não tendo emitido nova pronúncia em relação a uma concreta autorização de viagem.
Admite-se que a saída para o estrangeiro da criança com um progenitor que declarada e confessadamente se vem a provar que pretende aproveitar a viagem para não regressar, pode constituir não uma questão de particular importância, mas antes uma questão nova, superveniente, que legitime o outro progenitor com fundamento nesse novo facto a vir pedir em correspondente processo de alteração das responsabilidades parentais uma alteração consistente na limitação desse direito de viajar.
Mas essas já serão outras questões.
Não há, pois, que assacar qualquer vício à sentença.
SEGUE DELIBERAÇÃO:
IMPROCEDE A APELAÇÃO. MANTÉM-SE A SENTENÇA APELADA
Custas pelo apelante

Porto, 2 de dezembro de 2021
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Carlos Portela