Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1551/13.2TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CASO JULGADO
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
CO-AUTORIA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Nº do Documento: RP201705311551/13.2TBVCD.P1
Data do Acordão: 05/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 29/2017, FLS.96-97)
Área Temática: .
Sumário: Não tem eficácia de caso julgado uma sentença que se debruça sobre a prática de um crime em coautoria, quanto a um dos coautores que não é sujeito processual no processo respetivo, por ter sido ordenada a separação do processo a ele relativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 1551/13.2TBVCD.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do despacho do Juiz 2 do Juízo Central Criminal de Vila do Conde do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que declarou verificada a exceção de caso julgado no que respeita aos crimes de roubo e furto qualificado por que o arguido B… foi acusado, em coautoria com o arguido C…, no âmbito do processo n.º 121/11.4GAVCD.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1- O arguido B… foi declarado contumaz;
2 – A matéria de facto imputada ao arguido B…, como co-autor do arguido C… não foi apreciada no julgamento realizado no processo n.º 121/11.4GAVCD;
3 – Não esteve presente nem representado em julgamento no aludido processo e, consequentemente, não foi condenado ou absolvido;
4 – Não se encontra verificada a excepção do caso julgado da violação do princípio “ne bis in idem”; e
5 – O despacho recorrido violou o disposto no art.º 29.º, n.º 5 da CRP.»

O arguido apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se se verifica a exceção de caso julgado no que respeita aos crimes de roubo e furto qualificado por que o arguido B… foi acusado, em coautoria com o arguido C…, no âmbito do processo n.º 121/11.4GAVCD.

III – É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«O arguido B… foi acusado no âmbito do processo n.º 121/11.4GAVCD da prática em co-autoria material e concurso real juntamente com o arguido C… de um (1) crime de roubo e de um (1) crime de furto qualificado por referência ao ofendido D… e para além da prática destes crimes foi-lhe ainda imputada a prática em concurso real de um (1) crime de receptação, um (1) crime de condução sem habilitação legal, um (1) crime de roubo na forma tentada, sendo ofendida E…, conforme melhor resulta da acusação junta a fls. 277 a 282 dos presentes autos.
Certo é que por despacho proferido nos aludidos autos 121/11.4GAVCD foi por despacho ordenada a separação de processos para julgamento em separado do arguido B… prosseguindo esses unicamente para julgamento do arguido C….
Sucede que, compulsado o acórdão proferido nesse indicado processo n.º 121/11.4GAVCD, transitado em julgado, e relativamente aos indicados crimes de roubo na pessoas do ofendido F… e furto qualificado em que é ofendido D…, o acórdão proferido em 28.05.2013 e que apenas condena o arguido C… pela prática destes dois (2) crimes na pena única de dois (2) anos de prisão, não só aprecia os factos em que tem intervenção o arguido C…, como ainda aprecia os factos alegadamente praticados pelo arguido B…, não obstante ter sido ordenada a separação de processos relativamente a tal arguido.
Efectivamente, resulta do respectivo elenco dos factos provados que o acórdão em referência apreciou a conduta do arguido B… conforme expressamente se extrai dos itens um (1); dois (2); três (3); quatro (4); seis (6) do sobredito elenco dos factos provados.
Posto isto, considerando o que ora acabou de se constatar, é evidente que tais factos, que deveriam ser objecto de julgamento nestes nossos autos, foram já apreciados no âmbito do aludido processo 121/11.4GAVCD, o que nos reconduz à questão da violação do princípio “ne bis in idem”, princípio este que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e, consequentemente, da eficácia preclusiva do caso julgado.
O princípio do caso julgado ou da “exceptio judicati” encontra-se consagrado na CRP no art. 29.º, n. 5 que estabelece que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
E assim é, mesmo considerando que a noção de caso julgado não nos é dada pelo actual C.P. Penal.
Em conformidade, no caso em apreço, tendo os factos referentes ao NUIPC 120/11.6GAVCD e ao NUIPC 120/11.4GAVCD, com excepção do facto ocorrido pelas 18.45 horas do dia 31 de Janeiro na Rua … na Trofa, sido já objecto de apreciação, dúvidas não restam de que, nos presentes autos, não poderão ser novamente os mesmos apreciados e não obstante não ter sido o arguido B… condenado pelos aludidos factos.
Ora, o julgamento prévio dos aludidos factos no apontado processo obsta, deste modo, ao conhecimento do respectivo mérito neste momento.
De tudo decorre que, julgando-se verificada a excepção do caso julgado, se impõe agora fazer apenas a apreciação dos demais factos plasmados na acusação em referência, que não os apontados já objecto de apreciação.
Notifique.»

IV – Cumpre decidir.
Assiste razão ao recorrente.
O arguido B… não foi julgado (condenado ou absolvido) no aludido processo n.º 120/11.4GAVCD (ver a certidão junta a fls 679 a 693), por ter sido ordenada nesses autos a separação do processo a ele relativo. A decisão aí proferida, ainda que se tenha debruçado sobre factos por ele praticados em coautoria (como consequência lógica e quase inevitável da análise da responsabilidade do coautor), não tem força de caso julgado quanto a ele, que não é parte nesse processo. E o caso julgado é eficaz apenas entre as partes do processo (ver artigos 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal). É óbvio que essa decisão, na parte em que imputa a este arguido a prática de crimes em coautoria com o arguido nesses autos condenado, não é vinculativa quanto a ele, não pode ter eficácia de caso julgado condenatório, pois ele não teve oportunidade de se defender nesse processo. Mas também não pode, obviamente, ter eficácia de caso julgado absolutório, como resulta, na prática, da decisão recorrida (dela resulta a prática absolvição do arguido dos crimes em questão, absolvição que não tem qualquer justificação).
É verdade que uma eventual absolvição do arguido B… no presente processo (possível precisamente porque a decisão proferida nesse outro processo não tem eficácia de caso julgado quanto a ele) será contraditória com afirmações proferidas na fundamentação da decisão proferida no processo n.º 120/11.4GAVCD. E é finalidade da exceção do caso julgado evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (ver artigo 580.º, nº 2, do Código de Processo Civil). Mas a eficácia do caso julgado restringe-se à decisão em si mesma, e não à respetiva fundamentação, ainda que desta regra possam decorrer sentenças teoricamente contraditórias As razões de certeza jurídica e a conveniência de evitar decisões contraditórias não chega ao ponto de alargar a eficácia do caso julgado a tal fundamentação (podem ver-se, neste sentido, entre outros, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, Coimbra, 1985, pgs. 714-719, e João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, A.A.F.D.L., Lisboa, 1982, pgs. 282-283).
Assim, deverá ser concedido provimento ao recurso.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando que o despacho recorrido seja substituído por outro, que determine o julgamento do arguido B… pelos crimes que lhe são imputados na acusação como praticados em coautoria com o arguido B….

Notifique

Porto, 31/5/2017
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo