Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2872/15.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
DIREITO COMUNITÁRIO
REENVIO PREJUDICIAL
Nº do Documento: RP201712142872/15.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 665, FLS 22-45)
Área Temática: .
Sumário: I - O Direito da União Europeia exige uma interpretação e aplicação uniforme nos EM – princípio da interpretação conforme ou compatível com o DUE.
II - O TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar o Direito Comunitário e igualmente para apreciar da sua validade.
III - Só através desta função de interpretação foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia pelos diversos tribunais nacionais dos EM, na medida em que o decidido vincula os mesmos.
IV - É entendimento pacífico ser o reenvio obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM.
V - Exceção que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar.
VI - Neste caso, não viola o tribunal nacional a obrigação de suscitar a questão prejudicial.
VII - Inexistindo erro de interpretação das diretivas comunitárias, bem como jurisprudência interpretativa que dispensa o reenvio, improcede a ação indemnizatória baseada em erro judiciário contra o Estado instaurada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 2872/15.5T8PNF.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juiz Desembargador Oliveira Abreu
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso - Comarca de Porto Este – Penafiel – Inst. Central – Secção Cível
Apelante/B...
Apelada/Estado Português

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

B..., melhor id. a fls. 3, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Estado Português, representado pelo MºPº, igualmente melhor id. a fls. 3, peticionando pela procedência da ação a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 245.700,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação, até integral e efetivo pagamento.
Para tanto e em suma alegou:
I- Em virtude de acidente de viação no qual foi interveniente e único responsável pela sua produção e do qual adveio a morte de sua esposa que naquele seguia como passageira, instaurou ação contra Cª de Seguros peticionando, para além do mais e no que ora releva, a condenação desta a indemnizá-lo por danos patrimoniais sofridos com a morte da esposa, nomeadamente ao abrigo do artigo 495º nº 3 do CC.
II- Tal ação veio a ser julgada improcedente na 1ª instância e igualmente na Relação. Nesta última para a qual o A. recorreu apenas quanto aos danos patrimoniais, tendo sido afastada a sua pretensão por este tribunal de recurso ter entendido que “o condutor culposo do veículo onde seguia a esposa, não tinha direito a qualquer indemnização”;
- Irresignado, recorreu então o autor para o STJ, alegando
. não estar excluída da cobertura do seguro a indemnização de danos patrimoniais ao condutor culposo em caso de morte do seu cônjuge no artigo 7º do regime do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor à data do acidente;
. ao negar o direito à indemnização por danos patrimoniais em consequência da morte do seu cônjuge que seguia como passageira no veículo por si conduzido, o Ac. da TRP violou o artigo 7º nº 3 do DL 522/85 com a redação dada pelo DL 130/94 de 19/05;
. solicitou ainda o reenvio prejudicial, requerendo nos termos do artigo 267º do TFUE que fosse formulado pedido de reenvio prejudicial com o seguinte objeto:
“O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis se opõe a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo por danos patrimoniais em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio?”;
- O STJ veio a negar provimento ao seu recurso, em suma:
. justificando-o com o facto de em causa estar um direito que nasceu não na esfera jurídica de quem faleceu, mas de quem o invoca (ou seja o aqui autor);
. nascendo o direito na esfera jurídica de quem o invoca são–lhe aplicáveis as regras gerais da responsabilidade civil, mormente o artigo 483º do CC e nesta perspetiva tendo o autor violado um direito dele próprio, não tem direito a indemnização;
. quanto ao pedido de reenvio prejudicial, o STJ considerou que as normas comunitárias visam o regime do seguro obrigatório automóvel, deixando às normas internas o próprio da responsabilidade civil; o artigo 7º nº 3 do DL 522/85 não afasta o regime indemnizatório previsto no nº 3 do artigo 495º do CC, à luz do qual o A. não tem direito a indemnização;
- Interposto recurso para Uniformização de Jurisprudência não foi o mesmo admitido;
III- As normas nacionais sobre o seguro obrigatório automóvel devem ser interpretadas à luz das Diretivas Comunitárias que o regulam quando transpostas para a ordem jurídica interna ou decorrido o prazo para a respetiva transposição;
- A interpretação feita pelas instâncias nacionais ao artigo 7º do DL 522/85 no sentido de excluir do seguro a indemnização pelos danos decorrentes de lesões corporais não é de acolher;
- Respeitando a indemnização em discussão a danos resultantes de lesões corporais sofridas pela esposa do A. está a mesma incluída na garantia do seguro nos termos do artigo 504º nºs 2 e 3 do CC e artigo 7º nº 2 al. d) do mencionado DL 522/85 porquanto a exclusão aí contemplada abrange apenas as lesões materiais, isto é aquelas que incidem sobre as coisas;
- Das lesões corporais tanto podem emergir danos patrimoniais como não patrimoniais, incluindo-se nos danos patrimoniais o dano futuro da perda de capacidade de ganho;
- Tanto basta para se concluir que assiste ao autor o direito a ser indemnizado por todos os danos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo seu cônjuge e que tal indemnização se encontra coberta pela garantia do seguro [invocando em seu favor o decidido no Ac. Mendes Ferreira processo C-348/98];
- O Supremo Tribunal violou censurável e frontalmente o Direito Comunitário aplicável in casu ao fazer errada interpretação e aplicação das chamadas 2ª e 3ª Diretiva Automóvel por si e através dos diplomas legais que a transpuseram para o nosso direito interno;
- Do mesmo modo ao não determinar o reenvio prejudicial para o TJ que foi expressamente requerido pelo autor, violou o STJ o artigo 267º nº 3 do TFUE já que se trata do tribunal de última instância interna.
IV- A violação do direito comunitário já identificada teve repercussão negativa para o autor, acarretando-lhe a impossibilidade de obter a indemnização pelos danos pessoais que sofreu no acidente de viação através da cobertura do seguro de responsabilidade civil automóvel, verificando-se nexo de causalidade adequada entre aquela violação e o dano sofrido pelo lesado [invocando em seu favor o decidido no Ac. Kobler C-224/01 e no Ac. Traghetti del Mediterraneo de 13/06/2006].
V- O STJ ao decidir pelo não reenvio prejudicial e ao interpretar o artigo 3º da segunda Diretiva e o artigo 1º da terceira Diretiva à luz dos conceitos clássicos do direito interno violou o direito comunitário negligenciando a abordagem da questão que lhes foi colocada no quadro da jurisprudência principialista do TJ o que permite caraterizar o erro de direito cometido como indesculpável, grave e manifesto, colocando em crise o primado do Direito Europeu, da Interpretação Conforme e da Uniformização da Aplicação do mesmo direito em todos os EM, para além do princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos dos particulares.
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Contestou o R. em suma impugnando os fundamentos da ação e concluindo pela sua improcedência.
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Findos os articulados foi proferido despacho a convidar as partes a apresentar alegações de direito por se entender ser questão a decidir meramente de direito.
Após a apresentação das alegações foi proferida a competente sentença na qual e após se ter apreciado que apesar da alegação de “relevante erro judiciário” o A. não alegou ter da decisão do STJ ocorrido “a sua revogação”, pelo que falta um dos pressupostos legalmente exigidos para fundar o direito de indemnização, julgou-se a «ação totalmente improcedente” e, consequentemente absolveu-se “o réu Estado Português do pedido.”
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Do assim decidido apelou a A. oferecendo alegações e formulando as seguintes

CONCLUSÕES
“1. As normas nacionais sobre o seguro obrigatório automóvel devem ser interpretadas à luz das Diretivas Comunitárias que o regulam, quando transpostas para a ordem jurídica interna ou decorrido o prazo para a respetiva transposição (Ac. S.T.J. de 14-1-2010, Proc. 1331/03.3TBVCT.G,S1; Ac. S.T.J. de 16-1-07, Proc. 06A2892 e de 22-4-08, Proc. 088742, todos acessíveis em www.dgsi. pt).
2. O Supremo Tribunal violou censurável e frontalmente o Direito Comunitário aplicável in casu, ao fazer errada interpretação e aplicação das chamadas 2ª e 3ª Diretiva Automóvel, por si e através dos diplomas legais que a transpuseram para o nosso direito interno.
3. A função jurisdicional gera responsabilidade, desde logo quando haja violação do Direito Europeu, com a consequente obrigação para o Estado-Membro de ressarcir os danos causados, desde que a norma violada se destine a conferir direitos aos particulares, a violação seja suficientemente caracterizada e exista um nexo de causalidade entre a violação e o dano sofrido pelo particular.
4. No caso em apreço é inquestionável que o artigo 3º da 2ª Diretiva (84/5/CEE) e o artº 1º da Terceira Diretiva Automóvel (90/232/CEE) atribuem direitos aos particulares, garantindo aos passageiros transportados em veículo a motor, que não o condutor, através do sistema de seguro obrigatório, o ressarcimento dos danos de carácter pessoal que hajam sofrido em consequência de acidente de viação.
5. A violação do direito comunitário está suficientemente caracterizada, quer porque se fez errada interpretação do artigo 3º da Segunda Diretiva e do art. 1º da Terceira Diretiva, sobrepondo-lhe o quadro dogmático-normativo do direito interno anterior, em sede de responsabilidade civil automóvel, sem a preocupação de se interpretar o direito diferido, entretanto transposto (pelo DL 130/94), à luz das novas realidades contempladas em tal diretiva, quer porque se violou, de modo manifesto, a obrigação que impende, máxime, sobre o órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, de suscitar a questão prejudicial junto do TJCE, tanto mais que foi instado pelo Autor, na respetiva ação, para tal, cfr. se decidiu no Acórdão Traghetti del Mediterraneo, de 13.06.2006, do TJUE.
6. E no Acórdão Köbler, o órgão jurisdicional nacional que se deva pronunciar sobre um pedido de reparação deve atender a todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida, designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adotada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento pelo órgão jurisdicional em causa da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do art. 267º/3 do TCE.
7. De facto, o tribunal nacional fica dispensado da obrigação de reenvio, apenas no caso de a aplicação correta do direito da União Europeia ser de tal modo evidente que não deixe lugar a nenhuma dúvida razoável sobre o modo de resolver a questão suscitada.
8. Acresce que o direito da União Europeia utiliza uma terminologia própria, não necessariamente coincidente com a nacional, devendo cada disposição do direito ser colocada no seu contexto e interpretada à luz das suas finalidades – Ac. Cilfit (06.10.82, procº 283/81, nºs 16-20).
9. Pelo que, pedido o reenvio, o Tribunal deve sempre cumpri-lo, já que a certeza exigida para a sua dispensa, não é muito dificilmente atingível.
10. O tribunal de que se recorre, ao decidir que para ser apreciada a responsabilidade civil do Estado é necessário que a decisão danosa seja revogada, está a coartar os direitos dos cidadãos à justa reparação em caso de violação de um direito pelos órgãos jurisdicionais.
11. Não pode colher o argumento da incidência do princípio da autoridade do caso julgado na situação em causa no processo principal, já que o reconhecimento do princípio da responsabilidade do Estado decorrente da decisão de um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância não tem, em si, por consequência, pôr em causa a autoridade do caso definitivamente julgado de tal decisão.
12. O princípio da responsabilidade do Estado inerente à ordem jurídica da União exige o ressarcimento pelo dano causado ao cidadão, mas não a revisão da decisão judicial que o causou (v. acórdão Köbler, C224/01, EU:C:2003:513, n.º 39).
13. Como se escreveu no acórdão do TJUE C-160/14:”O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída”.
14. O argumento da sentença de que se recorre, ainda que em defesa do princípio da segurança jurídica, teria como consequência, quando uma decisão proferida por um órgão jurisdicional que decide em última instância e se baseie numa interpretação manifestamente errada do direito da União, impedir o particular de invocar os direitos que lhe são reconhecidos pela ordem jurídica da União e, especialmente, os que decorrem do princípio da responsabilidade do Estado.
15. O princípio da segurança jurídica nunca poderia pôr em causa o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito da União que lhe sejam imputáveis, sendo o princípio da responsabilidade civil do Estado inerente ao sistema dos Tratados em que se funda a União (v., neste sentido, acórdão Specht e o., C501/12 a C506/12, C540/12 e C541/12, EU:C:2014:2005, n.º 98 e jurisprudência referida).
16. Nestas circunstâncias, um obstáculo importante, como o que resulta da regra do direito nacional em causa no processo principal, à aplicação efetiva do direito da União e, designadamente, de um princípio tão fundamental como o da responsabilidade do Estado por violação do direito da União, não pode ser justificado pelo princípio da autoridade do caso julgado, nem pelo princípio da segurança jurídica.
17. Por tudo o supra exposto, requer-se, nos termos do artº 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, seja feito pedido de decisão prejudicial com o seguinte objeto:
“O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados- Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis se opõe a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo por danos patrimoniais em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. Previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio?”.
Termos em que deverá ser revogada a sentença de que se recorre e em consequência ser o Estado Português condenado a pagar ao autor a indemnização pedida.
Se assim não se entender, deve ser deferido o pedido de reenvio ao Tribunal de Justiça da União Europeia”.
*
Apresentou o R. contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
“1. A douta sentença sob recurso não merece qualquer censura, porquanto se mostra conforme ao Direito;
2. Para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário, releva apenas o erro manifesto ou grosseiro, extraído do juízo relativo à relevância jurídica do dano, de proporcionalidade e de repartição dos custos e encargos com o sistema de justiça (o dano indemnizável), sem prejuízo da relevância de qualquer erro para efeitos de revogação da decisão danosa;
3. Ao decidir-se pelo não reenvio prejudicial ao TJUE, como o fez, o STJ não violou quaisquer normas de direito comunitário, não se podendo considerar que essa mais que duvidosa violação tenha carácter manifesto, não se descortinando desvalor jurídico na atuação do STJ.
4. Nada impedia que os Senhores Juízes Conselheiros entendessem, como entenderam, que a interpretação do artigo 7º, números 1 e 2, alínea a), do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na redação introduzida pelo DL 130/94, de 19 de Maio, não suscitava “justificadas dúvidas” e que, com esse fundamento, recusassem o reenvio prejudicial.
5. À semelhança do que a Lei nº 67/2007 estipula para a verificação de responsabilidade civil por decisões judiciais que apliquem o direito interno, a afirmação dessa responsabilidade por decisões judiciais que apliquem o direito da UE só se verifica se e quando a violação das suas normas seja manifesta, caso em que a mesma se apresenta suficientemente caracterizada.
6. O erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis, e não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização.
7. Face à não alegação da revogação da decisão da qual entende o Autor emergir o erro judiciário, e da própria perspetiva do autor, que essas decisões se tornaram definitivas e consolidadas, na ordem jurídica, concluiu-se pela falta de verificação do pressuposto legalmente exigido para fundar o direito de indemnização, ou seja, a falta de prévia revogação da decisão danosa.
Subsidiariamente,
8. Os danos não podem ser hipotéticos, não podem ser os danos que, em tese, o particular não sofreria se a obrigação de reenvio tivesse sido cumprida porque esses são sempre insuscetíveis de demonstrar, são insindicáveis por serem apenas suposições.
9. O direito do Autor a ser indemnizado pelo erro judiciário que alega ter sido cometido, sempre teria de ser apurado com recurso ao disposto no art. 566º, nº 3 do Código Civil, que não corresponderá, necessariamente, ao montante do pedido relativo aos alimentos/ danos patrimoniais futuros que alega ter sofrido com o falecimento da sua malograda esposa, e que foram, em concreto, peticionados perante o Tribunal da Relação do Porto, e perante o Supremo Tribunal de Justiça, em sede dos respetivos recursos, de onde promana o invocado erro judiciário.
Termos em que deverá o presente recurso seja julgado improcedente e, em consequência, confirmar-se a douta sentença, absolvendo-se o Réu, Estado Português, do pedido com as demais consequências legais.”
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
***
II - FACTUALIDADE PROVADA.
(O tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade)
“1. O A. intentou um ação judicial, a qual adquiriu o n.º 2362/09.5TBPRD, e correu os seus termos no extinto 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, contra a Companhia de Seguros C..., pedindo que a mesma fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 335.700,00€, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, em consequência de um acidente de viação ocorrido em 3 de Dezembro de 2005, na EN n.º .., Km 17, localidade ..., Paredes, entre o veículo ligeiro de passageiros de matricula ..-..-XE e o também ligeiro de passageiros de matricula ..-..-TH, conduzido por si e onde seguia como passageira D..., sua esposa, que em consequência daquela acidente de viação, veio a falecer.
2. Alegou que foi o responsável pelo aludido acidente por ter perdido o controlo do seu veículo, seguro na Ré.
3. Por sua vez, na Contestação, a R. alegou que a sua responsabilidade estava excluída em virtude de o condutor do veículo seguro ser marido da falecida.
4. Na Réplica, o A. salientou que a referida exclusão não se verificava porque o acidente ocorreu antes da entrada em vigor da Lei 291/2007 de 21/08 e, por outro lado, que nem o condutor do veículo era titular da Apólice nem a vítima mortal era comproprietária do ..-..-TH.
5. Acrescentou que o regime do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil que estava em vigor era o DL 522/85 de 31/12, com a redação dada pelo DL 130/94 de 19/05, o qual, no seu art.º 7.º n.º 3, não excluía qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente.
6. No Despacho Saneador, entendeu-se que o diploma legal aplicável ao acidente constante dos autos era o DL 522/85, de 31/12, já que o acidente tinha ocorrido em 2005, o qual transitou em julgado (cfr. documento de fls. 23 a 27 cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
7. Efetuou-se a Audiência de Discussão e Julgamento, dando-se como provados os factos constantes da sentença constante do documento de fls. 28 a 38, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
8. Quanto aos danos patrimoniais, a sentença absolveu a Ré seguradora, por ter entendido desconhecer-se quais os rendimentos do Autor, as suas despesas e encargos, e bem assim em que medida é que a falecida contribuía ou iria contribuir para a economia do casal.
9. Quanto aos danos não patrimoniais, a Mª Juíza quo entendeu que os mesmos estavam excluídos pelo n.º 3 do art.º 7.º do DL 522/85 de 31/12, com a redação conferida pelo DL 130/94 de 19/05 10. Não se conformando com a sentença em causa, o A. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, apenas quanto à indemnização pelos danos patrimoniais, com os fundamentos constantes do documento de fls. 39 a 42 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 11. Em relação àquele recurso, o Tribunal da Relação do Porto proferiu o acórdão constante de fls. 44 a 55 autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, negando provimento ao recurso, em síntese, por entender que o A., sendo o condutor culposo do veículo onde seguia a esposa, não tinha direito a qualquer indemnização.
12. O A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo essencialmente que:
- O regime do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em vigor à data do acidente, era o do DL 522/85, de 21 de Dezembro, com a redação do DL 130/94, de 19 de Maio, que no seu art. 7º elencava todas as exclusões da cobertura do seguro, a saber:
- Lesões corporais sofridas pelo próprio condutor (nº 1);
- Lesões materiais, quer ao condutor, quer as restantes pessoas enunciadas no nº 2 daquele normativo legal (nº 2);
- Danos não patrimoniais ao responsável culposo do acidente por morte destas últimas pessoas (nº 3).
- O legislador especificou exaustivamente todas as exclusões. Se pretendesse excluir a indemnização por danos patrimoniais ao condutor culposo, em caso de morte do seu cônjuge no acidente, tê-lo-ia feito, tanto mais que o DL 130/94 é já uma revisão da legislação existente na matéria desde 1985, para transposição da Diretiva nº 90/232/CEE, do Conselho, de 14 de Maio de 1990, contemplando a Decisão nº 91/323/CEE, da Comissão, de 30.05.1991. O artº 7º foi alterado, incluindo o nº 3, mas manteve-se a exclusão da cobertura do seguro ao condutor culposo, apenas por danos não patrimoniais.
- Aliás, foi sempre o entendimento dos estudiosos do assunto. Exemplificativamente: “A disposição do nº 3 é nova. Visa excluir do direito à indemnização, que reconhece ao causador culposo do acidente, outros danos que não sejam os de natureza exclusivamente patrimonial.” – Adriano Garção Soares, José Maia dos Santos, in Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil, Anotado, Livraria Almedina, Coimbra 1987, pág. 25, nota 4;
“O nº 3 do artº 7º do Decreto-Lei nº 522/85 excluía a indemnização mas apenas por danos não patrimoniais. E referia-se ao responsável culposo.
Parece que a intenção é agora a de excluir qualquer tipo de indemnização e ainda não limitar a exclusão ao responsável culposo” - Adriano Garção Soares, Maria José Rangel Mesquita, in Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, Edições Almedina S.A., Outubro de 2008, pág. 73, nota 3.
- O DL 522/85, com as posteriores alterações, é uma lei especial que, portanto, se sobrepõe à lei geral, o C.C., sendo que o artº 7º daquele diploma legal, contém uma norma de direito material de responsabilidade civil, que afasta o regime geral.
- Ao negar o direito a ser indemnizado por danos patrimoniais em consequência da morte do seu cônjuge, que seguia como passageiro no veículo por si conduzido, o Acórdão da Relação do Porto violou o artº 7º, nº 3, do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação que lhe foi dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio.
13. Mais, solicitou, ainda, o reenvio prejudicial, com os argumentos:
- “A emergência do Direito da União que, nos termos do nº 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, vigora automaticamente na ordem jurídica interna de cada um dos Estados-Membros, impôs a estes uma alteração do paradigma do regime da responsabilidade civil emergente da circulação automóvel, em conformidade com o Direito da União, que impõe, tendo em conta o princípio da lealdade europeia, que os Estados Membros estejam obrigados a adotar todas as medidas necessárias ao cumprimento dos objetivos dos tratados e a não adotar medidas que ponham em causa tais objetivos.
Assim, nos termos do artº 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, requer-se seja feito pedido de decisão prejudicial com o seguinte objeto:
- “O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis se opõe a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo por danos patrimoniais em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio?” (cfr. documento de fls. 56 a 59 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
14. Por acórdão do STJ foi negada a revista, com os fundamentos:
“Ora, o direito que está em causa no presente recurso, reportado ao que dispõe o n.º 3 do art.º 495.º tem como pressuposto a morte de alguém, mas não nasceu na esfera jurídica de quem faleceu.
- É um direito que nasce na esfera jurídica de quem o invoca, destinando-se a indemnização ali prevista a substituir o direito a alimentos presentes ou futuros em que o falecido era ou seria, não credor, mas devedor.
- Se o direito em causa nasce na esfera jurídica de quem o invoca – neste caso o autor – não podem deixar de relevar as regras gerais da responsabilidade civil, mormente a alusão a “outrem” do artigo 483.º do Código Civil.
- Com a sua conduta culposa e na perspetiva em que nos situamos – sempre com referência ao direito agora em causa – o autor violou um direito dele.
- Se violou um direito dele próprio, não tem lugar a indemnização, valendo o velho brocado “sibi imputat” (cfr. documento de fls. 69 a 88 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
15. Relativamente ao pedido de reenvio prejudicial, o STJ considerou:
1. O Direito Comunitário impõe aos Estados-Membros uma aproximação das legislações nacionais relativamente ao seguro obrigatório automóvel.
2. Essa aproximação tem como escopo, se não essencial, pelo menos particularmente relevante, a proteção das vítimas, mormente quanto a indemnização por danos pessoais.
3. Entre estas, os passageiros – que não o condutor – merecem particular atenção.
4. As normas comunitárias visam o regime do seguro obrigatório automóvel, deixando às normas internas o próprio da responsabilidade civil.
5. Todavia, no caso dos passageiros, teve lugar invasão deste regime, ao declarar-se irrelevante a contribuição culposa do próprio sinistrado, ou, ao determinar-se oposição a qualquer exclusão por os passageiros serem membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente dum sinistro se encontre coberta pelo seguro.
6. Invasão essa que não prejudica a consideração, quanto ao mais, das regras de origem interna atinentes à responsabilidade civil.
7. O DL n.º 291/2007, de 21/08 não se aplica a acidentes verificados antes da sua entrada em vigor.
8. O art.º 7.º n.º 3 do DL 522/85 de 31/12, na redação dada pelo DL 130/94, de 19/05, não afasta o regime indemnizatório previsto no n.º 3 do art.º 495.º do Código Civil.
9. Este n.º 3 consagra um direito à indemnização que, embora tenha como pressuposto a morte de outrem, nasce na esfera jurídica do respectivo titular.
10. Que não assiste tal direito àquele que foi o único culpado do acidente em que faleceu a esposa que era transportada no veículo por ele conduzido.” (cfr. documento de fls. 61 a 67 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
16. Entretanto, foi interposto recurso para Uniformização de Jurisprudência nos termos constantes de fls. 89 a 93 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
17. Tal recurso para Uniformização de Jurisprudência, não foi admitido nos termos constantes de fls. 95 a 107 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.”

III- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante serem as seguintes as questões submetidas a apreciação [tal como já elencado no Ac. desta Relação a que infra se aludirá]:
1ª- Para que seja apreciada a responsabilidade civil do Estado é necessário que a decisão danosa seja revogada?
2ª- Verifica-se a existência de um erro judiciário, por violação do direito comunitário – errada interpretação das diretivas comunitárias e não suscitar a questão prejudicial junto do TJCE (reenvio)?
3ª- Deve ser deferido o pedido de reenvio formulado pelo Recorrente?”.
*
IV- Apreciando.

Em Acórdão já proferido por esta Relação pelo Exmo. Relator a quem anteriormente este processo foi distribuído, foi já apreciada e decidida a primeira questão julgando-a procedente, nos seguintes termos que apenas por clareza se reproduzem aqui:
“B) Vejamos a primeira questão: Para que seja apreciada a responsabilidade civil do Estado é necessário que a decisão danosa seja revogada?
O regime da responsabilidade civil do estado encontra-se regulamentado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, a qual aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, (RRCEE).
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 56/X podemos ler “…Avança-se, por outro lado, no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, fazendo, para o efeito, uma opção arrojada: a de estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam diretamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave, pelo que não se lhes aplica o regime de responsabilidade solidária que vale para os titulares de órgãos, funcionários e agentes administrativos, incluindo os que prestam serviço na administração da justiça”.
No que concerne à responsabilidade civil do Estado por erro judiciário o n.º 1 do artigo 13.º do RRCEE (Lei 67/2007, de 31/12) dispõe que: «Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto».
Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que «O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
Com base neste normativo a decisão recorrida entendeu que decorre do citado preceito a exigência «que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade, já acima aflorada, de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.
Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização.
Não pode, pois, "atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto" (…).
Constituiria, na verdade, evidente ilogismo institucional, como acima se referiu, que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior».
E prossegue posteriormente «Podemos, pois, concluir que, "se não se fizer a prova, no processo destinado a efetivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a ação deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria em causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil" (…)”.
Em sentido idêntico ao que fica exposto cfr. acórdão do STJ de 3/12/09, in www.dgsi.pt, processo n.º 9180/07.3TBBRG.G1.S1».
Com base nestes pressupostos concluiu a decisão recorrida que, não tendo o Autor alegado que a decisão do STJ, na qual o eventual erro judiciário terá sido cometido, tenha sido revogada, antes pelo contrário se tornou definitiva e consolidada na ordem jurídica, então ocorre «falta de verificação do pressuposto legalmente exigido para fundar o direito de indemnização, ou seja, a falta de prévia revogação da decisão danosa», pelo que se impunha «concluir pela manifesta improcedência da ação».
É contra esta argumentação que se manifesta o Recorrente defendendo que deste modo se está a coartar os direitos dos cidadãos à justa reparação em caso de violação de um direito pelos órgãos jurisdicionais.
Acresce que o princípio da responsabilidade do Estado «inerente à ordem jurídica da União exige o ressarcimento pelo dano causado ao cidadão, mas não a revisão da decisão judicial que o causou, não podendo o princípio da segurança jurídica pôr em causa aquele princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito da União».
Temos assim que enquanto a decisão recorrida defende a exigência de prévia revogação da decisão danosa – e que deveria ter sido efetuada no próprio processo – o recorrente tem entendimento diverso.
A questão não é pacífica quer ao nível da Jurisprudência quer na Doutrina.
In O erro judiciário: A Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional, Fátima Galante após equacionar algumas dificuldades decorrentes da exigência, como pressuposto processual da ação indemnizatória, da «prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», naturalmente, em processo de recurso jurisdicional, conclui que «a ação de indemnização, dirigida contra o Estado não é local adequado para o lesado invocar reconhecimento do erro judiciário e tem que ser precedida de outra em que o lesado demonstre, nomeadamente através do competente recurso de revisão da sentença onde foi cometido o erro, a existência deste e a sentença onde foi cometido o erro será revogada, em caso de procedência do recurso de revisão. Só depois de ser reconhecido o erro, por decisão transitada, é que o lesado poderá intentar a competente ação de indemnização», op. Cit pág. 46.
No mesmo sentido aponta Ana Celeste Carvalho, in A Responsabilidade Civil por Erro Judiciário, CEJ, EbooK, 2014, para quem «quando não exista a prévia revogação da decisão danosa, seja porque dela não cabe recurso, seja porque o lesado não proveu a interposição de recurso ou a sua reapreciação, não existe erro de julgamento que deva ser reparado no domínio da ação de responsabilidade civil por erro judiciário», op. cit. 61.
Em sentido inverso caminha Heloísa Oliveira, in Jurisprudência Comunitária e Regime Jurídico da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas – Influência, omissão e desconformidade, in estudos em Homenagem ao Sr. Prof. Doutor Sérvulo Correia, quando conclui que «o artigo 13º n.º 2, do RJRCEE revela-se em oposição à jurisprudência do TJUE, porquanto exige que haja prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, o que será manifestamente impossível no caso de a decisão ser proferida pelo último grau de jurisdição», acrescentando que «esta exigência carece de qualquer sentido nos casos de violação de direito comunitário, porquanto uma das situações mais frequentes, e admitidas pelo TJUE, de responsabilidade do Estado-Juiz será, porventura, a não colocação de uma questão prejudicial que se revela (normalmente) obrigatória quando se trata de um Tribunal no último grau de jurisdição», (conclusões 12 e 13).
De igual modo Mariana Sá Nogueira, Art. 267 TFUE: Lex Imperfecta? Das Consequências da Omissão do reenvio Prejudicial à Luz da lei Civil Portuguesa defende que perante a exigência do artigo 13 n.º 2 da Lei n.º 67/2007, da prévia revogação da decisão que serve de fundamento à ação de responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais, atento o regime de recursos, designadamente do recurso de revisão, «facilmente se depreende que esta exigência pode significar, na prática, a impossibilidade dos particulares acederem à ação de responsabilidade».
Acrescenta, concluindo «…entendemos que o recurso de revisão, quando esteja em causa a efetivação da responsabilidade do Estado por decisões contrárias ao direito da EU, é uma mera faculdade do particular não configurando, por isso, uma condição da ação de responsabilidade. O princípio da interpretação conforme a tanto obriga», op. Cit. Pág. 49.
Com interesse para esta questão, para além da vasta obra citada pela decisão recorrida (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, V. I, 429; no mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 213; Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade do Estado por Atos Legislativos, 121; Aveiro Pereira, A responsabilidade civil por atos jurisdicionais, p. 105; Guilherme Catarino, A responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 171 e 172; Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Comentário ao Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 40 e ss.; Acórdãos do STJ de 8/09/09, de 3/12/09, 22/03/2011, 28/02/2012 e de 22/03/2014, em www.dgsi.pt), veja-se ainda A responsabilidade do Estado e Outros Entes Públicos, João Caupers, FDUNL; Responsabilidade Civil por Danos Derivados do Exercício da Função Jurisdicional, Salvador da Costa, in www.inverbis.pt; Responsabilidade do Estado por erro judiciário: perplexidades e interrogações, Elizabeth Fernandez (a Autora discorda da exigência da revogação prévia, a qual, na ausência de um meio impugnatório próprio, pode redundar na impossibilidade de direito ao exercício ao direito de reparação por erro judiciário).
Na Jurisprudência são inúmeras as decisões quanto à responsabilidade civil do Estado, sendo que a grande maioria se refere a casos «de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade».
Relativamente a esta questão concreta podemos ver:
a) o Ac. do STJ de 03-12-2009, que dispõe no seu sumário, «I- Em matéria de natureza cível, só com a entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, faz sentido responsabilizar o Estado, por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, mas apenas nos apertados limites da previsão do seu artigo 13º, e nunca antes, ou seja, com base no articulado do revogado Decreto-lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
II- Assim, carece de sentido e de fundamento legal a ação proposta contra o Estado Português pelo Autor de uma ação, intentada contra uma Seguradora com fundamento no instituto da responsabilidade civil, julgada improcedente, em último grau, pelo Supremo Tribunal de Justiça, antes da entrada em vigor daquela Lei, por, alegadamente, ter sido desconsiderada, fruto apenas de mera interpretação, a aplicação, ao caso, de uma Diretiva Comunitária, concretamente a Diretiva Comunitária, de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), vulgarmente conhecida por 3ª Diretiva Automóvel.
III- Tal ação intentada contra o Estado Português nunca deveria ter o crivo do saneador, com natural improcedência.
IV- Na verdade, aceitar-se a tese, que vingou nas instâncias, de apreciação crítica de uma decisão tomada, em último grau, pelo Supremo Tribunal de Justiça, representaria uma total e inaceitável subversão da regulamentação do nosso sistema judiciário;
b) e o Ac. do STJ de 24.02.2015, que dispõe no seu sumário, «I - Apesar da falta de regulamentação própria, desde há muito se vinha afirmando a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (fora dos casos específicos da jurisdição penal), com fundamento no art. 22.º da CRP, que se considerava de aplicação direta, sem carecer de mediação normativa para poder ser invocado.
II - O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31-12, concretiza o princípio consagrado no citado art. 22.º sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.
III - No que concerne à função jurisdicional, o referido regime distingue os danos ilicitamente causados pela administração da justiça (com destaque para a violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável – art. 12.º) e os danos decorrentes de "erro judiciário", que pode consistir num erro de direito ou num erro de facto (art. 13.º, n.º 1).
IV - O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.
V - Todavia, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização.
VI - Se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário (art. 13.º, n.º 2, do citado Regime), não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a ação deve necessariamente improceder.
VII - Apesar do seu carácter restritivo, o referido regime não cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade consagrados na Constituição (arts. 22.º e 13.º, respetivamente).
O primeiro destes arestos, o acórdão do STJ de 3/12/2009, veio realçar o facto de o novo regime exigir, como condição prévia da responsabilização do Estado por atos jurisdicionais, que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Nos termos desta decisão do nosso mais alto Tribunal importaria ter em consideração que:
«esta ação não é uma ação qualquer.
Ela configura mais que um recurso de revisão, tal como está previsto nos artigos 771º e seguintes do Código de Processo Civil, em que nos surgem como censores de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça os próprios tribunais de instância.
O legislador, naquele recurso, não foi tão longe.
E deixou bem marcada a sua posição no supra mencionado artigo 13º, nº 2, da nova Lei.
Aceitar isto é subverter toda a lógica que rege a nossa estrutura judiciária.
Será que o facto de a pretensão do recorrente não ter recebido acolhimento, mesmo ao nível do mais alto Tribunal do país, é motivo para ter mais garantias de avaliação do que lhe são dadas pelo recurso de revisão?
Não pode ser.
Nem pode acontecer que os juízes se arvorem em censores de decisões que o próprio legislador teve por bem não as sujeitar a tal (citado nº 2 do artigo 13º da nova Lei).
A não ser assim, bem poderia o Estado ser, agora, duplamente responsabilizado, pagando a indemnização peticionada por alegados danos sofridos, em consequência da perda da ação.
No fundo, entrar-se-ia na grande angústia: quid custodiet custodes?
Esta última ideia encontra conforto na opinião avalizada de José Manuel M. Cardoso da Costa, que, no artigo supra citado, (Revista Legislação e Jurisprudência, Ano 138º, Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por atos da função jurisdicional, páginas 156 a 168) não deixa de realçar o facto de o novo Regime exigir, como condição prévia, da responsabilização do Estado por atos jurisdicionais, que “o pedido de indemnização deva ser fundada na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” (artigo 13º, nº 2).
E a este respeito não deixou de lançar três importantes notas, a merecerem meditação, a saber:
1ª – A «revogação» da decisão danosa, exigida pelo nº 2 do artigo 13º, há-de ser naturalmente uma revogação definitiva, ou seja, constante de uma decisão transitada em julgado.
2ª – Tal revogação há-de, por via máxima, provir de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso, não sendo de excluir que possa provir deste próprio que proferiu a decisão questionada, quando isso seja admissível processualmente.
3ª – Há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter «manifesto» do erro de direito ou o carácter grosseiro na apreciação dos factos, que são pressupostos substantivos da responsabilidade do Estado.
Perante estas exigências contidas na nova Lei, que dizer da oportunidade da presente demanda?
Que não faz o mínimo sentido, à luz das regras que norteiam o nosso sistema judiciário.
Aceitá-la significa, pura e simplesmente, subvertê-lo.
A ação não deveria, por isso mesmo, passar o crivo do saneador, com a sua rejeição total.
Admiti-la, como acabou por acontecer, teve o seguinte resultado: permitiu-se às instâncias a apreciação do mérito de uma decisão definitiva tirada pelo … Supremo Tribunal de Justiça!».
Esta posição, de 3/12/2009, do STJ da necessidade da prévia revogação da decisão danosa foi seguida, como se disse, pelo Ac. de 24.02.2015 do mesmo Supremo Tribunal nos termos do qual se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a ação deve necessariamente improceder.
Esta foi a posição adotada pela decisão recorrida, como se sabe.
É importante realçar a posição do nosso mais alto Tribunal adotada naqueles dois arestos, uma vez que recentemente o TJUE, no Acórdão de 9 de Setembro de 2015, proc. C-160/14 (Acórdão Ferreira da Silva e Brito) veio decidir em sentido contrário.
Como afirma Alessandra Silveira, Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional) pág. 2, «resulta cabalmente do acórdão a incompatibilidade da regra constante do artigo 13º, n.º 2, RRCEE com os princípios descortinados pelo TJUE em sede de responsabilidade dos Estados-Membros por violação do direito da União».
Apreciando a compatibilidade da exigência prevista no artigo 13 n.º 2 da Lei n.º 62/2007, de 31-12 com os princípios densificados em sede de responsabilidade dos Estados-Membros por violação do direito da União, o TJUE, nos considerandos 51 a 60, «claramente concluiu que contraria o princípio da efetividade: “uma regra de direito nacional como a que figura no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União em causa” – pois, como foi apurado nas fases escrita e oral do processo, “as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas”. Acresce que tal obstáculo não pode ser justificado por outros princípios gerais do direito da União como os da autoridade do caso julgado ou da segurança jurídica.
A resposta do TJUE é, assim, clara e incisiva: “o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação está, na prática, excluída.” A regra do art. 13.º, n.º 2, do RRCEE não se aplica, pois, aos casos de violação do direito da União imputáveis ao Estado no exercício da função jurisdicional, por força do princípio do primado do direito da União», in Alessandra Silveira, op. Cit. Pág. 7.
Analisando outras decisões do TJUE, também Heloísa Oliveira, afirma que aquela norma não é compatível com a jurisprudência do TJUE pois que «efetivamente, tanto no Acórdão Kobler, como no Acórdão Traghetti, a decisão violadora de direito comunitário tinha sido proferida por um Tribunal Supremo, insuscetível de recurso, e portanto insuscetível de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», in Jurisprudência Comunitária e Regime Jurídico da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas - Influência, omissão e desconformidade, in estudos em Homenagem ao Sr. Prof. Doutor Sérvulo Correia.
De seguida a Autora cita Carlos Cadilha, segundo o qual em casos de violação do direito da União «não é aplicável, para efeitos da efetivação do direito de indemnização, o requisito do artigo 13, n.º 2 da presente Lei, que impõe a prévia revogação da decisão danosa; isso porque o incumprimento é diretamente imputável a um tribunal que decidia em última instância, ao qual se exigia que suscitasse o reenvio prejudicial»
Nas conclusões 12 e 13 afirma Heloísa Oliveira que «O artigo 13.º, n.º 2, do RJRCEE revela-se em oposição á jurisprudência do TJUE, porquanto exige que haja prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, o que será manifestamente impossível no caso de a decisão ser proferida pelo último grau de jurisdição. Esta exigência carece de qualquer sentido nos casos de violação de direito comunitário, porquanto uma das situações mais frequentes, e admitidas pelo TJUE, de responsabilidade do Estado-Juiz será, porventura, a não colocação de uma questão prejudicial que se revela (normalmente) obrigatória quando se trata de um Tribunal no último grau de jurisdição»
Assim, podemos, deste modo concluir que o TJUE afirma, de forma clara que quando está em questão a violação do direito comunitário deve ter-se por definitivamente afastada a regra contida no artigo 13º, n.º 2 da Lei n.º 62/2007, de 31-12, ou seja não deve ser exigida a prévia revisão ou revogação da decisão danosa.
Não vemos razões para não aderir e aceitar esta posição do TJUE
Procede deste modo esta questão arguida pelo Recorrente.”
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***
Assim resolvida a 1ª questão julgando-a procedente, e apreciando a segunda questão elencado como objeto do recurso, foram tecidos os seguintes considerandos que aqui igualmente se reproduzem, porquanto de forma clarividente e linear elenca as bases em que deverá ser aferida a responsabilidade civil reportada a erro judiciário que é causa desta ação e evidencia os pressupostos do que então foi determinado e decidido:
“2º Resolvida a primeira questão, vejamos a 2ª: Verifica-se a existência de um erro judiciário, por violação do direito comunitário – errada interpretação das diretivas comunitárias e não suscitar a questão prejudicial junto do TJCE (reenvio)?
O Autor/recorrente fundamenta o eventual «erro judiciário» na violação do direito comunitário por parte do Supremo tribunal de justiça.
Esta violação do direito da união assentaria em dois pontos:
a) Um primeiro, porque foi feita uma errada interpretação do artigo 3º da Segunda Diretiva e do art. 1º da Terceira Diretiva, sobrepondo-lhe o quadro dogmático-normativo do direito interno anterior, em sede de responsabilidade civil automóvel, sem a preocupação de se interpretar o direito diferido, entretanto transposto (pelo DL 130/94), à luz das novas realidades contempladas em tal diretiva;
b) Um segundo, porque se violou, de modo manifesto, a obrigação que impende, máxime, sobre o órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, de suscitar a questão prejudicial junto do TJCE, tanto mais que foi instado pelo Autor, na respetiva ação, para tal.
Quanto ao primeiro ponto o STJ considerou que no caso concreto não estava em apreciação saber se a passageira falecida, devia, ou não, ser indemnizada, mas sim decidir se o cônjuge (que é o ora Autor) deve ou não ser indemnizado (sendo ele o causador, o culpado do acidente).
Para o STJ o direito comunitário apenas impõe que ele, o cônjuge (ora Autor) não pode ser negativamente diferenciado por ser casado com a vítima.
Como se refere no acórdão do STJ em questão “o direito que está em causa no presente recurso, reportado ao que dispõe o n.º 3 do art.º 495.º tem como pressuposto a morte de alguém, mas não nasceu na esfera jurídica de quem faleceu.
É um direito que nasce na esfera jurídica de quem o invoca, destinando-se a indemnização ali prevista a substituir o direito a alimentos presentes ou futuros em que o falecido era ou seria, não credor, mas devedor.
Se o direito em causa nasce na esfera jurídica de quem o invoca – neste caso o autor – não podem deixar de relevar as regras gerais da responsabilidade civil, mormente a alusão a “outrem” do artigo 483.º do Código Civil.
Com a sua conduta culposa e na perspetiva em que nos situamos – sempre com referência ao direito agora em causa – o autor violou um direito dele.
Se violou um direito dele próprio, não tem lugar a indemnização, valendo o velho brocado “sibi imputat”».
Quanto à segunda questão – violação do direito da união por não ter o STJ procedido ao pedido de reenvio – o nosso mais alto Tribunal entendeu que as normas comunitárias visam o regime do seguro obrigatório automóvel, deixando às normas internas o próprio da responsabilidade civil.
Todavia, no caso dos passageiros, teve lugar invasão deste regime, ao declarar-se irrelevante a contribuição culposa do próprio sinistrado, ou, ao determinar-se oposição a qualquer exclusão por os passageiros serem membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente dum sinistro se encontre coberta pelo seguro.
Invasão essa que não prejudica a consideração, quanto ao mais, das regras de origem interna atinentes à responsabilidade civil. Considerou, também que o DL n.º 291/2007, de 21/08 não se aplica a acidentes verificados antes da sua entrada em vigor e o art.º 7.º n.º 3 do DL 522/85 de 31/12, na redação dada pelo DL 130/94, de 19/05, não afasta o regime indemnizatório previsto no n.º 3 do art.º 495.º do Código Civil, o qual consagra um direito à indemnização que, embora tenha como pressuposto a morte de outrem, nasce na esfera jurídica do respectivo titular.
Assim, entendeu que não assiste tal direito àquele que foi o único culpado do acidente em que faleceu a esposa que era transportada no veículo por ele conduzido.
A questão que se coloca a este Tribunal, nesta ação de responsabilidade civil do Estado por danos causados a terceiros, decorrentes da função jurisdicional - concretamente suportada num eventual erro judiciário – é, precisamente apurar se ocorreu aquele alegado erro judiciário por violação do direito comunitário, nos termos apontados pelo Autor, ora recorrente.
No que concerne ao erro judiciário, com base na violação do direito comunitário devido ao facto de o STJ não ter suscitado a questão prejudicial, como havia sido requerido pelo ora Recorrente, ou seja devido ao facto de o STJ não ter procedido ao reenvio, dúvidas não temos em como a Jurisprudência (nacional e comunitária) e a Doutrina, entendem que o Tribunal nacional apenas não está obrigado a proceder ao reenvio se a questão for tão óbvia que não deixe margem para qualquer dúvida interpretativa razoável quanto ao modo como deva ser resolvida (doutrina do ato claro).
Em princípio e como regra o reenvio é meramente facultativo, artigo 267 § 2 e § 3 do TFUE.
Mas esta regra tem exceções. E uma delas emana do § 3 do citado artigo 267 do TFUE, nos termos do qual é obrigatório o reenvio quando a questão prejudicial é colocada junto do «órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno», ou seja quando a questão é colocada no Tribunal nacional que decide em última instância, no caso o STJ.
Mas também se aceita, como pacífico, que a obrigação de suscitar a questão prejudicial por parte STJ, tribunal nacional que decide em última instância, não é absoluta.
A regra tem exceções, sendo uma delas (aliás, invocada pelo STJ) a de que a norma a aplicar é de tal modo clara e evidente que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável, (sobre esta questão veja-se Mariana Nogueira Sá, Artigo 267 TFUE: Lex Imperfecta? Das Consequências da Omissão do reenvio Prejudicial à Luz da Lei Civil Portuguesa, pág 24 e ss, onde a Autora, ciando o TJ, Ac. Cilfit, nos elenca as 3 situações em que o Tribunal nacional, não obstante decidir em última instância, fica dispensado de proceder ao reenvio).
Estamos perante uma exceção à obrigatoriedade do reenvio, daí que «o tribunal de cuja decisão já não caiba recurso no direito interno deve estar convencido de que a interpretação em causa é igualmente óbvia para os demais tribunais dos Estado-Membros e para o TJUE», Alessandra Silveira, op. Cit. Pág.4.
Por isso, «um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial de direito interno deve cumprir a sua obrigação de submeter uma questão ao Tribunal de Justiça, a fim de afastar o risco de interpretação errada do direito da União», in Ac. do TJUE de 09.09.2015, Acórdão Ferreira da Silva e Brito, considerando 44, citado e anotado por Alessandra Silveira, op. cit.
Daí que, a ausência do reenvio prejudicial pode frustrar a tutela jurisdicional efetiva dos direitos que para os particulares decorre do Direito Comunitário.
Perante a Jurisprudência do TJUE, tem-se entendido, e podemos também concluir, que o Tribunal nacional que decide em última instância é obrigado «a cumprir o seu dever de reenvio sempre que uma questão de direito da União nele seja suscitado».
Apenas estará dispensado desse dever se concluir que «a questão não é pertinente, ou que a disposição do direito da União em causa foi objeto de uma interpretação por parte do TJUE, ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida interpretativa razoável», Alessandra Silveira, op. Cit. Pág. 14.
No caso em apreço, para se determinar se o nosso mais alto Tribunal, o STJ podia não ter procedido ao pedido de reenvio, por a questão a decidir ser clara e inequívoca é antes do mais necessário apurar e decidir se a questão é efetivamente clara e inequívoca e se a sua decisão não viola ela própria o direito da União.
Todavia para se apurar se ocorreu violação do direito da união por parte do STJ, ao fazer – na perspetiva do Autor – uma errada interpretação dos artigos 3º da Segunda Diretiva e 1º da Terceira Diretiva, sobrepondo-lhes o quadro dogmático-normativo do direito interno é necessário determinar a posição do TJUE.
Afigura-se-nos que é preciso responder previamente a esta questão para se poder apurar se o STJ violou o seu dever de reenvio da questão prejudicial.
Aliás o Autor/recorrente volta a colocar a este Tribunal (que em caso de confirmação da decisão recorrida e atento o principio da dupla conforme também decidiria em última instância) o pedido de reenvio, requerendo, nos termos do artº 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que seja feito pedido de decisão prejudicial com o seguinte objeto:
“O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados- Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis se opõe a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo por danos patrimoniais em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. Previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio?”.
Tudo o que se acaba de expor aconselha a que o Tribunal suspenda a instância e suscite, nos termos do artigo 234 do Tratado CE o reenvio prejudicial da questão ao Tribunal de Justiça (regime que visa garantir um princípio fundamental da ordem jurídica da EU: o princípio da uniformidade na interpretação do direito da União).
A questão prejudicial a ser formulada enuncia-se como segue:
O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados- Membros, respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, opõe-se a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo, por danos patrimoniais, em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. Previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio.”
Termos em que se decidiu:
“Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, acorda-se em considerar prejudicado, por ora, o conhecimento do recurso e suscitar perante o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias - suspendendo a instância até decisão a proferir por esse Tribunal - a seguinte questão prejudicial:
O postulado nas Segunda e Terceira Diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados- Membros, respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, opõe-se a que a legislação nacional preveja a indemnização do condutor culposo, por danos patrimoniais, em caso de falecimento do cônjuge que seguia no veículo como passageiro, cf. Previsto no artº 7º nº 3 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, com a redação dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio
Notifique as partes para em 10 dias dizerem o que se lhes oferecer quanto às questões do reenvio prejudicial, querendo.”
***
Assim deduzido o pedido de reenvio prejudicial para pronúncia do TJUE sobre a questão colocada, veio este Tribunal de Justiça a declarar:

“A Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que exclui o direito do condutor de um veículo automóvel, responsável, por culpa sua, por um acidente de viação em consequência do qual faleceu o seu cônjuge, passageiro desse veículo, de ser indemnizado pelos danos patrimoniais que sofreu em razão desse falecimento.”
Conforme se extrai da formulação da declaração transcrita, o TJ entendeu que “no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça (…) cabe a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Além disso, o Tribunal pode entender ser necessário levar em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não tenha feito referência no enunciado da sua questão (acórdão de 1 de fevereiro de 2017, Município de Palmela, C-144/16, EU:C:2017:76, n.º 20 e jurisprudência referida).”.
E nessa medida, por resultar da “decisão de reenvio que, no acórdão em que alegadamente violou as disposições da Segunda e da Terceira Diretiva, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que o direito português aplicável, em especial o artigo 483. º e o artigo 495.º, n. ° 3, do Código Civil, não permite a J. J. Neto de Sousa obter a indemnização que reclama.”, declarou este TJ “compreender a questão submetida como se destinando a saber se a regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que exclui o direito do condutor de um veículo automóvel, responsável, por culpa sua, por um acidente de viação em consequência do qual faleceu o seu cônjuge, passageiro desse veículo, de ser indemnizado pelos danos patrimoniais que sofreu em razão desse falecimento.”.
Ainda e como pressupostos do assim decidido recordou o TJ que:
- (26) “o objetivo da Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta dos respetivos preâmbulos, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdãos de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, C-409/09, EU:C:2011:371, n.º 23, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 26).”;
- (27) “A Primeira Diretiva, conforme completada pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe aos Estados-Membros que garantam que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro, precisando, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que esse seguro deve cobrir (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/10, EU:C:2012:656, n.º 27 e jurisprudência referida)”;
- (28) “a obrigação de cobertura pelo seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos no âmbito da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional (acórdãos de 17 de março de 2011, Carvalho Ferreira Santos, C-484/09, EU:C:2011:158, n.º 31, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/10, EU:C:2012:656, n.º 28)”;
- (29) “A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, como decorre do seu objeto e da sua redação, não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado atual do direito da União, os Estados-Membros são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 29 e jurisprudência referida)”;
- (30) “Assim sendo, os Estados-Membros têm a obrigação de garantir que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, aplicável de acordo com o seu direito nacional, esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 30 e jurisprudência referida)”;
- (31) “Devem, além disso, exercer as suas competências no respeito do direito da União, e as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (v., neste sentido, acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 31)”;
- (32)” O Tribunal já declarou que estas diretivas ficariam privadas desse efeito se, com fundamento na contribuição do lesado para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstratos, recusasse à vítima o direito a ser indemnizada pelo seguro obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado (acórdãos de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, C-409/09, EU:C:2011 :371, n.º29, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:20l2:656, n.º 32)”;
- (33) “No entanto, no processo principal, há que salientar que o direito a indemnização de J.J. Neto de Sousa não é afetado devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis por disposições em matéria de seguros, mas devido ao regime nacional de responsabilidade civil aplicável.”;
- (34) Com efeito, a legislação nacional em causa no processo principal, conforme interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça, tem por efeito excluir o direito do condutor de um veículo automóvel, enquanto responsável por um acidente de viação, de ser indemnizado por um dano próprio que tenha sofrido na sequência desse acidente”;
- (35) Esta legislação não é assim suscetível de limitar a cobertura do seguro de responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros a que o segurado pudesse ter direito (v., por analogia, acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:20l2:656, n.º 35);
- (36) “Nestas condições, há que constatar que a legislação nacional em causa no processo principal não afeta a garantia, prevista pelo direito da União, de que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, determinada de acordo com o direito nacional aplicável, seja coberta por um seguro conforme com a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas (v., por analogia, acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 38”;
- (37) “Esta consideração não é posta em causa pelo facto de os danos patrimoniais sofridos por J. J. Neto de Sousa decorrerem do falecimento da sua esposa, passageira do veículo que ele conduzia quando causou o acidente. Com efeito, as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio parecem indicar que o processo principal não tem por objeto o direito a indemnização dos danos sofridos por uma vítima que tem a qualidade de passageiro de um veículo envolvido num sinistro, mas o direito a indemnização dos danos sofridos pelo condutor responsável por esse sinistro.”.
*
Na base da decisão dos EM de instituir uma União Europeia à qual atribuíram competências para atingir os seus objetivos comuns, está o escopo da progressiva integração europeia.
União esta fundada no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, ambos de igual valor jurídico.
Do artigo 4º do TUE resulta a consagração do princípio da lealdade europeia a que os EM e a União estão vinculados, com vista a se respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.
Regendo-se a delimitação das competências da União pelo princípio da atribuição. E o exercício das competências da União pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (artigo 5º n.º 1 do TUE).
Ao TFUE coube organizar o funcionamento da União e determinar os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. Desde logo definindo os domínios em que tem competência exclusiva (artigo 3º) e competência partilhada (artigo 4º).
A instituição da União Europeia (sucedendo a Comunidade Europeia), com a atribuição de competências para atingir os objetivos comuns delineados pelos EM, algumas das quais exclusivas, bem evidenciam como a ideia do Estado Soberano associada à primazia da Constituição Nacional deu lugar ao primado do Direito da União, consagrado aliás na CRP – artigo 7º n.º 6 e 8º n.º 4.
O primado do DU sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do DU – enquanto Ordem Jurídica Uniforme[1], integrada no sistema jurídico dos EM que como tal se impõe aos seus tribunais, penetrando na ordem jurídica interna para aí produzir os seus efeitos, como desde logo o admitiu o TJ no caso Costa/Enel – Processo 6/64.
Por tal o DU enquanto Direito comum aos diversos EM exige uma interpretação e aplicação uniforme nesses mesmos EM – Princípio da Interpretação Conforme ou compatível com o direito da União Europeia - consequentemente e por tal tendo o TJ assumido supremo relevo na criação e desenvolvimento do Direito Comunitário a partir dos Tratados. Servindo-se para tal e sob impulso dos tribunais nacionais dos diversos EM [Tribunais funcionalmente europeus, em cooperação judiciária], das questões prejudiciais que lhe foram sendo apresentadas ao abrigo do atual artigo 267º do TFUE[2].
Do corpo deste artigo 267º resulta que o TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar o Direito Comunitário e igualmente para apreciar da sua validade. A função da interpretação assumiu, contudo, maior relevo na jurisprudência comunitária porquanto só através desta foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito Comunitário pelos diversos tribunais nacionais dos EM.
De realçar desde já que objeto das questões prejudiciais são apenas e conforme indicado no citado artigo 267º, atos de direito comunitário – entre os quais se incluem Acordos internacionais que obrigam as Comunidades porque celebrados diretamente pela comunidade ou então pelos EM com terceiros.
Neste caso, porém, apenas quando tais acordos contenham cláusula atribuindo expressamente competência para o efeito ao TJ.
Uma vez apreciada uma questão prejudicial e em obediência ao princípio da interpretação uniforme do DU, o decidido vincula todos os tribunais dos EM, ao abrigo do sistema do precedente que caracteriza o sistema da common law. Sem prejuízo de e quando necessário poder o TJ modificar a sua jurisprudência quando confrontado de novo com a mesma questão prejudicial, se o carácter evolutivo da integração europeia justificar tal alteração.[3]
Esta ideia do primado do DUE não significa contudo que exista uma situação de hierarquia entre a União e os EM porquanto as normas não precedem do mesmo sujeito. Assim o que este princípio implica é antes uma “preferência aplicativa em benefício da própria funcionalidade sistémica. (…) o primado apenas resolve o problema da convivência entre normas provenientes de distintas fontes, designadamente normas nacionais e normas europeias que serão aplicadas inevitavelmente sobre o mesmo território e idênticos destinatários.”[4]
Da “Jurisprudência Principialista”[5]
Conforme já supra fizemos referência, com o fim de instituir uma União Europeia – fundada no TUE e no TFUE - atribuíram os EM competências à mesma com vista a permitir a prossecução dos objetivos comuns delineados. Para tal se vinculando os EM e a UE a respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados – desta obrigação comum resultando a consagração do princípio da lealdade europeia (vide artigo 4º n.º 3 do TUE, anterior artigo 10º do TCE).
Deste princípio da lealdade e densificando o mesmo, o TJ deduziu jurisprudencialmente e na análise do caso concreto, ao longo dos 50 anos de integração europeia, uma série de outros princípios, designadamente:
1) o princípio do primado do DUE sobre o direito nacional – como consequência do qual a aplicação do direito nacional incompatível com o DUE não é aplicado; suprimindo-se ou reparando-se as consequências de um ato nacional contrário o DUE; estando os EM obrigados a fazer respeitar o DUE.
2) o princípio do efeito direto das normas europeias – por força do qual os particulares podem invocar normas europeias que imponham deveres/reconheçam direitos de forma suficientemente clara e incondicionada, inclusivamente contra normas nacionais violadoras do DUE;
3) princípio da efetividade e princípio da equivalência do DUE – garantindo o efeito útil das disposições europeias através das autoridades nacionais e assegurando que as pretensões decorrentes do DUE obtêm idêntica proteção às pretensões decorrentes do direito nacional;
4) princípio da interpretação conforme – visando a interpretação e aplicação das disposições nacionais em sentido compatível com o DUE;
5) princípio da responsabilidade do Estado por violação das obrigações europeias – impondo a indemnização dos particulares afetados;
6) princípio da tutela jurisdicional efetiva – fazendo depender a efetividade do DUE da garantia judicial das suas normas; integrando o direito de acesso à justiça; o direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo; consagrando a aplicação de providências cautelares tendentes a evitar danos irreparáveis nos direitos dos particulares mesmo quando estas não tenham previsão ou estejam proibidas pelo direito nacional.[6]
O aqui autor/recorrente fundou a presente ação de responsabilidade civil na violação das obrigações europeias do EP, invocando ainda desrespeito do princípio da interpretação conforme, já que alegou ter o tribunal superior violado o direito da união europeia ao fazer errada interpretação de diretivas comunitárias, bem como ao não ter procedido ao por si requerido reenvio prejudicial.
Sendo entendimento pacífico que o reenvio é obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se [e tal como invocado na decisão do STJ que ora é fundamento desta ação] a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação, quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM, importa aferir se tal clareza se verificava.
Exceção – à obrigação de reenvio - que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar. Porquanto então o decidido vincula os diversos tribunais nacionais dos EM.
O nosso tribunal superior entendeu, em suma, que as normas comunitárias [por referência aos normativos invocados pelo recorrente] visam o regime do seguro obrigatório automóvel, deixando às normas internas o próprio da responsabilidade civil.
Mais expressou o entendimento de que o esforço de aproximação das legislações nacionais relativamente ao seguro obrigatório automóvel tem como escopo particularmente relevante, se não essencial, a proteção das vítimas mormente quanto a indemnização por danos pessoais. Neste campo e quanto ao caso dos passageiros tendo invadido o regime da responsabilidade civil, ao declarar irrelevante a contribuição culposa do próprio sinistrado ou ao determinar-se oposição a qualquer exclusão por os passageiros serem membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente dum sinistro se encontre coberta pelo seguro.
Fora destas situações concluindo ter o TJ deixado a análise da pretensão indemnizatória para o regime da responsabilidade civil de cada EM.
E em abono da sua posição invocou precisamente diversa jurisprudência do TJ.
Revertendo agora para o Ac. do TJ que se pronunciou sobre o pedido de reenvio prejudicial, temos que:
- o TJ no considerando (26) recordou que o objetivo da “Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta dos respetivos preâmbulos, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdãos de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, C-409/09, EU:C:2011:371, n.º 23, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 26).”;
- e no considerando (27) recordou que “A Primeira Diretiva, conforme completada pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe aos Estados-Membros que garantam que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro, precisando, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que esse seguro deve cobrir (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/10, EU:C:2012:656, n.º 27 e jurisprudência referida)”;
- no considerando (28) ainda deu nota de que “a obrigação de cobertura pelo seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos no âmbito da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional (acórdãos de 17 de março de 2011, Carvalho Ferreira Santos, C-484/09, EU:C:2011:158, n.º 31, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/10, EU:C:2012:656, n.º 28)”;
- finalmente no considerando (29) acima reproduzido recordou ter já declarado que as “Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, como decorre do seu objeto e da sua redação, não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado atual do direito da União, os Estados-Membros são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:2012:656, n.º 29 e jurisprudência referida)”.
Apenas sendo vedado aos EM no exercício das suas competências privar tais diretivas do seu efeito útil.
Efeito útil que o TJ igualmente afirmou ter já declarado para esse efeito “que estas diretivas ficariam privadas desse efeito se, com fundamento na contribuição do lesado para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstratos, recusasse à vítima o direito a ser indemnizada pelo seguro obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado (acórdãos de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, C-409/09, EU:C:2011 :371, n.º29, e de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/l0, EU:C:20l2:656, n.º 32)” [vide considerandos (31) e (32) acima reproduzidos.”
De todos estes considerandos e respetiva jurisprudência nos mesmos citada temos que concluir em primeiro lugar que o objetivo, âmbito de aplicação, obrigação de cobertura e efeito útil pretendido pelas Diretivas invocadas é matéria sobre a qual o TJ já havia se pronunciado, deixando por tal claro o sentido interpretativo a seguir quanto às mesmas, no âmbito da pronúncia ocorrida e acima mencionada.
Tal como se havia já pronunciado quanto à não intenção de harmonizar os regimes de responsabilidade civil entre os EM, a quem lhes reconheceu liberdade para determinar o regime da responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos.
A decisão fundamento desta ação atendeu a tal interpretação, tendo em seu abono invocado precisamente jurisprudência do TJ.
A final tendo concluído que a situação do A. por se não enquadrar no âmbito de aplicação de tais Diretivas – já que em causa não está o dano do passageiro vítima no acidente, mas antes o dano reclamado pelo cônjuge da vítima, ele próprio lesante e com base em direito que nasce na sua própria esfera jurídica – convoca a aplicação das normas de origem interna, nomeadamente o regime da responsabilidade civil.
Do exposto é de concluir que o tribunal superior não violou a obrigação de suscitar a questão prejudicial, porquanto e pelos motivos expostos existia já basta jurisprudência do TJ tornando clara a interpretação a dar às normas convocadas.
Por outro lado e até no seguimento da anterior conclusão, a interpretação seguida pelo nosso tribunal não padece de qualquer erro.
Isso mesmo o declarou o TJ através do pedido de reenvio já formulado nestes autos.
Pelo que e ainda que tivesse ocorrido aquela violação - o que conforme já dito se entende não ter ocorrido - pela inexistência de erro de interpretação declarada sempre claudicaria a pretensão do autor/recorrente por falta de nexo causal, então entre aquela violação e o alegado dano.
Conclui-se assim pela improcedência da pretensão do A. por fundada em erro judiciário que assim se demonstra não ter ocorrido.
Implicando o assim decidido, ainda que com base noutros fundamentos, a improcedência do recurso interposto.
***
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto por B..., consequentemente se mantendo a decisão recorrida ainda que por fundamentos diversos.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 2017-12-14
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
António Eleutério
__________
[1] Vide Fausto Quadros in “Direito da União Europeia”, ed. Almedina 2004, p. 378 e segs.. Onde este autor define o DU como Ordem Jurídica Uniforme, por contraponto ao Direito Internacional definido como um Direito fragmentário - na medida em que a sua receção na ordem interna de cada Estado é concretizada através dos filtros das constituições dos diferentes Estados e portanto submetido aos diferentes critérios de cada uma dessas constituições – vide Fausto Quadros in ob. cit., p. 400.
[2] Enquanto os tratados constitutivos não foram dotados de um catálogo de direitos fundamentais, coube ao TJ durante 40 anos recortar jurisprudencialmente a proteção dos direitos fundamentais enquanto “princípios gerais” do DU, cujo respeito lhe competia assegurar – cfr. Alessandra Silveira em comentário ao artigo 51º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
O reconhecimento dos direitos fundamentais enquanto princípios gerais do direito teve o seu início no Acórdão Stauder de 1969, o qual inaugurou o método de tutela dos direitos fundamentais baseado no recurso aos princípios gerais do direito, desde então entendidos como parâmetros de apreciação da validade dos atos jurídicos europeus, convocados pelo objetivo de subordinar as decisões europeias ao regime substancial e processual de uma autêntica União de Direito. Jurisprudência esta que depois evoluiu, por forma a se afirmar hoje que o método de proteção dos direitos fundamentais na UE assenta basicamente nos princípios constantes dos tratados constitutivos; nas tradições constitucionais comuns aos EM (bastando ser um princípio reconhecido na ordem jurídica de um EM e que resulte compatível com a estrutura e objetivos da ordem jurídica europeia – em consonância com o princípio do nível de proteção mais elevado consagrado no artigo 53º da Carta); nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos que os EM subscreveram, nomeadamente CEDH por força do artigo 6º do TUE –vide Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” – Doutrina e Jurisprudência, ed. Quid Juris, ed. 2009, p. 69 e segs..
[3] Fausto Quadros in ob. cit., p. 482 dá nota a título de exemplo da evolução progressiva que o TJ imprimiu à Teoria do Primado, através dos casos Costa/Enel, Simenthal, Wachauf e Factortame.
[4] Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” já citado, p. 119.
[5] Conceito desenvolvido por J.J.Gomes Canotilho e citado por Alessandra Silveira in “50 anos de Integração à luz da Jurisprudência Principialista do Tribunal de Justiça – a Lealdade Europeia” in 50 Anos do Tratado de Roma, ed. Quid Juris, 2007, p. 105 e segs..
[6] Cfr. Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” supra já citado, p. 95 e segs..