Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0824176
Nº Convencional: JTRP00041601
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PACTO DE JURISDIÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
VALIDADE
CONVENÇÃO DE LUGANO
Nº do Documento: RP200807080824176
Data do Acordão: 07/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 279 - FLS 160.
Área Temática: .
Sumário: I - Os requisitos de validade formal dos pactos de jurisdição, previstos nos arts. 17º da Convenção de Lugano e da Convenção de Bruxelas, não são cumulativos, mas sim alternativos entre si.
II - É de admitir a existência de cláusulas de jurisdição constantes de condições contratuais gerais; o conteúdo destas cláusulas deve considerar-se plenamente válido quando é susceptível de ser controlado pela parte que actue com uma diligência normal.
III - Não constitui "inconveniente grave", à luz do art. 99º nº 3 al. c) do CPC, a deslocação da parte residente em Portugal a um tribunal suíço, quando a execução do contrato previa já diversas transacções transfronteiriças.
IV - À luz dos arts 17º das Convenções de Lugano e de Bruxelas, a designação das partes tanto pode recair sobre um tribunal concretamente determinado como sobre os tribunais genericamente considerados de um Estado contratante.
V - O art. 18º da Convenção de Lugano deve ser interpretado no sentido de que consente que o réu não só excepcione a incompetência, mas também apresente conjuntamente, de forma subsidiária, a defesa relativa ao mérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo comum e forma ordinária nº …./06.7TBMAI, do .º Juízo Cível do Tribunal da Comarca da Maia.
Autor/Agravante – B………. .
Réu/Agravado – C………. .

Pedido
Que o Réu seja condenado a pagar ao Autor a quantia de € 68.613,88, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos e vincendos, ascendendo os primeiros a € 35 615,08.
Tese do Autor
No exercício da respectiva actividade de produção de espectáculos, celebrou um acordo com o Réu, em 11/12/01, acordo pelo qual este Réu se obrigava a agenciar a contratação de um artista, para actuar num espectáculo produzido pelo Autor.
O Autor pagou o preço contratado com o Réu – USD 54.000 – bem como, nos termos acordados, o custo de seis passagens aéreas, em classe executiva, de Inglaterra para Portugal e de Portugal para Inglaterra – USD 4.443, tudo no valor total peticionado em euros.
Porém, o Réu não cumpriu a prestação respectiva, tendo o artista que prometeu deslocar ao evento do Autor faltado a este mesmo evento.
A cláusula 19ª do acordo escrito estabelecido entre as partes (assinada pelo Autor) convencionou um pacto de jurisdição (segundo o qual os litígios decorrentes do contrato seriam dirimidos nos tribunais suíços), mas o conteúdo de tal cláusula não foi explicado ao Autor.
Mas tal cláusula também se não aplica ao acordo subjudice, já que o Réu se defendeu perante um tribunal português, não visando arguir em exclusivo a incompetência territorial, nos termos do artº 18º da Convenção de Lugano e Regulamento 44/2001 (CE).
Tal cláusula também não preenche todos os requisitos previstos no artº 100º nºs 1 e 2 C.P.Civ., nomeadamente na parte em que exige a designação das questões a que o acordo se refere e o critério de determinação do tribunal competente, pelo que se mostra inválida.

Tese do Réu
Face ao pactuado na cláusula 19ª, a presente acção deveria ter sido intentada em tribunais suíços, pelo que existe a violação de um pacto privativo de jurisdição – artº 99º C.P.Civ.

Despacho Recorrido
Na decisão recorrida, o Mmº Juiz “a quo” julgou os tribunais portugueses incompetentes, em razão da nacionalidade, para conhecer da matéria dos autos, pelo que absolveu o Réu da instância.

Conclusões do Recurso de Agravo (resenha):
1 – Os requisitos de validade dos pactos de atribuição de competência encontram-se regulados na Convenção de Lugano (artº 17º) – são requisitos cumulativos a sua redução a escrito, estar conforme os usos estabelecidos entre as partes e estar em conformidade com os usos que as partes devam conhecer e observar no comércio internacional.
2 – Os dois últimos requisitos não estão preenchidos, na medida em que qualquer contraente normal esperaria que em caso de litígio fossem competentes os tribunais portugueses, quando ambas as partes são portuguesas, possuem domicílio profissional em Portugal e a obrigação devia ser cumprida neste país e nem a circunstância de o Recorrido possuir dois domicílios profissionais inviabilizaria tal conclusão.
3 – O contrato e a dita cláusula não foram objecto de negociação entre as partes, estando o julgador obrigado a apurar se o Recorrido havia cumprido o seu dever de informação e se a cláusula foi efectivamente objecto de consenso, pois que se trata de um contrato de adesão imposto ao Recorrente.
4 – Tal cláusula não preenche os requisitos previstos no artº 100º nºs 1 e 2 C.P.Civ., pois não designa qual o critério de determinação considerado na escolha dos tribunais suíços.
5 – Nos termos da Convenção nº80/934/CEE, aplicável às obrigações contratuais internacionais, a escolha de jurisdição estrangeira, sempre que todos os outros elementos se localizem noutro país, não pode prejudicar a aplicação das disposições não derrogáveis por acordo, e o contraente, para demonstrar que não deu o seu acordo a tal cláusula, pode invocar a lei da sua residência habitual – artºs 99º e 100º C.P.Civ.
6 – Na exegese do artº 99º nº3 al.c) C.P.Civ., o critério da escolha deve corresponder a um interesse sério de uma ou de ambas as partes, desde que não envolva inconveniente grave para a outra; não são relevantes para o preenchimento do conceito de interesse sério manifestações de oportunismo, capricho ou mera comodidade, o que resulta dos autos, numa solução que impediria o Recorrente credor de fazer valer os seus direitos e produzir prova.
7 – Sendo a cláusula inválida, deve recorrer-se às normas gerais dos artºs 2º e 5º da Convenção de Lugano – nos termos do artº 2º, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas nos tribunais desse Estado; ora, o Recorrido possui domicílio profissional em Portugal.
8 – Nos termos do artº 5º, seriam competentes os tribunais do lugar onde a obrigação devia ser cumprida, i.é, Portugal.
9 – Nos termos do artº 18º da Convenção, é competente o tribunal de um estado contratante perante o qual o demandado compareça, desde que tal comparência não tenha como único objectivo arguir a incompetência; ora, nos autos, o Recorrido também contestou o pedido do Recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Factos Julgados Provados em 1ª Instância
Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual, à alegação das partes e ao despacho impugnado, supra resumidamente elencados.

Fundamentos
Em função das conclusões apresentadas pela Recorrente, as questões em análise nos presentes autos prendem-se com a invalidade da cláusula contratual atributiva de jurisdição aos tribunais suíços, sob os seguintes ângulos:
- preenchimento no caso dos requisitos do artº 17º da Convenção de Lugano (implicando a questão de saber se a cláusula foi objecto de negociação efectiva, segundo jurisprudência do TJCE);
- preenchimento do requisitos dos artºs 99º e 100º C.P.Civ., designadamente por força do disposto na Convenção nº80/934/CEE;
- aplicação ao caso do disposto nos artºs 2º, 5º e 18º da Convenção de Lugano, no caso de se optar pela invalidade do pacto de jurisdição.
I
Não se encontra em dúvida nos autos a aplicação ao caso da Convenção de Lugano, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº33/91, in D.R. Is.-A de 30/10/91, vigorando em Portugal igualmente desde 1/7/92 (Aviso nº94/92, in D.R. Is.-A de 10/7/92).
Na verdade, Suíça e Portugal são parte desta Convenção (Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Cível e Comercial), concluída em Lugano em 16/9/88 – a Suíça não outorgara, nem posteriormente outorgou, a Convenção de Bruxelas de 27/9/68.
A Convenção de Lugano, sendo posterior in tempore à Convenção de Bruxelas, influenciou esta última, a qual incorporou normas da Convenção de Lugano, através da designada Convenção de Adesão de 1989.
Ora, uma destas normas incorporada pela Convenção de Bruxelas, directamente da Convenção de Lugano, é a norma do artº 17º dessa Convenção de Bruxelas, referente aos pactos de jurisdição, estabelecidos entre os privados cujas relações jurídicas a ou as Convenções visam regular.
Os pactos de jurisdição estão assim regulados de forma idêntica quer no artº 17º da Convenção de Lugano, quer no artº 17º da Convenção de Bruxelas, sendo que, para todos os efeitos, é a primeira que se aplica à factualidade em discussão neste processo.
Ora, numa primeira observação, e em contrário às proficientes alegações apresentadas, há que constatar que os requisitos de validade formal dos pactos de jurisdição, na Convenção de Lugano, não são cumulativos, mas sim alternativos entre si.
A saber, o pacto deve ser celebrado:
a) por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou
b) em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) no comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, seja, amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.
Ora, não está em causa nos autos a celebração por escrito de um pacto, também subscrito pelo Autor, do qual consta que as cláusulas adicionais anexas são parte integrante do contrato.
Essas ditas cláusulas estão todas assinadas pelo Autor.
Dessas cláusulas emerge a 19ª, nos termos da qual “o presente acordo rege-se, em todos os aspectos, pela lei suíça e os tribunais suíços serão os eleitos para qualquer litígio dele emergente”.
Não oferece dúvida que, pretendendo o Autor fazer actuar as consequências do incumprimento contratual do Réu, a acção constitui um “litígio emergente do contrato”.
O Autor invoca tratarem-se de “cláusulas contratuais gerais” que não lhe foram comunicadas, ou das quais não tinha conhecimento – para todos os efeitos, quanto à cláusula 19ª que nos ocupa.
Ora, socorrendo-nos da doutrina estabelecida por Teixeira de Sousa e Dário Vicente, Comentário à Convenção de Bruxelas, 1994, pgs. 121 a 123, não apenas se admite a existência de cláusulas de jurisdição constantes de condições contratuais gerais, como o conteúdo destas cláusulas deve considerar-se plenamente válido quando é susceptível de ser controlado pela parte que actue com uma diligência normal.
Aliás, se bem se atentar, todos os demais requisitos de validade formal do pacto, constantes das als. b) e c) do artº 17º, são “menos fortes” e, até, “mais flexibilizados”, no que concerne uma remissão para os usos “que as partes conheçam ou devam conhecer”.
Desta forma, não podemos sufragar uma afirmação genérica, tal como é efectuada pelo Autor, no sentido de que não conhecia a cláusula, ou que a mesma lhe não foi explicada.
Na verdade, todo o contrato se encontra escrito em língua inglesa, a remissão para as “cláusulas adicionais” é expressa e não é crível que o Autor desconhecesse o “novo esperanto” que constitui a língua inglesa, numa pequena parte do contrato, mas já não o desconhecesse na parte em que o contrato estabelecia obrigações para ele Autor, que cumpriu adequadamente, segundo alega.
Acresce que, consoante a doutrina autorizada já citada, estamos em face de um possível desconhecimento subjectivo, mas moderado por uma obrigação objectiva – aquilo que o Autor, enquanto contratante, devia conhecer, caso actuasse com uma diligência normal.
E, nesse sentido, é óbvio que a cláusula 19ª não lhe poderia de qualquer forma ter passado despercebida.
II
Existe todavia, uma afirmação constante das alegações de recurso que não podemos sufragar – a de que, à luz do disposto no artº 99º nº3 C.P.Civ. (designadamente na al.c), a convenção de foro dos autos não seria válida.
É certo que a eleição do foro só é valida se justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra.
Em primeiro lugar porque a execução contratual não era integralmente efectuada em Portugal, como se afirma.
Consoante se encontra assente no processo, a prestação do Autor foi efectuada em dólares (USD) e remetida, por transferência bancária, para uma entidade na Suíça (Zurique).
O Réu comprometia-se a agenciar a presença de um determinado artista, de nacionalidade inglesa, em Portugal, em determinada data.
O contrato foi redigido em língua inglesa.
O Réu indicou no contrato uma residência, ou domicílio, na Suíça.
O endereço constante da Petição Inicial, se bem que na Maia (Portugal), não passa de um endereço de escritório comercial.
Portanto, a conclusão de que não existe interesse sério do Réu em eleger o foro suíço é desprovida de fundamento fáctico.
Também a conclusão de que o facto de o Autor ter de fazer valer os seus direitos na jurisdição suíça é financeiramente incomportável para si Autor encontra-se desprovida de qualquer arrimo fáctico. A verdade é que grande parte da prova a produzir pelo Autor é meramente documental e foi até já produzida nos autos; de todo o modo, trata-se de uma afirmação indemonstrada.
De facto, o inconveniente a que a lei alude é o inconveniente “grave” – e quem se relaciona comercialmente a nível internacional necessariamente sabe que eventuais consequências da execução ou da inexecução contratual passam pelo “estrangeiro”, expressão hoje menos usada, face à prevalecente utilização dos mecanismos jurídicos da “aldeia global” (ut Ac.S.T.J. 23/4/96 Bol.456/350).
Confronte-se até o valor do pedido (o qual, em parte, corresponde a uma prestação efectuada, pelo Autor ao Réu, em 2001 - € 104 228,96).
Assim, não apenas se não demonstra o inconveniente “grave” para o Autor em ter de recorrer à jurisdição suíça, como é de concluir que a economia do contrato invocado o justifica.
III
Por outro lado, de acordo com os autores citados (Teixeira de Sousa e Dário Vicente, op. cit., pg. 124), “a designação das partes tanto pode recair sobre um tribunal concretamente determinado como sobre os tribunais genericamente considerados de um Estado contratante; em qualquer caso, a jurisdição competente deve ser susceptível de determinação segundo critérios objectivos no momento da propositura da acção, ainda que para esse efeito haja que recorrer-se ao direito interno do país designado”.
E quanto ao artº 18º da Convenção de Lugano (reproduzido no actual artº 18º da Convenção de Bruxelas), estabelecendo que a parte que compareça em juízo e não argua a incompetência do tribunal torna esse tribunal ipso facto competente para conhecer do litígio, deve ser interpretado no sentido de que consente que o Réu não só excepcione a incompetência, mas também apresente conjuntamente, de forma subsidiária, a defesa relativa ao mérito (Teixeira de Sousa e Dário Vicente, op. cit., pgs. 40 e 41, estribados na jurisprudência do TJCE que invocam no local citado).
Todo o citado acervo de razões exclui a invocação da invalidade ou ineficácia da cláusula contratual, invocada no petitório, atribuindo competência para os litígios emergentes do contrato aos tribunais suíços, como válida cláusula de jurisdição que a consideramos.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Os requisitos de validade formal dos pactos de jurisdição, previstos nos artºs 17º da Convenção de Lugano e da Convenção de Bruxelas, não são cumulativos, mas sim alternativos entre si.
II – É de admitir a existência de cláusulas de jurisdição constantes de condições contratuais gerais; o conteúdo destas cláusulas deve considerar-se plenamente válido quando é susceptível de ser controlado pela parte que actue com uma diligência normal; assim, o desconhecimento subjectivo das cláusulas gerais é moderado por uma obrigação objectiva – aquilo que o Autor, enquanto contratante, devia conhecer, caso actuasse com uma diligência normal.
III – Não constitui “inconveniente grave”, à luz do artº 99º nº3 al.c) C.P.Civ., a deslocação da parte residente em Portugal a um tribunal suíço, quando a execução do contrato previa já diversas transacções transfronteiriças.
IV – À luz dos artºs 17º das Convenções de Lugano e de Bruxelas, a designação das partes tanto pode recair sobre um tribunal concretamente determinado como sobre os tribunais genericamente considerados de um Estado contratante.
V – O artº 18º da Convenção de Lugano (reproduzido no actual artº 18º da Convenção de Bruxelas) deve ser interpretado no sentido de que consente que o Réu não só excepcione a incompetência, mas também apresente conjuntamente, de forma subsidiária, a defesa relativa ao mérito.

Decisão que se toma neste Tribunal da Relação, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República:
No não provimento do agravo, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo Agravante.

Porto, 08/VII/08
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa